ENSINO MÚTUO NO BRASIL: CIRCULAÇÃO E PERMANÊNCIA A PARTIR DE
UM ESTUDO DE CASO
Alcides Caetano da Silva Junior
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
[email protected]
Palavras Chave: Instrução Pública – Século XIX – Santos/SP
É difícil apontar com exatidão, no tempo e no espaço, a dimensão que tomou o
emprego do método de ensino monitorial-mútuo1 no Brasil. Sabemos que foi usado em
escolas de todo o país mesmo antes e depois do intervalo de 27 anos, entre 1827 e 1854,
durante o qual foi considerado o método pedagógico oficial a ser aplicado nas escolas de
primeiras letras de todo o império brasileiro. Mas precisar até onde chegou, até quando foi
usado ou mesmo as condições sob as quais foi aplicado a as apropriações que sofreu não é
tarefa fácil.
Explanar sobre a chegada, permanência e implicações de aplicação desse método
na rede de escolas públicas primárias do Império do Brasil é o objetivo deste artigo.
Inicialmente faremos um breve histórico do método e de sua chegada ao Brasil relacionando-a
com a circulação de idéias que serviram de base para sua aceitação e aplicação, não apenas o
ideário próprio que girava em torno do método e que era propagado por seus entusiastas, mas
também idéias oriundas do iluminismo português, em especial as premissas de secularização e
de ampliação do acesso ao ensino escolar, correntes no Império do Brasil por quase todo o
século XIX e que, em nossa análise, convergiram para a necessidade de emprego de um
método pedagógico que fosse rápido, eficaz e econômico na tarefa de “civilizar” a sociedade
de então. Em seguida problematizaremos sobre as implicações de sua utilização a partir de um
estudo de caso: as dificuldades encontradas por um professor de primeiras letras da cidade de
Santos, província de São Paulo, em meados do século XIX.
O Professor em questão, Thomaz Rufino de Jesus e Silva, atuou durante 27 anos,
em meados do século XIX, naquela que era então a única escola pública primária masculina
da cidade de Santos2. Por meio da análise de seu discurso e de suas reivindicações, ambos
registrados em seus relatórios oficiais e ofícios, acreditamos que fora dominador o método de
ensino monitorial-mútuo. Além disso, entre 1852 e 1856 o professor Thomaz Rufino esteve
envolvido em um intenso debate sobre a cessão de um edifício público de grandes dimensões,
ou o aluguel de um particular à custa do governo provincial, no qual seu principal argumento
foi o emprego do método de ensino monitorial-mútuo.
Entendemos a persistência do professor no emprego desse método e a exigência
de um espaço adequado para ele como indícios de que, apesar das condições adversas da
instrução pública durante o oitocentos brasileiro, entre elas a inadequação dos espaços, a
insuficiência dos materiais e a falta de qualificação dos professores, as idéias circularam e
permaneceram e as representações geradas a partir delas mobilizaram os sujeitos ligados a
educação e em especial a instrução pública durante o século XIX.
Esse estudo foi inicialmente produzido como trabalho final de conclusão da
disciplina História conectada da educação: circulação de objetos culturais, modelos
pedagógicos e pessoas entre mundos oferecida pela Prof.ª Dr.ª Diana Gonçalves Vidal no
programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, ao qual
estamos vinculados desenvolvendo pesquisa em nível de mestrado. Posteriormente foi
revisado, ampliado e submetido ao presente Congresso.
O método de ensino mútuo, muitas vezes também chamado de Lancasteriano ou
Monitorial, foi desenvolvido separadamente por Andre Bell (1753 – 1832) e Joseph Lancaster
2
(1778 – 1838). O primeiro, médico e pastor anglicano, aplicou os princípios desse método em
Madras, na Índia, onde dirigiu um orfanato entre 1787 e 1794. Não podendo contar com
mestres capacitados, utilizou os alunos mais avançados como monitores, que transmitiam aos
demais os conhecimentos adquiridos com o professor. O segundo, religioso Quaker3, criou
uma escola para crianças pobres em Londres no ano de 1789. Com dificuldades para instruir
gratuitamente grande número de alunos sem utilizar muitos professores, decidiu dividir a
escola em várias classes4 colocando em cada uma delas um aluno mais adiantado como
responsável sob direção imediata do professor (BASTOS, 2006, p. 35).
Há indícios da presença do método de ensino monitorial-mútuo em terras
brasileiras mesmo antes de sua adoção como método pedagógico oficialmente determinado
pelo Decreto das Escolas de Primeiras Letras de 15 de outubro de 1827, primeira lei sobre a
instrução pública do Império do Brasil. Segundo Bastos (2006, p. 40), entre 1819 e 1827
existem diversas referências, embora dispersas, sobre sua presença no Brasil.
O Conde de Scey pode ter sido o pioneiro na utilização desse método na América
Portuguesa/Brasil5 por volta de 1819, aplicando-o em escolas de jovens negros escravos de
ambos os sexos no município da Corte, a partir de seus contatos com a sociedade francesa.
Sua experiência pode ser comprovada por meio da publicação de suas cartas, nos anos de
1819 e 1820, na sessão Étranger da revista pedagógica francesa Journal d’Éducation mantida
pela Société pour l’Instruction Élémentaire. Além disso, outras referências ao ensino mútuo
no Brasil aparecem nesse mesmo periódico e nos relatórios da Assemblée Générale de la
Société pour l’Instruction Élémentaire até pelo menos 1827 (BASTOS, 1999, p. 105 – 107).
Porém, mesmo antes disso, o jornal O Correio Brasiliense, publicado por Hipólito
José da Costa em Londres, Inglaterra, publicou ao longo do ano de 1816 uma série de artigos
sobre o método de ensino monitorial-mútuo nos quais expôs seu funcionamento e enalteceu
suas vantagens (BASTOS, 1999, p. 104)
Além das iniciativas particulares, houve também medidas oficiais para a
implementação do método de ensino monitorial-mútuo na América Portuguesa e
posteriormente no Império do Brasil: O Decreto de 03 de julho de 1820, por exemplo,
concedeu a João Batista de Queiroz uma pensão anual para que fosse se instruir no método de
ensino monitorial-mútuo na Inglaterra6 (BASTOS, 1999, p. 109); Ainda no início da década
de 1820 uma ordem ministerial estabeleceu que cada província enviasse um soldado à Corte a
fim de ser instruído no método de ensino monitorial-mútuo para que em seguida o
reproduzisse em sua província de origem; e, finalmente, as vantagens do método aparecem
citadas em documentos oficiais do império recém criado como no texto intitulado Memória
preparado e apresentado por Martim Francisco Ribeiro de Andrada à Assembléia Constituinte
de 1923 (BASTOS, 2006, p. 40 - 41).
Dentre as iniciativas oficiais para implementação do método de ensino monitorialmútuo no Brasil houve também as de âmbito militar. Em 1823 foram criadas uma aula de
ensino mútuo e uma escola de primeiras letras regida pelo método de ensino monitorial-mútuo
para instrução das corporações militares sob responsabilidade da Repartição da Guerra7
(BASTOS, 1999, p. 109).
Em meio as vantagens propagadas, talvez a principal delas, estava a possibilidade
de um único professor ensinar, ao mesmo tempo, um grande número de alunos, conforme
mostrado nas experiências pioneiras de seus criadores. Além disso, o método de ensino
monitorial-mútuo, por sua forma de organização intrínseca, bastante rígida, no entendimento
de seus entusiastas, poderia manter os alunos disciplinados constituindo grupos homogêneos
habituados à ordem e à hierarquia, o que vai de encontro com o ideário civilizatório dos
intelectuais e políticos do século XIX no qual a instrução era uma das principais ferramentas,
conforme veremos a seguir.
3
Essas vantagens, exaltadas no Brasil já no início do século XIX, cerca de apenas
três décadas após as experiências pioneiras de Bell e Lancaster, acreditamos, mostravam-se
oportunas e iam de encontro com premissas pensadas para a educação desde algumas décadas
antes em Portugal, ainda em meados do século XVIII, no contexto das reformas do Estado
português promovidas durante o reinado de D. José I e efetivadas pelo Ministro Sebastião de
Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal (1699 – 1782). Dentre essas premissas, apesar das
polêmicas e controversas8, estava o intento de secularização do ensino para camadas amplas
da sociedade, o que pressupunha a instrução de grande quantidade de alunos e pode-se supor,
também, com certa rapidez, uma vez que estamos falando de uma política pública
implementada como reforma e que, portanto, precisava mostrar resultados tanto para se
justificar quanto para atingir seus objetivos políticos e sociais.
Apesar da distância cronológica existente entre as reformas pombalinas, em
meados do século XVIII, e as discussões a cerca da instrução pública e da difusão do ensino
monitorial-mútuo no Brasil, no início do século XIX, acreditamos que ambos os eventos
podem ser relacionados a partir do legado deixado do primeiro para o segundo. Em outras
palavras, acreditamos que o ideal de acesso amplo à educação escolar possivelmente tenha
preparado um campo adequado para o desenvolvimento de um pensamento em prol, e
posteriormente a escolha, de um método de ensino rápido e quantitativo.
Para Carlota Boto
O século XIX dará substrato histórico à utopia pombalina. A profusão de
preceitos legais, antecipando-se muitas vezes à própria realidade escolar,
denota apenas variações tópicas da matriz pombalina, cujo suporte teórico e
político acompanhará as representações e práticas da escola em Portugal do
século XIX. Quer pelo tom do discurso político, quer pelo teor do
pensamento pedagógico expresso em periódicos da época, quer pelo próprio
conteúdo dos manuais e compêndios escolares, o rosto do Marquês ilumina a
história da educação portuguesa na trajetória do século XIX; sendo também
referência necessária para o estudo da história da educação brasileira relativa
aos períodos imediatamente anterior e posterior à nossa independência.
(BOTO, 2004, p. 175)
Sabemos que a defesa pelo método de ensino monitorial-mútuo não estava
presente nas propostas pombalinas para a educação, até porque seria um anacronismo, uma
vez que estas se localizam no tempo quase meio século antes da criação do método, mas
entendemos que foram os ideais do iluminismo português, ainda correntes no Império do
Brasil por pelo menos toda a primeira metade do século XIX (influência que em alguns
aspectos estendeu-se até as últimas décadas do oitocentos), que ofereceram as condições
necessárias para que intelectuais, políticos e sujeitos educacionais do período propusessem e
defendessem um método pedagógico que permitisse a instrução de grande quantidade de
alunos ao mesmo tempo. Nesse contexto parece-nos que o método de ensino monitorialmútuo era bastante oportuno uma vez que se queria erigir um império “civilizado nos moldes
das nações mais avançadas da Europa”, como era costume se dizer na época. No início do
século XIX o emprego do método de ensino monitorial-mútuo fazia parte do discurso
modernizador que pretendia elevar a América Portuguesa/Brasil ao nível das nações mais
desenvolvidas do mundo, a saber, Estados Unidos da América e países do centro e do norte da
Europa.
Carlota Boto (2004, p. 172) afirma ainda que mesmo no Brasil independente do
século XIX, que esteve atado a Portugal por três séculos, estiveram presente desdobramentos
e variantes daquele prospecto pombalino de organização da instrução pública. Este é outro
fator que nos incita a traçar essa relação e pensar a permanência de idéias do iluminismo
4
português como campo fértil para o emprego do método de ensino monitorial-mútuo no
Brasil, pois o modelo administrativo da instrução pública dos primeiros anos do império
brasileiro era o mesmo estabelecido em todo o Império Português após a expulsão dos
Jesuítas em 1759. Ou seja, a rede de aulas régias, de caráter centralizado, estabelecida na
América Portuguesa no âmbito das Reformas Pombalinas só foi rompida dose anos após a
independência do Brasil, quando foi substituído por outro modelo, descentralizado, sob
responsabilidade das províncias, por ocasião do Ato Adicional à Constituição de 12 de agosto
de 1834 (CARDOSO, 2004, p. 187). Ou seja, o incentivo e posteriormente a obrigatoriedade
do uso do método de ensino monitorial-mútuo no Império do Brasil teve lugar inicialmente
nas aulas régias criadas em todo o Império Português.
No que se refere à educação o pensamento que guiou tais reformas propunha que
a instrução do povo fosse matéria de Estado para que se pudessem preparar súditos capazes de
aceitar a legitimidade das leis e os costumes “oficiais” e que para isso era necessária a
organização de uma rede de escolas dirigidas pelo próprio Estado. A escola deveria ser
adequada ao Estado moderno (BOTO, 2004, p. 161 – 170). Essas idéias, inicialmente surgidas
na Europa, circularam e chegaram à América Portuguesa por meio das reformas aplicadas ao
todo o Império Português, e por aqui permaneceram durante boa parte do século XIX, mesmo
após a independência, como já vimos.
Hilsdorf (2006, p. 67) chama atenção para um discurso presente entre os
governantes e intelectuais do oitocentos brasileiro, principalmente a partir da década de 1860,
sobre modelos e propostas educacionais inovadoras vindas de fora, especialmente de países
do centro-norte da Europa e dos Estados Unidos, considerados por eles adiantados. A autora
acrescenta ainda que, mais do que portadores de um discurso, esses homens faziam circular
teorias e propostas pedagógicas entre o novo e o velho mundo.
Apesar de seu texto tratar da segunda metade do século XIX, é certo que idéias
vindas de fora e consideradas inovadoras por seus portadores, defensores e, no âmbito da
administração pública, executores, dentre elas aquelas ligadas à educação e em especial à
instrução pública, circulavam e chegavam ao Brasil desde o período colonial. Por isso
entendemos conveniente interpretar as propostas pombalinas para a educação também no
contexto da circulação internacional de idéias uma vez que também fizeram circular modelos
pedagógicos e pessoas entre mundos: idéias de matriz iluminista surgidas na Europa que
chegaram a todos os cantos do império português por meio de seus gestores, portadores
dessas idéias e responsáveis pela implementação de novas práticas administrativas baseadas
nelas.
Juntamente com a chegada do método de ensino monitorial-mútuo ao Brasil
apareceram também as discussões em relação à necessidade de espaços adequados a
instalação de escolas regidas sob esse método, uma vez que o ensino monitorial-mútuo exigia
certa estrutura, como materiais próprios e espaço físico amplo e apropriado à ação dos
monitores de forma a garantir sua movimentação entre os grupos de alunos e dos alunos de
um para outro grupo, tudo isso sob o olhar atento e as orientações do professor.
Sabe-se que, apesar de toda a discussão desenvolvida pelos políticos e intelectuais
do oitocentos, esses investimentos não foram feitos (pelo menos não de forma satisfatória).
Em geral edifícios próprios não foram construídos e materiais necessários não foram
fornecidos em quantidades suficientes. Quando muito, os professores dominavam o método e
o aplicavam da forma como melhor conseguiam, muitas vezes até adaptando-o.
Segundo Vidal
os custos relativamente altos da manutenção do ensino mútuo – gastos com
quadros murais, sólidos para geometria, bancos e mesas para todos os
alunos, ponteiros e estrados para os monitores, campainhas e matracas para
os sinais sonoros, caixas de areia para a escrita, ardósias e quadros-negros,
5
além de cartões de perdões e penas – talvez tenham sido algumas das razões
de seu declínio já nos anos 1840 e de sua progressiva associação com o
ensino simultâneo (método misto) ou substituição pelo ensino individual.
(VIDAL, 2000, p. 23)
Como as condições para aplicação do método de ensino monitorial-mútuo nas
escolas públicas primárias do império não foram garantidas, apesar de terem sido
consideradas imprescindíveis para o êxito do modelo que então se defendia, a realidade da
instrução pública durante o século XIX não era satisfatória. As escolas em sua maioria
funcionavam em salas impróprias, o mobiliário era inadequado e os materiais insuficientes, o
que praticamente inviabilizava a ação dos poucos professores que realmente dominavam o
método.
Apesar disso, já no início da década de 1830, a contratação de professores
públicos era feita por meio de avaliação oral e escrita e durante esse processo a análise de seus
conhecimentos sobre o método de ensino monitorial-mútuo assumia lugar de destaque
(GOUVÊA, 2001, p. 04). Isso não quer dizer que todos os professores que atuavam em
escolas públicas durante o oitocentos tivessem plenos conhecimentos do método, mas que ao
menos conhecimentos pedagógicos baseados no método de ensino monitorial-mútuo lhes
eram cobrados, isso era certo.
Um desses professores, que por meio da análise de seu discurso acreditamos que
dominava o método de ensino monitorial-mútuo, era Thomaz Rufino de Jesus e Silva, titular
da única escola pública primária masculina da cidade de Santos durante 27 anos. Apesar de
não termos conseguido informações sobre sua origem, bem como seu exame para o processo
de contratação, sabemos que ocupou o cargo de professor daquela escola entre setembro de
1829 e pelo menos o final de 1856. Pediu sua aposentadoria em março de 1857, quando já não
era mais professor da escola citada, e retornou a ela por um curto período entre os meses de
janeiro e março de 1858.
O primeiro indício da qualificação desse professor no método de ensino
monitorial-mútuo é o modo como assinava seus ofício e relatórios ao inspetor do distrito de
Santos e/ou ao inspetor geral de instrução pública da província de São Paulo. Frequentemente
assinava como “professor de ensino mútuo” e não apenas como “professor público desta vila”
ou “professor da primeira cadeira de primeiras letras” como era comum entre os professores
do período. Apesar de não haver padronização nesse tipo de assinatura e de em alguns casos
usar outras sentenças, chamou-nos atenção o fato de na maior parte de sua correspondência
expedida se identificar como professor do método que usava e não da cadeira/escola que
ocupava.
Além disso, muitas das vezes que o professor Thomaz Rufino, por algum motivo,
se referiu à escola registrou que ela funcionava pelo método de ensino monitorial-mútuo. São
comuns em seus ofícios observações do tipo (...) desoccupei a salla em qe. estava assentada a
aula que rejo, a ql. É pelo mettodo Lancastrino, e actualme. Acho-me sem casa p.ª a
colocação da mesma (Ordem CO 5095 – grifos nossos). Observação semelhante aparece
quando ele, durante um período em que esteve com a escola desalojada, indica um edifício
público9 no qual, segundo sua avaliação, a mesma poderia ser instalada: Incluso remetto a V.
S.ª o orçamento da despeza provavel com o conserto da casa que achamos propria p.ª a
colocação da aula pelo methodo Lancastrino (Ordem CO 5095 – grifos nossos).
Em outro ofício, em resposta a um questionário enviado às escolas da província
quando criada a Inspetoria Geral de Instrução Pública, o professor ainda faz referências aos
monitores: o systema de calligraphia é escripta somente demanhã as classes, a á tarde os
monitores escrevem [manuscriptos] em forma de thema (Ordem CO 5095 – grifos nossos).
Outro indício do domínio do professor Thomaz Rufino sobre o método de ensino
monitorial-mútuo foi sua tomada de posição em um debate no qual esteve envolvido entre os
6
anos de 1852 e 1856 sobre a cessão de um edifício público, ou o aluguel de um particular à
custa do governo provincial, para a instalação da escola da qual era professor titular. Debate
do qual também participaram os inspetores distritais que ocuparam o cargo durante esse
período10, o inspetor geral de instrução pública e o próprio presidente da província de São
Paulo.
A discussão iniciou-se em abril de 1852 quando a escola foi removida do edifício
público de propriedade do Império onde ocupava uma sala apenas, o edifício do antigo
colégio dos jesuítas em Santos, o Colégio de São Miguel, onde até então funcionavam
também e escola pública de gramática latina, a alfândega de Santos, o hospital militar da
Praça de Santos, os correios, um armazém de sal (que ao que parece era de propriedade da
Câmara Municipal da cidade) e o palacete11. Por uma Portaria provincial de 16 de abril de
1853 os demais órgãos (municipais, provinciais e imperiais) tiveram que deixar o edifício
para que ele fosse totalmente ocupado pela alfândega de Santos, orgão de responsabilidade do
Império.
O professor Thomaz Rufino deixou o edifício 22 de abril de 1853. A escola ficou
fechada por alguns dias, funcionou na varanda de sua casa entre maio de 1853 e janeiro de
1856 e posteriormente em um sobrado alugado junto a Ordem Terceira do Carmo, à custa do
inspetor do distrito de Santos, na época Firmino José Maria Xavier, entre fevereiro e outubro
de 1856. A partir do final de 1856 a discussão desapareceu da correspondência. Talvez por
coincidir com a data de aposentadoria do professor Thomaz Rufino, ela tenha sido encerrada
com o estabelecimento da escola na residência do professor indicado para seu lugar, não
sabemos ao certo.
Durante todo esse intervalo de tempo, de praticamente quatro anos, o professor
cobrou do poder provincial um edifício adequado, público ou particular alugado à custa do
governo provincial, para a instalação de sua escola e em sua linha de argumentação a
aplicação do método de ensino monitorial-mútuo apresentau-se como principal justificativa
dessa demanda.
Em ofício de 17 de janeiro de 1855, por exemplo, Thomaz Rufino informou ao
inspetor geral de instrução pública da província sobre a impossibilidade de instalação da
escola em edifício indicado na época. O principal empecilho era a dimensão reduzida dos
cômodos disponíveis:
informo a V. S.ª, que no Convento do Carmo d’esta Cidade não ha local
algum capaz de n’elle colocar-se a escola que rejo. Esta informação me foi
dada pela pessoa encarregada do dito convento na ausencia do Reverendo
Prior: Ella é verdadeira por que tenho por algumas vezes alli entrado, e
observado, que as divisões internas são mui pequenas, e nem um salão
tem apropriado ao fim que se requer. É o que tenho a informar a V. S.ª
(Ordem CO 5095 – grifos nossos).
Em ofício posterior, datado de 02 de outubro de 1856, emitido durante o período
em que a escola esteve instalada em um edifício particular, alugado sob responsabilidade do
inspetor do distrito de Santos, o professor exalta as vantagens de se dispor de espaço
apropriado para o uso do método de ensino mútuo:
communico a V. S.ª que a aula que rejo esta actualmente collocada em um
salão de sobrado, pertencente a venerável Ordem 3ª de Nossa Senhora do
Carmo d’esta Cidade. Este salão tem as proporções exigidas pelo methodo
Lancastrino que é o em que foi fundada esta aula em 1824 (Ordem CO
5095 – grifos nossos).
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Não há dúvidas sobre a preferência do professor Thomaz Rufino pelo método de
ensino monitorial-mútuo. Se a forma como assinava seus ofícios constitui um indicativo de
sua qualificação no método, a persistência na obtenção de um espaço apropriado para a
aplicação dele confirma, em nossa análise, seu domínio sobre o método de ensino monitorialmútuo. Contudo, há outro fator que deve ser considerado nessa discussão: possivelmente o
professor Thomaz Rufino exigia que a sua escola estivesse instalada em um espaço adequado
ao ensino monitorial-mútuo por ter sido oficialmente instituída como uma escola/cadeira
regida por tal método.
Bastos (1999, p. 113) salienta que O ano de 1825 parece profícuo na legislação
que visava à implementação de escola públicas de primeiras letras pelo método lancasteriano
nas diversas províncias do Império. A mesma autora aponta ainda que a decisão imperial nº
232 de 08 de outubro de 1825 estabeleceu escolas pelo método de ensino monitorial-mútuo
nas cidades de São Paulo e de Santos, na província de São Paulo (BASTOS, 1999, p. 113).
Apesar da imprecisão nas datas, no ofício citado acima, datado de 02 de outubro
de 1856, o professor Thomas Rufino confirma que sua escola foi estabelecida por tal método.
Como já vimos, ao descrever as características do espaço onde naquele momento encontravase instalada sua escola disse que o salão tem as proporções exigidas pelo methodo
Lancastrino que é o em que foi fundada esta aula em 1824 (Ordem CO 5095).
Parece, portanto, que além de se identificar como professor de ensino monitorialmútuo, o professor Thomaz Rufino valia-se também do fato de a escola da qual era titular, a
primeira cadeira de primeiras letras de Santos, a única escola pública primária masculina da
cidade naquela época, ter sido instituída oficialmente como uma escola de ensino monitorialmútuo.
Essa observação é importante para podermos entender melhor a questão em torno
da cessão ou não de um edifício público para aquela escola, conforme reivindicado pelo
professor Thomaz Rufino, pois para que uma escola fosse considerada pela autoridade
administrativa escolar uma escola de ensino monitorial-mútuo não bastava apenas que o
professor fosse formalmente qualificado ou que ao menos tivesse domínio sobre aquele
método, mas e acima de tudo, que a escola tivesse sido oficialmente constituída como tal.
A insistência do professor Thomaz Rufino na cessão de um edifício amplo
apropriado para a aplicação do método de ensino monitorial-mútuo e, mais que isso, que este
fosse público ou, se particular, alugado à custa dos cofres públicos pode estar ligado ao artigo
5º do Decreto das Escolas de Primeiras Letras de 15 de outubro de 1827, o qual estabelecia
que as escolas regidas por aquele método fossem instaladas em edifícios com lugares
suficientes e com utensílios necessários à custa da fazenda pública.
Ora, se havia a prerrogativa legal de que as escolas de ensino monitorial-mútuo,
quanto ao seu espaço e utensílios, fossem mantidas pelos cofres públicos, parece-nos aceitável
considerar que o professor Thomaz Rufino preferisse exigir o cumprimento dessa prescrição à
levar a escola/cadeira que regia para seu espaço doméstico ou para outro espaço alugado sob
sua responsabilidade.
Cardoso (1999, p. 133) identificou um caso similar no qual o professor de Simão
Bernardino da Costa, da escola pública primária da Freguesia do Engenho Velho (Rio de
Janeiro/RJ), durante a década de 1830 esperou alguns anos até que sua escola fosse autorizada
a funcionar pelo método de ensino monitorial-mútuo, o que na prática significava que o
aluguel do imóvel que ocupava passaria ser pagou, no caso da Corte, pelo governo imperial.
Segundo essa autora, o disposto no artigo 5º da lei de 15 de outubro de 1827 seria um atrativo
para que os professores solicitassem tal autorização uma vez que com isso os aluguéis dos
espaços ocupados pelas escolas passariam e ser pagos pelos cofres públicos.
Claro que no período de nosso estudo, entre 1852 e 1856, já vigorava a lei
provincial nº 310 de 16 de março de 1846 e havia acabado de entrar em vigor o Decreto nº
8
1331-A de 17 de fevereiro de 1854, a chamada reforma Couto Ferraz. Esta última era um
dispositivo legal que reorganizou o ensino primário e secundário no município da Corte, mas
que serviu de modelo para reformas posteriores na instrução pública das províncias
brasileiras, pois, em geral, as reformas educacionais da capital do império serviam de
exemplo às províncias (MACHADO, 2006, p. 92).
Devido a incipiência da reforma Couto Ferraz podemos considerar que sua
influência não tenha chegado à província de São Paulo em tão pouco tempo. Já a lei de 16 de
março de 1846, essa sim uma lei da província paulista em vigor no período de ocorrência do
caso estudado, também fazia referências ao custeio público dos espaços e utensílios das
escolas públicas sem fazer, porém, alusão às escolas regidas especificamente pelo método de
ensino monitorial-mútuo. O artigo 45º, por exemplo, estabelecia que
O governo procurará fornecer edifícios próprios para n’elles se
estabelecerem as escolas, havendo-os públicos; e não os havendo fará
promover a promptificação d’elles por meio de subscripções nas localidades.
Fornecerá aos professores os utensílios precisos. Em quanto governo não
puder fornecer edifícios, e nem conseguir por meio das subscripções,
continuarão as aulas a este respeito como actualmente (SÃO PAULO, 1846).
Esse artigo foi inclusive citado pelo inspetor geral de instrução pública da
província de São Paulo, Diogo de Mendonça Pinto em ofício de 15 de julho de 1854
endereçado ao Presidente da Província de São Paulo, na época José Antonio Saraiva:
Levo ao conhecimento de V. E. que o Inspector interino da Instrucção
Publica do Districto de Santos, representando-me sobre a necessidade de
uma caza para n’ella estabelecer-se a eschola de primeiras lettras do sexo
masculino, que se acha em uma varanda da em que reside o professor,
imprópria a todos os respeitos para similhante estabelecimento, pede ser
autorizado a alugar uma Caza para aquelle fim. Não havendo, porem, quota
designada para taes despezas, não resta senão, como manda o Art.º 45 da Lei
de 16 de Março de 1846, dar logar para a eschola em alguns edificio publico
que porventura tenha sala para isso adaptada, ou promover-se uma
subscripção para a promptificação de um edificio; e tendo a experiencia
mostrado que por este ultimo expediente nada se consegue, e havendo
n’aquella Cidade alguns proprios publicos e um convento onde talvez possa
funccionar a eschola, tendo a honra de rogar a V. E. que se digne mandar
que as Auctoridades respectivas prestem informação á respeito (Ordem CO
5095).
Segundo pudemos apurar por meio da leitura da documentação coligida pouco foi
feito. Ofícios foram enviados às autoridades religiosas e militares da cidade – responsáveis
por conventos, irmandades, pelo Quartel e pelo Arsenal de Marinha – para que informassem
sobre a existência de algum espaço que pudesse ser cedido nos edifícios próprios das
instituições que dirigiam, mas em todos os casos a resposta foi negativa e, como já foi dito, a
questão desapareceu da documentação no final do ano de 1856, sem uma aparente resolução,
concomitantemente à troca de professor da escola, o que nos leva a ao menos inferir que o
professor contratado interinamente, Pacífico Frederico Freire, vindo da Vila de Iguape, tenha
instalado-a em seu espaço doméstico, como era comum no período.
Considerações finais
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As dificuldades enfrentadas pelo Professor Thomaz Rufino de Jesus e Silva não
foram um caso isolado. A realidade das escolas públicas das demais vilas e cidades do
império brasileiro não era muito diferente. Mas a insistência do professor para que a escola
não permanecesse instalada em sua residência e sim em um edifício público ou particular
alugado à custa dos cofres públicos e, acima de tudo, em um espaço com características
físicas adequadas à aplicação do método de ensino mútuo foi o que mais nos chamou atenção
nessa discussão12.
Sua persistência no emprego do método de ensino monitorial-mútuo e a exigência
de um espaço adequado para o funcionamento satisfatório dela são indícios de que, apesar das
condições adversas da instrução pública durante o oitocentos – inadequação dos espaços
físicos, insuficiência dos materiais e utensílios escolares e falta de preparo dos professores –
as idéias circularam e permaneceram e as representações geradas a partir delas mobilizaram
os sujeitos ligados a educação e em especial a instrução pública durante o século XIX.
Referências bibliográficas
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10
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Fontes
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mes=&ano=&titulo=&tipo=&integra=&action=proximos>. Acessado em: 11 de dezembro de
2012.
Ofício do professor Thomaz Rufino de Jesus e Silva ao inspetor geral de instrução pública da
província de São Paulo [sem nome indicado], datado de 01 de abril de 1852. Arquivo Público
de Estado de São Paulo – Catálogo Império – Instrução Pública – Ordem CO 5095.
Ofício do professor Thomaz Rufino de Jesus e Silva ao inspetor geral de instrução pública da
província de São Paulo, Diogo de Mendonça Pinto, datado de 01 de maio de 1853. Arquivo
Público de Estado de São Paulo – Catálogo Império – Instrução Pública – Ordem CO 5095.
Ofício do professor Thomaz Rufino de Jesus e Silva ao inspetor geral de instrução pública da
província de São Paulo, Diogo de Mendonça Pinto, datado de 30 de maio de 1853. Arquivo
Público de Estado de São Paulo – Catálogo Império – Instrução Pública – Ordem CO 5095.
Ofício do inspetor geral de instrução pública da província de São Paulo, Diogo de Mendonça
Pinto, ao presidente da província de São Paulo, José Antonio Saraiva, datado de 15 de julho
de 1854. Arquivo Público de Estado de São Paulo – Catálogo Império – Instrução Pública –
Ordem CO 5095.
Ofício do professor Thomaz Rufino de Jesus e Silva ao inspetor geral de instrução pública da
província de São Paulo [sem nome indicado], datado de 17 de janeiro de 1855. Arquivo
Público de Estado de São Paulo – Catálogo Império – Instrução Pública – Ordem CO 5095.
11
Ofício do professor Thomaz Rufino de Jesus e Silva ao inspetor geral de instrução pública da
província de São Paulo [sem nome indicado], datado de 02 de outubro de 1856. Arquivo
Público de Estado de São Paulo – Catálogo Império – Instrução Pública – Ordem CO 5095.
1
Monitorial/mútuo: termo composto comumente utilizado por Maria Helena Camara Bastos (BASTOS, 2006),
pesquisadora de referência no assunto no Brasil.
2
A segunda cadeira de primeiras letras para o sexo masculino da cidade de Santos, juntamente com a segunda
cadeira de primeiras letras para o sexo feminino, foi criada apenas em 1866 pela Lei provincial nº 13 de 10 de
março daquele ano.
3
Grupo religioso de tradição protestante surgido na Inglaterra no século XVI.
4
O termo classe aqui refere-se a uma separação física feita dentro de uma mesma sala de aula (um espaço) de
acordo com o conjunto de conhecimentos que estava sendo transmitido à turma, algo bem diferente do que se
entende por classe atualmente. Os grupos, ou classes, eram transitórios e se recompunham a cada lição e/ou
atividade de acordo com o grau de desenvolvimento dos alunos.
5
Optamos pelo emprego do termo composto América Portuguesa/Brasil por estarmos falando de um período que
compreende as duas conjunturas político-administrativas, 1819 a 1827.
6
Bastos (1999, p. 109) identificou, por meio de uma publicação no periódico pedagógico Journal d’Education,
que João Batista de Queiroz esteve também instruindo-se na França em 1823.
7
Iniciativa similar já havia sido tomada em 1815 em Lisboa, Portugal, quando a Regência criou as escolas de
ensino mútuo dentro do Exército e da Marinha (BASTOS, 1999, P. 110 – 111).
8
Discutia-se a restrição do ensino a determinadas camadas da sociedade com receio do afastamento das
populações de qualquer tipo de trabalho manual, o que prejudicaria o equilíbrio econômico necessário à
organização da sociedade.
9
O edifício indicado é a chamada Casa do Trem Bélico, um edifício militar usado na época para a guarda de
armas e de munição e que ainda hoje existe na região portuária da cidade de Santos.
10
Entre 1852 e 1856 passaram pelo cargo de inspetor do distrito de Santos, chamado de Distrito nº 19 até 1852,
que compreendia a cidade de Santos e a vila de São Vicente, quatro inspetores: José Baptista da Silveira Bueno,
Martim Francisco Ribeiro de Andrada, Firmino José da Silva Xavier e o Comandante da Praça de Santos, José
Olinto de Carvalho e Silva. Este Martim Francisco que foi inspetor de distrito possuiu dois homônimos em sua
família e era filho do Martim Francisco que participou da Assembléia Constituinte de 1823.
11
12
Uma área do edifício destinada à hospedagem de autoridades provinciais e imperiais em visita à cidade.
Vale lembrar que parte da discussão se desenvolveu após a chamada Reforma Couto Ferraz, Decreto n° 1331A de 17 de fevereiro de 1854, que regulamentou a instrução primária e secundária do Município da Corte e
serviu de modelo a ser implantado nas províncias, quando o método de ensino mútuo foi suprimido como
método obrigatório nas escolas públicas do Império do Brasil.
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ENSINO MUTUO NO BRASIL - Sociedade Brasileira de História