1 A “INTERVENÇÃO” DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO: UM PROBLEMA TEÓRICO OU CASUÍSTICO? Luís Cláudio Almeida Santos1 Sumário: 1.Introdução. 2. Optando pela teoria unitária do processo. 3.Destinação constitucional do Ministério Público. 4.O Ministério Público no processo penal e no processo civil.5.A casuística ou “para não dizer que não falei de flores”.6.Afinal, que tipo de parte é o Ministério Público? 7.A natureza jurídica do juízo de admissibilidade da participação do MP no processo civil.8.O problema da responsabilidade civil e as nulidades decorrentes da ausência do MP. 9.A racionalização da atuação do MP como critério de eficácia de desempenho.10.Processo civil coletivo e o Ministério Público.11.Considerações finais.Referências bibliográficas. 1. Introdução O que nos leva a escrever este artigo é a possibilidade de retomar, sob uma perspectiva eminentemente teórica, a análise da “intervenção” do Ministério Público no processo civil. Poderíamos oferecer a um problema como esse o tratamento de um problema casuístico.Todavia, acreditamos que transformar a “intervenção” do Ministério Público no processo civil em um problema teórico é a chave não apenas para revisitar a teoria, mas sobretudo para fazer tentativas exploratórias que podem conduzir a descobertas interessantes sobre um tema relativamente batido. 1 Promotor de Justiça, Professor da Aliança Francesa de Aracaju,ex-Professor de direito da UNIT, Bacharel em direito UFS, Licenciatura plena Francês-Português UFS, Mestrado em Direito Universidade Gama Filho, Mestrado em Sociologia UFS, doutorando em Sociologia UFS. 2 Antes de tudo, devemos esclarecer o que entendemos, inicialmente, por “intervenção”, “Ministério Publico” e “processo civil”. Começando pelo significado do termo “intervenção”, urge lembrar que segundo o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1975), intervenção se origina do latim interventione, que quer dizer, o ato de intervir, ou de se colocar de permeio, mediante iniciativa própria, entre as verdadeiras partes. Portanto, se, à primeira vista, o Ministério Público figura como um sujeito interposto e não como um sujeito ativo do processo civil, a análise da “intervenção” do Ministério Público enfrenta, para começo de conversa, dois desafios. Em primeiro lugar, necessita responder à pergunta: de onde se originam os parâmetros justificadores da presença deste sujeito processual interposto? E em segundo lugar, precisa deixar claro até que ponto o termo “intervenção” é adequado para refletir sobre a participação do Ministério Público no processo civil, sobretudo quando o processo civil é visto atualmente sob o ângulo publicista e instrumentalista (DINAMARCO, 2003). Para que os fundamentos da nossa posição neste artigo sejam facilmente compreendidos, julgamos oportuno nos situarmos também no debate teórico sobre a natureza dualista ou unitária do processo, o que faremos em breve. Antes de seguirmos em frente, vale a pena lembrar que, quanto ao Ministério Público, tivemos a oportunidade de defini-lo (SANTOS,2011), a partir do desenho que a nossa Constituição lhe deu. Portanto, para nós, o MP é um órgão de controle cuja função, a ser exercida através de procedimentos judiciais e extrajudiciais, é a de proteger a “ordem jurídica”, “o regime democrático” e “os interesses sociais e individuais indisponíveis” contra o risco da ineficácia normativa, inclusive em face dos Poderes constituídos. Note-se que por controle entendemos o conjunto de mecanismos de que se utiliza o Estado, inclusive através do Ministério Público, para produzir, manter e impor um imaginário social ou comunidade simbólica2 baseada tanto em valores ou ideologias quanto em uma determinada racionalidade normativa. Quanto às características da sociedade na qual o MP opera, preferimos a teoria social que a descreve como póstradicional, moderna à sua maneira, destituída, portanto, de um plano salvador ou de 2 Considerando a importância, sobretudo em sociedades de transição para a democracia como o Brasil, da função simbólica desempenhada pelo Ministério Público, no sentido da integração dos conflitos via métodos não violentos, pretendemos, tomando como ponto de partida inputs da teoria constitucional alemã e norte-americana, desenvolver melhor, em outra oportunidade, o nosso conceito de comunidade simbólica. 3 uma ordem tradicional compartilhada, e fragmentada pelo pluralismo de valores e o conflito permanente. Além das duas questões que suscitamos, uma sobre a fonte dos parâmetros de atuação do Ministério Público no processo civil, e a outra em relação à adequação do do sintagma “intervenção do Ministério Público” para os papeis desse órgão no processo civil, tentaremos neste artigo oferecer as nossas respostas às seguintes perguntas: o que pode e o que não pode fazer processualmente o Ministério Público na qualidade de fiscal da lei? Como se dá o juízo de admissibilidade da intervenção do MP no processo civil? Qual a responsabilidade civil do MP no processo civil como autor ou fiscal da lei? Como opera o sistema de nulidades processuais em relação à ausência do MP? E quais são as peculiaridades da participação do Ministério Público no processo civil coletivo? 2. Optando pela teoria unitária do processo Antes de aprofundarmos as primeiras questões que levantamos, urge antecipar o entendimento teórico que temos a respeito do problema da concepção dualista ou unitária do processo. Reconhecemos o valor relativo dos argumentos que o dualismo desenvolveu quanto aos seguintes aspectos: a relação de origem entre o processo civil e o direito civil, a existência de diferenças entre as formas de manifestação civil e penal da jurisdição e a necessidade da comprovação de uma base substantiva para a instauração da ação penal (SILVA e GOMES, 2000). Entretanto, a presença de conceitos, de noções e de princípios comuns, a exemplo de jurisdição, ação, defesa, processo, coisa julgada, recurso, preclusão, competência, princípios do contraditório, do juiz natural e do duplo grau de jurisdição, sem contar a interferência recíproca entre jurisdição civil e penal, é suficiente, teoricamente, a nosso ver, para se aceitar uma unidade funcional mínima do processo (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, 2009). Assim, o que distingue basicamente o processo civil é a natureza da pretensão a ser julgada. Isso não significa que estamos defendendo uma identidade entre o processo penal e o processo civil ou a ausência de peculiaridades inerentes aos ramos civil, penal e trabalhista do processo. No fim das contas, o que importa mesmo, para definir, de um modo geral, o processo, é a participação em procedimento cuja decisão vincula as partes,mediante o exercício de faculdades e poderes inerentes ao contraditório. 4 Em síntese grosseira, o processo civil se define, de modo finalístico, por resolver conflitos que gravitam em torno de questões reguladas ora pelo direito privado civil e comercial, ora pelo direito público administrativo, constitucional e tributário, enquanto o processo penal têm como foco os conflitos sobre a pretensão punitiva do Estado3. O processo civil, por sua vez, se subdivide em processo individual e processo coletivo. Na ação coletiva, embora os titulares do interesse objeto de proteção sejam indetermináveis ou determinados, o autor coletivo, dado o princípio da representatividade adequada, é tratado como parte única. No litisconsórcio, porém, há uma pluralidade de partes e de ações individuais, em cúmulo subjetivo. 3. Destinação constitucional do Ministério Público Com efeito, se quisermos compreender os parâmetros da atuação do Ministério Público no processo civil, devemos atentar, inicialmente, para a relação entre processo e Constituição. Essa relação é tomada no sentido duplo da Constituição-processo, ou seja, dos princípios constitucionais que se aplicam ao processo, e do processo-Constituição, isto é, do nexo instrumental entre a técnica processual e a realização da ordem jurídica prevista constitucionalmente (DINAMARCO, 2003). Ora, como afirma Alberton (2007), se interpretarmos os critérios legais de regulação da intervenção do Ministério Público no processo civil a partir da Constituição do Brasil, tenderemos a concluir junto com ele e o ex-Ministro do STF Sepúlveda Pertence (STF – Pleno. MS n. 21.239-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence. RTJ 147/129-30 ) que toda e qualquer presença do MP no processo civil, seja como uma “magistratura ativa de defesa impessoal”, seja como “fiscal da lei”, somente é justificável, estando em jogo uma das configurações axiológico-normativas em que se traduzem os seguintes conceitos jurídicos indeterminados “ordem jurídica”, “regime democrático”, “interesses sociais” e “interesses individuais indisponíveis”. Notem que os valores submetidos constitucionalmente à guarda do Ministério Público nada mais são, analiticamente, do que razões superiores de ordem pública para 3 Na esteira do raciocínio de outros processualistas, Dinamarco (Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2003) classifica os processos jurisdicionais segundo dois critérios, entre os quais o critério do fundamento jurídico-substancial da pretensão deduzida. 5 o MP agir em nome da “comunidade simbólica” desenhada pela ideologia resultante do pacto político-constitucional. Estamos tomando por valores determinadas preferências em relação a certos fins ou estados ideais de coisas aos quais se supõe que a Constituição atribui uma qualidade positiva hierarquicamente superior. Apesar de valores e princípios compartilharem o mesmo significado finalístico ou idealizado, valores, dado o seu caráter axiológico e não deontológico, não substituem a busca das normas, sob a modalidade de regras ou princípios. Valores servem como razões para superar, através da interpretação, a aplicação de regras a um caso concreto, ou para estabelecer conexões entre normas, mas, ao contrário dos princípios, os valores não criam a “obrigatoriedade de adoção de condutas necessárias à promoção gradual de um estado de coisas” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros, 2009:80). Entretanto, os valores, na medida em que integram um sistema simbólico de representações, têm o duplo papel: o papel histórico de manter, criar ou transformar estruturas sociais e o pragmático, de motivar ações políticas, econômicas e culturais. A ideologia de onde provêem os valores possui caráter jurídico quando se vale da linguagem jurídica e pretende que seja considerada, independentemente de seu conteúdo, como se fosse uma norma objetiva de direito (CORTEN e SCHAUS, 2009). O núcleo comum a essas normas finalísticas de caráter ideológico-constitucional é composto, no plano lingüístico, de abertura semântica, e no plano formal, do traço da indisponibilidade. Como já afirmamos em outro artigo (SANTOS, 2011), o Ministério Público é estruturado como uma resposta organizacional ao paradoxo do conflito entre o “interesse público do Estado” como pessoa jurídica e o “interesse público da sociedade” como ordem jurídico-constitucional4. Os debates teóricos têm feito um esforço gigante para abrir uma zona de certeza quanto ao conteúdo dos valores confiados ao Ministério Público. No tocante à ordem jurídica, não podemos, até mesmo em nome da racionalização, interpretá-la como sinônimo de direito objetivo.Uma vez evidenciada a relação entre Constituição e os 4 A Advocacia e a Defensoria Públicas, órgãos regulados pelos arts. 133 e 134 da CF, já têm atribuição para atuarem em favor dos interesses disponíveis, sendo, no mínimo, irracional a superposição de competências nessa área. 6 processos de institucionalização dos direitos humanos (SANTOS,2011), salta aos olhos, nesse caso, a importância da garantia dos direitos humanos positivados como direitos fundamentais. Quanto ao regime democrático, parece que o que mais interessa, inclusive segundo a teoria política contemporânea, é a guarda das condições de diferenciação e de eficácia dos procedimentos eleitoral, legislativo-parlamentar, jurisdicional e políticoadministrativo (NEVES, 2006), o que o Ministério Público tem tentado fazer através da proteção dos direitos e dos princípios que asseguram a racionalidade constitucional desses procedimentos. Quanto aos interesses sociais, Appio (2005) entende que se trata da salvaguarda de determinados bens transindividuais. que, além dos mencionados no art. 6º. da CF, compreendem valores historicamente negligenciados no Brasil, a exemplo da educação, o meio ambiente, o patrimônio cultural e a saúde, mas que, se implementados como pressupostos da universalização da cidadania, teriam, segundo o nosso pensamento, grande impacto moral e social. E finalmente, destacam-se por não terem aparentemente caráter público, os interesses individuais indisponíveis, os quais pressupõem a existência de uma transcendência ou dimensão coletiva, para que possam ser protegidos pelo Ministério Público. Apesar do esforço da teoria para reduzir a vagueza do art. 127 da CF, a responsabilidade que tem o Ministério Público de promover todas as medidas juridicamente possíveis, administrativas e judiciais, em defesa dos valores abstratos sob a sua guarda, não o exime do ônus de argumentar. A relação entre os fins e os meios de sua atuação é regulada de modo inespecífico, de modo que a compatibilidade entre os problemas/soluções objeto de sua intervenção e as razões de ordem pública que constituem os fundamentos gerais da sua presença no processo civil resta, em princípio, um problema de argumentação. 4. O Ministério Público no processo penal e no processo civil Dado o monopólio do poder de punir pelo Estado moderno, o Ministério Público atua obrigatoriamente no processo penal na qualidade de órgão estatal, como titular 7 exclusivo da ação penal pública ou como fiscal obrigatório da lei, neste último caso, em havendo ação penal privada. A fim de permitir um controle que seja mais racional do que aquele da vingança privada, ou, na linguagem de Mazzilli (1999), pelo fato de o MP exercer parcela da “soberania” do Estado, a função de titular da ação penal pública é a única função atribuída privativamente pela Constituição ao Ministério Público (MAZZILLI, 1999:111). O caráter indiscutivelmente publicista da relação jurídico-processual penal torna obrigatória a presença do Ministério Público em todo o processo penal, não sendo, por isso, adequado falar-se de “intervenção” do MP como sinônimo do papel em geral exercido por esse órgão no processo penal. No caso de ação penal privada, que pode ser aditada pelo Ministério Público, o art. 45 do Código de Processo Penal se refere ao dever ministerial de “intervir em todos os termos subsequentes do processo”. Ora, o sentido desse verbo está relacionado, no contexto específico em que se encontra, com a ideia de que o Ministério Público, quando se trata de ação penal privada, é um terceiro sujeito interposto entre partes originais do processo. Todavia, quanto ao processo civil, sem embargo da ausência de titularidade exclusiva até mesmo da ação civil pública, a participação do Ministério Público como autor ou fiscal da lei não pode mais ser tratada como uma interposição de um sujeito estatal diferente da figura do juiz e das partes, vistas estas como titulares de interesses exclusivamente particulares. Se analisarmos o que Dinamarco(2003) chama de “momentos metodológicos do processo”, notaremos a insuficiência tanto do sincretismo jurídico, que não distinguia os níveis substancial e processual do processo, quanto da fase da autonomia abstrata da relação jurídica processual, que permitiu o avanço da teoria processual,mas o fez às custas da permeabilidade do processo civil aos valores constitucionais e à dinâmica da realidade externa. A corrente instrumentalista defendida por Dinamarco (2003),entre outros, embora não justifique uma onipresença do Ministério Público em todos os processos cíveis, torna obsoleto o tratamento geral da presença desse órgão no processo civil através do termo equívoco “intervenção”. O apego dos manuais de processo civil ao sintagma “intervenção do Ministério Público no processo civil” pode ser devido à sobrevivência, no plano lingüístico, de 8 uma visão imanentista ou privatista do processo civil. Para descrever o papel em geral do MP como sujeito processual no processo civil seria melhor falar de “participação”, em vez de “intervenção”, reservando esse último termo para os casos de ação em que o Ministério Público é parte interveniente e não principal. 5. Parâmetros de atuação segundo o Código de Processo Civil: retomando os critérios constitucionais de atuação do MP Inicialmente, destaque-se que o critério normativo-axiológico que rege a atuação do Ministério Público segundo o Código de Processo Civil está sujeito à releitura com base na missão confiada a esse órgão pela Constituição. O parâmetro básico, em ambos os casos, é o do interesse público, sendo que a interpretação deve partir da Constituição para o Código de Processo Civil. Ora, pelo que afirma a doutrina jurídica, não há como confundir o interesse público primário, que é o interesse da “sociedade”, vista como uma comunidade organizada jurídico-constitucionalmente, e o interesse secundário do Estado e dos demais entes estatais, autárquicos, fundacionais e paraestatais. Pode haver coincidência entre esses interesses, como no caso das ações de improbidade e das ações penais contra os crimes tributários, mas essa coincidência não é pressuposta nem ocorre na maioria das ações. O MP é, portanto, um órgão de defesa, até mesmo contra o próprio Estado, da força normativa da Constituição e da ordem jurídica daí resultante. Essa aparente solução de um conflito que na tradição liberal opõe o Estado à sociedade pode ser traduzida de duas formas: como um mecanismo institucional criado pelo sistema jurídico de autocorreção, independentemente de ruptura da ordem constitucional, ou como uma chave para o Ministério Público contribuir, já que o juiz está submetido ao princípio da inércia, para a produção simbólica da comunidade idealizada pela ideologia da Constituição. As contradições e os limites da atuação do Ministério Público no exercício do papel em especial de protetor dos direitos humanos já foram objeto de nossa análise (SANTOS,2011), de modo que cuidaremos aqui somente dos aspectos dessa problemática relacionados com a participação do MP no processo civil. 9 Assim, retomando a análise do Código de Processo Civil, à luz da Constituição do Brasil, podemos afirmar, com base no art. 82 do referido diploma legislativo, que o Ministério Público deve participar sempre que o interesse público primário se fizer presente em uma causa cível envolvendo, particularmente, conforme a natureza do conflito ou a qualidade da parte, as seguintes matérias: a) interesses de incapazes; b) causas relativas ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; c) litígios coletivos que tratem de questões de posse de terra rural. Quanto às ações que envolvem relativa ou absolutamente incapazes, não há necessidade de o incapaz figurar na relação processual como autor ou réu. Basta que exista interesse de incapaz, como pode acontecer em ação proposta por um espólio (NERY JÚNIOR e NERY, 2010). Deve-se notar ainda, com base nos comentadores referidos, que a superveniência da capacidade, durante o processo, não convalida necessariamente os atos processuais praticados sem a interveniência do Ministério Público. Entretanto, é preciso que se distinga o modo de atuação do Ministério Público em virtude de interesses individuais indisponíveis pela qualidade da parte que é incapaz, do modo de atuação desse mesmo órgão em havendo questões de interesse público evidenciadas pela natureza da lide, a exemplo das ações de estado, dos processos relacionados com cidadania e nacionalidade. Segundo Alberton (2007) e Dinamarco (2002), em havendo interesses de incapazes, o Ministério Público deve-se pautar por uma intervenção limitada sob a modalidade de intervenção ad coadjuvandum. Portanto, espera-se que esse órgão evite assumir a defesa da parte contrária ao incapaz e limite-se a uma participação formal, isso se não se julgar apto a agir como assistente do incapaz. Nessa hipótese, a nulidade não depende da simples ausência do MP, mas da existência de prejuízo ao incapaz, ainda mais quando ele for vitorioso. O que temos aqui, como afirma Barbi (1975), é bem uma função de “vigilância” ou de atuação proativa quanto à possibilidade de uma defesa insuficiente dos interesses dos incapazes do que uma proteção efetiva dos direitos substantivos dessas partes,mesmo porque elas podem estar devidamente assistidas em juízo. Quanto às ações de estado, o Ministério Público deve conduzir a sua atuação no sentido de um controle efetivo não apenas dos aspectos formais do processo, mas também da existência do direito substantivo deduzido processualmente, inclusive 10 porque se trata de intervenção obrigatoriamente enumerada pela lei. Apesar do deslocamento da competência das ações sobre união estável, desde a superveniência da Lei 9.278/96, para os juízos de família, parece duvidoso o cabimento da intervenção do MP nesses casos, se inexiste conflito relativo a interesse de menor ou incapaz, no tocante, por exemplo, à guarda ou ao direito de visita. Parece inaceitável também a intervenção do Ministério Público em processos sobre disposições de última vontade, quando não há interesse de incapaz, questões de aprovação, cumprimento e registro de testamento ou problemas de reconhecimento de paternidade ou de legado de alimentos a incapaz. Em ambos os casos previstos explicitamente nos incisos I e II do art. 82 do Código de Processo Civil, a intervenção pode ser de iniciativa da parte, do Ministério Público ou do juiz, não podendo o juiz ou o Tribunal, dada a desvinculação institucional, funcional e jurídica entre o juiz e o representante do MP, ordenar a intervenção. Entretanto, o juiz pode rejeitar a intervenção ministerial, sujeitando-se ao reexame de seu pronunciamento, se assim o fizer, pela segunda instância (TJMG-RT 599/189, apud NERY JÚNIOR e NERY,2010, p.327). Na terceira e última hipótese enumerada de intervenção obrigatória do Ministério Público, o que importa, na interpretação do dispositivo processual civil, é compreender que a norma que se extrai do texto de lei não distingue entre ações coletivas e ações individuais com pluralidade de partes (litisconsórcio), sempre que se instaurar um litígio coletivo pela posse de terra rural. Ora, nas ações coletivas, dada a indisponibilidade do interesse coletivo lato sensu, a intervenção do Ministério Público já era obrigatória. O que se visa aqui, no inciso III do art. 82 do CPC, é o cumprimento pelo processo de suas funções sociais de pacificação e de educação para o exercício e respeito de direitos (DINAMARCO,2003). Em havendo litígios coletivos pela posse de terra rural, a indisponibilidade,que é o traço marcante do interesse público, decorre tanto da possibilidade de argumentação sobre direito fundamental substantivo, quanto da existência de transcendência coletiva, já que a decisão sobre o interesse patrimonial dos titulares na relação de direito material pode ter grande impacto coletivo. A justificativa para mais um caso de intervenção do MP no processo civil está no fato de que o processo de formação fundiária no meio rural brasileiro se encontra na raiz de conflitos violentos pela terra entre proprietários rurais e movimentos sociais. Daí a conveniência da intervenção do Ministério Público nesses litígios,não apenas por 11 causa dos riscos que eles supostamente trazem para a ordem jurídica e social, mas também para permitir ao juiz uma atuação imparcial no processo, ao poupá-lo de um envolvimento direto com as partes. O Código de Processo Civil não previu a intervenção obrigatória do MP nos litígios coletivos envolvendo posse de terra urbana. Nada impede, contudo, que esse órgão invoque, à luz do art. 127 da CF, a incidência tanto de interesses individuais homogêneos quanto de princípios constitucionais como a função social da propriedade, o direito à moradia e o devido processo legal, para justificar a sua presença nesses processos. Resta a discutir a norma geral de encerramento inserida na parte final do inciso III do art. 82 do CPC. Como o Ministério Público não está obrigado a atuar ou a agir quando reconhece a inexistência de “interesse público evidenciado pela qualidade da parte ou natureza da lide”, mas o juiz deve intimá-lo a participar ou intervir no processo civil, quando parece a este último ser aplicável a norma de encerramento, surge o problema da natureza jurídica do juízo ministerial de admissibilidade da sua participação no processo civil. Deixaremos, entretanto, a análise desse tópico para mais adiante. 6. A casuística ou “para não dizer que não falei de flores” Ainda em relação à mencionada norma geral de encerramento do Código de Processo Civil, parece interessante conhecer como estão sendo decididos os casos de intervenção do Ministério Público em jurisdição voluntária, desapropriação, execução fiscal e ação de pessoa jurídica de direito público. Quanto aos processos de jurisdição voluntária, apesar da jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo em favor da intervenção obrigatória do MP, o Superior Tribunal de Justiça tem limitado a participação do Ministério Público, nesse tipo de processo, aos casos previstos explicitamente no título e às hipóteses do art. 82 do CPC (RSTJ 8/282;STJ-RT 652/164, apud NERY JÚNIOR e NERY, 2010,p.329). Podemos acrescentar a existência de problemas de registro público como uma razão para a presença do MP nesse tipo de processo. Em se tratando de desapropriação, a doutrina e o STJ estão de acordo com o fato de que o interesse patrimonial da Fazenda Pública é insuficiente para a intervenção do Ministério Público (RSTJ 28/546, apud NERY JÚNIOR e NERY, 2010, p. 331). 12 Em relação à execução fiscal, a defesa minoritária da intervenção obrigatória, inclusive no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, parece ultrapassada pela doutrina e o STJ, o qual emitiu a Súmula 189 no seguinte sentido: “É desnecessária a intervenção do Ministério Público nas execuções fiscais”. A razão desse entendimento jurisprudencial é que não se confunde o interesse público primário indisponível que justifica a intervenção do MP com o interesse secundário disponível de cobrança do tributo. Como a simples presença de uma pessoa jurídica de direito público na relação processual não implica a existência de valores relevantes da ordem jurídicoconstitucional, o STJ considera desnecessária em princípio a intervenção do MP nas ações de pessoa jurídica de direito público (RSTJ 14/448, apud NERY JÚNIOR e NERY, 2010, p. 333). Parece incompatível com o art. 127 da CF o art. 944 do CPC, na medida em que dispõe sobre a intervenção do Ministério em ação de usucapião, independentemente da existência de interesse de incapaz ou da falta de registro do imóvel. Quanto à ação de acidente de trabalho decorrente de direito comum, o STJ (RESP 57 123/ES) decidiu que, na falta de interesse de incapaz e de litígio coletivo,descabe a intervenção do MP. Cogita-se ainda da intervenção obrigatória do Ministério Público nas liquidações extrajudiciais de instituições financeiras e nas ações falimentares e de recuperação judicial, sendo que, nessa segunda hipótese, após a intimação da declaração de falência ou do processamento da recuperação judicial (NERY Jr. e NERY, 2010, p. 332 e 327328). 7. Afinal, que tipo de parte é o Ministério Público? Cinco questões ainda merecem ser levantadas sobre a participação do Ministério Público no processo civil: o que pode e o que não pode fazer processualmente o Ministério Público na qualidade de fiscal da lei? Como se dá o juízo de admissibilidade da intervenção do MP no processo civil? Qual a responsabilidade civil do MP no processo civil como autor ou fiscal da lei? Como opera o sistema de nulidades processuais em relação à ausência do MP? E quais são as peculiaridades da participação do Ministério Público no processo civil coletivo? No tocante à questão dos poderes processuais do Ministério Público como fiscal da lei no processo civil, Nery Júnior e Nery (2010) concordam que o MP deve ser 13 intimado pessoalmente de todos os atos do processo, e pode manifestar-se depois das partes, requerer provas e depoimento pessoal, suscitar conflito de competência e incidente de uniformização de jurisprudência, interpor recurso, tendo, nesse último caso, o dobro do prazo para recorrer. O que o Ministério Público não pode fazer é o que é próprio da parte principal (DINAMARCO, 2004): reconvir, denunciar a lide, ajuizar oposição, chamar ao processo, renunciar e reconhecer juridicamente o pedido, e argüir incompetência relativa, já que a prorrogação é, nesse caso, irreversível. As diligências requeridas pelo MP são pagas pelo vencido e adiantadas pelo autor da ação, segundo o CPC, art. 27 c/c o art. 19,§2º.). Segundo Dinamarco (2004), a distinção entre parte e fiscal da lei não tem base científica. Parte, para ele, é todo sujeito que integra a relação processual “com as possibilidades de pedir, alegar e provar” (2004:426), independentemente das razões ou modalidades da legitimidade ad causam. Nem o dever de imparcialidade, que obriga o Ministério Público a ocupar uma posição de superparte, nem o fato de o MP como fiscal da lei não ser o sujeito que articula o pedido da ação ou o sujeito contra quem se pede a atuação da vontade da lei, nada disso impede, portanto, a condição de parte do Ministério Público, até mesmo quando age como custos legis. Apesar disso, em face da existência de algumas diferenças quanto às faculdades e poderes processuais, convém distinguir as partes principais – autor e réu – das partes secundárias – MP como fiscal da lei e assistente de incapaz ou como custos legis interveniente, porém não assistente. Aliás, mesmo como autor ou parte principal, a exemplo do que sucede nas ações civis públicas e na ação direta de inconstitucionalidade, nada impede o MP de se pronunciar em favor da improcedência, ficando os honorários pela sucumbência, nos termos do art. 20 do CPC, de um modo geral, por conta do Estado (DINAMARCO, 2004:441). Quanto à identificação da natureza jurídica do papel de parte do Ministério Público no processo civil, Mazzili (1999) afirma que, quando o MP atua como autor da ação penal, raciocínio válido também para a relação processual civil, ele é parte tanto no sentido material quanto no sentido formal ou instrumental. Materialmente, o Ministério Público é parte em virtude da teoria da organicidade entre o MP e o Estado. Formalmente, o MP é parte, porque é titular dos ônus e faculdades processuais inerentes às partes. Enfim, sua imparcialidade somente pode ser concebida no sentido moral, e 14 não técnico. Não é à toa que a jurisprudência dispensa a presença de um custos legis quando o Ministério Público propõe a ação. A posição de órgão interveniente no processo civil, ou de fiscal da lei, mesmo quando se trata de evitar que uma defesa insuficiente prejudique os interesses de incapaz, não libera o Ministério Público de uma atividade pautada pela correta aplicação do direito objetivo. O que é inadmissível é a substituição desse dever de imparcialidade por uma identificação puramente emocional ou exclusivamente partidária com o interesse que qualifica a parte. 8. A natureza jurídica do juízo de admissibilidade da participação do MP no processo civil Quanto ao juízo da necessidade da participação do Ministério Público no processo civil, Arruda Alvim (2006) pensa que se trata de decisão que se insere no poder discricionário do Ministério Público, sendo facultado ao juiz, como mostramos, apenas rejeitar a intervenção do MP. Igualmente, o Superior Tribunal de Justiça também nega ao juiz o poder de coagir o MP a atuar no processo civil ou de substituí-lo no juízo de admissibilidade da intervenção(STJ, 1ª Turma. REsp 696.339-CE, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 6.9.2005. Disponível em: www.stj.gov.br. Acesso em: 12.1.2007). A discricionariedade do ato de reconhecimento da pertinência da intervenção não exime o Ministério Público de ter de perquirir caso a caso, salvo as hipóteses enumeradas de intervenção obrigatória que se encontram em harmonia com a Constituição, os valores subjacentes aos conceitos jurídicos constitucionais indeterminados que informam, nos termos do art. 127 da CF, a sua atuação. O que o MP busca saber, nesse momento, é se existem razões superiores que justificam a sua participação ou intervenção. Intervenção que pode ser substancial, quando atua diretamente em defesa dos mencionados valores, ou formal, quando se limita a integrar o processo, visto como procedimento que leva a um ato terminativo mediante a participação das partes nele envolvidas. Na qualidade de juízo discricionário da oportunidade, da natureza e do conteúdo da intervenção, esse ato não pode ser contraditado judicialmente, o que não o isenta, por outro lado, da crítica moral, ideológica, jurídica e política. O fato de ser o representante 15 do MP o próprio juiz de sua ação é um traço do caráter político do papel do Ministério Público na concretização da ordem constitucional e dos direitos fundamentais. Tratando da natureza jurídica do poder de arquivamento do inquérito policial, Jardim afirma que o Ministério Público está preso ao princípio da obrigatoriedade quanto às hipóteses legais de atuação como autor da ação penal, em que pese a existência de discricionaridade em matéria do juízo da existência do dever de ajuizamento dessa ação.JARDIM (1994.) Qual a natureza jurídica do juízo de admissibilidade da participação do Ministério Público no processo civil? Se levarmos em conta o caráter indisponível do interesse público, o qual se deve supor presente até mesmo quanto aos interesses individuais homogêneos, indaga-se: podemos afirmar que se trata de um juízo vinculado, sob a égide do princípio da obrigatoriedade ou da legalidade? Ora, ao contrário do critério de distinção entre ação penal pública e ação penal privada no processo penal, os casos de presença do Ministério Público no processo civil não são taxativos. Para que o Estado possa assumir determinadas iniciativas sem comprometer a posição equidistante do juiz, o processo civil tem uma norma de encerramento que abre a possibilidade de intervenção ministerial sempre que houver interesse público indisponível pela natureza da lide ou qualidade da parte. Note-se que a indisponibilidade que marca o interesse público pode ser substancial ou processual, como acontece com os interesses individuais homogêneos. Por outro lado, é inaceitável que o MP possa admitir a existência de interesse público e ao mesmo tempo deixar de intervir, sob a alegação de que reconhece a falta de conveniência ou oportunidade de sua presença. A propósito da liberdade de que desfruta o Ministério Público na qualidade de sujeito processual no processo civil, Calmon de Passos(1979), estabelece uma sutil diferença entre participação obrigatória e atuação obrigatória. Assim, mesmo havendo o interesse público que justifique, segundo o juízo ministerial, a sua intervenção como fiscal da lei, nada o obriga a agir, no sentido de requerer ou de praticar atos que considere desnecessários. Seja como for, o juízo da necessidade da intervenção do Ministério Público no processo civil, salvo nas hipóteses de intervenção obrigatória legal, pauta-se pela discricionariedade. Ora, analisada sistematicamente a cláusula aberta de intervenção do MP, é fácil concluir, entretanto, que nomear um ocupante de cargo comissionado e fazer o juízo positivo ou negativo da pertinência da intervenção não é a mesma coisa. 16 O que distingue ambos os atos discricionários é que, quando afere a necessidade de sua presença no processo civil, o juízo ministerial obedece ao princípio da discricionariedade restrita. Como lembra Mello (2000), a discricionariedade é uma questão de liberdade, sim, porém com limites. Ao tratar da estrutura lógico-normativa da discricionariedade, deixa claro Mello (2000) que uma das fontes dessa liberdade administrativa está, a exemplo do art. 127 da CF, no uso pelo texto de lei de conceitos indeterminados para descrever a finalidade da atuação de um órgão5. Sendo assim, o MP não pode se desonerar da sua missão de guarda da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, invocando uma liberdade irrestrita para escolher entre participar e não participar no processo civil, mesmo quando é evidente a existência de interesse público. Como se observa, as formas puras de obrigatoriedade e de discricionariedade tendem ao desaparecimento no nosso ordenamento jurídico cada vez mais sobrecarregado de valores. Portanto, a discricionariedade ponderada e a obrigatoriedade restrita parecem se distinguir uma da outra, simplesmente,por uma questão de ênfase ora no poder de valoração, ora na obediência às hipóteses legais. 9. O problema da responsabilidade civil e as nulidades decorrentes da ausência do MP O fato de exercer uma função política acarreta para o Ministério Público, segundo o art. 85 do CPC, um tipo de responsabilidade limitada. Ao contrário dos demais agentes públicos não políticos, o representante do MP não responde por culta, nas modalidades de negligência, imprudência ou perícia. A existência de enumeração taxativa dos casos de responsabilidade civil processual, ou numerus clausus, impede que a responsabilidade do representante do Ministério Público se estenda além do dolo e da fraude ou que ela venha a prejudicar a Fazenda Pública ou a instituição ministerial, em lugar da pessoa do representante do MP. O problema seguinte que nos interessa é o das nulidades processuais. O sistema de nulidades processuais em relação à falta de intervenção do Ministério Público no processo civil mereceu um tratamento conciso por parte de Didier Jr (2007). Em síntese teórica, a exigência de participação do MP é vista como “pressuposto processual Segundo Mello (2000:758) ainda, a indeterminação relativa da finalidade repercute na identificação também dos pressupostos de fato da prática do ato. 5 17 positivo”, mas o que causa a nulidade mesmo é a falta de intimação do Ministério Público. Como o juiz não pode coagir o representante Público a intervir no processo civil, Didier Jr., a partir da doutrina existente, sugere a aplicação analógica do art. 28 do Código de Processo Penal. O juiz poderia solicitar ao Chefe do Ministério Público que designe outro Promotor ou Procurador e/ou apure eventual infração disciplinar. No caso de a intervenção ser recusada pelo juiz, pode o MP interpor recurso. De qualquer forma, a exigência de comprovação do prejuízo ao interesse público ou de que a decisão foi desfavorável ao incapaz é o fundamento da anulação do processo pela falta de intervenção do MP. Nesse particular, o STJ tem aceito o suprimento da ausência de intervenção ou de intimação do MP no primeiro grau, pela atuação da Procuradoria de Justiça na segunda instância, desde que o órgão ministerial de segundo grau o faça sem arguir prejuízo ou nulidade (STJ, RESP 2903, rel. Min. Athos Carneiro, citado pelo Min. Sálvio Figueiredo, no RESP 5469, v.u.j. 20.10.92, Bol AASP 1785/100, apud Nery Jr. e Nery, 2010, p. 335). 10. A racionalização da atuação do MP como critério de eficácia de desempenho O problema da participação do Ministério Público no processo civil individual, já que a análise do papel do MP no processo civil coletivo ficou para o tópico seguinte, pode ser lido também como uma questão de racionalização das atividades ministeriais em nome da pauta de valores fixada pela Constituição. Se racionalizar significa adaptar meios escassos a fins pré-determinados, afigura-se incompatível com esse ideal de desempenho seja a presença do Ministério Público em todos os processos, seja a omissão desse órgão quanto ao seu débito jurídico, político e social com a sociedade brasileira. A primeira hipótese esgotaria os recursos ministeriais, sob o pretexto de garantir a eficácia normativa da ordem jurídica. A segunda hipótese poria em risco a credibilidade adquirida pelo MP após a atual Constituição. Para se autoracionalizar, o MP precisa de uma gestão e de uma estrutura que não se deixem conduzir a reboque do fluxo de demandas originárias da polícia e da justiça, 18 ambas instituições submetidas a lógicas institucionais e práticas não coincidentes com o papel diversificado e ativo do Ministério Público. Ora, racionalizar a atuação do Ministério Público, escolhendo os meios mais adequados para os fins a que esse órgão se destina, implica, antes de mais nada, a existência de um espaço de disputa entre as variadas definições dos valores superiores embutidos nos conceitos constitucionais indeterminados que tratam da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Afinal, esses valores estão na base dos princípios ou normas finalísticas que estabelecem constitucionalmente a destinação do MP. O problema da racionalização das atividades do Ministério Público no processo civil, apesar da aparente univocidade, tem, entretanto, duas dimensões: a dimensão administrativo-econômica e a dimensão jurídico-política. Quanto à primeira dimensão, se tomarmos o processo de racionalização no sentido de um sistema de eficiência baseado em metas previsíveis e em uma avaliação que obedeça a parâmetros calculáveis, teremos de nos perguntar: até que ponto a racionalização entra em conflito com a institucionalidade formal do MP? Qual o grau de legitimidade desse processo necessário para garantir o engajamento dos membros da organização? Contudo, já que o nosso foco não é a racionalização administrativo-econômica do Ministério Público, mas o problema da participação desse órgão no processo civil, analisaremos somente a dimensão jurídico-política da racionalização, o que será feito através de dois breves estudos de casos. Os casos escolhidos ilustram a importância de se fazer a leitura dos parâmetros legais de atuação do MP no processo civil com base na destinação constitucional desse órgão. Auad Filho (2007) levantou a questão dos limites da intervenção do Ministério Público como custos legis nos processos civis em que o idoso, isto é, as pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, figure como autor, réu ou interveniente. Ora, o art.75 da Lei 10.741, de 1º.10.2003 (Estatuto do Idoso) estabelece a obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público em defesa dos direitos dos idosos toda vez que eles figurem como sujeitos em processos. De um lado, há a possibilidade de se interpretar esse artigo como uma norma de intervenção obrigatória irrestrita. Assim, a existência de interesse público dependeria somente da condição de idoso, a qual é definida em termos etários. Para esse primeiro entendimento, é irrelevante se o idoso é capaz ou incapaz, se o idoso se encontra em situação de risco ou se o seu direito ou interesse é indisponível 19 ou disponível.Nesse sentido, Auad Filho (2007) traz à baila decisão do Tribunal de Justiça de Rondônia de 19/04/2005, Câmara Cível, 100.002.2005.000766-3, Apelação Cível. Por outro lado, caso optemos por submeter o art. 75 do Estatuto do Idoso a uma interpretação sistemática e teleológica, verificaremos que, seja em nome da supremacia constitucional, seja para prevenir obstáculo ao bom desempenho das funções ministeriais pela falta de racionalização, a incidência da regra de intervenção do MP nos processos dos idosos somente é plausível nos casos em que o interesse público se manifesta ora pela qualidade da parte, quando o idoso é incapaz ou está acometido de moléstia incapacitante (interdição), ora pela natureza da lide (alimentos, idosos em situação de risco, ações relativas a interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos de idosos). Nesse sentido, Auad Filho (2007) invoca as decisões do STJ (RESP 502744/SC – Rel. Min. Jose Arnaldo da Fonseca, 5ª. Turma, v. u., j. 12/04/2205, DJ 25.04.2005, p. 360) e TRF-5ª. Região (Classe: EEIAC-Embargos de Declaração nos Embargos Infringentes na AC – 368401/02, Processo 20028100005970902,UF:CE, órgão julgador: Pleno, data da decisão: 24/01/2007, documento:TRF 500129482,DJ – 08/03/2007,p.592, no. 46, relator: Des. Paulo Roberto de Oliveira Lima). O segundo caso que nos ocorre é o da já comentada omissão no Código de Processo Civil, art. 82,III, da hipótese de intervenção obrigatória do Ministério Público nos litígios coletivos que gravitam em torno de posse de terra urbana. Ao contrário do efeito deletério causado pela interpretação extensiva da norma legal de intervenção do MP nos processos que tenham idosos como parte, o problema aqui é outro: há algum fundamento teórico para distinguir litígios coletivos sobre terra rural de litígios coletivos envolvendo terra urbana? Ao se referir a norma processual civil de encerramento às “demais causas evidenciadas pela natureza da lide ou a qualidade da parte”, não se entende, já que em ambos os litígios existe a abrangência coletiva, por que ainda os Tribunais de Justiça negam a necessidade de intervenção do Ministério Público em ações de reintegração de posse de área urbana, sempre que estiver em jogo o interesse de uma coletividade (RT 777/397). Ora, racionalizar nesse caso não significa omitir-se, mas requerer a admissão do MP nesses processos, invocando tanto o impacto social dessas ações, quanto a existência de questões relativas a princípios constitucionais, como a função social da propriedade, o direito à moradia e o devido processo legal. 20 11. Processo civil coletivo e Ministério Público O processo civil individual se distingue do coletivo, na medida em que este apresenta peculiaridades sobretudo em relação à legitimação, ao tipo de tutela e à coisa julgada. As novas dinâmicas da sociedade de “massa”, ao provocarem conflitos que transbordam os limites individuais, tornam necessárias decisões únicas para demandas uniformes. Além disso, com a judicialização crescente das questões, aumentam as expectativas de que o processo não apenas cumpra o seu escopo político de veículo de participação nos negócios públicos, como também opere, ciberneticamente, através de formas de aprendizagem social. Quanto às peculiaridades do processo coletivo, a técnica processual se abre para a despersonificação do interesse, admitindo a legitimidade de partes que agem em defesa de interesses que não são próprios (princípio da representatividade adequada com base na lei e em critério pluralista). Do ponto de vista da tutela concedida, o princípio da efetividade máxima da tutela admite a possibilidade de o juiz fixar medidas cominatórias independentemente de requerimento especifico do autor. E finalmente, quanto à coisa julgada, tolera-se a extensão dos seus efeitos além das partes, tudo em nome da indivisibilidade material ou processual do interesse. A propósito dos interesses metaindividuais que justificam a intervenção do Ministério Público no processo civil coletivo como autor ou como fiscal da lei, houve dúvida em matéria de interesses individuais homogêneos. Seja pela disponibilidade material desses interesses, seja pelo seu caráter individualizado, é justificável vislumbrar uma resistência teórica à atuação do MP na defesa dos interesses individuais homogêneos. Tanto é assim que persiste um debate teórico sobre a pertinência do uso do nomen juris ação civil pública para a tutela judicial dos interesses individuais homogêneos (MANCUSO,2009).6 Entretanto, como mostra Leonel (2002), a doutrina jurídica defende hoje que a disponibilidade material desses interesses não constitui obstáculo a uma ação civil pública proposta pelo MP. Em primeiro lugar, a existência de relevância social pelo número de titulares ou pelas consequências negativas da ameaça ou da lesão aos 6 Embora o rigor terminológico favoreça a expressão genérica “ação coletiva”, a jurisprudência tem preferido unificar os diversos tipos de ação coletiva sob o nomen “ação civil pública”, tendo em vista o caráter integrado do tratamento processual das diferentes pretensões materiais relativas à categoria “interesses coletivos”. 21 interesses individuais homogêneos é suficiente para justificar a atuação do Ministério Público em nome da ordem jurídica, contanto que a liquidação individualizada da condenação seja deixada a cargo dos lesados. Além disso, nada impede a lei, como faz o Código de Defesa do Consumidor, de atribuir ao Ministério Público outras funções, desde que compatíveis com a sua missão constitucional. Portanto, o MP pode atuar como parte principal nas ações coletivas, em havendo interesses difusos (indivisibilidade do objeto e indeterminação do sujeito), coletivos (indivisibilidade do objeto e determinação do sujeito ou do grupo) e individuais homogêneos (divisibilidade do objeto e determinação do sujeito)7 Quando não é parte principal, o Ministério funciona, obrigatoriamente, como custos legis, nas ações coletivas. Importa lembrar que tanto nos interesses difusos quanto nos individuais homogêneos, inexiste vínculo jurídico entre os titulares, sendo que os interesses difusos são essencialmente coletivos, enquanto os individuais homogêneos recebem esse tratamento por causa de seu potencial de instrumentalização através do processo coletivo. Mesmo em se tratando de intervenção em virtude da natureza da lide, dada a transcendência social dos conflitos, a atitude do Ministério Público assume um caráter “protetivo”. O que é intolerável no exercício do papel político do MP, segundo Leonel (2003: 199), é a ausência de razoabilidade ou o confronto, argumentativa e juridicamente injustificado, com o direito objetivo. Na qualidade de custos legis, quando funciona nas ações coletivas, o MP pode opinar livremente, requerer provas, desde que as provas não sejam abertamente contrárias ao sucesso da demanda, e também interpor recursos. No caso de abandono da ação ou de desistência sem fundamento, o MP tem o poder-dever de assumir a titularidade ativa. Segundo Leonel (2003) e Zavascki (2011), trata-se, à semelhança do arquivamento do inquérito policial, de um juízo fundado no princípio da obrigatoriedade. Pode, então, o Ministério Público analisar, com base nos valores constitucionais que lhe foram confiados, se existem razões para a assunção da demanda coletiva. Se constatar fundamentadamente a existência de fundamentos 7 Podemos citar como exemplos ilustrativos de interesses difusos:meio ambiente, cultura, gestão da coisa pública, direitos humanos, minorias étnicas ou sociais; de interesses coletivos:aumento ilegal de consórcio, alunos de certa escola, meio ambiente do trabalho, mensalidades de planos de saúde: de interesses individuais homogêneos:taxa lesiva a investidores da bolsa, compradores de veículos com defeito, consumidores de cigarro vítimas de moléstia do fumo, vítimas em terra de um acidente aéreo. 22 jurídicos e probatórios que justifiquem a continuidade da demanda coletiva, não poderá deixar de fazê-lo. Note-se que existe diferença entre o juízo de admissibilidade da participação no processo civil e o juízo de assunção de demanda coletiva. Enquanto no primeiro caso, trata-se da aplicação do princípio da discricionariedade restrita, pois dependente de uma fundamentação razoável; no segundo caso, trata-se do princípio da obrigatoriedade, mitigada, porquanto supõe-se, uma vez instaurada a relação processual,que o interesse coletivo está presente. Caso conclua, entretanto, pela inexistência de fundamentos para o prosseguimento do processo ou se manifeste no sentido do caráter temerário da demanda, o MP poderá optar pelo arquivamento do processo coletivo, submetendo a homologação do seu pronunciamento ao Conselho Superior do Ministério Público. A este órgão também poderá o juiz se dirigir, inclusive para designação de outro promotor ou procurador, caso a autoridade judicial discorde do arquivamento do feito. 12. Considerações finais Ao cabo dessas reflexões que fizemos sobre a participação do Ministério Público no processo civil, tentamos mostrar que o tratamento teórico de um problema jurídico é o melhor caminho para revisar tanto conceitos e categorias da teoria processual, quanto também para fazer a crítica que nos parece mais adequada. Em primeiro lugar, parece-nos que a opção pela teoria unitária do processo tem a virtude analítica de permitir identificar as peculiaridades e os pontos em comum do processo penal e do processo civil, sem perder de vista o caráter publicista e instrumentalista de ambos os ramos do processo. Tanto foi assim que a comparação entre o processo penal e o processo civil serviu de plataforma para a crítica do uso abusivo do termo “intervenção” como sinônimo da participação em geral do Ministério Público no processo civil. Ora, se, no processo coletivo, além de o MP ser o autor da maioria das ações, deve assumir as ações coletivas quando do abandono ou da desistência do titular, parece anacrônico o foco no caráter interveniente do Ministério Público no processo civil, ainda mais quando a sua participação é diversificada e ativa. Quanto à casuística, tivemos oportunidade de comentar, brevemente, decisões sobre os parâmetros processuais civis de participação do MP no processo civil. 23 Entretanto, até mesmo para fazer escolhas entre uma corrente jurisprudencial e outra, é indispensável partir, como fizemos, da Constituição para o Código de Processo Civil. Enfim, a teoria nos permitiu compreender melhor o papel do Ministério Público no processo civil. Afinal de contas, esse órgão é simplesmente uma superparte que tem os poderes, faculdades e ônus das demais partes do processo. Entretanto, essa condição de superparte se, por um lado, aproxima o MP das outras partes e o distancia do juiz, que é o diretor do processo, por outro lado, a partir da leitura da sua missão constitucional, transforma o Ministério Público em uma “magistratura ativa” a serviço da realização concreta e simbólica da comunidade imaginária idealizada pela Constituição. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.ALBERTON, José Galvani. Parâmetros da Atuação do Ministério Público no Processo Civil em face da Nova Ordem Constitucional. Disponível em ttp://www.conamp.org.br/index.php?a=mostra_artigos.php&idmateria=123. Acesso em 15.11.2011, às 21:00 h. 2. ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil, vol. I, 10ª ed. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 2006. 3.APPIO, Eduardo. A Ação Civil Pública no Estado Democrático de Direito. Curitiba: Juruá, 2005. 4.AUAD FILHO, Jorge Romcy. A intervenção do Ministério Público no processo civil à luz do Estatuto do Idoso. 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