Fazei isto em memória de Mim
Missão por terras de África
Padre João Miguel Torres Campos
O sol rasgou as nuvens muito cedo. Levanteime e, depois de algum tempo dedicado à higiene
pessoal e à oração, verifiquei, pela última vez, se
não me esquecia de nada para mais uma missão
pelo mato fora. No programa estavam agendadas
cinco visitas em dois dias a comunidades
que ficavam a cerca de setenta quilómetros
da missão. Os caminhos eram muito difíceis.
Avisaram-me para ter muito cuidado com os
pneus e com a velocidade. Avisei também as
missionárias da Boa Nova, que vivem comigo
na missão, que voltaria dentro de dois dias.
Caso contrário, era melhor procurarem-me...
Eu e o Sr. Cassiano Barbosa, que é o meu guia e
animador paroquial da missão, arrancámos em
direcção a Diáca. O caminho estava horrível, mas
conseguimos avançar lentamente pela savana
fora, demorando duas horas. Ainda não tínhamos
chegado à comunidade de Diáca e os tambores já
se ouviam.
A comunidade não era visitada por um
padre há muito tempo. Alguns nunca tinham
participado numa Eucaristia na sua comunidade.
Tudo previa que ia ser um grande dia de festa.
Estava tudo muito bem organizado: leitores,
cantores, dançarinas, equipa de acolhimento e
equipa de liturgia, todos reunidos para o grande
encontro que, para muitos, seria o primeiro e
o último, pois só voltarão a ter Eucaristia após
alguns meses ou anos. Tudo dependerá da saúde
do padre, do dinheiro para o combustível e do
estado do carro.
A grande festa durou cerca de três horas.
Depois de ouvir os responsáveis da comunidade,
comi um pouco de chima (farinha cozida) com
galinha e despedi-me no meio de danças e muitos
sorrisos. Enquanto conduzia o carro para outra
comunidade, visitei na minha memória os seus
rostos e a certeza de que aquele momento não
tinha sido uma simples cerimónia religiosa, mas
o encontro com uma pessoa viva: Jesus Cristo.
Não tinha sido apenas a evocação da memória
de Jesus, mas o contacto com a Sua presença de
Ressuscitado.
Quando chegámos a Melácue, a tarde ia
caindo. Melácue é uma comunidade bastante
grande. Nunca imaginei que naquele fimde-mundo houvesse tantos catecúmenos a
prepararem-se para o baptismo. Formaram
duas grandes filas pelo mato fora, para que o
carro passasse pelo meio. Batiam palmas e,
por momentos, emocionei-me, porque sabia
que muitos dos que estavam ali tinham andado
a pé vários quilómetros para celebrarem a
Eucaristia. Depois de os cumprimentar a todos,
individualmente, começamos uma celebração
penitencial para quem quisesse reconciliar-se
com Deus.
A noite tinha chegado e a lua estava cheia de
luz, que iluminou o altar e rosto de todos aqueles
que estavam na celebração. O brilho dos seus
olhos dizia-me que, afinal, a Eucaristia não se
reduz somente a uma “norma” da Igreja e está
longe de ser apenas um ritual tradicionalista.
É uma Festa de alegria e júbilo, em que nos
encontramos com o mais profundo de nós
mesmos: o próprio Deus.
No fim da celebração todos regressaram para
as suas palhotas, para comerem alguma coisa,
e voltaram para rezar o terço. Depois tocaram
tambor e dançaram durante toda a noite. No
fim do terço recolhi-me na palhota que me
deram para dormir. Estava muito cansado, mas
ao mesmo tempo muito feliz por estar a viver
aqueles momentos.
De manhã, bem cedo, partimos para Mecópue.
Toda a comunidade estava reunida e em festa.
Fizeram um discurso de boas-vindas, em que
expressavam a sua alegria por celebrarem pela
primeira vez a Eucaristia na sua comunidade. Já
há muitos anos que esperavam por esse grande
momento. Fiquei deslumbrado com a postura de
todos durante a celebração. Sabiam responder a
com a sua pequena mas bem arranjada capela.
Feita com adobos de barro e coberta de capim,
parecia uma catedral no meio daquela savana. Os
bancos da capela eram feitos de cana de bambu
e o altar era a única mesa existente na aldeia.
Celebrámos os sacramentos da Reconciliação e
da Eucaristia. Não me preocupei com o relógio,
mas esta celebração durou cerca de quatro horas.
Comemos um pouco de chima com galinha e
todos os diálogos e conheciam profundamente
todo o ritual da Eucaristia. Não estavam por
estar, não era um simples preceito ou “capricho”:
era o fundamento e alicerce de uma comunidade
cristã empenhada e comprometida, que tanto
tinha esperado por esse momento.
Despedimo-nos de Mecópue e partimos
em direcção a Pávala. Pávala impressionou-me
avançámos para outra comunidade.
Quando
chegámos
a
Nivussacove
encontrámos uma grande multidão reunida.
Todos tinham um sorriso no rosto e uma alegria
esplendorosa. Durante a celebração rezaram,
cantaram e dançaram com tanta vivacidade que
eu, por momentos, pensei que estava com Jesus
na última Ceia em Jerusalém. Cada Eucaristia
deve ser celebrada com o mesmo mistério e
encanto daquela noite de amor e de partilha. Este
povo, que Deus me deu, ensinou-me isso, não
por tratados teológicos mas pela forma simples
e profunda de celebrar o maior mistério de todos
os tempos.
Quando terminou a Eucaristia começou
a chover e, por momentos, ainda duvidámos
se devíamos regressar à missão. Depois de
reflectirmos, chegámos à conclusão que não
podíamos ficar, porque no dia seguinte estava
agendada a visita a Jipuatha. Nunca a tal conclusão
devíamos ter chegado!
Antes de partir perguntei se havia doentes
graves na comunidade. Disseram-me que havia
um que estava muito mal. Partiu connosco,
juntamente com um familiar. Avançámos com
medo de uma tempestade, pois estávamos a
setenta quilómetros da sede da missão e tínhamos
que passar em alguns ribeiros que, com aquela
chuva, depressa se transformaram em rios. A
noite caiu depressa e a chuva começou a cair
com mais força. Nos primeiros dez quilómetros
não tivemos problemas, porque o chão da picada
ainda estava bastante duro. Ao chegarmos à
primeira aldeia para lá de Nivussacove, o carro
enterrou-se e demorámos cerca de uma hora a
desenterrá-lo. A população veio atrás de nós e
ajudou-nos a desenterrar o carro mais três vezes.
Muitos dos que nos ajudaram eram muçulmanos,
que naquela hora de aflição ajudaram o padre
dos cristãos.
Tentámos avançar, mas com pouca esperança.
Conseguimos passar pelo primeiro rio com
algumas dificuldades. Quando chegámos ao
segundo rio, em pleno mato, conseguimos passar,
mas o carro ficou enterrado num grande buraco
que havia à saída do rio. Sem qualquer tipo de
ajuda e com um doente grave ficámos ali.
A noite estava muito fria e a água que se
dirigia para o rio fazia balançar o carro. O medo,
a fome, o frio e o desconhecido apoderaramse de nós. Não consegui dormir durante toda a
noite. Tive que vestir a alba que usei nas diversas
Eucaristias durante aqueles dois dias, por causa
do frio.
Naquela noite, entendi melhor o mistério
das palavras de Jesus, quando dizia “Fazei isto
em memória de mim”. Levar a Eucaristia a povos
longínquos é uma grande missão. Enquanto uns
têm Eucaristia todos os dias e a todas a horas nas
suas paróquias, outros, como este povo, nunca
tiveram, ou demoraram anos a celebrar uma.
Apesar de toda aquela angústia, sentia-me feliz,
porque estava a cumprir o mandato de Jesus.
Eram quatro horas da manhã, quando uma
multidão de pessoas da comunidade de Pávala
vieram ajudar a desenterrar o carro. Fiquei
sem palavras, porque tinham andado alguns
quilómetros para nos socorrerem. Com a ajuda
de todos, passado algum tempo, o carro estava
fora do buraco. Prosseguimos viagem e o carro
enterrou-se mais sete vezes até chegarmos à
missão.
A Eucaristia é este grande mistério em que
Jesus morre para Si, partindo-se para se dar,
para se entregar, para se repartir, para nascer no
coração de cada um, para criar uma Aliança Nova
com o coração de cada homem e mulher. A nós só
nos compete fazer o que Ele nos mandou, para
que este mistério não seja só para um pequeno
grupo de privilegiados, mas para todos...
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