A59 ID: 58784468 13-04-2015 Tiragem: 36211 Pág: 8 País: Portugal Cores: Cor Period.: Diária Área: 25,70 x 30,68 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 1 de 3 ‘Já dissemos a doentes de cancro que há medicamentos que não estão disponíveis’ Gabriela Sousa Nova presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia considera que falta dinheiro para tratar o cancro em Portugal Entrevista Romana Borja-Santos Para a nova presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia (SPO), só a dedicação dos médicos nos últimos anos tem evitado piores resultados no combate ao cancro em Portugal. Mas Gabriela Sousa avisa que “hoje a tolerância dos profissionais é zero” e quem pode reforma-se ou sai do Serviço Nacional de Saúde. Aos 45 anos e a trabalhar no Instituto Português de Oncologia de Coimbra, a médica acredita que o combate a estas doenças conta com terapêuticas cada vez melhores. Contudo, admite, nem sempre são introduzidas com a velocidade necessária, numa doença em que a palavra “tempo” é determinante. A especialista, que se dedica ao estudo e tratamento de doenças da mama e do aparelho ginecológico e urinário, sendo ainda responsável pela consulta de risco familiar de cancro da mama/ovário, considera que nos próximos anos o papel da SPO passará, sobretudo, por assegurar melhor formação para os mais novos, por batalhar pela qualidade de vida dos doentes, mas também pela saúde dos médicos. “Quando estamos no limite, a possibilidade de errar é cada vez maior”, alerta, defendendo que a suborçamentação impede resultados melhores. Começou agora um mandato de três anos. Quais as prioridades? Unirmo-nos para elevar a qualidade da oncologia em Portugal. Apesar de termos profissionais excelentes, existem algumas barreiras que nos limitam no tratamento do cancro. A SPO é uma sociedade científica, em que o objectivo maior é a formação e a educação médica contínua, sobretudo dos mais novos. O tratamento do cancro é multidisciplinar e cada vez mais profissionais têm de estar envolvidos. A especialidade de oncologia é relativamente recente e temos muitos oncologistas que vêm da medicina interna. Agregamos ainda a radioterapia, a cirurgia, além de outras especialidades. Uma das suas preocupações são os jovens especialistas? O dia-a-dia de quem trabalha com cancro é extremamente difícil, desgastante muitas vezes. Temos um volume de trabalho muito grande e estamos a trabalhar numa doença que leva as pessoas ao seu limite, emocional, social, familiar... É uma profissão com elevado risco de as pessoas desistirem. A nossa preocupação enquanto SPO é apoiar os jovens neste percurso difícil e extremamente competitivo. Queremos dar-lhes formação em áreas que as pessoas normalmente não apanham no seu percurso formativo, como epidemiologia, estatística, sexologia ou oncofertilidade. Está preocupada com a saída de profissionais do Serviço Nacional de Saúde? Noutras especialidades, a saída de quadros mais velhos tem comprometido a formação dos internos. Isso é transversal. Assistimos de facto a um fluxo de saídas. Hoje, a tolerância dos profissionais é zero e as pessoas, quando têm possibilidade de reforma, optam por sair. Pouco os agarra à vida profissional e nesse sentido a formação fica um pouco comprometida. Tem havido a preocupação de formar mais pessoas e os serviços ficam cheios, têm muitos internos. Também há problemas nos medicamentos inovadores. Com a hepatite C ganhou maior expressão o debate sobre o preço. Como estão as coisas na área do cancro? Tem de haver uma discussão alargada, com envolvimento da sociedade civil e das entidades pagadoras, para se perceber qual vai ser o modelo de financiamento. No cancro, o que é inovador é diferente do que acontece em algumas doenças infecciosas como a hepatite C, em que o medicamento tem uma taxa de cura. No cancro, quando falamos em inovação é em termos de “O sofrimento que as pessoas associam ao cancro, a dor física, é hoje algo que se consegue tratar” qualidade de vida ou de aumento do tempo de sobrevivência. Muitas vezes é questionado se acrescentar mais dois ou três meses de sobrevivência é suficiente pelo custo. Tem de se encontrar um modelo que funcione para que os medicamentos cheguem aos doentes em tempo útil. Muitas vezes, quando o medicamento fica disponível já não vai ser útil. É uma doença em que o tempo é fundamental. Estes medicamentos vêm normalmente para situações de doença avançada em que o doente se degrada rapidamente. Nós, oncologistas, somos treinados diariamente para definir esse timing. Não se trata de dar ao doente um medicamento a qualquer custo, é numa perspectiva de lhe garantir qualidade de vida. O final do mandato da anterior direcção ficou marcado pela denúncia de problemas como a falta de camas nos IPO, que estaria a atrasar cirurgias. Não estamos a falar só do tratamento cirúrgico, ainda que esse ganhe mais importância, uma vez que muitas vezes é o tratamento curativo. Estamos a falar da quimioterapia, do tratamento hormonal, sistémico e da própria radioterapia. Não podemos falar em atraso mas em dificuldade em reunir uma equipa multidisciplinar. O cancro é a segunda doença que mais mata em Portugal e estamos aquém das médias europeias. O que está a falhar? O investimento nestas áreas é proporcional à sobrevivência. Estamos aqui perante um subfinanciamento do cancro, como já temos alertado. O gasto no cancro ronda os 53 euros per capita, metade da média da OCDE. Mesmo assim, as instituições e os profissionais têm enorme mérito. Diariamente vemos muito mais doentes do que está padronizado. Trabalhamos numa sobrecarga muito grande e queremos alertar para a exaustão dos profissionais. Temos de garantir a qualidade do serviço prestado ao doente, mas também de pugnar pela saúde dos profissionais. Sem esse esforço, o que teria acontecido com a crise? Os timings dos tratamentos seriam claramente comprometidos — e o tempo é muito importante nesta doença. Que riscos corremos? Saturar ainda mais o sistema. Os profissionais estão em tolerância zero. Todos os dias tentamos que não haja riscos para os doentes e que não se cometam erros, mas quando estamos no limite do que podemos fazer, a possibilidade de errar é cada vez maior. Página 59 ID: 58784468 13-04-2015 ENRIC VIVES-RUBIO Os doentes têm hoje mais informação. Já foi confrontada com tratamentos importantes que o SNS não pode dar? O doente tem direito a ter toda essa informação e os médicos devem dizer o que há disponível e onde. Já todos tivemos de dizer a alguns doentes que há medicamentos que não estão disponíveis, porque estão em ensaio clínico ou ainda não foram aprovados. E as terapias alternativas? Estamos a colaborar com o Observatório de Interacções Planta-Medicamento da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra. Temos problemas com muitos doentes. Há interacções gravíssimas que nos fazem suspender o tratamento por sintomas que põem em risco a vida do doente — que muitas vezes esconde o que toma e é pressionado pela família e amigos a tomar outras coisas. Nas nossas salas de espera comercializamse estas medicinas alternativas e isto é gravíssimo. Mesmo um Tiragem: 36211 Pág: 9 País: Portugal Cores: Cor Period.: Diária Área: 11,19 x 26,72 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 2 de 3 desvio alimentar pode interagir com alguns fármacos, como as toranjas e laranjas em excesso que as pessoas consomem por acharem que faz bem. No cancro há sempre receio de usar a palavra cura. Há tumores com elevada probabilidade de cura. Há uma elevada percentagem de sucesso, mas claro que gerir as expectativas não é fácil. Temos de utilizar as palavras correctas na altura certa. Já tenho dito quando estou perante uma doença avançada que não há uma expectativa de cura mas de controlo. Podemos ter doença avançada controlada durante muitos anos. As cirurgias de Angelina Jolie trouxeram as intervenções preventivas para o debate. Tiveram o mérito de gerar alguma discussão. Tivemos um volume acrescido de dúvidas e solicitações. Mas as consultas de risco familiar em Portugal têm critérios bem definidos. A chave para perceber quem deve aceder ou não é a história familiar. Em cima da mesa estão várias opções: a vigilância activa ou a realização de cirurgias profilácticas. Não é preciso ser tudo ou nada. Mas a ovariectomia retira 50% da probabilidade de vir a ter cancro da mama. Os hospitais privados têm vindo a ganhar peso na área do cancro. A qualidade está garantida? Mantém-se assegurada. Muitas vezes, os profissionais que estão no público são os que estão no privado. Mas sinto que a maioria das pessoas manifesta grande confiança no público quando é confrontada com um cancro. Nos cuidados paliativos existem muitas falhas. A rede de cuidados ao doente oncológico tem de evoluir, concretamente os cuidados paliativos. Era muito importante oferecer mais cuidados domiciliários, porque o que eu sinto no terreno é que o doente quer estar em casa nessa fase. A falha no apoio final não compromete a visão que se tem do cancro? O sofrimento que as pessoas associam ao cancro, nomeadamente a dor física, é algo que hoje se consegue perfeitamente tratar. As pessoas podem morrer dignamente com equipas treinadas e capacidade de resposta. Página 60