Terra Brasilis, Ano 2002, 1(1) O QUE TEM EM COMUM O HOMO SAPIENS, O CAESALPINIA ECHINATA E A NITRUN FLUOR VIOLACEUM? - UM TEXTO GOULDIANO. Prof. Dr. Paulo de Tarso A. Castro(UFOP) - [email protected] Houve um tempo no Brasil, não muito distante, em que pelo menos os nomes, ou pré-nomes de estrangeiros eram traduzidos para o português. As noticias e a literatura tratavam-nas, as pessoas ilustres da história e da ciência mundial, como Henrique VIII, Napoleão Bonaparte e Augusto Comte. Mesmo Charles Chaplin não escapou desta sina; se não em seu próprio nome, pelo menos no seu personagem Charlie, o Carlitos, nome pelo qual até hoje é conhecido. Pode-se pensar que tal atitude seja fruto da latinização dos nomes, quando os livros eram todos escritos em latim e a educação nas letras era privilégio de algumas castas, em especial a nobreza e a religiosa. Mas, esta postura não perdurou até o final do século XVIII. Hoje, soaria estranho referir-se a Peter Lund como Pedro Guilherme Lund ou a Alexander von Humboldt como Alexandre de Humboldt mas, pelo menos até os anos 1950, este era um procedimento comum. Vários carlos tiveram influência no desenvolvimento das ciências. Ao longo do século XIX muitos fundamentos e o modo moderno de fazer ciências naturais foram forjados por cientistas tais como os Carlos Lyell e Carlos Darwin. No Brasil, não se pode renegar a contribuição de Carlos Frederico Hartt e Carlos Frederico Filipe von Martius e seu parceiro de viagem João Batista von Spix. Mas, quando se fala de geociências, um carlos nem sempre é lembrado: Carlos Linneu (Carl Linnaeus, Carl von Linné ou ainda Carolus Linnaeus) o sueco que elaborou um sistema de classificação das coisas naturais no século XVIII. Em seu Sistema Natural (Sistema Naturae Per Regna Tri Naturae Secundum Classes Ordines Genera Species cum Characteribus, Differentis, Synonymis, Locis - Sistema Natural Para Três Reinos Naturais Segundo Classes, Ordens, Gênero, Espécies, com Características, Diferenças, Sinônimos e Lugares, figura 1), Linneu distinguiu três reinos, o animal, com cerca de 1000 animais classificados, o vegetal, com 3500 plantas e o mineral (Regnum lapideum, reino das pedras), onde classificou cerca de 2000 espécies entre minerais, rochas e fósseis. Sua classificação para o reino mineral incluía a hierarquização em três classes distintas, Petrae (Pedras), Minerae (Pedras Compostas) e Fossilia (Pedras agregadas e fósseis). A classe Petrae era composta por três ordens: Apyri (não modificáveis pelo fogo, com os gêneros Asbestus, Amiantus, Ollaris, Talcum e Mica), Calcarii (calcário, com os gêneros Schistos, Spatum e Mamor) e Vitrescentes (vítreas, com os gêneros Cos, Silex e Quartzum). Um aspecto que interessa à cultura científica do Brasil está no fato de que havia uma relação estreita entre Carlos Linneu e Domenico Vandelli (ou Domingos Vandelli), um naturalista italiano nascido em Pádua em 1735, que viria a ser professor na Universidade de Coimbra e fundador do Jardim Botânico de Coimbra e diretor do Jardim Botânico Real da Ajuda. Além da botânica ser o maior interesse de ambos, o sistema de classificação concebido por Linneu era também utilizado por seu discípulo www.geobrasil.net Terra Brasilis, Ano 2002, 1(1) Vandelli. As relações de Vandelli com o Brasil se deram por meio de seus alunos, em especial Alexandre Rodrigues Ferreira e José Bonifácio de Andrada e Silva. José Bonifácio também teve aulas de mineralogia com Abraham Gottlob Werner (Abraão Gottlob Werner, o netunista). Por intermédio de José Bonifácio e seus contemporâneos brasileiros, Vandelli teve acesso a amostras e informes sobre o país e publicou em 1789 nas Memórias Econômicas da Academia Real de Ciências de Portugal, o texto Sobre algumas produccções naturaes das Conquistas, as quaes ou são pouco conhecidas, ou não se aproveitão. Nessa obra, Vandelli discorre sobre a presença de diamante (Alumen gemma nobilis), águas marinhas (Borax berilus), ametistas (Nitrum fluor violaceum), quartzo (Quartzum selectum) e asbesto (Amiantum asbestus). José Bonifácio adotou um sistema misto de classificação e descrição dos minerais entre o de Linneu e o sistema de Werner, cujas bases eram as características físicas dos minerais. José Bonifácio, além de sua importância na fase de independência do Brasil, interessava-se pelo meio natural do país. No texto Necessidade de uma Academia de Agricultura no Brasil (1821), Bonifácio fez severas críticas ao processo de degradação natural que o Brasil passava. Em sua vasta obra, além de citar e descrever ocorrências de alguns minerais no Brasil, José Bonifácio descobriu e descreveu quatro novos minerais em ocorrências no Velho Mundo: Escapolita, Criolita, Espodumênio e Petalita. Em uma conjunção ao longo dos séculos XVIII e XIX, o pensamento de importantes personagens da ciência mundial como Carlos Linneu, Domingos Vandelli e Abraão Werner veio desaguar nos primórdios da cultura científica natural brasileira que tem em José Bonifácio talvez o seu maior precursor. Independentemente do modo atual de escrever os nomes de estrangeiros, ou o modo reinante até os anos 1950, há uma notável influência do pensamento de Linneu na formação das ciências naturais no Brasil. A propósito, ao cumprir o papel de pai e acompanhar a sua evolução como cinéfila, tive o privilégio de assistir junto à minha filha, por tantas vezes quanto uma menina de três, quatro e cinco anos julga ser interessante assistir, a série de vídeos do ursinho Puff e seus adoráveis amigos (ou seria ursinho Pooh?; ou winnie the Pooh?, da obra de Milne 1925 e filmes de Disney, 1961 em diante). Após adquirir conhecimento sobre os personagens, indo até onde um homem pode ir na análise de personalidades como a do Leitão, pude perceber que o mesmo fenômeno acontece, mas de modo assíncrono com a ciência, com o nome de seus personagens (de Puff a Pooh e, o único personagem humano, de Cristóvão Robin a Christofer Robin), só que em um intervalo de aproximadamente 20 anos. Este texto foi escrito no estilo de Stephen Jay Gould, ou seria Estevão Jay Gould, ou melhor, Estevão Gralha Gould?* (*) Stephen Jay Gould (1941 – 2002), lecionou geologia e zoologia e foi curador da seção de Paleontologia- Invertebrados do Museu de Zoologia Comparada da Universidade de Harvard. Autor de vários livros, ensaios e coletâneas de ensaios em que fazia divulgação científica de qualidade, dentre os quais Dinossauro no Palheiro, O Sorriso do Flamingo e A Galinha e seus Dentes.", no lugar do trecho semelhante. www.geobrasil.net Terra Brasilis, Ano 2002, 1(1) Figura 1 – Fac-simile da folha de rosto do livro Sistema Naturae Per Regna Tri Naturae Secundum Classes Ordines Genera Species cum Characteribus, Differentis, Synonymis, Locis, de Carlos Linneu, edição de 1768. www.geobrasil.net