1 DES DE MANOEL DE BARROS Cassiano Terra Rodrigues1 Texto 1 Herberto Helder não tentamos criar abóboras com a palavra “abóboras” não é um sentido propiciatório da linguagem introduzimos furtivamente planos que ocasionais ocupações (“des-sintonizar” aberto o caminho para antigas explicações “discursos de discursos de discursos” etc.) pergunta-se o poeta “será que se pretende ainda identificar ‘linguagem’ e ‘vida’?” sim, é isso mesmo que se pretende. Já no inaugural poema do inaugural livro do poeta outro Manoel de Barros encontramos a desidentificação da linguagem com a civilização e a busca da aproximação uma vida mais vida em três DES: DESANDANDO DESCULPA DESREMELAR aos que em seguida vêm DISILIMINA DESMANCHADA DESCOBRIMENTO DISAPRENDER desremelar e disilimina, tomados ao falar popular pelo poeta, tomaram o poeta que ainda receoso teimava em não ser tomado e insistia em versos menos inaugurais “desnudando pouquíssima poesia”. O primeiro livro de Manoel de Barros já apresenta a construção sintática plena de sua voz, os mesmos DES, totalmente amadurecido – o gosto pelas coisas descomplicadas, pela imediatez da palavra solta. Deslembrada, essa voz permanecerá calada por décadas, balbuciando aqui e ali nos temas e nas inversões do senso-comunizado pela civilização, pela sociedade, pela urbanização – mas uma voz que teima em descalar no importanciamento das desimportâncias que florescerá nos livros posteriores, reaparecendo plenamente de novo a partir de 1960. Em descompensações já a partir daí cada vez mais frequentes, nunca mais aceitará a submissão ao bom gosto medido por culpas instiladas pelo viver civil. REVERDECER DESORGULHOSAMENTE EM DESAGERO isto é criar na poesia a aderência total das palavras às desimportâncias manifestar as ignorãças em verso 1 Professor do Departamento de Filosofia da PUC/SP. E-mail: [email protected] ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 2 registrar o abandono libertador, como hoje se louva o tal do desapego é disfunção lírica suprema – “tudo pode ser” – desde que se almeje o CISCO O CHÃO AS FORMIGAS E AS LESMAS o mais baixo de leveza que uma borboleta alça em seu vôo errático e certeiro Palavras Gosto de brincar com elas. Tenho preguiça de ser sério. Delonga-se o poeta a desexplicar as coisas busca a linguagem adâmica, a primordial ligação entre as palavras e as coisas mas não qualquer coisa, que só às naturais colam-se as palavras de per se as coisas civilizadas, inventadas, artificializadas, compensam jamais o grude que nunca lhes foi de direito, muito menos de fato – para uma lata devir devota, é coisa de cem anos, ao passo que em cem anos um sapo já desvira em árvore. tudo pode ser nessa desteoria de nosso desviver, às vezes desacontece um TRANS um TRANS é sempre uma possibilidade do desvirar apesar da sujeira da civilização, sempre se pode desvirar cidadão e voltar a ser homem TRANSFAZER É DESABRIR UM DESTAMPO DESVER O MUNDO é uma ignorãça que o poeta desaprende ao longo da vida. Recuperar a inocência e ver sem pressupor – como se fosse possível, nada está no lugar em que tudo foi posto, tudo pode ainda ser reposto. Recuperar a infância da palavra, a inocência do desver, é viver como se não houvesse distância entre linguagem e vida. Mas o poeta amadurece a aceitação de que essa distância é intransponível e definitiva, fundante ela mesma de nossa humana condição. Só pela linguagem é possível então tentar chegar outra vez a um modo de dizer que falseie as coisas sem traí-las, ressignificando a nós mesmos – um outro modo de significar as coisas – a nossa inescapável condição não admite outra mediação: ou se é Bernardo Doido Cabeludinho e é-se assim mesmo, ou tentamos com despalavras desenhar um deslimite. DESPALAVRAS DESENHAM OS DESLIMITES ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 3 levar a linguagem ao seu limite para traçar seus deslimites – TUDO PODE SER – dizer o absurdo oculto pela linguagem normalizada, a linguagem da sociedade e da cultura instituída. Como se a própria escrita trouxesse da linguagem falada as asas que lhe foram tolhidas. Refundar pela poesia a cola primordial entre signo e coisa – é impossível! O poeta amadurece essa impossibilidade ainda que com ela não se conforme nunca. A tentativa, ainda que baldada, nos lança às outras margens da vida, as margens esquecidas, as que nos aproximam do ser outro, do ser criança, de louco a ser ignorante, um devir Bernardo primordial que nos funda e nos desinventa e nos transpõe. DAQUI VEM QUE OS POETAS PODEM COMPREENDER O MUNDO SEM CONCEITOS. o poeta é um desheroi, é um anti-Frege, um anti-Wittgenstein – o poeta que todas as cores da linguagem, o poeta quer o FEITIÇO DA LINGUAGEM, porque só esse feitiço pode levar à infância, ao tempo das possibilidades abertas, do oculto que resiste a ser explicado mostrado esgotado – ao se esgotar a água, o vento, o sapo e a formiga não resta mais humano: Agora só espero a despalavra: a palavra nascida para o canto – desde os pássaros. A palavra sem pronúncia, ágrafa. Quero o som que ainda não deu liga. Quero o som gotejante das violas de cocho.1 A palavra que tenha um aroma ainda cego. Até antes do murmúrio. Que fosse nem um risco de voz. Que só mostrasse a cintilância dos escuros. A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem. O antesmente verbal: a despalavra mesmo. Daí DESAPRENDER, DESINVENTAR, DESVER – chegar ao essencial é desfazer o feito e julgado definitivo e pronto: mexer no que usualmente não se mexe – Manoel de Barros, de Ventos, de Águas quer pegar o vento pela crina para não acabar a água – é o poeta da des-ação, da não iniciativa de dominar a natureza, mas ser por ela dominado – desvê a civilização do homem preso ao seu desejo de poder em abandono ao devir-socó. Menos a crítica do comum senso civilizatório e do suposto sem crítica, mais a poesia do suposto impossível, das experiências supostas absurdas e impossíveis que essa poesia, pela sua desvirtuação desidealizada da linguagem, torna desejáveis – torna quase-palpáveis – re-mitifica, re-magiciza o mundo, reaproximando o humano do bicho, da planta, da criança etc. Dá carne ao que na linguagem comum é nada, mas na linguagem poética é sumo – continua sendo nada de nadifúndio ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 4 DES é ver o que não se vê, ficar íntimo e apalpar o intangível. Ser um estranho desorgulhoso de imbecil. no descomeço a linguagem é uma possibilidade. No delírio criativo, não reconhecer as interdições das possibilidades fechadas, mas fazer poesia – desvendar e delirar como uma criança – DEVANEAR E DEAMBULAR – para dar equilíbrio a blocos semânticos e desequilibrar a pragmática normal já imposta à linguagem pelas convenções normalizadas. Um devir-pedra para a linguagem nada tem de morto. Para o poeta, devir-pedra é bom – um não querer e um reunir o que “a sociedade” separou – devir-pedra é desver, desvirtuar, tirar os suspensórios do doutor. Evoé Manoel! Os Des de Manoel de Barros Desandando; desculpa; desremelar; disilimina; desmanchada; disapartar; descobrimento; disaprender; desaparecer; descompensações; despenteados; desembarcar; desencostado; descobrir; desabrochar; desvendável; despedir; desonrar; descontrole; descidos; despetalar; desova; desfolha; desaparecer; desconfiado; desfrutado; desfeita; des-heroi/desheroi; desvio; desviar; desmusgo; desinfluída; desarticulados; desbravar; desfigura; descor; decaída; desatado; deserção; desordenadamente; demolição; desemendado; desemendar; descangotados; destripada; desaguar; desimportante; desenterrar; desamarrar; demolição; descerrar; desvãos; descançar; destelhar; desentendimentos; desenhar; desabrir; despedida; derramar; destramelar; destampar; desembestar; deslimites; desbocado; destarraxar; desacontecer; desemendar; desprezar; desmanchar; desaparecer; um destampo; desorbitar; desaparecimento; desenxergar; desnobre; descoisas; desencalhar; desnecessário; desabrir; derrubar; descaminhos; deseducado; desmandar; desvirar; desforma; desformar; deformar; sem defeito; desúteis; desterro; desteoria; desescrever; desventar; despertencido; desvendar; desabar; descomer; de-réis; desmoçar; descrer; degustar; delimpar; despróprio; desperdiçadamente; descobertas; desabotoada; desfolhar; desgovernar; despedir; desfraldar; desinquilibrar; desígnio; deser; descobre-se; devaneiam palavras; descascar; desigualar; desabrir; desmanchar; delongar; desexplicar; decadência; um nada desenvolvido; desimportância; ser desempenhado por; dementado; desencontros; despreferir; delinquir; desconhecer; desconhecimentos; desaprender; desinventar; desver; descomeço; delírio; despesas; desuso; desbrincar; desutilidade; deslimites; despalavra; desolo; desarrumar; destino; desiderar; desproporcionar; desfolhamentos; desmorrer; desnaturo; descomo; destroço; desprezado; descortínio; despropósito; desviação; desnecessário; destaque; desacontecido; desamparada; desenvolvido a moscas; desfrute; desgualepado; desconheceres; deformante; deambular; descabelado; desconstrução; desencanto; desobjetos; desútil; descomportamento; desvirtuado; desvio; desestruturar; desalojar; desaprumar; desagero; desorgulhoso; disfunção; desconcertos; desaberta/desaberto; silêncios desprezados; derreter; desapetite; descomparado; dispensar. 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