Marcello Casal/ABr
V
ive-se no Brasil um período inédito em termos
históricos, e isso não é
pouca coisa, apesar de se
desejar muito mais. O país
voltou a crescer e a inflação está relativamente baixa para nossos padrões
passados – até meados dos anos 1990.
No período de 2004 a 2008, acumulou
crescimento, medido pela variação
do PIB, acima de 26% e uma taxa de
inflação de 30%, medida pelo IPCA.
Em 2006 e 2007, a taxa de crescimento econômico foi superior à inflação,
o que é outro fato pouco conhecido
na economia brasileira. Essa nova
dinâmica econômica ocorre em um
ambiente democrático, de liberdade
e segurança institucional.
No fim dos anos 1980 e na década
de 1990 ocorreu um debate que punha
em dúvida se seria possível – em países
caracterizados por profunda desigualdade social e econômica e por longos
períodos de autoritarismo, como o
Brasil – engendrar uma estratégia de
Teoria e Debate 85 H novembro/dezembro 2009
sucesso que combinasse crescimento
com distribuição de renda e da riqueza
em um ambiente democrático.
A história recente, porém, confronta essa tese, pois o crescimento econômico brasileiro ocorreu ao mesmo
tempo em que houve a melhora dos
indicadores sociais, revelada por meio
da redução da pobreza, da queda na
concentração de renda pessoal. Foi
acompanhado ainda de significativa
redução da taxa de desemprego, com
aumento da ocupação e dos empregos
com carteira de trabalho assinada, que
asseguram postos de trabalho com
melhor qualidade. Também cresceu
a renda do trabalho, com a elevação
do rendimento real médio e com forte
expansão da massa salarial.
Esse movimento que combina
crescimento econômico com melhorias sociais que elevam a qualidade de
vida e do trabalho pode ser caracterizado como uma das dimensões que
constituem o que se pode denominar
de desenvolvimento.
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Por sua vez, a crise internacional,
agravada a partir de setembro de 2008
com a quebra do banco americano Lehman Brothers, fragilizou a concepção
da dominância neoliberal que dá ao
mercado a supremacia da ação econômica, social e política. São os Estados
nacionais e, com o apoio e governança destes, as instituições multilaterais
que estão atuando para evitar o pior
e recuperar o nível de confiança dos
agentes econômicos, base para a atividade econômica assentada no mercado e na iniciativa dos indivíduos. O
Estado, aquele ente desprestigiado pela
“vida e vigor do mercado”, é chamado a
cumprir o papel de indutor e regulador
das mazelas deste. As saídas da crise
colocarão para os Estados nacionais
desafios de grande monta, bem como
poderão representar oportunidades
interessantes de mudança de rumo na
condução de sua política econômica.
No Brasil, como nos demais países,
recuperou-se o tema do desenvolvimento nos debates políticos e acadêmi-
economia
Desenvolvimento
e o dilema da taxa
de juros
A crise financeira questiona os preceitos neoliberais e exige dos Estados
nacionais uma nova base econômica. As altas taxas de juros desviam recursos
que poderiam ser dirigidos ao investimento produtivo e fariam grande diferença
para o crescimento e distribuição de renda Clemente Ganz Lúcio
cos, agora necessariamente qualificado
como sustentável social e ambientalmente. A retomada da pauta é da mais
alta relevância, construir concepções
da relação entre crescimento (produção da riqueza) e desenvolvimento (sua
distribuição) em um ambiente sustentável ambientalmente é tarefa política
de primeira importância, para a qual o
movimento social – sindical e popular
– deve atuar de forma determinante,
por meio de diagnósticos consistentes
e propostas ousadas e inovadoras.
A sociedade brasileira é ainda hoje
expressão de uma correlação perversa
entre crescimento e desenvolvimento.
O país cresceu no século passado a
taxas espetaculares, com processos de
acelerada industrialização, como no final dos anos 1950 com o “Plano de Metas”, que propunha realizar “cinquenta
anos em cinco”, ou, ainda, durante o
regime militar, com o 1º e o 2º Planos
Nacionais de Desenvolvimento. Entretanto, as altas taxas desses períodos
não foram acompanhadas do mesmo
avanço nos indicadores sociais. Isso
porque os mecanismos que produzem as desigualdades – educacionais,
patrimoniais, regionais, entre tantas
outras – atuam e se reforçam com o
crescimento econômico. O aumento
da quantidade de riqueza – ou seja,
o crescimento econômico – não é necessariamente sinônimo de desenvolvimento, ao contrário, sob sua égide
podem ser aprofundadas as desigualdades sociais e econômicas. Construir
outro resultado significa desenhar e
implantar processos sociais e políticos
capazes de promover outra distribuição econômica do crescimento. Não há
como fazer esse enfrentamento sem
olhar para a questão do trabalho, da
educação, da reforma patrimonial,
com destaque especial para a reforma
agrária, para as diferenças regionais,
para a perspectiva local, para a ciência,
tecnologia e inovação para médias,
pequenas e microempresas, entre
tantas outras capazes de promover a
distribuição de riqueza e renda.
17
Para o desafio futuro, mais uma
vez, a experiência recente traz contribuições relevantes. O crescimento
do país foi resultado de uma atuação
vigorosa do Estado brasileiro, orientado por uma política de governo que
se voltou para a recuperação da capacidade de investimento público combinada com políticas redistributivas,
especialmente para os mais pobres, e
forte capacidade de mobilização dos
atores sociais. O investimento público
em infraestrutura (estradas, portos,
aeroportos, usinas hidrelétricas, entre outros); em infraestrutura urbana
(saneamento, habitação, mobilidade
urbana etc.), com a organização do
PAC como programa que articula esses investimentos; o fortalecimento
da Petrobras; e os investimentos nos
biocombustíveis são alguns exemplos
de iniciativas do Estado responsáveis
por novo dinamismo na base econômica. Os investimentos em educação
(PDE) básica, técnica e superior e na
segurança pública, por exemplo, ataTeoria e Debate 85 H novembro/dezembro 2009
VENDEDORES
cam problemas estruturais. Os mecanismos de transferência de renda,
em especial o Bolsa Família, ou de incremento do valor do salário mínimo,
com rebatimento sobre os benefícios
da Previdência, revelam outra concepção de política pública, de papel
do Estado na relação com a economia
de mercado, seja no investimento, seja
na geração de renda e emprego para a
base da pirâmide social.
Nessa dinâmica, o Estado tem papel central e sua capacidade de ação
é política, institucional e econômica.
Assim, fortalecer o orçamento público é tarefa primordial. Para tanto,
deve-se rever o regime de metas de
inflação que vigora no país, bem como
a política monetária, que são os instrumentos utilizados pelo Conselho
de Política Monetária (Copom) para
domar a inflação. Um equívoco na
avaliação sobre a tendência da inflação, assim como em seus mecanismos
de controle, pode ser trágico para a
estratégia de crescimento e desenvolvimento.
A taxa de juros básica é pensada
e usada pelas autoridades monetárias como instrumento de política de
controle da inflação. Uma maior taxa
de juros desanimaria o agente econô-
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mico ao investimento produtivo pelo
incentivo do ganho financeiro fácil e
sem risco. Com menor crescimento,
reduz-se a demanda econômica global,
aliviando-se a pressão sobre os preços,
garantindo-se a queda da inflação.
Segundo essa concepção, a economia
brasileira não estaria preparada para
um crescimento acima de uma taxa
determinada em torno de 3,5% ao ano.
O Brasil tem praticado as mais
altas taxas de juros do mundo para
a graça do sistema financeiro e daqueles que vivem do rentismo. Como
consequência, o gasto público com o
pagamento dos juros da dívida desviou
centenas de bilhões de reais ao longo
dos últimos anos – e as altas taxas de
juros contribuem para aumentá-lo
de forma despropositada. Ganham
alguns rentistas e perdem todos os brasileiros. Esse recurso, drenado pelos
juros, se fosse dirigido ao investimento
produtivo, à pesquisa, inovação, entre
tantas outras necessidades e prioridades, teria feito toda a diferença na conformação econômica e social do país.
Perseguir o desenvolvimento é
gerar maior capacidade de ação para
o Estado. Um dos aspectos essenciais
nesse sentido é enfrentar a dívida
pública – que vem caindo em relação
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ao PIB –, em especial e com determinação, a taxa básica de juros que a
remunera. Uma redução desta para
padrões médios praticados internacionalmente liberaria o correspondente a
2% do PIB de folga fiscal no orçamento
público. É bom lembrar que o Banco
Central, ao contrário, já fala em sua
elevação para a casa dos 10% no próximo ano, com inflação estimada em
4,5%. Nesse caso, não haverá folga,
mas sim aperto fiscal para fazer frente
ao aumento do gasto com pagamento
dos juros. Combater a inflação é um
imperativo macroeconômico. Para
esse fim, entretanto, são necessárias
outras políticas econômicas na medida
em que os juros, em vez de remédio,
podem representar um veneno contra
o desenvolvimento.
Trata-se de uma luta central para
a perspectiva do crescimento e do desenvolvimento, para uma mudança
radical de uma economia assentada
no rentismo para uma economia assentada na produção e na distribuição
da renda e riqueza. ✪
Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico
do Departamento Intersindical de Estatística
e Estudos Socioeconômicos (Dieese), membro
do Conselho de Desenvolvimento Econômico
e Social e do Conselho de Administração do
Centro de Gestão e Estudos Estratégicos
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