CAPÍTULO V ===================== A VIDA ENGENDROU A MORTE QUE, POR SUA VEZ, RECONSTITUIU A VIDA (Uma incursão nos registros obituários do Brás com vista a conhecer a causa mortis dos trabalhadores e de seus filhos ali sepultados sepultados e, através dela, construir as condições que a engendraram) Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 133 En su cunita de tierra/ Lo arrullará una campana/ Mientras la lluvia le limpia/ Su carita en la mañana/ Cuando se muere la carne/ El alma busca su diana/ En el misterio del mundo/ Que le ha abierto su ventana. (Violeta Parra) 1. Um cemitério construído em meio à frenesi industrial Em 1893, São Paulo já contava com 130.775 habitantes e o bairro do Brás, onde vários imigrantes de Schio se fixaram havia alcançado exatos 32.387 moradores, o maior Bairro operário e o segundo mais populoso da cidade.1 Exatamente naquele ano, abria-se para os sepultamentos públicos o Cemitério do Brás, que atenderia toda a população residente na região da várzea paulistana. Na verdade, o cemitério recém-inaugurado era, então, a segunda necrópole do Bairro.2 Entre 6 de janeiro de 1893 e 21 de dezembro de 1895, 3302 termos de sepultamento foram lavrados, a partir da certidão de óbito, e permaneceram anotados nos Livros de Registros no. 33 e 34 daquele cemitério, hoje guardados junto ao acervo do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo (AHMSP). Para constituir a amostragem necessária ao estudo, escolhemos um a cada cinqüenta registros, com início no assento de número 10 do Livro 33, lavrado no dia 12 de janeiro de 1893 e, assim, rigorosamente, até completar o assento de número 3260, de 8 de dezembro de 1895, no final do Livro 34.3 O resultado deste procedimento redundou na seleção de 66 assentos que serão aqui analisados. A leitura dos relatos funerários e a decodificação dos termos de natureza médica, nos proporcionaram informações inauditas sobre essas 66 pessoas sepultadas no Cemitério do Brás e, como amostragem de todo o conjunto da população ali então existente, nos forneceram dados para entender como cresceram, casaram, procriaram, trabalharam e, enfim, viveram, naquele mesmo Bairro. Enfim, os registros de suas mortes trouxeram-nos a ressurreição de sua trajetória de vida. Longe de sepultá-las definitivamente, ajudou-nos, a pô-las de pé. Para melhor analisarmos o volume das informações que foram, depois, sistematizadas, elaboramos uma série de tabelas que nos ajudarão a entender, por meio das expressões quantitativas, a realidade da vida e do trabalho operário no bairro do Brás. Convém, ainda, esclarecer que os dois livros pesquisados contém praticamente a mesma quantidade de registros: o primeiro (no. 33), 1643 termos de sepultamento e o segundo (no. 34), 1659. A tabela a seguir nos mostra como foi a distribuição e o peso dos registros selecionados ao longo dos três anos pesquisados: 1 SESSO JR., Geraldo op. cit., p. 99. Nesse mesmo ano acontece um conflito que envolveu os italianos ali residentes e ficou conhecido como do “Guerra do Protocolo”. 2 Os procedimentos para a construção do novo cemitério iniciaram-se ainda por volta de 1874, pois o antigo, que situava-se atrás da igreja de São Bom Jesus de Matozinhos tornou-se pequeno demais para tantos sepultamentos. O novo seria construído no “Marco da Meia Légua” por ser um lugar alto. Em 1878, o engenheiro responsável iria enviar à Câmara Municipal de São Paulo a planta das imediações. Mas, problemas de ordem burocrática adiaram sua instalação. Somente em 22 de outubro de 1892, a Câmara decidiria fazer a nomeação do pessoal administrativo para funcionar a nova necrópole. Cf. TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes op. cit., pp. 102-105. Como se pode aferir, apenas no início do ano seguinte é que essa repartição municipal começou, efetivamente a funcionar. No terreno onde existiu o velho cemitério construir-se-ia, em 1896, a nova igreja matriz do Brás. 3 AHMSP: Livro de Registro de Inumação no. 33 - Cemitério do Brás - relativo aos anos de 1893 a 1894; e Livro de Registro de Inumação no. 34 - Cemitério do Brás - relativo aos anos de 1894 a 1895. Tratam-se, certamente, dos dois primeiros livros do novo Cemitério do Brás. 134 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. TABELA 22 CEMITÉRIO DO BRÁS INUMAÇÕES OCORRIDAS ENTRE 06/01/1893 A 21/12/1895 CLASSIFICAÇÃO DOS SEPULTAMENTOS POR ANO ANO SEPULTAMENTOS % 1893 1894 1895 26 19 21 39,4 28,8 31,8 TOTAL 66 100 Fonte: AHMSP, Livros de Registro de Inumações Cemitério do Brás, nos. 33 e 34. O ano de 1893 apresentou, em termos absolutos, um número de óbitos bem superior aos demais: cerca de 1260, ocupando, portanto 39,4% da amostragem. Quais as razões desses elevados números? Teria havido alguma epidemia na Capital e, por conseqüência, atingido também a população do Brás? Dados relativos ao mês de novembro de 1891, colhidos junto ao conhecido “Hospital dos Variolosos” existente, então, na Capital paulista, informavam que naquela unidade hospitalar estavam internados, no começo daquele mês, 98 pacientes, sendo 61 mulheres e 37 homens. Entraram, ainda, durante o período, mais 120 enfermos, dos quais 81 mulheres e 39 homens. Receberam alta médica um total de 136 internados (88 mulheres e 48 homens). A fonte informava, ainda, que a varíola, denominada popularmente como “bexiga”, havia provocado, somente naquele mês, o falecimento de 32 pessoas, das quais 22 eram mulheres e 10 homens. No primeiro dia de dezembro permaneciam, ainda, internados 50 doentes.4 Os números indicam claramente os sinais de que havia uma epidemia de varíola em expansão na cidade de São Paulo. A simples constatação de que durante o mês em tela ingressaram quase 22,5% a mais dos pacientes que já se encontrava internados confirma essa hipótese.5 Outra epidemia sentida na época foi a de “febre amarela” que assolou várias cidades do interior paulista, entre 1889 e 1892, e atingiu levemente São Paulo somente no ano de 1892, pode ter exercido alguma influência nessa elevada taxa de mortalidade. Os autores do relatório que inspecionou as moradias operárias e os cortiços de Santa Ifigênia, em 1893, atestaram a existência de uma epidemia na cidade, quando afirmaram que: Alem dos cortiços do typo que acabamos de assignalar, há ainda na cidade e na zona affectada pela epidemia (febre amarela n.p.) varios outros typos de habitações operarias que carecem da seria attenção da autoridade sanitaria.6 Outras fontes também atestam a existência de vários casos de internação provocados por essa doença na Capital, entre 1892 e 1893. Segundo Morse, entretanto: (...) se tratava de pessoas que tinham recebido pesados engradados de Santos, os quais, dadas as condições de apêrto e congestionamento do pôrto, permaneciam durante meses no meio da 4 OESP - no. 5028, de 05 de dezembro de 1891, página de rosto. Morse informa que entre as causa mortis dos habitantes da Capital, durante o ano de 1887, a varíola havia provocado o falecimento de 34 pessoas (1,95%) de 1736 óbitos. Cf. MORSE, Richard M. op. cit., p. 246. 6 GAMA, Luiz C. do Amaral et alii (Dr. Candido Espinheira, Theodoro Sampaio, Dr. Cunha Vasconcellos e Dr. Marcondes Machado) Relatório da Commissão de exame e inspecção das habitações operárias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia – apresentado ao cidadão Dr. Cezario Motta Jor. – M.D. Secretario dos Negocios do Interior do Estado de São Paulo. São Paulo, 19 de outubro de 1893, manuscrito, p. 8. 5 135 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. imundície e da umidade. Só então iniciou o govêrno uma campanha mais sistemática de saneamento. (...) O episódio da febre amarela foi um fator, embora não decisivo, do crescimento precipitado da cidade (...)7 Entretanto, no que se refere tanto à primeira quanto à segunda epidemia, não parecem ter incidido fortemente na determinação da causa mortis dos moradores do Brás, visto que na já referida amostragem elas não aparecem em nenhum caso, pelo menos com a nomenclatura que se conhece hoje. A elevação do número de mortes naquele bairro, durante o ano de 1893, teve, com certeza, outras causas, mais especificas àquelas condições de vida e trabalho e peculiares ao tipo de habitat que se estava constituindo para os operários recém-chegados. Voltando ao número geral de óbitos dos três períodos, observa-se que, durante o ano de 1894, houve uma retração de mais de 10% em relação ao ano anterior e, para o seguinte (1895), notase também um novo incremento no número de falecimentos. A tabela abaixo apresenta os óbitos distribuídos segundo os meses e os respectivos anos. Nota-se uma maior incidência de mortes nos meses das estações mais frias. Tais informações nos levam a crer que as doenças do aparelho respiratório, muito comuns nesse período, se associavam à fragilidade das defesas orgânicas, principalmente de crianças, e propiciavam o surgimento de outras doenças que acabaram por desempenhar um papel importante nas causas que provocaram as mortes então diagnosticadas. Os outonos e os invernos daqueles anos parecem ter alastrado o terror entre as famílias operárias do Brás. TABELA 23 CEMITÉRIO DO BRÁS INUMAÇÕES OCORRIDAS ENTRE 06/01/1893 A 21/12/1895 CLASSIFICAÇÃO DOS SEPULTAMENTOS POR MÊS E ANO ESTAÇÕES DO ANO MESES 1893 1894 1895 3 ANOS % Verão Verão Verão/Outono Outono Outono Outono/Inverno Inverno Inverno Inverno/Primavera Primavera Primavera Primavera/Verão Janeiro Fevereiro Março Abril Maio Junho Julho Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro 1 2 3 4 3 3 3 2 1 2 2 2 2 1 2 1 1 1 2 1 2 2 2 3 1 1 2 1 2 2 2 2 2 2 1 6 3 4 7 6 6 6 7 5 5 6 5 9,1 4,5 6,0 10,6 9,1 9,1 9,1 10,6 7,6 7,6 9,1 7,6 26 19 21 66 100 T O T AL Fonte: AHMSP, Livros de Registro de Inumações Cemitério do Brás, nos. 33 e 34. As médias mais altas de mortalidade estão exatamente nos meses de abril (inicio do outono) com 10,6% do total, caindo um pouco em maio, junho e julho com 9,1% cada um, e voltando a subir nos patamares de abril, durante o mês de agosto (fim do inverno). Somente esses cinco meses representam 48,5% do total da amostragem, isto é: 32 óbitos. Dos 16 casos de óbito analisados, ocorridos em 1893, apenas um deles se referia a uma pessoa adulta, que morrera no respectivo mês de abril. Todos os demais falecimentos aconteceram em crianças com menos de 7 anos.8 7 8 MORSE, Richard M. op. cit., p. 247. Ao longo dessa apreciação, consideram-se incluídos na categoria “crianças” também os fetos e nati-mortos. Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 136 Houve três casos de causa mortis provocados pelo sarampo e outros dois em decorrência de complicações pulmonares. Dos 7 casos verificados em 1894, 6 eram crianças com menos de 1 ano. Uma destas, fora vitimada por doença do aparelho respiratório. Como no ano anterior, aqui também apenas um adulto falecera no início do outono. Todos os 9 casos analisados do ano 1895, tratam-se de crianças com menos de 10 anos. Duas delas faleceram por problemas relacionados ao sistema respiratório. As grandes vítimas desse período foram, portanto, as criancinhas com idade abaixo de 1 ano, somando 20 óbitos, ou 58,8% da amostragem.9 Nota-se, contudo, que o verão também ceifou sua substanciosa quota de vidas. Certamente, pelas condições climáticas e ambientais próprias desse período úmido e chuvoso, as doenças infecto-contagiosas e as que atacam o sistema digestivo, igualando-se às do aparelho respiratório, parecem ter causado o maior número de baixas. Os meses de novembro (9,1%), dezembro (7,6%) e janeiro (9,1%) alcançaram sozinhos, em termos absolutos, a cifra total de 17 óbitos ou 25,8% do conjunto da amostragem. Estes três meses, apesar de numericamente inferior ao bloco dos meses intermediários (fevereiro; março; setembro e outubro), acabaram formando o segundo maior grupo em intensidade de falecimentos. Dos 6 registros de óbitos selecionados durante o ano de 1893, dois eram adultos e 4 crianças com menos de 2,5 anos. Diagnosticaram-se três mortes originárias de doenças do aparelho respiratório e uma do aparelho digestivo e outras duas de origem desconhecida. Dos 7 casos analisados de 1894, também aqui 2 casos foram de adultos e todos os demais de crianças com menos de 2 anos de idade. Duas pessoas morreram em virtude de doenças pulmonares, 2 por complicações do sistema digestivo e uma por tétano. Dos 3 registros selecionados de 1895, um era de adulto e 2 de crianças, com menos de 1 ano de idade. Dois morreram de doenças do trato gastrintestinal e uma criança faleceu após quatro dias do parto, por “inviabilidade” do nascituro. Os casos de aborto não aparecem explicitamente nos registros. Entretanto, é significativo o número de fetos e crianças mortas com poucos dias de vida. Malgrado não se enquadre no período em estudo (1893-1895), vale frisar que Giuseppe Pietro Corà, filho de operário têxtil de Schio, iria enterrar seu segundo filho no Brás, de nome Pintilio, segundo o respectivo assento: N. 8653 - sepultado na quadra geral 9o. dos anjos pequenos - sepultura N. 244 – Pintilio, aos 13 dias de setembro de 1899 sepultouse na quadra geral 9o. dos anjos pequenos sepultura no. 244 o cadaver de Pintilio com 8 horas de vida filho de Jose Cora falleceu hontem as 7 horas da manhã victima de enviabilidade. Attestado do Dr. Parteira E. Fornos. É o que certificou o Escrivão de Paz desta Freguesia João F. P. Carmo Cemiterio do Braz 13 de Setembro de 1899. O Admor. B. Fernandes10 A, então, recém-nascida Rosa, filha do operário de Schio Giovanni Zambelli, viria a falecer em 1902 com esse mesmo diagnóstico. Foi enterrada no Cemitério do Brás, conforme atestam os autos: N. 11590 – sepultada na quadra geral 7 dos anjos pequenos – sepultura N. 357 – Roza, aos 29 dias de Agosto de 1902. Sepultou-se na quadra Geral 7º dos Anjos pequenos, sepultura No. 357, o cadaver de Roza, com 3 dias de vida, filha de João Zambelli, falleceu hontem as 9 horas da manhã Victima de Inviabilidade. Attestado do Dr. Bento Ferraz. E o que 9 O alto índice de mortandade constatado em 1893 parece seguir a tendência do ano anterior. Morse, citando TAPAJÓS, Torquato Saneamento de S. Paulo. São Paulo, 1894, pp. 14-16, afirma que: De 4 561 mortes em 1892 (excluindo 280 natimortos), 2 443 foram de crianças de menos de oito anos, e 170 de crianças entre oito e quinze anos. Declarava-se que as duas principais causas dêsse fenômeno eram: 1) moléstias broncopulmonares, ingênuamente atribuídas a mudanças bruscas de temperatura e ao estado hidrométrico do ar; 2) moléstias gastrointestinais, causadas por alimentação inadequada, ‘amamentação mercenária’ e leite de vaca impuro. MORSE, Richard M. op. cit., p. 247. 10 AHMSP – Livro de Registro no. 36 – Inumações –Cemitério do Brás – relativo aos anos de 1897 a 1899 – fls. 365. 137 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. certificou o Escrivão de Paz do Braz, João Fco. P. Carmo, Cemiterio do Braz. 29 de Agosto de 1902.11 Uma característica importante desse período é que nele os adultos mortos representam, apenas 29% do total de mortes. Portanto, nos meses mais quentes do verão dos anos aludidos, houve maior incidência de decessos entre adultos que nas demais estações climáticas. Os meses com menores índices de óbitos são, exatamente, os que estão no final das estações limites: final de verão e primavera. Fevereiro presenciou 3 (4,5%) dos 66 falecimentos globais daqueles anos; março 4 (6,0%); setembro e outubro 5 (7,6%) cada um, totalizando 17 decessos (25,7%); destes, 14 crianças e 3 adultos. As doenças que mais incidiram, nesse período, para a causa mortis das pessoas selecionadas foram: todos os mortos (3) da amostragem de janeiro a março de 1893, faleceram acometidos de doenças do aparelho digestivo. Dos três outros que faleceram entre setembro e outubro, um foi, seguramente, acometido do mesmo mal dos casos anteriores. Os outros dois tiveram doenças de causas diversas. Também para os meses de fevereiro e março de 1894, entre os 3 casos elegidos, um teve como causa mortis uma doença do trato gastrintestinal. Coincidentemente, os casos escolhidos para a amostragem de setembro e outubro seguinte, todos os três faleceram da mesma causa diagnosticada no início do ano. O ano de 1895, apresenta para períodos semelhantes, 6 casos: 2 em fevereiro e março e 4 em setembro e outubro. A metade de todos os óbitos teve causas em doenças do aparelho digestivo e um, apenas, de origem pulmonar. Como no período dos meses mais frios, aqui também a incidência de decessos infantis se elevou, alcançando os 82,3% do total dos óbitos. 2. Como eram enterrados os proletários Os tradicionais cemitérios paulistanos – Consolação e Araçá – tinham, desde sua origem, espaços internos socialmente divididos. Havia o lado destinado ao enterramento dos abastados e burgueses, com jazigos e túmulos em alvenaria, formato de capela – à moda toscana - revestidos de mármore ou granito importado. Estátuas de bronze reluzentes enfeitavam a tampa da cobertura qual um altar simulado. Túmulos espaçosos, ajardinados, semelhantes ao paraíso. O recanto privilegiado, onde ficavam as sepulturas “perpétuas”, era repartido em quarteirões bem definidos, circundados por vias de acesso, geralmente calçadas e arborizadas com cipreste italiano. TABELA 24 CEMITÉRIO DO BRÁS INUMAÇÕES OCORRIDAS ENTRE 06/01/1893 A 21/12/1895 CLASSIFICAÇÃO POR CATEGORIA E ESPÉCIES DE SEPULTURAS CATEGORIAS Geral (transitória) Perpétua ESPÉCIES SEPULTAMENTOS % Dos fetos Dos anjos menores Dos anjos maiores dos adultos -- 05 37 14 10 -- 7,6 56,1 21,2 15,1 -- 66 100 TOTAL Fonte: AHMSP, Livros de Registro de Inumações Cemitério do Brás, nos. 33 e 34. Havia neles, entretanto, o outro lado destinado a enterrar os socialmente desiguais: os trabalhadores, na vanguarda. Os corpos desses falecidos – nem sempre acompanhados de féretro 11 AHMSP – Livro de Registro no. 38 – Inumações –Cemitério do Brás – relativo aos anos de 1902 a 1905 – fls. 078v. Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 138 - eram enterrados em covas diretamente no chão para que, num momento posterior, fossem removidos, dando lugar a outros defuntos. Por isso, essas sepulturas eram transitórias e se usava chamá-las de “covas rasas”, distribuídas, evidentemente, num sítio afastado do ambiente requintado. As sepulturas proletárias estavam distribuídas em amplas quadras, mais ou menos delimitadas, chamadas de “gerais”. Essas quadras recebiam uma classificação, segundo a variação etária dos defuntos ali enterrados, conforme se pode observar na tabela abaixo. Todos os registros selecionados na amostragem referiam-se a sepultamentos efetuados nas “quadras gerais”. Na “geral dos fetos”, destinada, evidentemente, para o sepultamento dos prematuros, contribuiu com 5 casos ou 7,6% do total. Na quadra “geral dos anjos menores”, onde se enterravam os natimortos ou crianças de até um ano de idade, foram elegidos 37 registros ou 56,1% do conjunto. Na quadra “geral dos anjos maiores”, para crianças de um a dez anos, 14 casos ou 21,2% e, na “geral dos adultos”, destinadas às pessoas com mais de 18 anos; 10 ou 15,1%. A necrópole do Brás parece ter escapado, pelo menos no início, à dicotomia espacial dos cemitérios anteriores. Havia uma quase homogeneidade nos féretros e nos aspectos das sepulturas, predominando a singeleza de construção. Por ser um cemitério novíssimo, cuja clientela era composta basicamente de operários do Bairro e seus familiares, as distinções se davam mais pelas faixas etárias que pelas diferenças sociais. Como se observa na tabela acima, não encontramos na amostragem daquele período, nenhuma sepultura enquadrada na categoria “perpétua”, indicando a inexistência de famílias com recursos disponíveis para a compra do lote onde seus mortos foram ou seriam enterrados. A justificativa para inaugurá-lo, em 1893, carregava uma razão de natureza claramente discriminatória. O crescimento da população proletária na periferia de São Paulo e, especialmente, no Brás, fez que os cemitérios tradicionais ficassem abarrotados de cadáveres originários de áreas suburbanas recentes e, agravando, originários, em sua extrema maioria, de um agrupamento social diferente. A “elite” paulistana viu-se na iminência de ter que dividir com os deserdados e com seus “subalternos” os amplos espaços onde construíam suas últimas e suntuosas moradas. Uma solução urgente fazia-se necessária! As providências, entretanto, não pareciam andar a contento. No bojo da argumentação que apresentava a seus pares, numa das sessões da Câmara Municipal de São Paulo, em agosto de 1891, o presidente do Conselho – manifestando grande preocupação com a situação insolúvel, comunicava-lhes que: (...) o Cemitério da Consolação já se acha completamente cheio, em vista do aumento da população e consequente (sic) crescimento da mortalidade, tanto que só no mês de julho próximo findo elevou-se o número de enterramentos à cifra de 480. Que em virtude disto, urgia que se estabelecessem 12 cemitérios para os distritos do Brás e de Santana, assim como um outro na Vila Mariana. (...) Entretanto, a situação agravara-se com a expansão de doenças infecciosas entre a população pobre, atingindo também os imigrantes. Um ofício da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior, de 9 de maio de 1892, enviado ao presidente e aos membros da Intendência da Capital, solicitava a intervenção do governo municipal no sentido de coibir: (...) o enterramento de individuos fallecidos de febre amarella, no Cemiterio Municipal devendo taes enterramentos serem feitos no Cemiterio annexo ao Lazareto de Variolosos.13 No dia 23 de outubro seguinte, a Câmara voltaria a debater o mesmo assunto e, diante do impasse não sanado, tomou a resolução definitiva: 12 Fascículos das Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 1891, p. 117. Apud TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes op. cit., p. 104. 13 AHMSP: Papeis Avulsos (1892) vol. 34 (P. AV. 666), s/p. Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 139 (...) que sejam começados os enterramentos no dito Cemitério, visto ser grande a distância para o transporte de cadáveres dêsse ponto à Consolação.14 Definira-se de vez os lugares sociais dos mortos. Aos proletários, o Cemitério do Brás e outros que viriam a ser abertos na periferia, aos burgueses e endinheirados, os demais. Para se ter uma idéia do que representou essa separação, reportamos uma apresentação dos dois cemitérios tidos como os mais importantes da cidade de São Paulo elaborado pelos criadores do Guia Illustrado do Viajante, de 1924, que pretendia fazer conhecer a cidade a seus visitantes. O manual, assim, os caracterizava: [CEMITÉRIOS] Os dois mais importantes: CONSOLAÇÃO (...) Fica situado no bairro da Consolação, proximo á rua Sergipe. A fachada como obra d’arte é digna de attenção, pelo gosto artistico, puro estylo Romano assim como o Necroterio, que se vê no fim da rua da entrada principal. Ambos os trabalhos são da autoria do architecto Ramos de Azevedo. É o cemiterio mais rico da cidade. Nelle se encontram, em alguns mausoleos, verdadeiros lavores de arte. ARAÇÁ (...) Situado na Avenida Municipal. É de grande tamanho e um dos maiores de São Paulo. Também é destacavel, pelos ricos 15 trabalhos de arte funeraria que ali existem. A abordagem sobre as necrópoles terminava aí. Os autores nem sequer mencionaram aos prováveis turistas qualquer referência à mera existência do Cemitério do Brás, na época já de bom tamanho, como se não existisse na sua cidade. Apenas no final do livro, escreveriam, numa única linha, sua localização. Longe dos jardins a que foram transformados os cemitérios do outro lado da cidade, o “campo santo” do bairro operário – três décadas depois – ainda não poderia ser incluído no cartão de visitas da cidade. Continuava, ainda, reservado – na penumbra – aos proletários dos arrabaldes. 3. Homens e mulheres, todos operários do Brás Quando à distinção de gênero, foi possível observar que os homens representaram, naquele triênio, 57,6% dos óbitos enquanto as mulheres alcançavam a taxa de 42,4% do total, como se pode aferir da tabela que segue. Quanto observamos os óbitos distribuídos pelos três períodos, vemos que no primeiro ano há uma impressionante superioridade masculina, na ordem de 65,3 %, contra 34,7% de óbitos femininos. Nos demais anos, entretanto, houve uma tendência aproximativa à média geral nas taxas de mortalidade dos dois sexos: 47,4% (homens) contra 52,6% (mulheres), em 1894; e 57,1% (homens) contra 42,9% (mulheres), em 1895. A diferença entre a média do triênio (57,6%) e a taxa alcançada pelos homens no primeiro ano (65,3%) foi de 7,7% a mais que as mulheres. Quais teriam sido as razões possíveis dessa disparidade? Sem as referências do triênio, recorremos a Morse, quando, apresentando dados demográficos referentes à Capital paulista no ano de 1836 afirma que a cidade possuía 21.933 habitantes livres e escravos e que, dentre eles, havia 5.383 do sexo masculino na idade entre 0 a 20 anos e que outros 5311, na mesma faixa etária, eram do sexo feminino. Somados, portanto, crianças, menores e jovens paulistanos alcançariam 10.694 pessoas. O peso relativo de cada sexo seria então de 50,3% para os homens e 49,7% para as mulheres. A diferença em favor do sexo masculino era, portanto, irrisória, isto é, de apenas 0,6%.16 14 Fascículos das Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 1892, p. 38. Apud TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes op. cit., 1982, p. 105. As obras para ultimar o Cemitério do Brás andaram célere naquele final de ano. A propósito, encontramos um documento firmado em 10 de janeiro de 1893, por Tommaso Santilli, onde este solicitava o pagamento por ter executado o serviço de pintura naquela necrópole, com a autorização da Intendência de Obras, no valor de 288$000 (duzentos e oitenta e oito mil réis), durante o mês de outubro de 1892. Cf. AHMSP: Papeis Avulsos (1893) vol. 1 (P. AV. 667), s/p. 15 SILVA, Jacintho op. cit., p. 158. 16 MORSE, Richard M, op. cit., p. 106. 140 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. Se a tendência foi a de manter a proporção, nesses patamares, a cidade de São Paulo não deveria apresentar, em seu interior, desníveis consideráveis entre as populações sexualmente distintas. Por que, então, no Brás apareceria essa notória diferença? TABELA 25 CEMITÉRIO DO BRÁS INUMAÇÕES OCORRIDAS ENTRE 06/01/1893 A 21/12/1895 CLASSIFICAÇÃO POR SEXO E ANO DE ÓBITO NÚMERO DE PESSOAS / ANO SEXO % Masculino Feminino 1893 17 09 1894 09 10 1895 12 09 1893-1895 38 28 57,6 42,4 TOTAL 26 19 21 66 100 Fonte: AHMSP, Livros de Registro de Inumações Cemitério do Brás, nos. 33 e 34. No relatório apresentado ao Secretário dos Negócios do Interior do Estado de São Paulo, em 1896, já durante a “Grande Imigração”, no qual se contempla a distinção de gênero entre os operários das 101 indústrias da Capital paulista, com base no levantamento elaborado durante o ano de 1894, o número de trabalhadores do sexo masculino é, à exceção do setor têxtil, exorbitantemente superior ao das mulheres. Dos 4309 operários adultos, então, recenseados, 3469 (80,5%) eram homens e 840 (19,5%) eram mulheres. Sendo o Brás, já naquela época, a área mais industrializada de São Paulo, torna-se evidente que essa desproporção entre quantidades de pessoas de gêneros distintos tenderia a se manter ou até mesmo a crescer no Bairro.17 É importante observar também que, além da pujante presença masculina no setor produtivo, que, por sua vez, tornava-se fator de atração contínuo para essa força de trabalho, a área industrial tendia a acolher muitos homens jovens e solteiros ou até mesmo casados, em grande parte imigrantes, que teriam deixado suas famílias para trás no intuito de conseguir, primeiro, melhores condições de trabalho para, depois, trasladá-las. Entre os imigrantes de Schio que permaneceram na cidade de São Paulo, como já vimos, há diversos casos de homens que vieram solteiros ou, se casados, sem as respectivas famílias. Entre os que conseguimos localizar o destino, eram solteiros: Giuseppe Antonio Poli, Pietro Boniver, Vittorio Casara e Vittorio Luccarda. Giovanni Zanella, operário têxtil, veio apenas com uma das filhas, de apenas 9 anos, deixando a família em Schio. Fixou-se no Brás, assim como o primeiro da lista dos solteiros, que também se originava de uma família de têxteis. Fica mais expressivo ainda, se tomarmos os dados mais gerais: das 245 pessoas imigrantes de Schio que entraram no Estado em 1891, 27 vieram sozinhas, todas do sexo masculino. Tomando em consideração apenas as unidades familiares (79), chegamos à conclusão que os imigrantes solteiros ou desacompanhados representavam 34,2% desse conjunto.18 17 Relatório apresentado ao Dr. Alfredo Pujol, Secretário dos Negócios do Interior do Estado de São Paulo, pelo diretor da Repartição de Estatística e Arquivo do Estado de São Paulo, Dr. Antônio de Toledo Piza. São Paulo, Cia. Industrial de São Paulo, 1896. Apud DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Mulheres e menores ... op. cit., p. 141. Quadro I: Distribuição sexual e etária do operariado em estabelecimentos industriais da Capital – 1894. Não há discriminação de sexo entre as categorias: “pessoal técnico” e “crianças”. Ainda que pressupuséssemos terem pertencido o “pessoal técnico” (239) e as “crianças” (710) ao sexo feminino, o que não é verificável, a somatória de todas essas categorias alcançaria apenas a metade (51,6%) do total masculino empregado naquelas fábricas. 18 Na imigração de Schio para o Brasil também o número de solteiros e casados desacompanhados é expressivo: das 289 famílias, 73 (25,2%) eram constituídas apenas pelo homem. 141 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 4. Os recém-nascidos e as crianças: as maiores vítimas A respeito da distribuição dos óbitos por faixa etária, nota-se a presença maciça de crianças (84,8%) entre os decessos do triênio escolhido. Destes, 68,1% são meninos (25) e meninas (20) que não conseguiriam atingir a idade de 3 anos. E na faixa de zero a 1 ano o índice era o mais elevado, alcançando o percentual de 40,9% dos óbitos. A partir dos termos de óbitos registrados em 1893 calculamos que cerca de 437 crianças entre 0 a 1 ano de idade tenham falecido no Brás. Conforme a tabela abaixo, a taxa de mortalidade dos que não completariam um ano de vida subiu mais de um dígito em relação ao ano anterior e chegando a 42,1% dos óbitos durante o ano de 1894, demonstrando que as causas que levaram às mortes prematuras no passado estavam longe de serem controladas e combatidas. O aumento desses índices indica uma completa ausência de medidas preventivas e de atendimento mínimo necessário para estancá-las e denuncia, tornando-a visível, a existência de uma população operária absolutamente abandonada, sem qualquer acesso aos serviços médicos e hospitalares. Entretanto, a pior situação estava por vir. No triênio estudado, a maior incidência de mortes entre essas crianças aconteceria somente em 1895. Nesse ano, dos 21 óbitos da amostragem, 12 enquadraram-se nessa faixa etária, correspondendo a 57,1% (cerca de 590) dos falecimentos. A elevação da mortalidade infantil em 1894 e 1895 da ordem, respectivamente, de 16,2 e 15 dígitos acima dos índices atingidos anteriormente, superava qualquer expectativa. Essa evolução no crescimento da mortalidade infantil atingiria seu ápice dois anos depois. O “Anuário Estatístico da Seção Demográfica” publicou no início do século, dados relativos à mortalidade infantil no Brás, entre 1897 e 1902. No primeiro ano desse período, calculou-se que 627 crianças, de idêntica faixa etária, teriam aí falecido. TABELA 26 CEMITÉRIO DO BRÁS INUMAÇÕES OCORRIDAS ENTRE 06/01/1893 A 21/12/1895 CLASSIFICAÇÃO POR IDADE DISTRIBUÍDA POR SEXO E ANO DE ÓBITO CATEGORIA Crianças Menores Adultos IDADE Feto ou natimorto De 0 a 1 ano De 1 a 3 anos De 3 a 7 anos De 7 a 12 anos De 12 a 18 anos De 18 a 30 anos De 30 a 50 anos De 50 anos a mais T OT A L NÚMERO DE PESSOAS / SEXO / ANO DE ÓBITO MASC. FEM. TOTAL 1893 1894 1895 1893 1894 1895 TRIÊNIO % 1 5 5 2 3 1 1 4 2 2 8 1 1 1 1 1 2 4 1 1 - 4 4 2 - 2 4 2 1 - 5 27 18 4 2 5 1 4 7,6 40,9 27,2 6,1 3,0 7,6 1,5 6,1 17 9 12 9 10 9 66 100 Fonte: AHMSP, Livros de Registro de Inumações Cemitério do Brás, nos. 33 e 34. Sabemos que houve nesse intervalo um acréscimo populacional tanto na Capital quanto naquele Bairro A partir dessa data, houve uma tendência de queda nas taxas de mortalidade em todas as faixas etárias de crianças residentes naquele Bairro.19 19 Anuário Estatístico da Secção de Demografia, 1897/1902. Apud DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Mulheres e menores ... op. cit., p. 154. Quadro XIV: Mortalidade infantil aproximada na cidade de São Paulo e no bairro do Brás: 1897/1902. 142 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. Quanto ao estado civil das pessoas adultas (10) enterradas entre 1893 e 1895, resulta que 30% eram solteiros, confirmando o que já havíamos acenado quanto à presença de trabalhadores que moravam avulsos, em grupos ou agregados a uma outra família, como foi constatado também em Santa Ifigênia no mesmo período. Entre os inúmeros casos aí reconhecidos citamos este: [(...) no] hotel-cortiço, espécie de restaurante onde a população operaria se agglomera á noite para dormir, já em aposentos reservados já em dormitorios communs. Quasi sempre os aposentos são pequenissimos: 2,5 m. de frente por 3 m. de fundo, occupados por operarios sem familia.20 Entre os solteiros estavam dois jovens de 19 anos e um homem já maduro, de 54. Os dois primeiros faleceram em 1893 e o último no ano seguinte. Os registros do Brás revelam, ainda, que naquele triênio os óbitos de pessoas casadas, formando o maior grupo entre os adultos, representavam 40%, enquanto os viúvos chegavam a 20%. TABELA 27 CEMITÉRIO DO BRÁS INUMAÇÕES OCORRIDAS ENTRE 06/01/1893 A 21/12/1895 CLASSIFICAÇÃO POR ESTADO CIVIL DOS ADULTOS ESTADO CIVIL NÚMERO DE PESSOAS % Solteiro Casado Viúvo Ignorado 3 4 2 1 30 40 20 10 TOTAL 10 100 Fonte: AHMSP, Livros de Registro de Inumações Cemitério do Brás, nos. 33 e 34. Entre as pessoas casadas, havia um homem de 60 anos, morto em 1893; duas mulheres, uma de 26 e outra de 28 anos, falecidas no ano seguinte; e um outro senhor de 55 anos, em 1895. 5. No Brás, os italianos eram a imensa maioria As afirmações precedentes que apontavam para majoritária presença de italianos como moradores e operários do Brás, se confirmam em larga escala pela nossa amostragem. Metade dos adultos e 62,5% das crianças e dos menores enterrados na necrópole do Bairro eram italianos. No conjunto, representavam 60,6% dos mortos. Bem abaixo, vinham os brasileiros que ocupariam o segundo lugar, com 11 óbitos (16,7%). Apesar de não aparecer nos termos que serviram para a presente amostragem, constatamos, ao manusearmos os referidos livros de registro de inumação, que permanecia residindo no Brás, um grupo expressivo de negros ex-escravos, sobre o qual já falamos no capítulo inicial. 20 GAMA, Luiz C. do Amaral et alii op. cit., p. 9. 143 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. TABELA 28 CEMITÉRIO DO BRÁS INUMAÇÕES OCORRIDAS ENTRE 06/01/1893 A 21/12/1895 CLASSIFICAÇÃO POR NACIONALIDADE NÚMERO DE PESSOAS CRIANÇAS E MENORES NACIONALIDADE TOTAL % ADULTOS Italiana Brasileira Portuguesa Espanhola Belga Polonesa 05 03 01 --01 35 08 07 05 01 -- 40 11 08 05 01 01 60,6 16,7 12,1 7,6 1,5 1,5 TOTAL 10 56 66 100 Fonte: AHMSP, Livros de Registro de Inumações Cemitério do Brás, nos. 33 e 34. Os portugueses, a um tempo bastante numerosos no Brás, aparecem, aqui, em terceiro lugar com 8 óbitos (12,1%), seguidos pelos espanhóis com 5 (7,6%). Em último lugar aparecem uma pessoas de nacionalidade belga e outra de nacionalidade polonesa. 6. Os operários do Brás tinham seu próprio “campo santo” Outro dado importante que se anotava nos registros de óbitos, era a identificação do grau de pobreza do defunto e, por conseqüência, também de sua família, que se poderia medir pelo pagamento ou não da “Taxa de Sepultamento” que custava, então, 10$000 (dez mil-réis). O pagamento do emolumento era para cobrir as despesas do féretro, não lhes dando, portanto, em hipótese alguma, qualquer direito na posse do terreno da sepultura. A tipificação se dava através de duas categorias básicas: “isentos” e “pagantes”. Os “isentos”, entre 1893 e 1895, superaram em muito os “pagantes”. Se compararmos o salário mensal de um operário, com base nas informações contidas na carta de Nicola Viero, cujo valor estaria na casa dos 75$000 (setenta e cinco mil-réis), a taxa de inumação representaria 13,3% daqueles parcos ganhos. Como a mulher e as crianças ganhavam bem menos que os homens, mesmo uma renda familiar bem acima daqueles proventos não conseguiria pagá-la. Os aluguéis, nos cortiços abarrotados, variavam de 4$000 (quatro mil-réis) a 5$830 (cinco mil, oitocentos e trinta réis) per capita, o que vale dizer que uma família, num cômodo onde cabiam cinco pessoas, iria pagar algo em torno de 20$000 (vinte mil-réis) a 29$150 (vinte e nove mil cento e cinqüenta réis) por mês. 21 21 Para os valores dos tributos cobrados, no final da década de 1890 e início de 1900, pela administração do Cemitério do Brás, cf. AHMSP: Livros de Registro de Arrecadação de impostos municipais a cargo do administrador do Cemitério do Braz, vol. 1 (1899-1903) e vol. 4 (1905). 144 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. TABELA 29 CEMITÉRIO DO BRÁS INUMAÇÕES OCORRIDAS ENTRE 06/01/1893 A 21/12/1895 CLASSIFICAÇÃO POR PAGAMENTO DA TAXA DE SEPULTAMENTO CATEGORIAS Isentos Pagantes ESPÉCIES SEPULTAMENTOS % Pobre Imigrante Soldado - 35 09 02 20 53,0 13,7 3,0 30,3 T OT A L 66 100 o Fonte: AHMSP, Livros de Registro de Inumações Cemitério do Brás, n s. 33 e 34. Somente para enterrar um parente, a família teria que dispor da metade do preço de seu aluguel. Por isso, os “isentos” formavam a imensa maioria dos que enterravam seus mortos no Cemitério do Brás, atingindo a significativa casa dos 69,7% , ou seja de 46 óbitos. Os segundos, aqueles que podiam pagar, como se poderá observar na tabela abaixo, alcançaram módicos 20 casos, o que eqüivaleu a 30,3% dos sepultamentos. Os “isentos” eram classificados, segundo a nomenclatura da época em três espécies distintas: os pobre(s), os imigrante(s) e os soldado(s). 1) Os pobre(s): esta designação genérica abrangeu a impressionante cifra de 35 casos, ou 53% da amostragem, e era atribuída aos trabalhadores e suas famílias que não podiam dispor da quantia já citada, por ser muito elevada, o que os impediria, caso não fossem isentos, de enterrar seus mortos. De todos os incluídos nessa espécie, em número de 15 (42,8% dos pobre(s) e 22,7% do total) pertenciam também a famílias de imigrantes italianos; 2) Com o termo imigrante(s) identificavam-se os trabalhadores estrangeiros, que - em muitas vezes - eram enquadrados na espécie anterior. Estavam, por isso, impossibilitados de arcar com tamanha despesa. Somaram, no período, 9 casos, ou 13,7% do total. Seu aparecimento, como já foi mostrado, tanto numa quanto noutra espécie, mostra-nos, de forma plausível, como os estrangeiros recém-chegados viviam em absoluto estado de indigência e de pobreza. É sintomático que o “Diário Popular”, de 30 de abril de 1892, afirmasse: [Serem os mendigos] todos estrangeiros e estrangeiros que não se inutilizaram aqui, estrangeiros que vieram de seus paizes chamados pela fama de nossa generosidade e que vieram dar uma nota negra à nossa vida activa com o quadro triste de suas deformidades.22 3) Com a palavra soldado(s) designava-se, obviamente, as pessoas engajadas em alguma das instituições afeitas à segurança pública e, talvez, justamente por esse vínculo, fossem enquadrados como “isentos”. Na amostragem, aparecem somente dois casos: um deles com apenas 19 anos, solteiro, de nacionalidade brasileira, nascido em Alagoas, que morreu vitimado por uma doença diagnosticada como tuberculos pulmonares; o outro, com 29 anos, italiano de nascimento, membro da Guarda Nacional, teve como causa mortis a febre perniciosa.23 22 23 Apud MORSE, Richard M. op. cit., p. 242. AHMSP: Livro de Registro de Inumação no. 33 - Cemitério do Brás (1893 a 1894), assentos de no. 1.210 e 1.260, respectivamente. 145 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 7. A natureza das doenças que causaram as mortes do Brás Se partimos do pressuposto que as causas provocadoras das mortes nos revelariam a vida dos operários e moradores do Brás, era necessário, então, visualizá-las. Daí a tabela que segue: TABELA 30 CEMITÉRIO DO BRÁS INUMAÇÕES OCORRIDAS ENTRE 06/01/1893 A 21/12/1895 CLASSIFICAÇÃO POR CAUSA MORTIS QUANTIDADE DE ÓBITOS CAUSA MORTIS Apoplecia cerebral Hemorragia de parto Paralesia Desnutrição24 Doenças Nervosas25 Doenças Infecto-Contagiosas26 Bronchite27 Doenças de diversas origens28 Enterites29 CRIANÇAS E MENORES 4 3 7 7 11 24 ADULTOS TOTAL % 1 1 1 2 2 1 2 1 1 1 4 5 7 9 12 26 1,5 1,5 1,5 6,0 7,5 10,5 13,8 18,3 39,4 TOTAL 56 10 66 Fonte: AHMSP, Livros de Registro de Inumações Cemitério do Brás, nos. 33 e 34. 100 Na discriminação da causa mortis no quadro acima seguiu a ordem crescente de grandeza. Mantivemos, para tanto, a ortografia e a terminologia médica utilizada nos registros pelo escrivão ou administrador do Cemitério do Brás que, por sua vez, deveriam – por força de ofício - reproduzir ipsis litteris o conteúdo e a forma dos atestados clínicos que lhes eram entregues pelos parentes dos falecidos. Num primeiro momento, quisemos tipificar de forma genérica as doenças para, num segundo momento, distribuí-las por grupo de faixa etária. 7.1. As doenças do aparelho gastrintestinal Uma primeira leitura dos dados aí sistematizados, nos faz constatar o peso que doenças como a enterite, a entero collite e a “gastrinterite”, todas relativas ao trato gastrintestinal - em suas diversas manifestações - tiveram na determinação dos óbitos.30 Ao todo, foram 22 casos, alcançando um percentual expressivo de 33,4%, sem contar com os três casos (4,5%) de disenteria também constatados.31 Excetuando as “causas ignoradas” e a chamada “inviabilidade” fetal ou do nascituro, há que se relevar também a incidência considerável de causas diagnosticadas como: o acesso pernicioso; a athrepsia; o sarampo; o tétano e a bronchite capillar. Como já havíamos observado anteriormente, a prevalência de crianças e menores na amostragem estudada é demasiadamente expressiva (84,9%). Requeria-se, portanto, um estudo 24 Marasmo e athrepsia. Convulsões, eclampsia e acesso pernicioso. 26 Tétano, sarampo e sífles(sífilis)hereditária. 27 Além da bronquite, outras doenças do aparelho respiratório também foram mencionadas nos registros obituários, tais como a broncopneumonia, os chamados “tubérculos pulmonares” e a “bronchite capilar”. 28 Febre perniciosa, tubérculos megatéricos, inviabilidade / natimorto e doença ignorada. 29 Os tipos de enterite mencionados foram estes: enterite (aguda ou crônica), disenteria, enterocolite, gastroenterite (aguda ou catarral) e enterocolite tifóidia. 30 Todas as formas de enterite são ocasionadas pela inflamação intestinal, principalmente do intestino delgado. 31 Disenteria é, segundo o Diccionário de Ciencias Médicas uma: “Síndrome intestinal, preferentemente colónico, caracterizado por cólicos abdominales, pujos, tenesmo y diarrea al principio fecal y luego mucosanguinolenta. Es provocada principalmente por agentes infecciosos y parasitarios. (...) – amebiana. La producida por la especie Entamoeba histolyca. Frecuentemente provoca ulceraciones en la mucosa intestinal y tiende hacia la cronicidad; d. t. (...) enteritis amebiana.” DICCIONARIO DE CIENCIAS MÉDICAS DORLAND op. cit., p. 394. 25 146 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. distinto para esse grupo etário. Em vista disso, construímos a tabela abaixo com a finalidade de contemplar e tornar visível todas as informações que dissessem respeito à causa mortis, ao gênero e à data de óbito das crianças e menores enterrados naquele bairro, entre 1893 e 1895. Um dado, imediatamente, nos veio à tona: no Brás daqueles anos, as já aludidas doenças do trato gastrintestinal, se tomadas unicamente a partir dos óbitos de crianças e menores, por sua constância e incidência ao longo daqueles três anos, nos apontam para a existência, ali, de uma endemia em andamento.32 Senão, vejamos: todas as doenças do aparelho digestivo, incluindo também a disenteria, somavam juntas 8 casos (36,4%) dos 22 óbitos de 1893; mais 8 casos (53,3%) dos 15 óbitos de 1894; e, ainda mais outros 8 casos (42,1%) dos 19 óbitos de 1895. TABELA 31 CEMITÉRIO DO BRÁS INUMAÇÕES OCORRIDAS ENTRE 06/01/1893 A 21/12/1895 CLASSIFICAÇÃO POR CAUSA MORTIS DE CRIANÇAS E MENORES SEGUNDO O GÊNERO E O ANO DE ÓBITO CAUSA MORTIS NATUREZA NOMENCLATURA Doenças Respiratórias Doenças Do Aparelho Digestivo Desnutrição Doenças Nervosas Doenças InfectoContagiosas Doenças De diversas Origens Bronchite Broncho pneumonia Bronchite capillar Desentheria Enterite (aguda ou chronica) Entero collite Gastroenterite (aguda ou catharral) Marasmo Athrepsia Convulsão Eclampsia Acesso pernicioso Sifles hereditaria Sarampo Tétano Febre perniciosa Tubérculos megatéricos Inviabilidade / natimorto Ignorada T O T A L QUANTIDADE E GÊNERO DAS PESSOAS DISTRIBUÍDOS NO TRIÊNIO MASC. 1893 1894 1895 1 - 1893 FEM. 1894 1 1 1 2 1 1 1 - 2 1 1 - 8 8 4 1 2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 2 3 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 2 1 - 13 7 11 9 31 1 TOTAL % (56) 1 2 4 3 5 6 10 1 3 1 1 1 1 3 3 1 1 5 4 1,8 3,5 7,1 5,4 8,9 10,7 17,8 1,8 5,4 1,8 1,8 1,8 1,8 5,4 5,4 1,8 1,8 8,9 7,1 56 100 1895 3 1 25 Fonte: AHMSP, Livros de Registro de Inumações Cemitério do Brás, nos. 33 e 34. Se as observarmos sob o prisma da diferenciação de gênero, veremos que, no primeiro ano, morreram vitimadas por essas mesmas doenças 4 (18,2%) crianças e menores do sexo masculino e 4 (18,2%) do feminino. No segundo, atingiu-se idêntica quantidade e proporção; e no terceiro, a proporção foi de 6 (31,5%) para 2 (10,5%), respectivamente. A média alcançada por esse conjunto de moléstias ficou, para o triênio, portanto, na casa dos 42,8% dos óbitos infanto-juvenis. 32 Apelamos para o conceito de “endemia” porque melhor expressa as ocorrências analisadas na pesquisas e nos baseamos também no que dizem os autores do mesmo dicionário, quando afirmam que: endemia (gr. en, dentro + gr. démos, pueblo + ia). f. Aparición colectiva de una enfermedad, generalmente infecciosa, que se desarrolla en un territorio limitado, durante un tiempo indefinido y manteniendo constantes sus índices de morbilidad, mortalidad y letalidad. DICCIONARIO DE CIENCIAS MÉDICAS DORLAND op. cit., p. 428. Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 147 Os diagnósticos clínicos foram atestados por médicos que, naquele período, atendiam nos hospitais ou em casa e, quando necessário, sendo também legistas, nos necrotérios da cidade de São Paulo. Os que foram realizados nos corpos das pessoas inumadas no Brás são de um realismo impressionante. Não apresentavam qualquer subterfúgio que buscasse maquiar as razões denunciantes da natureza dos óbitos analisados. Seus autores, médicos pertenciam a outra classe social e o contato com os cadáveres dos trabalhadores e de seus filhos, no estado em que se apresentavam, devia provocar-lhes algumas grandes interrogações. Esse, certamente, era um momento privilegiado visto que aos trabalhadores estava descartada qualquer possibilidade de visitas periódicas a médicos por seu custo proibitivo e, mesmo em se tratando de hospitais, para o caso específico dos habitantes do Brás (a “Santa Casa” ficava do outro lado da cidade), eram quase inacessíveis. Os contatos nesses momentos dolorosos produziriam seus frutos. Não é para menos que, tanto na Itália, como no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, na última década do século, os grandes paladinos do saneamento público originaram-se nessa categoria profissional. Como, porém, a “enterite”, em sua forma “aguda” ou “chrônica”; a “entero-colite”; a “gastrinterite”, também ela “aguda” ou “catharral”, e até mesmo a “disenteria” poderiam constituir-se numa endemia? Morse, falando sobre as causas das mortes ocorridas na cidade de São Paulo, em 1887, afirma que, entre 1736 óbitos ali atestados, 397, ou 22,86%, tinham como origem “moléstias do aparelho digestivo”. Esse grupo de doenças primava, então, no topo, acima de todas as demais.33 Quais seriam as características dessas moléstias? É importante frisar que não nos interessa, nesta sede, levantar discussões de ordem médica ou terapêutica a seu respeito, pois o que nos interessa, mesmo, é saber como viviam os imigrantes de Schio no Brás. Quando buscamos a compreensão da etiologia dessas doenças – conseguida através de contato pessoal com médico sanitarista e por meio de literatura específica, aqui referida – procuramos nos reter, única e exclusivamente, à sua origem e incidência no universo sócio-econômico dos trabalhadores do Brás. Para conceituar, sob o ponto de vista médico, algumas dessas questões, transcrevemos aqui um trecho do especialista em doenças do trato gastrintestinal infantil, César Pernetta, quando diz que: A enterite aguda – também chamada gastrinterite aguda, diarréia infecciosa aguda, doença diarréica, síndrome diarréica ou diarréia infantil – é uma das afecções de maior incidência na clínica pediátrica. (...) A enterite aguda é de ocorrência universal e manifesta-se quer esporadicamente, quer em surtos epidêmicos, quer, nas populações muito pobres, em forma endêmica. Os dados epidemiológicos puseram em realce a importância desempenhada pelas fezes em sua propagação e a influência nociva exercida pelas más condições de higiene pessoal e alimentar observadas nos meios de baixo nível sócio-econômico.34 33 MORSE, Richard M. op. cit., p. 246. 34 PERNETTA, César Enterite aguda na criança. São Paulo, Fundo Editorial Byk-Procienx, 7 ed, 1979, p. XV e 1. Trata-se, portanto, de uma inflamação do colo intestinal com ocorrência de diarréias de intensidade variadas. Quanto aos agentes causadores desses males, os chamados de enteropatogênicos, Murahovschi identifica nove no Brasil: shigela; salmonela; E. coli enteropatogênicos clássicos; E. coli invasora; E. coli enterotoxigênica; Yersinia enterocolítica; Campylobacter; Rotavírus; e Endoamoeba histolytica. Segundo o mesmo autor: A diarréia infecciosa é (...) em nosso meio, responsável direta ou indiretamente pela elevada mortalidade dos lactentes brasileiros. MURAHOVSCHI, Jayme (org.) Pediatria: diagnóstico + tratamento. São Paulo, Sarvier, 2 ed. ver. e ampl., 1981, p. 417. Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 148 O autor, portanto, nos chama a atenção ao conceituar esse conjunto de doenças sobre as causas de sua propagação: estado de pobreza excessiva, ocasionando a fragilidade das defesas orgânicas, e a contaminação ambiental, advinda da má qualidade da higiene e da alimentação. Ora, sua afirmação vem ao encontro com o que acabamos de constatar, isto é: que as doenças mencionadas estavam impregnadas nas condições pessoais e coletivas de vida daqueles trabalhadores e de seus filhos. Com as condições precárias de moradias, a insalubridade dos ambientes de fábrica e os salários baixos de tal monta que, como vimos, eram insuficientes sequer para bem alimentar os pais. As crianças, privadas dos alimentos essenciais, tornavam-se alvos fáceis. Adultos ou crianças, toda a família proletária sofria de uma morte progressiva e lenta. Os decessos acentuados de recém-nascidos e crianças atestam somente que havia um estado de morte latente que atingia de forma brutal e imediata os mais frágeis e indefesos. Entretanto, sua ação perversa permeava todas as pessoas que compunham o grupo de convivência. Aos adultos, mais resistentes, cabia definhar aos poucos. Quanto à amplitude da penetração e expansão das doenças do aparelho gastrintestinal, não há sinais de que tenha acontecido um surto epidêmico propriamente dito, mas sim da freqüência constante de infeção intestinal, geradora de mortes no seio daquelas populações. Suas causas originavam-se de condições estruturais, por isso se perpetuavam. Havia um estado, um modo de vida gerador contínuo de doenças. 7.2. A insalubridade dos locais de moradia e os paradigmas burgueses A respeito das péssimas condições de higiene em que viviam os moradores do Brás, é interessante conhecer parte do relato de um fiscal da, então, Intendência de Higiene da Capital, que multou em 30$000 (trinta mil-réis) um morador do Brás, imigrante italiano, de nome Telesforo Ghiraldini. Fundamentava-se o funcionário público no fato de: [(...) estar] a latrina (do referido Sr.) transbordando de materiais excrementais, lixo e agua estagnada no quintal (...)35 Em sua própria defesa, o imputado se justifica, dizendo que: (...) aquela aguas encontradas pelo Fiscal, não eram aguas servidas e nem de despejo, mas sim aguas das ultimas chuvas que tem havido e por que a referida casa (de propriedade de Antonio Pinto Alves) não tem esgotos e nem escoamento. Sempre que chove no quintal (...) fica sempre com aguas acumuladas e muitas vezes até alagado, por isso que é situado na parte baixa da cidade á rua Santa Rosa que todos os annos é presa das enchentes das varzeas do Mercado e do Carmo.36 É possível, portanto, constatar que naquele bairro, além da inadequado manuseio e destino das imundícies, havia uma absoluta ausência de infra-estrutura sanitária e um ambiente propício, com os periódicos alagamentos, para a proliferação de toda sorte de agentes infecciosos e de seus principais vetores: as moscas. No caso em epígrafe, o fiscal público tratou o problema como se fosse de foro privado, tornando a vítima (o inquilino) no único sujeito imputável (réu), coincidentemente, um imigrante italiano. Nota-se que o avanço da área habitável, do centro para a periferia, do alto para baixo, no caso do Brás, do planalto à várzea, foi procedido sem qualquer planejamento prévio. Os trabalhadores, seus novos moradores tornaram-se reféns do inadequado e descontrolado crescimento urbano, cuja responsabilidade era exclusiva das autoridades 35 36 AHMSP: Papeis Avulsos (1892) vol. 34 (P. AV. 666), 24.19.1892. Idem. Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 149 municipais de então, como nos atestam as palavras da comissão que inspecionou os cortiços e moradias operárias do bairro de Santa Ifigênia, em 1893: Em algumas (casas) as sargetas para a drenagem superficial nem sequer existem, ficando a agua da lavagem ou da chuva empoçada de modo mais prejudicial.37 Esse mesmo relatório que, certamente, diria coisas semelhantes a respeito dos aspectos urbanos e sanitários do Brás, ao relacionar as deficiências encontradas no outro lado da cidade, denunciava o total abandono das áreas habitadas por operários: (...) pela má qualidade e impropriedade das construções; (...) pela falta de capacidade e má distribuição dos aposentos, quasi sempre sem lus e sem a necessaria ventilação; (...) pela carencia de previo saneamento do terreno onde se acham construidos (...)38 Por outro lado, é importante frisar que o descontrole estimulou a especulação e a ganância, mecanismo de ganho fácil, obra de alguns proprietários e construtores que dividiam ou erguiam construções impróprias, como constataram ainda os mesmos inspetores: O cortiço occupa commumente uma area no interior do quarteirão, quasi sempre um quintal de um predio onde há estabelecida uma venda ou tasca qualquer. Um portão lateral da entrada por estreito e comprido corredor para um pateo com 3 a 4 metros de largo nos casos mais favorecidos. Para este pateo, ou área livre se abrem as portas e janellas de pequenas casas enfileiradas, com o mesmo aspecto, a mesma construção, as mesmas divisões internas e a mesma capacidade. Raramente cada casinha tem mais de 3 metros de largura, 5 a 6 de fundo e altura de 3 a 3,50 m. com uma capacidade para 4 pessoas, quando muito.39 O objetivo de tais construções, como se deduz do testemunho, era o de alojar várias famílias num reduzido espaço e, além disso, como se verá a seguir, extorquir esses mesmos inquilinos com aluguéis a preços vultuosos, como aparece neste caso: (...) no Hotel Colombo – Rua de Sta. Ephigenia, no. 129 A – de propriedade do Sr. Guilherme Brawm sendo o encarregado o Sr. Francisco de Lia alugou uma casinha no cortiço dos fundos do hotel sob o no. B ao Sr. Salvador Zanini, italiano – morando ali 8 adultos e 4 menores – 12 pessoas (excedendo em 8 pessoas) e pagando um aluguel de 70$000 (...)40 Ou neste, ainda: (...) no cortiço da Rua Triumpho, no. 29 de propriedade do Sr. Justino José Seabra sendo o encarregado o Sr. Thomas Janusi (italiano) alugou o cubiculo sob no. A ao Sr. Jorge Dalmaço, italiano, morando sozinho e pagando um aluguél de 15$000 (...)41 O relatório não afirmava, obviamente, que os aluguéis cobrados pelo senhorio eram escorchantes, entretanto, tomando-se por base as informações fornecidas por Nicola Viero de que um operário ganhava, em São Paulo, em 1891, um salário inicial médio de 75$000 (setenta 37 GAMA, Luiz C. do Amaral et alii op. cit., p. 8. Morse escreve, a propósito das condições de sobrevivência das classes trabalhadoras, nesse período: Para aquêles de seus membros que não moravam na tradicional choça de pau-a-pique, a moradia padrão era o cortiço, unidade predial que abrigava muitas famílias e que assim fazia aumentar a densidade demográfica dos terrenos agora valorizados da cidade. (...) O cubículo de dormir não tinha luz nem ventilação; superlotado, à noite era “hermèticamente fechado”. Exceto nos cômodos de pessoas naturais do Norte da Europa, o soalho ficava tão incrustado de lama, que não se viam as tábuas; a umidade do solo onde elas repousavam fazia descascar o papel ordinário e liso das paredes. Estas e os tetos eram prêtos de sujeira de môscas e da fumaça do fogão que a chaminé mal feita e mal conservada não eliminava convenientemente. MORSE, Richard M. op. cit., pp. 263-264. 38 GAMA, Luiz C. do Amaral et alii op. cit., p. 9. 39 Idem, p. 6. 40 Ibidem, p. 46. 41 Ib., p. 60. Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 150 e cinco mil-réis) pode-se compreender como esse preço, quase equiparado ao salário individual de um adulto, incidia sobre a renda familiar (ou grupal). Alguns anos depois, Bandeira Júnior faria constatações a respeito das condições de vida dos bairros das classes populares paulistanas que, certamente, não divergiam substancialmente do quadro até aqui apresentado, quando afirmava que: Nem um conforto tem o proletario nesta opulenta e fórmosa Capital. Os bairros em que mais se concentram por serem os que contêm maior numero de fabricas, são os do Braz e do Bom Retiro. As casas são infectas, as ruas, na quasi totalidade, não são calçadas, ha falta de agua para os mais necessários misteres, escassez de luz e de exgottos.42 Os operários de Schio não encontraram no Brás situação pior da que deixaram na Itália. Lá, ao contrário deste Bairro, o habitat operário havia sido relegado às áreas antigas da cidade, uma delas situava-se ao longo da antiga estrada em direção ao sul (Vicenza) ou, então, na região a leste do cruzamento central da cidade, chamado de “Corobbo”. A característica fundamental desses bairros era a comportar uma superpopulação. Várias famílias, dos avós aos netos e até mesmo os agregados, moravam numa única residência. A cidade praticamente se mantivera ainda dentro do perímetro medieval e continuava a receber, num fluxo regular, novos contingentes de força de trabalho, sobretudo a partir do final da década de 1860. As construções eram feitas de pedra e argamassa. Os cômodos, pequenos. As paredes eram largas e as janelas estreitas, para evitar a penetração do vento e do frio. A umidade e o cheiro de mofo correspondente era grande e a temperatura invernal, em seu interior, era bastante baixa. Mantinha-se, necessariamente, o fogão de lenha aceso ou lançar mão, para aquecer a casa durante as noites geladas, do fogareiro a brasa. A água para consumo devia ser buscada nas bicas e bebedouros públicos. Faltava a instalação sanitária interna, os dejetos permaneciam em urinóis até o amanhecer e, depois, levados a uma fossa comum nas proximidades da casa. Até a conhecida “era rossiana” não houve, em Schio, qualquer investimento, seja por parte do Estado ou das empresas, na construção de moradias operárias. Isso significa que, principalmente os trabalhadores vindos de fora tiveram que se submeter às condições insalubres de moradia oferecidas pelo senhorio local. Em Schio, a disposição e a qualidade das moradias se assemelhavam, como percebemos pelas descrições anteriores, aos cortiços existentes nas cidades brasileiras do final do século XIX. A nova urbanização não permitiu ao antigo camponês transformado em proletário conhecida moradia singular, apartada das demais, em terreno próprio, com pomar, cantina e jardim. Esse recanto de intimidade e harmonia havia sido deixado para trás e se tornara irrecuperável. As moradias formavam verdadeiros amontoados habitacionais. Uma seqüência de residências contíguas, muitas vezes distribuídas em vários andares de um mesmo prédio que se estendia perpendicularmente ao leito da rua. No interior dessa vasta aglomeração, abria-se um ou vários pátios internos (o Hinterhof já citado), interligados por um comprido e largo corredor que se iniciava no portão de entrada. As residências, insalubres e com pouca luminosidade, tinham suas portas voltadas para um desses pátios. Esses ambientes domésticos, totalmente insalubres encontravam prolongamento nas repartições interiores das fábricas de Schio. Somava-se a isso o baixo preço do trabalho fixado pelas empresas. De forma combinada, esses fatores criavam as condições propícias para a proliferação de doenças gravíssimas como a tuberculose e a pelagra, anteriormente mencionadas. Não há, portanto, como desassociar as altas taxas de mortalidade de crianças e menores no Brás, entre 1893 e 1895, provocadas pelas doenças do trato gastrintestinal, e os procedimentos de política urbana adotados pela classe dominante, instalada no poder municipal. Esta, cientemente, deixou de equipar com a infra-estrutura necessária os bairros onde o proletariado imigrante se fixou. Optou-se por deixar a cidade suburbana crescer ao léu, de forma 42 BANDEIRA JÚNIOR, Antônio Francisco op. cit., p. XIV.. Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 151 desordenada e irregular, à mercê do interesse patrimonial privado - inclusive com a participação e conivência de imigrantes chegados por primeiro (os “italianos”) – que permitiu a articulação de uma rede de locatários e sublocatários ávidos em retirar dos trabalhadores boa parte de seus parcos e insuficientes salários. A escolha dessas áreas mais inóspitas e insalubres da Capital para as moradias populares, não foi aleatória, estava dentro da lógica de mercado: o preço acessível dos terrenos e a proximidade dos locais de trabalho. A propósito, Morse afirma que: A São Paulo Railway, em parte pela vasta quantidade de desvios, veio determinar a formação de uma faixa industrial que se estendeu por um amplo arco a este ao norte do centro, e do qual muitos terrenos já eram indesejáveis por serem baixos e úmidos. Neste arco, principalmente no Brás e na Moóca, foi morar a maioria dos trabalhadores.43 Portanto, um ambiente infeccioso predominava no Brás, do qual os trabalhadores e suas famílias não tinham como escapar. As crianças e os menores tornavam-se, assim, os mais vulneráveis entre todos. Para Pernetta, as formas de contaminação provocada pelos agentes etiológicos desse conjunto de “enterites” advém exatamente das condições reinantes descritas naquela época: As bactérias causadoras de enterite aguda acham-se nas fezes do doente (e do portador) e entram no organismo pela boca. Transmitem-se em geral de pessoa a pessoa. A água e os alimentos servem freqüentemente de veículo. (...) As medidas profiláticas de ordem geral resumem-se em impedir que as fezes cheguem à boca e aumentar as defesas naturais do organismo. Remoção sanitária das fezes e fornecimento de água potável clorada são fundamentais.44 A persistência das condições geradoras garantiram a reprodução e a perpetuação dessas doenças, num círculo vicioso inquebrantável. A miséria redundando em doença, que acabava em morte. Para os dirigentes do Estado, a força de trabalho estrangeira subsidiada, trazida às levas e em abundância, deveria gerar incessantemente a necessária mais-valia, sem, contudo, gerar, por sua vez, despesas “excepcionais”, imprevistas. Seu custeio – via salário (insuficiente, como já vimos), estava à mercê dos interesses privados; fora de seu âmbito de competência (regia, então, o “livre mercado”) - e via equipamentos públicos para garantir saúde, habitação, alimentação e lazer acessíveis e de qualidade, deveria permanecer em patamares mínimos para os governantes. As recomendações profiláticas da época eram semelhantes às que o médico prescreve: Quanto à higiene do ambiente, seu papel é óbvio (...) a enterite aguda recua automaticamente à medida que a população passa a dispor de serviço domiciliar de água encanada e esgotos, sem o qual é inconcebível a salubridade das habitações. (...) o problema das moscas merece referência à parte, já que esses insetos desempenham papel importante na disseminação das entero-infecções e particularmente no transporte de bactérias das fezes aos alimentos.45 Contrastamos estas afirmações com informações contidas no levantamento obituário: dos 25 casos diagnosticados, em apenas um tratava-se de pessoa adulta (mulher, 28 anos, italiana, casada) que morreu vítima de enterite coliforme, os demais decessos foram todos de 43 MORSE, Richard M. op. cit., p. 250. PERNETTA, César op. cit., p. 81. Ainda sobre as citadas doenças, o especialista já afirma, mais atrás que: Não é só de natureza quantitativa a diferença entre a mortalidade infantil dos países ricos e pobres. Os fatores etiológicos também variam muito em sua importância relativa: as carências alimentares e as doenças infecciosas, conseqüências diretas da miséria, reduzidas ao mínimo nas regiões de alto nível econômico, figuram como as mais importantes causas de morte nas áreas subdesenvolvidas. E entre as doenças infecciosas ocupa lugar de realce a enterite aguda, que, sofrendo profundamente o influxo do estado nutritivo, representa como que a confluência dessas duas ameaças supremas à integridade da criança no terceiro mundo: desnutrição e infecção. PERNETTA, César op. cit., pp. XIV e XV. 45 Idem, p. 9. 44 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 152 crianças e menores, tendo entre 0 e 4 anos, muitos em tenra idade. Tal constatação nos induz a imaginar uma realidade tétrica para os operários do Brás. A perniciosa gastrinterite iria ceifar também um descendente dos imigrantes de Schio. Giuseppe Antonio Poli enterraria, no Cemitério do Brás, uma de suas crianças, cujo falecimento havia ocorrido em 07 de agosto de 1896. Naquela oportunidade, o administrador do cemitério assim relataria o sepultamento do menino: N. 4226 – sepultado na quadra geral no. 7 – dos anjos pequenos – sepultura no. 270 – Immigrante - Antonio Poli – Aos 20 dias do mez de Agosto de 1896, sepultouse na quadra geral no. 7 dos Anjos pequenos, sepultura no. 270, o cadaver de Antonio Poli de 10 meses, filho do immigrante italiano: José Poli, falleceu hontem as 4 horas da manhã, fallecido de gastro Enterite. Attestado do Dr. J. Bueno. E o que certificou o Escrivão de Paz desta freguesia João Francisco de P. Carmo. Cemitério do Braz. 20 de Agosto de 1896.46 7.3. A desnutrição na etiologia das doenças infantis daquele período Além dos componentes já arrolados: miséria e ambiente insalubre, associação capaz de produzir, por si só, esse quadro de mortes, outra causa correlata atuava de forma indelével na perpetuação dessa endemia: a desnutrição (ou subnutrição): doença causada pela ingestão de alimentos pobres ou inadequados que era, no caso mais grave, resultado de uma situação famélica crônica, provocada por ausência contínua de alimentos necessários. Fica claro, contudo, que todos esses fatores atuavam em conjunto, malgrado em alguns diagnósticos tenham aparecido aqui ou acolá de forma distinta. Doenças infecciosas e carência alimentar de qualquer gênero eram solidárias e contemporâneas na maioria dos casos. Uma abria espaço para o surgimento e desenvolvimento da outra. Assim, falando a propósito da carência alimentar mais crônica, escreve Pernetta: A desnutrição deprime as defesas imunitárias do organismo e desse modo favorece a eclosão de infecções, sobretudo bacterianas, incluindo as do intestino. A observação demonstra que quanto mais acentuada é a desnutrição tanto mais comuns e mais graves são os surtos diarréicos que a acompanham. (...) A acidez gástrica tende a reduzir a atividade das bactérias patogênicas (...) No desnutrido declina a acidez gástrica. A diminuição da motilidade intestinal, verificada na desnutrição profunda, facilita o crescimento de bactérias na parte alta do intestino delgado.47 Se nos reportarmos à última tabela, veremos que nela aparecem 4 (7,4%) casos de doenças originárias da desnutrição protéico-calórica: o “marasmo” e a “athrepsia”, termos da linguagem médica da época, que do ponto de vista da medicina hodierna se equivalem. Caracterizam-se, portanto, pela carência global de nutrientes.48 46 AHMSP - Livro de Registro no. 35 - Inumações - Cemitério do Brás: relativo aos anos de 1896 a 1897. No Livro de Registro no. 39, às páginas no. 051 : relativo aos anos de 1905 a 1906, há o assento da inumação, no mesmo cemitério, no dia 19 de junho de 1905, de uma pessoa por nome de Carolina, filha de Poli, Emílio. Encontra-se, ainda, no Livro no. 39, o assento de Maria, filha de Joaquim Poli, enterrada naquela necrópoles no dia 09.06.1905, o registro encontra-se às páginas 045v. 47 Idem, p. 9. 48 Segundo a opinião dos médicos da Unidade de Neuropsicologia da Universidade do Chile: O termo desnutrição infantil grave abrange, primeiramente, o marasmo, que é a forma grave da desnutrição protéico-calórica que se observa principalmente no lactente menor e no pré-escolar, e finalmente, a desnutrição grave, mista, que apresenta elementos de ambas as síndromes. LOPES, I. et alii Importância da reabilitação psicológica na desnutrição grave. In ANAIS NESTLÉ 1- Desnutrição. São Paulo, Nestlé Nutrition, vol. 43, no. 1, fevereiro de 1987, p. 33. Segundo ainda J. Renato Woiski: as distrofias nos seus vários aspectos e etiologias tais como: a) hipotrofia ou sua forma mais avançada a atrepsia ou marasmo, atingindo as crianças de mais tenra idade em virtude de sua hipo-alimentação global por hipogalactia materna ou insuficiência de fórmulas substitutas. WOISKI, J. Renato. Comentário. In ANAIS NESTLÉ ... op. cit., pp. 45-46. Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 153 Quando a desnutrição é contínua, a deficiência que provoca é generalizada, levando as pessoas a um emagrecimento exagerado. Magalhães Carvalho explica em seu estudo, realizado em 1970, quais são suas características: O quadro clínico (da desnutrição) é dominado pelo emagrecimento, tanto maior quanto mais intensa e prolongada fôr a carência alimentar. (...) Com o passar do tempo cresce o requerimento energético enquanto a dieta continua com o mesmo escasso potencial, e o aumento da diferença entre aquilo que o organismo reclama e o que lhe é pôsto à disposição se reflete em maior prejuízo na curva ponderal. (...) a musculatura vai se atrofiando e, ao cabo, o paciente, largado no leito, se transmuda num feixe de ossos envolvido em pele lassa, aparentemente grande demais para corpo tão minguado. Olhos fundos, arregalados, assustados, quase aterrorizados, arrematam esta impressionante imagem da miséria.49 A atrepsia, causada por uma alimentação deficiente, produzia transtornos nutritivos agudos. As crianças, vitimadas fatalmente, eram acometidas pela doença durante seus primeiros meses de vida. Nos casos analisados, havia uma criança do sexo masculino de apenas 23 dias; outra de uma ano e meio, do mesmo sexo, ambas mortas em 1893; e uma terceira, de apenas 8 dias, que morreu no ano seguinte, era menina. Os sintomas provocados pela atrepsia eram: a perda rápida de peso, hipotermia, rugosidade e secagem da pele, edema, etc. A morte da criança acontecia em poucos dias e era provocada, freqüentemente, por alguma complicação paralela, favorecida por seu estado de debilidade generalizado.50 A desnutrição atingiu também os imigrantes de Schio. Giuseppe Tovaglia, operário e morador no Brás, iria, no dia 23 de maio de 1893, providenciar o sepultamento do corpo de Antonietta, sua filha nascida em Pádua, naquela necrópole. A menina morrera aos cinco meses de idade e, de acordo com o diagnóstico médico, fora acometida de ‘athrepsia chronica’, conforme descreve o respectivo administrador: N. 415 – sepultada na quadra geral 2o. dos Anjos pequenos – sepultura no. 25 Antonietta, aos 23 dias do mez de Maio de 1893, sepultouse na quadra geral 2o. dos Anjos pequenos, sepultura no. 25, o cadaver de Antonietta com 5 mezes de idade, filha do Italiano Tovalia Joseph, falleceu hontem ás 11 horas da noite, de athrepsia chronica. Attestado do Dr. Leonidio Ribeiro e o que certifica o Escrivão de Paz desta Freguezia João Franc. Paula Carmo. Cemiterio do Braz 23 de Maio de 1893. Administrador Bernardino A. Fernandes.51 7.4. Da desnutrição às doenças infecciosas Quando a desnutrição é específica, pode ter como gênese a falta de ferro, que provoca a anemia; ou a carência de vitamina “c” que origina o conhecido “mal de mar” (o escorbuto) no organismo infantil. Nos casos das crianças do Brás, tratava-se basicamente de deficiências proteico-calóricas primárias: devidas à oferta inadequada e restrita de alimentos (déficit de ingestão), em virtude das condições sócio-econômicas a que estavam submetidos seus pais, não dispondo de alimentação básica.52 49 CARVALHO, José de Magalhães Desnutrição na infância: estudo clínico. Rio de Janeiro, Bunel, 1970, p. 32. DICCIONARIO op. cit., p. 159. O médico Mareska que, em meados do século passado, viveu e militou na Indochina escreve sobre esses casos que: (...) a morte pode ocorrer repentinamente depois dos primeiros dias (...) como resultado de um súbito. E Vis continua afirmando que: Na verdade, um certo número de pacientes com desnutrição protéico-calórica morrem inesperada e repentinamente. VIS, H. L. Sobre o tratamento de certas formas de desnutrição protéico-calórica na infância em função de suas complicações fatais (Um exemplo da África Central rural). In ANAIS NESTLÉ ... op. cit., p. 22. 51 AHMSP: Livro de Registro: no. 33 – Inumações – Cemitério do Brás: relativo aos anos de 1893 a 1894. 52 Caracteriza-se, ainda hoje, pelo desaparecimento do tecido subcutâneo, albumina normal e ausência de lesões da pele, do cabelo e de esteatose hepática. No lactente, manifesta-se através de um emagrecimento “seco”, aspecto faminto, de olhar vivo, inquieto, com choro forte e contínuo, e apresentando um aspecto senil. Há algum tempo dava-se a essa doença o nome de “mal de simioto”. Nos casos muito avançados, as crianças passam a ter anorexia e prostração. Cf. MURAHOVSCHI op. cit., pp. 191-193. Cf. tb. DICCIONARIO ..., op. cit., p. 846. 50 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 154 A falta de alimentação adequada fazia com que o organismo retirasse de suas próprias células as substâncias necessárias a manter seu funcionamento como um todo, reduzindo, com isso, os nutrientes que deveriam proporcionar-lhe maior crescimento. Os trabalhadores tornavam-se homens nanicos e, muitas vezes, defeituosos. Tais ocorrências foram detectadas freqüentemente também em Schio, através de relatos. Mas basta observar as fotografias de operários em qualquer lugar daquela cidade e irá notar-se imediatamente sua pequenez. Eram atingidos por esse retardamento, principalmente os que procediam da planície do Pó e comiam basicamente a polenta como prato principal ou, até mesmo, único. Além dos inconvenientes já aludidos, essa alimentação à base de milho produz uma carência de vitamina PP, ausência que provocava o surgimento da pelagra.53 Marchioro nos legou seu testemunho, a respeito, quando escreveu que: (...) fanciulli di otto e di dieci anni, proprio quando il corpo ancor debole ha bisogno di formarsi le ossa, venivano impiegati al lavoro per dodici ore, pensando che il nutrimento prevalentemente di polenta e il companatico ridotto agli estremi, condannavano soprattutto questi piccoli esseri ad un’esistenza pelagrosa bestiale. Ne derivava numericamente uno stato di debilitazione fisica per cui un’altra percentuale di essi andavano soggetti ad una caratteristica deformazione delle gambe, diffusa allora fra i ragazzi attaccafili, e ad una deficienza toracica ben nota agli uffici militari di leva per l’enorme numero di riformati.54 E, ainda segundo ele, como resultado da desnutrição crônica, os trabalhadores infantis de Schio passavam a padecer de: (...) uno stato di umiliazione e prostrazione, forme di abbruttimento e di demoralizzazione, per dimenticare le quali si davano all’alcoolismo. (...) Crescevano così miseri e rachitici i nostri “petacai” (...) con le stigmate dell’inferiorità fisica, morale e intellettuale; sì, anche e soprattutto intellettuale, poiché ad una notevole parte di loro veniva praticamente inibita la prima istruzione elementare, sotto questo edificante profilo avevano ben poco da invidiare ai piccoli schiavi del cotonificio inglese di ‘Mariano Procopio’.55 O segundo maior grupo de doenças que vitimou tantas crianças e menores no Brás estava associado às infeções que atingiam o aparelho respiratório, muito suscetível nessa fase da vida humana. Somando todos os óbitos ocorridos naquele triênio, chegamos à cifra de 7 casos, o que equivaleu a 12,5% do conjunto. Dentre essas moléstias, a que mais incidiu sobre as referidas mortes foi a “bronquite capilar” ou “broncopneumonia” (com 6 casos) mal que ataca as vias aéreas inferiores (brônquios, bronquíolos e alvéolos). Suas causas estão relacionadas à “bronquite”, ou melhor, a seu agravamento. Tem, quase sempre, origem viral e penetra o sistema respiratório, quando o organismo encontra-se mais debilitado. O aumento da irritação pode originar-se da exposição demasiada ao frio, da aspiração de substâncias tóxicas ou irritantes ou, ainda, por infeções agudas contraídas previamente. Pode acompanhar as epidemias de “sarampo” e alguns casos de “tuberculose pulmonar”. Em todos esses casos analisados no Brás, tratava-se de decesso de criança com menos de dois anos de idade.56 Em 3 de Maio de 1894, Pietro Tovaglia, aos 29 anos, encontrava-se morando com sua família no Brás. Tanto que, nesse dia, teve que providenciar o enterro para uma filha, cujo nome 53 Sobre a dieta alimentar dos vênetos da planície, escreve Paolo Angeleri: O alimento, quase que único nos campos do Norte da Itália, era a polenta: a falta de outro tipo de alimentação determina uma carência vitamínica responsável por doenças como a pelagra. ANGELERI, Paolo Imigração Italiana no Brasil. In COSTA, Virginia (coord.) História da imigração no Brasil – as famílias. São Paulo, SNDCB, 7 ed, 1986, p. 15. A vitamina PP (encontrada o fígado, na carne ovina, bovina, suína, nas verduras, no trigo inteiro, nos melões e bananas) atua como uma co-enzima na ativação do metabolismo celular, especialmente na medula óssea; sua ausência provoca a diminuição do crescimento nos jovens e do peso nos adultos. Cf. DICCIONARIO ... op. cit., pp. 1560-1561. 54 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 7. 55 Idem, pp. 7-8. 56 DICCIONARIO op. cit., p. 213. Cf. tb. MURAHOVSCHI, Jayme (org.) Pediatria: diagnóstico + tratamento. São Paulo, Sarvier, 2 ed. ver. e ampl., 1981, p. 307. Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 155 que aparece nos autos do Cemitério do Brás é Armenia. Este, entretanto, não era um nome utilizado pelos italianos, naquela época. Com certeza, contando com provável erro de transcrição, visto que as informações eram transmitidas oralmente – com as óbvias distorções lingüísticas - tratava-se de uma “nova” Erminia, como convinha à tradição vêneta, diante da provável perda ou distanciamento da anterior. Essa criança tinha apenas 7 meses e como causa mortis foi diagnosticada pelo médico responsável a fatal e disseminada bronchite chronica, que ceifava, a vida, principalmente, dos nascituros e das crianças até 3 anos de idade. Assim, o administrador do Cemitério do Brás registrou o termo de sepultamento: N. 1633 – sepultada na quadra geral 4o. dos anjos pequenos, sepultura 77 – pobre – Armenia (Erminia), aos 3 dias do mez de Maio de 1894, sepultouse na quadra geral 4o. dos anjos Pequenos, sepultura no. 77, o cadaver de Armenia com 7 mezes de idade, Italiana filha de Pedro Toalhas, falleceu hontem ás 1 ½ horas do dia de bronchite chronica, attestado do Dr. João V. A. de Macedo, sepultouse como pobre, e o que certificou o mesmo Dr. Cemitério do Braz. 3 de Maio de 1894.57 Outro caso análogo aconteceu, anos depois, com outro imigrante de Schio, Giovanni Zambelli. Em 14 de janeiro de 1904, o imigrante operário reaparece nos registros públicos ao providenciar o sepultamento de um filho seu, de nome Victor Emanuel, no Cemitério do Brás, conforme ficou, assim, anotado nos autos: N.º 13:025 – sepultado na quadra Geral 1º dos anjos grandes – sepultura no. 62 – E Pobre – Victor Emanuel, aos 14 dias de janeiro de 1904. Sepultou-se na quadra geral 1ª dos anjos grandes sepultura No. 62 o cadaver de Victor Emanuel, com 13 meses, filho de Giovanni Zanella, falleceu hontem as 6 horas da manhã victima de Bronchite. Attestado do Dr. Bento Ferraz. É pobre. É o que certificou o Escrivão de Paz do Belensinho Evelides Leite Silva. Cartorio do Braz. 14 de janeiro de 1904. 58 Outras doenças relevantes que provocaram óbitos nas crianças e menores do Brás foram: o sarampo (3) e o tétano (3); cada uma representando 5,4% do total. O sarampo caracteriza-se por ser uma enfermidade infecto-contagiosa que atinge a infância, produzida por um vírus e por evoluir com sintomas catarrais das mucosas conjuntivas e das vias respiratórias, junto com um exantema cutâneo macular característico. Sua incubação dura de uma a duas semanas. É eruptiva, aguda, febril, e quando encontra resistência imunológica, é benigna. Entretanto, nos casos do Brás essa doença encontrava os pequenos organismos totalmente debilitados. A enfermidade, por isso complicava-se e evoluía para broncopneumonia, encefalite, meningite, etc., o que aumentava o índice de mortalidade.59 Foi justamente numa das famílias de Schio que vemos os sintomas dessa doença evoluírem e provocarem a morte súbita de um de seus membros, apenas um ano depois de terem chegado ao Brás. Foi sua primeira perda humana. Precisamente, em 27 de fevereiro de 1894, às 15:00 hs., morreu de meningite o filho de Antonio Vicentin, Romeo, de apenas 3 anos de idade e nascido na Itália pouco antes da partida. Foi enterrado no Cemitério do Brás e seu registro diz o seguinte: N. 1471 – sepultado na quadra geral 2 – dos anjos maiores – sepultura no. 19 Vicentine Romeo, aos 28 dias do mez de Fevereiro de 1894, sepultou-se na quadra geral 2 dos anjos maiores sepultura no. 19, o cadaver de Vicentine Romeo, com 3 annos de idade, filho do italiano Vicentine Antonio falleceu hontem às 3 horas da tarde de meningite, attestado do Dr. 57 AHMSP: Livro de Registro no. 33 - Inumações - Cemitério do Brás: relativo aos anos de 1893 a 1894. AHMSP: Livro de Registro no. 38 : relativo aos anos de 1902 a 1905. 59 Quanto ao sarampo, afirma Vis que: Nos países em desenvolvimento a principal complicação infecciosa da desnutrição é o sarampo que é diretamente responsável por uma maior mortalidade tanto em bebês quanto em crianças maiores. VIS, H. L. op. cit., p. 27. Cf. MURAHOVSCHI, op. cit., pp. 562-564. 58 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 156 Freitaz. É o que certificou o escrivão de Paz desta freguesia João Fco. Paula Carmo. Cemitério do Br z. 28 de Fevereiro de 1894. O. Bernardino A. Fernandes.60 Já o tétano é uma enfermidade infecciosa aguda produzida pela exotoxina que o clostridium tetani elabora no corpo do indivíduo infectado. Se inicia a partir de uma ferida espontânea ou cirúrgica, através da qual o agente etiológico penetra no organismo e se manifesta por trismos e espasmos tônicos dolorosos, dos músculos da face (riso sardônico), da nuca, do tronco e dos membros inferiores. A incidência dessa doença nos recém-nascidos que analisamos é devida ao uso, por desconhecimento ou falta de orientação, de materiais impróprios, como borra de café ou folha de fumo, por exemplo, procedimentos difusos, principalmente entre as classes populares, com vistas a estancar eventuais hemorragias umbilicais ou, ainda, para acelerar seu processo de cicatrização. A enfermidade mata em poucos dias. Outras doenças, que dizimaram crianças e menores, apareceram na amostragem com expressões reduzidas. É o caso das doenças que atingem o sistema nervoso e da contagiosa sífilis ("mal francês") no registro obituário erroneamente definida como "hereditária". Mas há outras, ainda: um segundo filho de Giuseppe Pietro Corà, nascido em São Paulo, de nome Júlio, viria a falecer em 23 de novembro de 1905, com apenas dois anos de idade, vitimado por uma nefrite aguda. A criança foi enterrada no Cemitério do Brás, conforme o seguinte registro: No. 14:990 – sepultado na quadra geral 4º dos anjos maiores – sepultura 201 – Julio, aos 23 de novembro de 1905, sepultou-se na quadra geral 4º dos anjos maiores, sepultura 201 o cadaver de Julio, com dois annos, filho de Jose Corá, falleceu hontem as 7 horas da manhã victima de nephrite. Attestado do Dr. (...) Pereira. E o que certificou o official do Braz. João Francisco Paula Carmo, Cemiterio do Braz. 23 de novembro de 1905.61 Concluímos que se presenciou no Brás, naqueles anos, um silencioso, mas real infanticídio que atingiu drasticamente as famílias dos imigrantes operários de Schio que lá residiam e trabalhavam. Um extermínio, como vimos, provocado por causas diretamente ligadas às condições de vida socialmente determinadas. A qualidade de vida dos escledenses, revelada através dos registros obituários de seus filhos, portanto, enquadrava-se perfeitamente na dos trabalhadores – homens, mulheres, menores e crianças - que passavam a maior parte de seu tempo no interior das respectivas fábricas, percebiam salários insuficientes para atender suas necessidades básicas, sofriam, por isso, de uma desnutrição crônica e habitavam pobremente. Não parece ter havido qualquer alteração substancial no padrão de vida abandonado em Schio. Logo ao chegar no Brás e constatar de imediato as condições a que estavam submetidos os trabalhadores da indústria, o imigrante de Schio, Nicola Viero, emitiu o juízo bastante duro mas perspicaz que reportamos ao findar o capítulo II: para o trabalhador braçal, o melhor seria ter permanecido onde estava. 8. Como morreram os adultos? Vimos já no início deste capítulo que o número de adultos enterrados no Cemitério do Brás no triênio estudado foi relativamente pequeno, representando apenas 15,2% do total. Este percentual é aparentemente inexpressivo se comparado ao das crianças e menores. Entretanto, parece-nos que pela quantidade de população residente no bairro, então calculada em 32.387 habitantes, e pela possibilidade de enterrar defuntos em outros cemitérios da cidade, esse percentual parece razoável. O descompasso assustador está na constatação de que no Brás, pelas condições já descritas, morriam mesmo os pequeninos. Os pobres e trabalhadores adultos não morriam mais 60 61 AHMSP: Livro de Registro no. 33 - Inumações - Cemitério do Brás - relativo aos anos de 1893 a 1894. AHMSP: Livro de Registro no. 39 - Inumações - Cemitério do Brás: relativo aos anos de 1905 a 1906. Para a cobrança da taxa municipal: 23.11.1905, série 8, no. 61, Nome do contribuinte: Paulino Sofredine, Nome do fallecido: Júlio, Sepultura Geral, 10$000 cf. Livro de Registro da Arrecadação de impostos municipais a cargo do administrador do Cemitério do Braz, vol. 4 (1905). 157 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. que em qualquer outro lugar da cidade. A questão que se põe é, contudo, de saber como morreram. Para tanto, elaboramos a tabela abaixo: TABELA 32 CEMITÉRIO DO BRÁS INUMAÇÕES OCORRIDAS ENTRE 06/01/1893 A 21/12/1895 CLASSIFICAÇÃO POR CAUSA MORTIS DOS ADULTOS CAUSA MORTIS QUANTIDADE DE PESSOAS MASC. FEM. TOTAL % DE 10 Tubérculos pulmonares Acesso pernicioso Apoplecia cerebral Enterite (aguda ou chronica) Enterocolite thiphoidea Febre perniciosa Hemorragia de parto Paralesia 2 1 1 1 1 1 1 1 1 - 2 2 1 1 1 1 1 1 20 20 10 10 10 10 10 10 TOTAL 7 3 10 100 Fonte: AHMSP, Livros de Registro de Inumações Cemitério do Brás, nos. 33 e 34. Ao olharmos esse quadro, observamos imediatamente que o número de homens foi 2,3 vezes maior que as mulheres, dados que parecem confirmar o que já havíamos dito anteriormente, isto é, que a presença masculina adulta, entre os imigrantes no Brás, deveria ter sido bem superior à que conseguimos identificar através do levantamento das famílias vindas de Schio. Nota-se também que uma mulher faleceu vitimada por “hemorragia de parto”. Era uma imigrante polonesa de 26 anos, casada e classificada como “pobre”. Os partos normalmente eram feitos em casa, nas condições higiênicas existentes, sem o socorro eventual de um cirurgião. A presença de parteiras supria satisfatoriamente as necessidades, desde que o parto ocorresse dentro da normalidade. Não havia serviços públicos imediatos, tipo pronto-socorro para atendimento de emergências. O Brás, como já dissemos, permanecia afastado dos hospitais. Outro dado que vale relevar é que, malgrado algumas doenças tenham sido comuns como as que ceifaram tantas crianças, como as diversas formas de enterite (aguda ou crônica), amplamente conceituadas acima, os adultos morriam de causas mais diversificadas. Daí a pluralidade de doenças que os mataram. Duas delas, todavia, foram ressaltadas por apresentarem-se com dois casos cada uma delas em nossa amostragem. A nomenclatura da época designava-as como: “tuberculos pulmonares” e “acesso pernicioso”, termos já referidos pois apareceram em diagnósticos anteriores. Sobre a primeira, usava-se tal terminologia por falta de maiores conhecimentos sobre a tuberculose, a causa real das mortes diagnosticadas. A constatação dava-se quando o médico legista dissecava o cadáver para a autópsia e observava a presença disseminada, nos pulmões, de pequenos tumores, os tubérculos. Além do soldado alagoano de 19 anos e solteiro que faleceu vitimado por esse mal, morreu também outro homem de 50 anos, viúvo, brasileiro e “pobre”. Quanto à doença na sua verdadeira acepção, a tuberculose, de natureza infecciosa e, então, fatal, informam os autores do Diccionario tratar-se de uma: Enfermidad infecciosa, contagiosa, e inoculable, producida por el bacilo de Koch, Mycobacterium tuberculosis, que se caracteriza porque en la persona virgen de infección provoca una primera lesión, denominada chancro de inoculación, generalmente en el pulmón, caracterizada por formarse tubérculos caseosos acompañados de una linfangitis y adenitis (...) Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 158 hay un tercer período en el cual la tuberculosis pulmonar toma los carcteres clásicos de fibrocaseosa y ulcerosa.62 A morte por tuberculose, então, atingia 2 em cada 10 adultos. É um número muito expressivo o que corresponderia a 20% do total. A insalubridade dos locais de trabalho, associadas às fragilidades orgânicas já aludidas, por falta de alimentação adequada, deviam contribuir muito para sua proliferação.63 Pelo testemunho de Domenico Marchioro, temos conhecimento que entre as operárias de Schio havia uma incidência muito grande da doença, quando afirma que: Tra le donne vi era diffusissima l’anemia e la tubercolosi che svolgevano la loro deleteria ed inesorabile opera; talvolta si credevano semplicemente anemiche, mentre erano già intaccate definitivamente dalla tisi.64 Quanto à segunda maior causa mortis, o que a terminologia da época chamava de “acesso pernicioso” pode ser, hoje, caracterizado como convulsões intermitentes e profundamente danosas que podiam levar à morte do enfermo, como nesses casos, mais por estarem associadas a outras doenças crônicas e muitas vezes não imediatamente diagnosticadas, como, por exemplo, a desnutrição. Suas vítimas foram: um homem de 54 anos, solteiro e italiano; e uma mulher de 45 anos de idade, viúva e “pobre”. As demais doenças apresentaram apenas um óbito cada uma. A “apoplexia cerebral” é uma doença causada por qualquer transtorno circulatório no interior do cérebro e que provoca a perda dos movimentos, da sensibilidade e da consciência provocando o estado de “coma”. No caso, o trabalhador poderia ter sofrido os efeitos de um derrame cerebral. Na amostragem, a pessoa vitimada foi do sexo masculino, com 60 anos, português de nascimento, e casado.65 Quanto ao tifo, que no levantamento apresentado por Morse aparece como a sexta causa mortis da população paulistana, durante o ano de 1887, representando 5,9% dos casos. Em nossa amostragem aparece explicitamente num único óbito e somente em 1895: tratava-se de um homem casado, italiano, de 55 anos, enterrado como pobre e cuja causa mortis diagnosticada foi enterocolite thiphoidea.66 Um dos imigrantes de Schio que se fixou no Brás estava entre os mortos. Havia falecido em virtude dessa doença. Tratava-se justamente de Girolamo Vicentin, cujo neto falecera de meningite. Girolamo morreu no dia 2 de maio de 1895, com apenas 48 anos de idade e foi sepultado no dia seguinte, conforme nos atestam os autos da respectiva necrópole: N. 2593 - Vicentim Jeronymo. Aos 3 dias do mes de maio de 1895 sepultou-se na quadra geral 4a. dos adultos, sepultura no. 139, o cadaver de Vicentim Jeronymo, italiano, com 46 annos de idade, casado com Maria Meneguetti, falleceu hontem às 2 horas da manhã fallecido de peneumonia thyfoidica. Attestado do Dr. Bento Ferraz. E o que certificam o 62 DICCIONARIO ..., op. cit., p. 1490. As doenças, particularmente a tuberculose, ceifavam muitas vidas ou comprometiam indefinidamente a saúde. CUT op. cit., p. 16. Morse informa que dos 1736 óbitos ocorridos em 1887, na cidade de São Paulo, 209 (12%) foram causados pela tuberculose. Cf. MORSE, Richard M. op. cit., p. 246. 64 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 7. 65 apoplejía (gr. apopleexía). f. (...) – cerebral (...) Complejo sintomático que se caracteriza por la abolición de los movimientos, la sensibilidad y la conciencia (coma), y que es causado casi siempre por un trastorno circulatorio intracraneal (hemorragia, embolia, trombosis). DICCIONARIO DE CIENCIAS MÉDICAS DORLAND. Buenos Aires, Libraria “El Ateneo” Editorial, Versión y adaptación de la XXIV Ed. Ingresa, 1966, p. 125. 66 AHMSP: Livro de Registro de Inumação no. 34 - Cemitério do Brás (1894 a 1895), assento no. 3.160. Doença infecciosa aguda, sistêmica, transmissível, cosmopolita, causada pela samonella typhi e fundamentalmente caracterizada quando não em uso a terapêutica específica, por quadro clínico infecto – tóxico intenso e prolongado, no qual sobressaem as manifestações clássicas que deram nome à enfermidade: febre alta e contínua, e um estado de torpor muito expressivo (do grego ‘typhos’ = estupor). VERONESI, Ricardo Doenças Infecciosas e Parasitárias. Rio de Janeiro, Ed. Guanabara Koogan S.A., 4 ed, 1969, pp. 435. O tifo ataca o aparelho digestivo e respiratório por isso, já naquela época, associavam-no à entero-colite. 63 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 159 Escrivão de Paz desta freguesia João Francisco P. Carmo. Cemitério do Braz. 3 de Maio de 1895. O. Bernardino A. Fernandes.67 A “febre perniciosa”, como era então chamada a malária, é também uma doença infecciosa que pode incidir no homem e noutros animais mamíferos, assim como em aves e anfíbios, causada por um protozoário do gênero Plasmodium. Entre os óbitos de 1887, Morse não identifica nenhuma causa mortis associada a essa doença na cidade de São Paulo. Aparece na amostragem, entretanto, que no Brás, em novembro de 1893, faleceu por conseqüência dessa doença, ainda jovem - tinha apenas 29 anos - um soldado de nacionalidade italiana, engajado na Guarda Nacional.68 Houve também um óbito atribuído à “paralisia”, uma doença que causa a perda da função motora voluntária de uma parte do corpo, devido a uma lesão do mecanismo nervoso ou muscular. Quanto à etiologia, pode ser de natureza traumática, infecciosa ou até tóxica. Morse afirma que 207 (11,9%) pessoas, durante o ano de 1887, faleceram em São Paulo vítimas de “moléstias do aparelho cerebrospinal”, entre as quais, certamente, encontrava-se a “paralisia”. Na amostragem aparece o caso de um jovem de apenas 19 anos, brasileiro, solteiro, considerado como “pobre” pelo administrador do Cemitério Municipal do Brás.69 Pela descrição e análise que procuramos desenvolver neste capítulo, quisemos demonstrar como as doenças, na maioria das vezes diretamente conexas com as condições reais de vida e de trabalho, e os decessos que provocaram revelam-nos a precariedade da existência do proletariado existente no Brás, entre 1891 e 1895. Observamos, pela análise dos casos singulares, que os imigrantes de Schio – habitantes desse bairro - não escaparam à mesma sina e foram solidários com os demais na morte, assim como o haviam sido durante a vida. E os trabalhadores de Schio que não foram para o Brás? Teriam morrido de modo diferente? Conseguimos localizar os registros de óbitos de dois trabalhadores que se fixaram na cidade de São Paulo: Carlo Berton e Emilio Frizzo. Carlo Berton, que veio apenas com o filho caçula e deixara o restante da família em Schio havia sido operário têxtil. O relato de seu sepultamento é conciso, mas profundamente revelador das condições de vida do proletariado paulistano - para além do Brás - daquele período: Carlo, aos 8 dias do mez de abril 1903 sepultou-se na quadra geral 117 sepultura no. 223, o cadaver de Carlo Bertoni, com 52 annos de idade, italiano, filho de Domenico Bertoni, fallecido hontem às 10 horas da noite, victima de inanição, attestado Dr. Valeriano de Souza. É o que certifico o escrivão de paz de Santa Cecília, Aurélio Vaz. Santa Casa70 Uma morte por inanição aos 52 anos, como atesta o registro cartorário, poderia significar uma existência em estado constante de subnutrição. Poderia significar também uma situação de abandono. Alguém o internou na “Santa Casa” pois com a doença que contraíra dificilmente se locomoveria sozinho até lá. Estaria jogado pelas sarjetas, como tantos outros imigrantes acabaram? É sintomático que justamente a pessoa informante não tenha sido seu filho que estava, certamente, na cidade naquele período, mas sim outro imigrante italiano de nome Francisco De Angelis, originário do Sul da Itália (“meridionale”). 67 AHMSP: Livro de Registro no. 34 - Inumações - Cemitério do Brás - relativo aos anos de 1894 a 1895. É conhecida também sob uma série de nomes e expressões: “febre intermitente”, “febre palustre”, “febres”, “maleita ou maleitas, paludismo ou impaludismo, perniciosa, sezão ou sezões, sezonismo, acréscimo ou acréscimos, batedeira. No Brasil também se usa designá-la como: tremedeira e carneirada. Cf. DICCIONARIO ... op. cit., p. 841. 69 Ib., p. 1.059. 70 AHMSP: Livro de Registro de Inumação no. 40 - Cemitério do Araçá - relativo ao ano de 1903. Segundo as anotações feitas nos autos encontrados no Cartório de Registro Civil de Santa Cecília (11o. Subdistrito) R. Cons. Brotero, no. 879, São Paulo. 68 Capítulo V: A vida engendrou a morte que, por sua vez, reconstitui a vida. 160 O outro imigrante que passou por Schio foi Domenico Frizzo, natural de Montecchio Maggiore que emigrou para o Estado de São Paulo, primeiramente, durante o ano de 1889, voltou depois para a Itália, dirigiu-se com a família para Schio, aí tornou-se operário e, em 1894 transferiu-se para a cidade de São Paulo. Em 18 de fevereiro de 1898, foi enterrado no Cemitério do Araçá. O respectivo administrador lavraria, então, o seguinte registro: N. 2:492 – sepultou-se na quadra geral 59 – sepultura 36 – Domenico. Aos 18 dias do mês de Fevereiro de 1898, sepultou-se na quadra geral 59, sepultura no. 32 o cadaver de Domenico Frizzo, com 66 annos, italiano, casado, falleceu victima de doença clínica do figado e ictericia. Attestado do Dr. Jorge Malago. É o que certificou o escrivão de Pas de S. Ephigenia. Ricardo Francisco da Costa.71 Aos 66 anos, morreu Emilio Frizzo. Pelo diagnóstico deduz-se que tenha contraído a contagiosa hepatite. Na época, possivelmente, havia poucas condições de se estabelecer o grau de gravidade e os vários tipos agentes provocadores dessa multiforme doença. Contudo, se levou-o à morte, é sinal que poderia ser do pior tipo. Morse não nos ajuda a tipificá-la pois acaba incluindo todas as “moléstias do aparelho digestivo” num único bloco, não as destinguindo. Não parece, contudo, ter tido sorte muito melhor que o antecessor. Se no Brás daqueles anos de efervescência industrial os trabalhadores de Schio morreram porque viveram quase que exclusivamente para trabalhar, destino semelhante esperava também aos que se dirigiram a outras áreas da Capital. Enfim, aonde quer que se tenham dirigido esses imigrantes encontraram as condições de vida e trabalho. Encontraram, de lambujem, as mesmas normas, as mesmas leis e os mesmos princípios: atender às exigências do capital. Seu fim não poderia ser, em qualquer parte que fossem, muito diferente daqueles que buscaram, por outros caminhos, outros lugares. 71 AHMSP: Livro de Registro: no. 33 – Inumações – Cemitério do Araçá: relativo aos anos de 1897 a 1898.