SÃO TORPES
Tem nome de homem que virou santo, num mundo onde santos é coisa que já não há.
Uma história única, como tantas histórias de gente que aqui veio parar.
Uns para ficar, outros para partir e antes disso os que já eram de cá.
E antes deles a areia e o mar, as dunas que se estendem aos pés da planície, e o
ribeiro, que ainda hoje desagua num mar de prata alourado pelo pôr do sol.
As estradas vieram e separaram as dunas do campo, como se os dois territórios
fossem para nós humanos, inconciliáveis. Depois os molhes que te rasgaram o ventre,
as chaminés que te espreitam dia e noite, e a água quente, que se podia esperar que
partisse cedo, mas que ficou e ficou.
E eu sei. Talvez São Torpes, só exista assim dentro de mim. Eu que cresci com São
Torpes como a mais perfeita metáfora da relação entre a gente e as coisas, como o
mais cru e puro reflexo da mão do homem na natureza.
E para alguém que aqui, apanhou em criança o susto que o fez querer nadar melhor
do que toda a gente, para alguém que aqui, apanhou as primeiras ondas numa
prancha comprada no Continente de Alfragide e umas barbatanas de caça submarina,
esta praia não pode ser só uma praia, mas sim um mundo dentro de outro mundo
maior.
Os dias passados na praia a eleger a miúda que levava a taça, as pranchas do ISN
que para nós eram brinquedos, as viagens de bicicleta com a prancha ao ombro e os
regressos contra o vento que sopra do cabo, os faróis dos carros como candeeiros
depois de um dia de ondas perfeitas, e os meus dentes da frente, que hoje imagino
sempre que são areia desta praia.
Tantos sustos como prazeres, estar sentado na prancha e perceber que estamos
rodeados de amigos, os sorrisos, eu e o João a descer uma onda e a gritar “pipeline”
como víamos fazer nos filmes VHS, as horas que passavam a voar, o voltar à terra
depois de tantas horas no mar.
E entretanto, o mar de prata virou trinca-espinhas, o nosso espaço hoje é uma escola
de surf, o Repa hoje é Kalux… Mas a água quente continua a correr e eu estou dentro
de água, rodeado de amigos, o vento sopra de terra e sol aquece-me a cara.
BrunoLeal
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Tenho 12 anos e acho que tenho os meus dentes outra vez.
E de repente tudo para mim se resume à mais pura essência das coisas, num mundo
dentro de um mundo maior, aqui, nesta mais bela metáfora da relação entre a vida e a
gente.
BrunoLeal
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