II JORNADA DISCENTE DO PPHPBC (CPDOC/FGV) INTELECTUAIS E PODER Simpósio 4 | Escritas autobiográficas: memórias e correspondências O Pardal é um pássaro azul de Heloneida Studart Ioneide Maria Piffano Brion de Souza Resumo: Heloneida Studart, escritora e deputada brasileira, pretendeu ao longo de sua trajetória transformar a vida social brasileira através da denúncia dos problemas sociais, políticos e econômicos em suas obras. Presa durante o regime militar em seu país dedicou parte de seus livros a criticar e a denunciar esta forma de governo. Seus três romances (O pardal é um pássaro azul, O estandarte da agonia e O torturador em romaria), que abordam este período, são definidos por ela como “Trilogia da Tortura”. Nesta comunicação se analisará o primeiro romance da trilogia, O pardal é um pássaro azul, buscando pontuar a relação entre história e literatura; autoritarismo e intelectual. Palavras-chave: história, literatura, autoritarismo, intelectual. **** 1- História e literatura: uma breve reflexão Na atualidade um dos temas que causa mais controvérsias entre historiadores é a relação história e literatura. Porém, o interesse pela temática não é algo novo. Desde a Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas/Rio de Janeiro. Bolsista em pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). 2 Antiguidade se tem tentado diferenciar o que era o campo da História e o que era o campo da Literatura. A mais recorrente e antiga distinção é aquela na qual ficção é definida como a representação do imaginável, enquanto a história caberia a representação do verdadeiro e da realidade desprovida de qualquer análise e reflexão estes dois atos, atribuídos por Aristóteles, seriam mais próprios a Literatura. Desta maneira, a história era composta de narrativas que muitas vezes serviam como transmissoras de exemplaridade, papel esse que foi engrandecido ao longo do período medieval no qual, segundo uma concepção teológica cristã, a verdade era imanente ao texto escrito não existindo qualquer marca distintiva entre história e ficção (COSTA LIMA, 1986:23). No entanto, com o advento do racionalismo no período moderno e a valorização da individualidade e da subjetividade trazidas por este, buscou-se solidificar a linha divisória entre história e ficção. Neste sentido, a Literatura –então vista como mais uma entre as artesfoi progressivamente desqualificada como modo de conhecimento da realidade sendo alojada no terreno do fantástico já que os livros ficcionais eram entendidos como perturbadores e geravam desajustes tanto à ordem política quanto ao cotidiano individual uma vez que poderiam gerar confusão na percepção do que era real e do que não era. Em contrapartida, a história passou a habitar o terreno do verdadeiro. Assim, solidificava-se a separação entre ficção e verdade; arte e ciência. Separação que a partir do século XIX vai ser reivindicada a todo custo pelos historiadores que visavam institucionalizar seu campo de estudo consolidando-o como um saber científico dotado de método e regido pelo primado do documento. A ficção passou a ser encarada como um obstáculo ao entendimento da realidade. Então, ao bom historiador caberia apagar de seu discurso vestígios, por mais ínfimos que fossem, do fictício (WHITE, 2001: 141). O século XX vai ser o século das transformações institucionais e intelectuais na história o que resultou em uma tensão historiográfica e numa profunda crise epistemológica que fez com que a historiografia se abrisse a outras disciplinas acadêmicas (antropologia, economia, psicologia, entre outras) na busca de novas abordagens para o passado. Neste processo de diálogo é que o historiador foi conduzido para a crítica literária, que dentre outras contribuições, o tem ensinado a reconhecer o papel ativo da linguagem, do imaginário e das estruturas narrativas e de pensamento na criação e descrição da realidade histórica (HUNT, 2001: 144-145). Nesse sentido, a narrativa histórica e a narrativa ficcional passaram a ter fronteiras mais fluídas. Ambas são discursos, a História é o discurso dos acontecimentos humanos em 3 sociedade, já a Literatura é o discurso que representa os fatos históricos a partir da imaginação criadora do autor. Sobre isso Hutcheon salienta “que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos ensinou que a ficção e a história são discursos [...] pelos quais damos sentido ao passado” (HUTCHEON, 1991:122). A compreensão de que a Literatura é, para além de um fenômeno estético, uma manifestação cultural, portanto uma forma de registro do movimento do homem na sua historicidade permitiu, não sem traumas, que o historiador a assumisse como fonte e espaço de pesquisa. Sendo assim, há uma crescente confluência entre História e Literatura que tem permitido “pensar a história como literatura e a literatura como história” (PESAVENTO, 1999: 86). A forma historiográfica e a forma ficcional “são apenas formas de apropriação e construção da realidade, modalidades de discurso que devem ser situadas no mundo real e ambas tem por objeto o homem” (CUNHA, 2007: 40). Assim, este texto é uma tentativa de corroborar para este debate a partir de reflexões sobre a obra da escritora Heloneida Studart uma vez que alguns dos seus principais livros são ficções históricas com traços autobiográficos1. Seus textos partem de eventos históricos (ainda que estes não estejam explicitamente mencionados) para reescrevê-los em forma de romance. Porém, seus romances não são apenas lindas e fictícias histórias de amor, é um tipo específico: é um romance histórico, isto é, é um tipo de romance no qual história e ficção se misturam permitindo reconstruir ficticiamente acontecimentos, costumes e personagens. Seus escritos correspondem aquelas experiências cujo objetivo explícito é promover uma apropriação dos fatos históricos definidores de uma fase da História de determinada sociedade. O certo é que o romance histórico talvez seja a maior prova de entrelaçamento entre História e Literatura, entre realidade e ficção. 2- A autora Maria Heloneida Studart nasceu em Fortaleza (CE) em 9 de abril de 1925. Era filha de Vicente Soares e de Edite Studart. Era neta do barão de Studart2 descendendo assim, pelo lado materno de um ramo da aristocracia inglesa e pelo lado paterno, os Bezerra de Menezes, 1 Cabe ressaltar aqui que embora os livros de Heloneida, sobretudo aqueles pertencentes a “Trilogia da tortura”, possuam personagens fictícios a história de vida –sobretudo das protagonistas- assemelham-se a biografia da autora. No entanto, este ponto ainda está em fase de elaboração de forma que o que apresento é uma análise parcial a partir da qual tenho conduzido a pesquisa. 2 Guilherme Studart (1856-1938) médico, jornalista historiador e geógrafo do Ceará que fundou o Instituto Histórico do Ceará (1887), A Academia Cearense de Letra (1894) e o Círculo dos Operários Católicos de Fortaleza (1915). 4 do que ela mesma definia como intelectuais subversivos (FERREIRA; ROCHA; FREIRE, 2001: 56). Recebeu as primeiras letras no colégio Imaculada Conceição das irmãs vicentinas em sua cidade natal. Foi ainda na escola que começou a escrever. Foi com o texto A menina que fugiu do frio que passou a sonhar com a possibilidade de ser uma escritora. Seu primeiro artigo foi publicado em 1941 no jornal O Nordeste no qual passou, então, a escrever crônicas. Dois anos depois nascia seu primeiro livro A primeira pedra o qual só seria publicado em 1952 quando a autora já se encontrava no Rio de Janeiro (RJ). Esta obra teve por madrinha literária Rachel de Queiroz quem lhe dedicou uma crônica intitulada Uma romancista, publicada na revista O Cruzeiro, em 13 de fevereiro de 1954. Queiroz comenta que a “filha das praias do Ceará”, pertencente a uma nova geração de escritores, mesmo usando uma forma romanesca clássica (amor, sofrimento, morte), é original em conduzir a história, um “livro de um escritor de verdade” (QUEIROZ, 1954). No ano seguinte publicou Naipes. O livro seguinte, publicado em 1955, foi um romance intitulado Diz-me teu nome que logo se tornou um best-seller além de ter sido premiado duplamente: Prêmio Orlando Dantas/Diário de Notícias e o Prêmio Júlia Lopes de Almeida da Academia Brasileira de Letras (FERREIRA; ROCHA; FREIRE, 2001: 57). Já em 1956 passou a trabalhar no jornal Correio da Manhã, e de sua intensa atuação na imprensa acabou se envolvendo com as lutas populares. Seguem-se quase dez anos de silêncio literário durante os quais a escritora se entregou a uma intensa militância política. Em 1966 foi eleita presidente do Sindicato das Entidades Culturais (Senambra). Em março deste mesmo ano foi presa por fazer opsição ao regime militar brasileiro. Do cárcere surgiu à inspiração para os roteiros Quero meu filho e Não roubarás os quais seriam, posteriormente, gravados e exibidos pela emissora de televisão rede Globo. Pertence também a esta sua fase os romances: A Culpa (1963), Deus não paga em dólar (1968) e a Deusa do rádio e outros deuses (1970). A partir da década de 1970, já trabalhando na revista Manchete, foi enviada para fazer a cobertura do Congresso Internacional da Mulher, no México. Lá, juntamente com Rosie Marie Muraro, Branca Moreira Alves e Moema Toscano, percebeu que as queixas em relação ao machismo são as mesmas e as amigas ao retornarem fundam a primeira entidade feminista no Brasil: o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira (CMB). Desta última experiência resultaram três ensaios que se difundiram como uma espécie de bandeira do movimento feminista brasileiro: Mulher, brinquedo de Homem? (1969); Mulher objeto de cama e mesa (1975) e Mulher, a quem pertence seu corpo?(1989). Ainda nos anos de 1970 5 escreveu China, o nordeste que deu certo (1977) e em parceria com Wilson Cunha o livro A primeira vez à brasileira (1977). Além, da peça teatral Homem não entra que representou um marco para o teatro brasileiro por defender bandeiras relativas ao avanço das discussões sobre o lugar da mulher na sociedade brasileira (CUNHA, 2008:273-74). Em 1978, às vésperas da anistia, Heloneida foi eleita deputada estadual pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) com aproximadamente sessenta mil votos. Na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) integrou as comissões especiais que trataram sobre os direitos de reprodução da mulher. Datam deste momento também três romances históricos os quais a própria autora intitulou de “Trilogia da Tortura” e que contavam, não de forma direta, episódios do período do Regime Militar Brasileiro. São eles: O pardal é um pássaro azul (1975); O estandarte da agonia (1981) e O torturador em Romaria (1986). Em 1982, reelegeu-se pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Neste partido permaneceu até 1988, ano em que participou da fundação do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). No ano seguinte, entrou no Partido dos Trabalhadores (PT) sendo neste um dos principais nomes na luta pela inclusão de direitos trabalhistas específicos para as mulheres. Entre as leis de sua autoria se destacam a de n 2.648/1996 que garante o exame de paternidade para as mulheres de baixa renda e a 4.103/2003 que obriga as unidades públicas e conveniadas de saúde a realizar a cirurgia reconstrutiva de mama em mulheres que sofreram mutilações decorrentes de câncer (COELHO, 2002:257). Em meio ao seu trabalho legislativo na Alerj implantou o projeto cultural Libertas quae sera tamem direcionado para os alunos das escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro e que consistia na apresentação de três peças teatrais sobre as lutas de libertação do povo brasileiro. As peças eram: Tiradentes, o Zé de Vila Rica; Bárbara do Crato e Frei Caneca. Os atores eram alunos das escolas públicas do Morro da Babilônia e do Chapéu Mangueira (STUDART, 2005). Seus últimos romances foram Selo das Despedidas e Jesus de Jaçanã ambos com data de publicação do ano de 2000. Em 2006 escreveu a biografia Luiz, o santo ateu a sua última obra literária. Heloneida faleceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ) em 3 de dezembro de 2007 vítima de parada cardíaca uma semana após ser submetida a uma cirurgia no coração. Conhecer sua biografia é importante para o entendimento de suas obras que para além da denúncia social são recheadas de referências a sua história de vida podendo assim, serem alocadas como obras autobiográficas. 6 3- O Pardal é um pássaro azul Tomarei como objeto privilegiado de análise desta comunicação o romance histórico O pardal é um pássaro azul publicado em 1975. Este livro é estruturado em torno de um conceito que marcou ao longo dos anos a história humana: o autoritarismo aqui compreendido como um comportamento no qual uma pessoa ou instituição excedem o exercício da autoridade abusando do poder, que muita das vezes, não lhe foi instituído pela maioria. Na presente obra o autoritarismo se manifesta tanto na esfera privada quanto na pública. Porém a fronteira entre estes dois espaços está borrada dando a impressão de que estão em continuidade. Como se o público fosse apenas uma extensão do privado no objetivo de enredar à narradora visando com isso exauri-la, retirando-lhe a capacidade de se opor a esta forma de poder para assim, subjugá-la e a tornar parte daquela realidade. Desta maneira, a trama do livro se desenrola a partir de três personagens que representam o autoritarismo e a luta pelo fim da opressão que este traz consigo. Maria do Socorro dos Carvalhais Medeiros – a “Vó” Menininha é para Heloneida Studart a alegoria do autoritarismo. Opondo-se a ela está sua neta e herdeira Marina (a narradora) que por intermédio de seu primo e grande amor João vai se desvencilhando do controle e das arbitrariedades de sua avó. Com isso, partindo de uma temática histórica, a autora constrói sua narrativa romântica. Embora haja críticas a conjuntura sócio-política na qual a escritora está imersa, como todo bom romance o livro apresenta os ingredientes próprios a este tipo de escrita: os protagonistas que vivem uma amor aparentemente impossível (João é primo de Marina, está preso e é homossexual), a antagonista (Menininha que incorpora o autoritarismo político do regime militar brasileiro que separou famílias e casais), o sofrimento de amor e a própria temática da morte compreendida na obra não como o fim, mas como o mecanismo de libertação capaz de gerar a mudança de tudo e levar a tomada de consciência. A autora deixa claro desde o primeiro capítulo o papel que “Vó” Menininha, a matriarca da família Carvalhais Medeiros, tem a desempenhar na narrativa. A matriarca, que assume o comando do clã após a morte do pai e do marido, cercea a liberdade de todos a sua volta, inclusive do governador conhecido da família o qual deseja homenagear seu falecido companheiro político o pai de Menininha com o nome de uma rua e que vê sua vontade sempre alterada pela filha do homenageado que não admitia que a rua que homenageasse seu pai estivesse perto de vizinhança sediciosa ou de beco com nome de padre rebelado. Tal homenagem só foi aceita quanto às ruas próximas eram de membros da família real 7 portuguesa (STUDART, 1975: 5 E 12). Menininha através de sua manipulação quer assegurar o status quo de sua família evitando a qualquer custo que a decadência da “fidalguia” da família se concretize para isso, ela não exita em sacrificar a felicidade dos filhos e netos. O mais importante para a matriarca do que o ter é o ser, isto é, fazer parte e manter a “ordem” vigente. O autoritarismo de Menininha vai aos poucos transparecendo na narrativa através da descrição de sua neta Marina que uma a uma vai apresentando as histórias do controle que a avó aplicava na vida de seus tios e mãe: Lucas, Guiomar, Nini e Luciana. O primeiro, a quem deveria competir à chefia da família após a morte do pai, é visto como uma aberração de acordo com a narradora para sua avó, já que por sofrer de terrores noturnos, doença desconhecida pela medicina psiquiátrica do início do século passado, foi tratado como um caso de loucura gerado por uma possessão demoníaca e para não envergonhar a família com sua fraqueza frente as vicissitudes do mundo, foi trancado e esquecido no sótão do sobrado. Até a sua morte, teve apenas por contato com o mundo exterior as visitas de Meméia (a empregada da família) que lhe levava comida. A segunda a sofrer as “correções” de Menininha foi Guiomar a quem a mãe trancafiou no Asilo do Bom Pastor por ter mantido relações sexuais antes do casamento e ter engravidado de João. Luciana, mãe da narradora, é deserdada porque ousou escolher o marido e mais, porque este era funcionário público e não membro da fidalguia. Sem dinheiro é obrigada após a morte do marido a voltar para a casa da mãe de onde é proibida de sair fosse até para ir a um médico e passa a ser exposta a todas as humilhações possíveis. A última a sofrer com os desmandos de Menininha é Nini, estuprada enlouquece, mas mesmo assim não deixa de ter o mesmo fim trágico de sua irmã Guiomar, isto é, foi trancafiada no Asilo do Bom Pastor por não saber tomar conta do bem mais precioso para uma Carvalhais Medeiros: a virgindade. Aqui cabe uma observação: a autora faz uma crítica ao machismo que defini como papel para a mulher ser boa esposa e boa mãe de família e que tende a não ouvir o feminino mesmo quando este é vítima de agressões. Esta é uma bandeira que a intelectual defendia inclusive em outros romances3. Para a autora fosse onde fosse “todas as mulheres sentiam bem a dificuldade da relação com o homem e a opressão dessa relação” (NECKEL, 2008:268). Assim, a autora evidencia sua bandeira em favor do feminino ao apresentar todo o desprezo de Marina por uma frase dita por sua avó “nem mulher, nem negro, nem pobre tem 3 Ver os títulos: Mulher, objeto de cama e mesa e Mulher objeto do homem. 8 querer” (STUDART, 1975: 13). Esta frase, apresentada no segundo capítulo é o ponto que marcar o início da oposição de Marina e a Menininha. João, filho bastardo de Guiomar, também não escapa ao autoritarismo da matriarca. Foi mandado muito pequeno para o colégio interno. Logo que terminou seus estudos retornou ao convívio familiar passando militar pelos mais humildes, indo visitar os bairros pobres de sua cidade, sempre acompanhado de sua prima Marina. Ele é o porta voz da autora para outro discurso caro a suas obras: o da igualdade de direitos e oportunidades. Este discurso transparece nas seguintes falas de João: “Olha isso aí Calunguinha, é a penúria” (STUDART, 1975:14) ou “(...) os pobres pagam por tudo. Não se compra uma jóia, um carro último tipo, não se adquire passagem para a Europa, que eles não recebam a conta”. Esta militância desagrada Menininha que em função das circunstâncias de seu nascimento já não o vê com bons olhos. Por escrever em um muro que o pardal era um pássaro azul João é preso. Este fato o torna aos olhos de Menininha (a personificação do sistema político brasileiro da época deste livro) a confirmação de que o filho de um erro só poderia ser um erro. Assim, ele é esquecido pela matriarca na cadeia e seu nome é proibido de ser pronunciado no sobrado. Seu ponto de contato com os Carvalhais Medeiros é sua prima e enamorada Marina. Heloneida vai através da narração de Marina dos atos de sua avó tecendo críticas a sociedade de seu tempo no qual não ser igual aos demais, não seguir a ordem vigente, discordar do que era ordenado resultava na perda da liberdade. O autoritarismo criticado pela autora vai se materializando ao longo da narrativa à medida que a exclusividade e a impulsividade de exercício de poder de Menininha vão gerando arbitrariedades. Menininha quer o controle do pensamento, a censura das opiniões e o cerceamento das liberdades individuais chegando até ao ponto de ignorar um crime (estupro) em prol de suas regras para a automanutenção do poder. O conflito entre liberdade e opressão, autonomia e servilismo atravessam todo o texto de Heloneida. Em O pardal é um pássaro azul este enfrentamento entre as forças da opressão e aquelas que representam a busca, a luta e o sonho pela liberdade aparecem simbolizadas pela visão do pardal azul primeiro por João e depois por Marina. O pardal azul simboliza a tomada de consciência dos personagens da situação insólita em que vivem os Carvalhais Medeiros (como representantes de um grupo social). Presos na loucura de sua matriarca em manter a pompa e no medo do novo os membros ignoram o que ocorre na sociedade na qual estão imersos: um jovem é preso por querer a liberdade, aranhas caranguejeiras são postas em celas de presos os quais aparecem misteriosamente com hematomas. A autora ironiza o contexto político brasileiro e a postura de alguns setores da 9 sociedade civil frente aos desmandos do regime militar com a seguinte frase de João “todos tem medo. Se você ler nos jornais as notícias dos óbitos, com aquela tarja ao derredor, fique sabendo que a maioria morreu de medo” (STUDART, 1975: 109). Este quadro de medo e desesperança começa a ser rompido quando a partir do capítulo dezenove Vó Menininha percebe que seu nome já não significa nada ao não conseguir impedir que homens da polícia secreta invadam o sobrado em busca de um foragido paraguaio escondido por Marina. A matriarca sofre derrames sucessivos até ficar em estado vegetativo. A partir daí, há uma reviravolta nos personagens que passam a se sentir mais livres já que Marina, a nova herdeira dos Carvalhais Medeiros tem outra concepção de mundo. Heloneida com esta passagem evidencia que apesar da tirania e da covardia existente no autoritarismo representado no livro por Menininha, ele um dia enfraquece e passa. E esta concepção fica explicita na obra analisada quando João fala para Marina a seguinte frase: “Como você vê, todos os pesadelos acabam por morrer, Calunguinha” (STUDART, 1975:139) No entanto o que não pode passar para a autora é a vontade de fazer diferente e de continuar a lutar contra a opressão. No último capítulo quando após a morte de seu amado Marina começa a esmorecer e a achar que seria mais fácil aceitar a ordem vigente e ser o que a sociedade espera que ela seja, vem a sua lembrança uma canção de sua babá que pedia a São Benedito para abrir os caminhos frente aos perigos e em meio a devaneios ela enxerga o pardal azul pelo qual seu amado viveu e morreu: a fé na liberdade única arma eficaz frente ao autoritarismo. Considerações finais O pardal é um pássaro azul pertence à mesma consciência histórica, isto é, tem a mesma compreensão do que seja o histórico, do que seja a temporalidade e sua relação com as empiricidades de que muitas obras historiográficas de seu tempo. Apesar de que como uma obra literária obedeça a regras e tenha procedimentos que lhes são próprios como à invenção dos personagens e dos eventos sem o apoio em documentação. Ele serve para se discutir a relação entre histórico e a linguagem, entre a realidade e a ficção e entre a narrativa e seu referente. Nela a narrativa é o combustível para a transformação do mundo. Com a palavra o homem cria e destrói memórias, temporalidades e vidas. A obra de Heloneida não pretende partir das evidências e dos sinais deixados pelo passado para com isso se aproximar de como este passado foi. Para a autora a reinvenção 10 deste passado na narrativa é muito mais importante. Seu papel é recriar e não copiar ou restaurar o que passou. De forma que a “verdade” narrada em seu texto não é única. Seus protagonistas, Marina e João, adquirem uma consciência histórica ao longo da narrativa. No entanto, não é uma consciência expurgada de ideologias, ou como se costuma dizer, de irracionalidades. Ambos embora tenham uma visão crítica do mundo são pessoas de seu tempo, dirigidas pelas paixões, sonhos, desejos e emoções as quais são compartilhadas com os de sua classe e de sua sociedade. O pardal é um pássaro azul é uma obra de constante reflexão sobre o papel político da palavra, sobre a relação entre poder e discurso. É evidente a intenção da autora de fazer de seu discurso literário uma atividade crítica, política, militante visando com isso, mudanças nas formas de pensar, de ver e dizer o mundo contribuindo desta maneira com a criação de um mundo novo. A narrativa deste livro nasce da consciência que tem a autora da importância do discurso e da centralidade das palavras na luta contra a opressão, a exploração, a miséria, a violência e a alienação. Para Heloneida, a luta sócio-política é uma luta ao mesmo tempo contra a coisificação do humano e contra a conceitualização e classificação do mundo. Assim, mais importante que a distinção entre história e literatura é aquilo que as aproxima, isto é, o fato de ambas serem criações narrativas do mundo, de uma realidade. De serem versões do real que se materializam à medida que constituem subjetividades. Desta maneira, a forma historiográfica e a forma ficcional são apenas duas formas de apropriação e de construção do real. São modalidades de discurso que tem por objeto central o homem, com suas práticas individuais e/ou coletivas e que servem, para no caso de Heloneida, criticar o contexto político e social de seu país . BIBLIOGRAFIA COELHO, Nelly Novaes. Dicionário Crítico de escritoras brasileiras: 1711-2001. São Paulo: Escrituras Editora, 2002. COSTA LIMA, Luiz. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. CUNHA, Cecília. Uma escritora feminista: fragmento de uma vida. In: Estudos Feministas, Florianópolis, v.16, n.1, 2008. 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