ANSB SAPADORES-‐BOMBEIROS DO BRASIL O conforto das vítim as de acidentes No Brasil, o uso da prancha para o transporte de vítimas de acidentes é tão generalizado que os outros sistemas quase desapareceram. No entanto, no curso PSE (Primeiros Socorros em Equipe) os Sapadores-Bombeiros não aprendem a transportar vítimas na prancha: ela só é utilizada para retirar vítimas de veículos. Logo em seguida, a pessoa ferida é colocada sobre uma espécie de colchão, que molda-se ao redor do corpo e permite uma imobilização muito mais confortável. Esta escolha não é por acaso, nem uma moda. É uma escolha estratégica, pensada há bastante tempo e que corresponde a um fato inegável: o Brasil é um país muito grande! Scoop and run O uso da prancha está muito ligado ao conceito de Scoop and Run, desenvolvido inicialmente pelos exércitos durante a Primeira Guerra Mundial. Os combates eram tão intensos que nenhuma equipe médica podia ficar na linha de frente. Por isso, os enfermeiros corriam para pegar os feridos e levá-los o mais rápido possível a um local abrigado. Daí o termo "Scoop and run" (literalmente "pegar e correr"). Este conceito foi popularizado pela "hora de ouro", princípio segundo o qual as chances de sobrevivência aumentam se conseguimos respeitar um prazo de 60 minutos. A vítima não é tratada no local (ou esse tratamento é mínimo). Como perder tempo não serve para nada, o paciente é colocado rapidamente num equipamento simples (no caso, a prancha). Considerando que numa prancha o risco de queda é grande e que os socorristas focalizam-se frequentemente nos eventuais traumatismos da coluna (em particular, da cervical), os socorristas bloqueiam sua cabeça e fixam a vítima com todo um conjunto de fitas (tirantes) para segurar seu corpo. Totalmente imobilizada na prancha, a vítima é colocada rapidamente na ambulância, que corre à toda velocidade para o hospital. Como nós estamos falando de socorros de urgência, o fato de agir rapidamente e em seguida correr o mais rápido possível para o hospital parece bem lógico. Por isso, os socorristas geralmente estão convencidos de que trabalham da maneira ideal para as vítimas. Mas vejamos: - A hora de ouro é contada entre o momento do acidente e a chegada à sala de operação. E no Brasil, as vítimas que estão na sala de operações menos de 60 minutos depois do acidente não são muitas. - Nenhum estudo científico confiável conseguiu validar este parâmetro da hora de ouro. Na verdade, nada demonstrou uma maior taxa de sobrevivência. - Jim Morrissey [1] e outros autores notaram uma perda significativa na escala de trauma das vítimas transportadas rapidamente ao hospital - de 4.9 a 3.4 - pois todo movimento, inclusive o transporte, tem um impacto sobre elas. - O uso do Scoop and Run e da prancha são generalizados nos Estados Unidos. Mas, naquele país, o tempo de transporte médio das vítimas é de 8,5 minutos, e a sala de operações está pronta quando a ambulância chega ao hospital. Nada comparável ao Brasil. Observe-se além disso que o princípio do transporte rápido das vítimas foi popularizado por enfermeiros militares Franceses durante a Primeira Guerra Mundial, mas depois foi abandonado pelos serviços de urgência da França. Hora de ouro... não no Brasil! Quanto à hora de ouro, sabendo que os 60 minutos são contados desde o acidente até a entrada na sala de operação, podemos ver como esse princípio é totalmente inadequado num país como o Brasil. O número de pessoas formadas em "socorrismo cidadão" é tão pequeno que a maioria das testemunhas fazem "ai mamãe!" e no máximo tiram fotos com o celular, mas demoram a pensar em chamar o socorro. Ora, se a testemunha demora 5 minutos para telefonar, quer dizer que já são 5 minutos consumidos dos 60 da hora de ouro. Em seguida, na maioria dos Estados o sistema de triagem de chamadas ainda está na fase do rascunho: Vários minutos são necessários para acionar o socorro. Quando ele parte, a viatura tem de rodar muitos quilômetros, em Conforto das vítimas - 18/08/2013 - Página 1 de 5 - © ANSB - Associação Nacional dos Sapadores-Bombeiros rodovias em mau estado nas quais andar a mais de 80 km/h é suicídio. Para terminar, chegando ao hospital, frequentemente a vítima fica esperando um tempo antes que alguém venha atendê-la. As dúvidas... O ponto mais estranho é que os Americanos mesmos começam a ter sérias dúvidas sobre a conveniência da prancha. Na edição de março de 2013 da revista JEMS [1], um dos mais famosos periódicos americanos sobre socorros de urgência, um artigo de Jim Morrissey analisou o uso sistemático da prancha, as vantagens e, principalmente, os inconvenientes. O mínimo que se pode dizer é que a prancha não saiu ganhando, muito pelo contrário. Deste artigo, destacamos vários pontos: • • • A imobilização da coluna tornou-se uma espécie de reflexo, mas há pouca evidência científica justificando este ato ou, em todo caso, sua aplicação sistemática. Vários estudos [2 e 3] indicam que, em alguns pacientes, a imobilização total (prancha + imobilizador de cabeça) agrava a situação. Os vômitos, sangramentos e edemas são frequentes nas vítimas de traumatismos, o que compromete as vias aéreas. Ora, a gestão das vias aéreas é dificultada pelo uso da prancha. Em exercício, numa sala bem tranquila, é possível simular a colocação da prancha de lado para liberar a respiração de uma vítima que vomitou, por que não? Mas numa ambulância andando, isso é pura utopia. Principalmente que a ideia da hora de ouro associada ao uso da prancha favorecem a crença segundo a qual 2 socorristas bastam e que é necessário andar rápido. Assim, nós temos um socorrista apenas (ou 2, no máximo) sozinho com a vítima, numa ambulância rolando numa via geralmente em mau estado e esse socorrista teria força suficiente para colocar a prancha de lado, mantê-la assim e liberar as vias aéreas da vítima... Fala sério! Além disso, o paciente fixado na prancha mantida de lado tem tendência a se contrair e procurar uma posição para não escorregar, arriscando agravar as lesões. Qualquer pessoa que já esteve numa prancha sabe que, em termos de conforto, ela é péssima. Agravação das lesões, esforço respiratório Num estudo, publicado em Prehospital and Disaster Medicine [7] voluntários saudáveis foram imobilizados numa prancha. Vários deles queixaram-se. Mas, além da dor e desconforto, o estudo constatou um aumento significativo do esforço respiratório. De fato, os estudos mostram que a imobilização da coluna das vítimas reduz de 15 a 20% sua capacidade respiratória, e isso parece agravar-se pela fixação com os tirantes. Sobre este ponto de 15 a 20%, um estudo [4] feito junto a serviços de socorro do norte da Europa e tratando da liberação das vias aéreas identificou uma ligação entre a esperança de vida de um indivíduo e a capacidade ventilatória que ele teve durante uma fase de traumatismo. Um outro estudo [5] indica inclusive que "(...) a imobilização completa da coluna vertebral não é sem risco. Tem sido associada com uma variedade de complicações, incluindo comprometimento das vias aéreas, aspiração, pressão intracraniana aumentada, úlceras cutâneas de pressão, dor iatrogênica, combatividade dos pacientes intoxicados e aumento do custo e do tempo de hospitalização". Nada de muito bom... O Brasil Às vezes ouvimos dizer que o Brasil não trabalha com scoop and run nem com stay and play, e sim com um sistema misto. Considerando que o scoop and run é boa opção por ser rápido, e o stay and play porque tratamos o paciente no local, então vamos fazer o médico ir até o local e vamos andar rápido. Isso é óbvio, simples... então por que os outros não fazem a mesma coisa? Primeiro, todos sabemos que para um socorrista, andar rápido é normal e certo. Conforto das vítimas - 18/08/2013 - Página 2 de 5 - © ANSB - Associação Nacional dos Sapadores-Bombeiros Os socorristas Franceses correm para ir até o local do acidente, cuidam "devagar" da vítima, no local. Depois disso, seria fácil correr para o hospital porque, afinal, é o que eles gostariam de fazer. Mas eles aprendem a ir lentamente para o hospital. Optar pelo sistema Brasileiro, ou seja, ir rápido, tratar no local e correr para o hospital seria a solução mais simples. Mas só o Brasil faz assim. Os Franceses precisam lutar contra a própria vontade de correr para o hospital. Mas por que se complicar desse jeito? Acontece que todos os estudos sobre o socorrismo estão de acordo num ponto essencial: o que degrada mais o estado das vítimas (além do acidente em si mesmo, evidentemente) é o transporte. Se você está em modo Scoop and Run, ninguém liga para a degradação durante o transporte: você se apressa, acreditando que a degradação devida ao transporte será compensada pelo prazo menor para o início do cuidado hospitalar. Isso supõe então que o cuidado comece imediatamente desde a entrada da vítima no hospital. Esse não é o caso no Brasil. Se você está em Stay and Play, você considera que o tempo perdido no local vale a pena. Mas neste caso é importante evitar "quebrar tudo" o que foi feito no local. O médico pode ser o melhor do mundo, se ele cuida da coluna vertebral de alguém, mas em seguida esse paciente é transportado a 100 km/h durante 50 km (no mínimo) em uma pista de terra, amarrado numa prancha, ao chegar todo o trabalho do médico não terá servido a nada! Então, é simplesmente em respeito ao trabalho do médico que os socorristas Franceses são 4 (para levantar as vítimas com a maior qualidade possível) e dirigem devagar para levar a vítima ao hospital. Ao contrário, o sistema Brasileiro parece não seguir nenhuma razão lógica: enquanto o país tem falta de médicos nos hospitais, eles são enviados para as estradas para tratar de vítimas que em seguida serão transportadas em condições duvidosas, tendo como único resultado degradar o trabalho que o médico realizou! Para que um sistema assim seja viável, seria preciso um número enorme de médicos, pistas perfeitas e hospitais a cada 10 km... Será que vamos viver o suficiente para ver isso no nosso país? No final, é bem um paradoxo querer levar um médico ao local para em seguida transportar rapidamente, pois o prejuízo é dos dois lados: resultado mais lento do que o Scoop and Run pois o transporte é atrasado pelas ações do médico, e menos conforto do que o Stay and Play, pois continua-se a utilizar uma prancha e a transportar o mais rápido possível. Observação: Vejamos também que a escolha de um método ou outro está ligada às técnicas de socorro. Levar um médico para cuidar da vítima implica tomar muito cuidado com o transporte dela. E cuidar dela exige equipamentos especiais (colchão a vácuo, maca com rodas grandes...) e principalmente técnicas adequadas. Assim, não dá para substituir a elevação da vítima por um simples rolamento para a prancha. As vítimas inconscientes O uso da prancha também leva a um comportamento inadequado dos socorristas: A Posição Lateral de Segurança, único método que permite proteger eficazmente as vias aéreas do indivíduo inconsciente, é largamente ignorada pelos serviços de urgência. Esta ignorância parece ligada a que uma vítima em posição lateral de segurança não pode ser transportada numa prancha. Em contato com os autores do estudo Norueguês [4] verificou-se que na verdade tudo está ligado: o uso da prancha, que impõe a colocação da vítima de barriga para cima, torna-se um hábito, e a Posição Lateral de Segurança é deixada de lado. A prancha, danosa no nível das lesões traumáticas, agora torna-se também danosa em termos da capacidade respiratória das vítimas. Lembremos que o aspirador de mucosidade não consegue impedir o refluxo gástrico para os pulmões! Também observou-se que o uso da prancha, por aumentar significativamente a dor das vítimas, levava a radiografias inúteis e dúvidas da parte dos médicos, tudo isso levando a um aumento dos custos de hospitalização. Neste momento em que os serviços médicos Brasileiros têm muitas vezes falta de recursos, este ponto é interessante. Conforto das vítimas - 18/08/2013 - Página 3 de 5 - © ANSB - Associação Nacional dos Sapadores-Bombeiros No conjunto do artigo [1] o autor observa ainda que a imobilização tornou-se um gesto "automático": pelo menos 5 milhões de pacientes americanos entram no pronto socorro imobilizados, apesar de a maioria não ter nenhuma queixa sobre a coluna. "Eu entendi que era necessário preocupar-se com o conforto da vítima durante o meu curso de socorro em rodovia, na França. No primeiro dia, o formador nos disse que era preciso dirigir bem devagar ao levar uma vítima ao hospital. Para nos demonstrar isso, ele nos fez entrar na ambulância, e um depois do outro nós ficamos no lugar da vítima para fazer um pequeno trajeto, realmente pequeno. Seria bom colocar alguns socorristas Brasileiros amarrados numa prancha para andar alguns quilômetros em pista de terra. Acho que eles entenderiam bem rapidamente." PL Lamballais / Formador de Socorrismo / ANSB Vantagens... para os socorristas! De fato, o conceito de Scoop and Run e o uso da prancha com certeza têm vantagens... mas não para as vítimas. De um ponto de vista do material, ele permite ter um equipamento simples, tirantes bonitos e coloridos, e todo mundo pode "brincar de socorrista". Permite correr "a toda velocidade", o que parece "valorizar" o socorro. E finalmente, permite ter equipes reduzidas, de somente 2 pessoas, e portanto menos custos. Notamos também que o hábito do rolamento para a prancha fez que os levantamentos a 3 ou 4 pessoas fossem quase esquecidos. Um resultado espantoso é que, quando os socorristas querem voltar a esses levantamentos, eles precisam de certo modo reinventá-los, o que leva a resultados no mínimo surpreendentes. É assim que, num manual de Bombeiros Militares, nós encontramos informações super detalhadas sobre a elevação de um politraumatizado a três socorristas, com uma prancha. Ora, acontece que um dos socorristas está posicionado ao contrário, deixando a cervical do paciente sem nenhuma sustentação. Nas fotos a vítima está bem reta, apenas porque é um assistente, bem vivo e bem consciente. Se estivesse inconsciente a cabeça iria tombar durante a elevação. A solução e seus inconvenientes Nos Sapadores-Bombeiros, nós utilizamos colchões a vácuo, que se moldam contra o corpo da vítima. Enquanto que o sistema da prancha é muito vantajoso para o socorrista, e nenhum pouco para a vítima, com este tipo de colchão é o inverso. Primeiramente, este tipo de colchão imobiliza a vítima na posição que ela escolher, o que é crucial para o conforto e sensação de aconchego. O colchão molda-se nos vazios naturais: a vítima não fica apoiada somente em alguns pontos do próprio corpo, como é o caso na prancha. Se a vítima estiver inconsciente, é possível mantê-la em posição lateral de segurança durante todo o seu transporte. E finalmente o colchão a vácuo é o único equipamento que permite a imobilização de uma fratura de bacia. Inconveniente para a vítima? Não há. Por outro lado, usar um colchão a vácuo não é possível a dois socorristas. Com um bom treinamento, é possível usá-lo a três, sendo mais eficaz a 4 socorristas. Ora, se um trabalho a 2 é bastante fácil, um trabalho a 4 necessita de um comando para sincronizar os movimentos. Uma elevação como a Ponte Holandesa não se improvisa, e uma "ponte melhorada" não se aprende no Power Point. Além disso, os Sapadores-Bombeiros aprendem também a fazer a elevação de vítimas deitadas de barriga para cima, em posição lateral, eventualmente com talas, etc. Observemos que este sistema de cuidado lento tem outra vantagem, que é permitir uma análise mais apurada da situação e assim levar o paciente ao hospital mais adequado. De fato, quando se quer ir rapidamente, como é o caso com a prancha, não há tempo para analisar bem a situação, e o objetivo é levar o mais rápido possível o paciente ao hospital mais próximo. Mas se este hospital não for o mais adequado, será preciso transferir o paciente. O estudo "Scoop and run to the trauma center or stay and play at the local hospital: hospital transfer's effect on mortality" [6] realizado com 1112 pacientes, mostrou que a transferência das vítimas tem um impacto muito grande sobre a mortalidade. Entre fazer 50 km, descarregar a vítima, ter um diagnóstico médico e depois fazer um novo transporte de 50 km, ou analisar melhor o estado e fazer de uma vez os 100 km, a segunda opção oferece resultados largamente superiores! bebida_alcolica Conforto das vítimas - 18/08/2013 - Página 4 de 5 - © ANSB - Associação Nacional dos Sapadores-Bombeiros Conclusão A prancha, elemento muitíssimo útil para a retirada de vítimas de acidente bloqueadas dentro de veículo, por exemplo, não devia mais ser utilizada para o transporte, pelas numerosas complicações que ela provoca. Os Sapadores-Bombeiros decidiram mantê-la para a retirada de vítimas, e preferir o colchão a vácuo para o transporte. Nota técnica: todos os Sapadores-Bombeiros da ANSB aprendem técnicas de elevação de vítimas que privilegiam o conforto delas e a usar o colchão de imobilização que a ANSB faz fabricar e fornece a todos os quartéis. As equipes são de 4 socorristas. Bibliografia 1 - "Spinal immobilization. Are we going "over board"?" JEMS Mars 2013, Jim Morrissey, MA, EMT-P 2 - Smith JP, Bodai BJ, Hill AS, Frey CF "Prehospital stabilization of critically injured patients: A failed concept" (in J Trauma 1985) 3 - Haut ER, Kalish BT, Efron DT, et al. "Spine immobilization in penetrating trauma: More harm than good?" J Trauma. 2010;68(1):115–120; discussion 120–121. 4 - Sabina Fattah, Guri R Ekås, Per Kristian Hyldmo, Torben Wisborg "The lateral trauma position: What do we know about it and how do we use it? A cross-sectional survey of all Norwegian emergency medical services" (Scandinavian Journal of Trauma, Resuscitation and Emergency Medicine-2011) 5 -Cervical Spine Motion During Extrication: A Pilot Study Jeffery S. Shafer, MD, EMTP and Rosanne S. Naunheim, MD http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2691505/ 6 - Scoop and run to the trauma center or stay and play at the local hospital: hospital transfer's effect on mortality. Nirula R, Maier R, Moore E, Sperry J, Gentilello L. 7 - Kwan I, Bunn F. Effects of prehospital spinal immobilization: a systematic review of randomized trials on healthy subjects. Prehosp Disaster Med. 2005;20(1):47–53. Conforto das vítimas - 18/08/2013 - Página 5 de 5 - © ANSB - Associação Nacional dos Sapadores-Bombeiros