Contos no Mediterráneo 2012 Categoria B. Accèsit. Autora: Ruth Pérez Roble Seres livrepensantes Um dia acordar com asas é bonito ou assustador? Um dia acordarmos outro animal Ou será que as assas faziam já parte do animal que éramos? E será que saberemos viver em liberdade? Numa casa Dois homens e uma mulher olhavam para um relógio. A mulher, grávida, tentava descobrir o tempo que faltava para o seu filho nascer. O homem mais baixo era o mais gordo dos quatro, apesar de não saber que a mulher estava grávida. Ele percebia que horas eram e sabia que estava apenas a perder o seu tempo a olhar para o relógio. O outro homem foise embora sem saber as horas. Mais tarde descobriu que ia ser pai. Numa cidade As sensações de angústia foramse amontoando até chegar a madrugada, iamse transformando na escuridão e iam adotando formas diferentes como pequenos vidros dentro dum caleidoscópio. Eram sempre parecidas com alguma coisa, por isso pareciam tão reais, mas nunca chegavam a ser identificáveis. Ainda de madrugada, sai de casa e entra no autocarro, procura a senha, as moedas caemlhe do bolso, agachase, procura um lugar no autocarro para sentarse e esses segundos de realidade diluem as sensações e deixamna respirar de novo. Numa aldeia Procurou e procurou nas gavetas e nas estantes, Virou a arrecadação de pernas para o ar... Só encontrou as instruções da máquina de lavar. “Mas não era isto o que eu queria!” A Dona Martírio desesperada começou a ficar, “Será que vinham assim? Vinham assim sem mais?” Há tantos anos que os tenho que não me consigo lembrar... “E agora? ... Sem o manual ficarei sem saber se os polegares opositores consigo utilizar!” 1 Contos no Mediterráneo 2012 Categoria B. Accèsit. Autora: Ruth Pérez Roble Uma pessoa Porque é que uma pessoa poderia sentirse preenchida de vazio tendo com quem dormir, tendo comida, e flores, tendo mulheres bonitas, e fotos e coleções de cartas de pessoas que lhe dizem o quão especial foi e é. Quem não se sentiria preenchido de vazio se tão só comesse a embalagem? Uma flor que perdeu o cheiro é mais parecida com uma embalagem de flor. Quem não se sentiria preenchido de vazio se antes de amar precisasse esvaziar a essência daquilo que poderia vir a amar. Porque alguém teve de esvaziarse de sentimentos e agora faz de conta que dorme acompanhada, faz de conta que tem flores, Porque alguém que tem tudo estaria prestes a sentir o vazio. Por que alguém está prestes a deixar de perceber porque se sente vazio. Porque alguém estaria prestes a deixar de pensar? Num bar num dia de tempestade Encontramse no bar “El Gaviota”, depois de um dia de tempestade. Conheciamse há anos, mas duma forma diferente àquela em que se descobriram naquela noite. Na verdade ainda não se conhecem. Há sombras, há receio, há demasiadas coisas que pesam. Mas nessa noite agarraramse o um ao outro como quem se agarra a uma tábua de salvação. Na verdade foi ele, enquanto falava dele, que fez com que ela o quisesse abraçar e foram também os olhos dele querendo explicar (querendo explicar tantas coisas que ela talvez nunca saiba...). Isso fez com que ela ficasse. Beijaramse. Ele disse que precisava de lhe dizer uma coisa, ela preferiu que ele não dissesse nada. No dia seguinte ela voltou para Lisboa. Ele ficou em Barcelona enquanto decidia se queria ficar. Reencontraramse em Barcelona umas semanas depois, beberam uísque e nessa noite dormiram juntos. Nos dois dias seguintes não se viram. Ele já tinha decidido deixar Barcelona e tinham comprado uma viagem para Madrid. Em Madrid ela iria apanhar um voo para Lisboa e ele seguiria de autocarro para o norte de Portugal. Na noite em que fez a festa de despedida ele telefonoulhe para ela não aparecer. Mesmo assim no dia seguinte fizeram uma grande viagem juntos, na qual ele lhe falou acerca duma parte da história dele, e duma dor que o fez esquecer algumas partes de quem foi. Abraçoua, quase que a embalou nos braços e acariciava a cara dela enquanto lhe pedia com os olhos para ela não dizer nada. Passados alguns dias, já em Lisboa, recebeu um telefonema. 2 Contos no Mediterráneo 2012 Categoria B. Accèsit. Autora: Ruth Pérez Roble Naquela madrugada em que telefonaste e perguntaste se eu “queria ficar contigo apesar daquilo que tu implicavas” e a pergunta (acho que até para ti) soava tão longínqua quanto tu, desteme a oportunidade de pensar que sim, e gostei muito de imaginar que sim, que gostava. E só tive coragem de pensar que sim porque no fundo dessa pergunta ouvi (sem tu dizeres) a tua reposta. A reposta era que na verdade não importava nada a minha resposta porque tu nunca irias deixar isso acontecer. Ela teve então a certeza de que amar era tãosó perder o medo de fazer aquilo que faríamos se não tivéssemos medo. Perder o medo de perder o controlo, de perder o rumo, a até de perder aquilo que amamos. Em Lisboa ela sonhou com o mar Foi o início. Foi num instante, eu estava dentro e o mar empurravame com força para fora. E tudo aquilo que a corrente trazia, as pedras, as conchas, ... arranhavame as pernas e, quando tentava sair, as pedras do fundo magoavamme os pés e tu estavas ali, um pouco longe ainda, mas vinhas, na minha direção, aproximandote enquanto me olhavas com curiosidade e, enquanto te aproximavas, sorrias. Eu olho para ti e estendo o braço na tua direção enquanto o mar me faz rebolar, olho para ti entre divertida e expectante e tu, medindo o risco, já à beira mar, ficas de joelhos e estendes o braço na minha direção. Nenhum dos dois sabe de correntes. Talvez queiras tirarme de lá de forma pacífica ou queiras ser também arrastado pela corrente. Eu agarrome ao teu braço com o medo de te arrastar, mas também com vontade de arrastarte porque o mar agitado contigo parece ser bom. E quando te agarro a mão, surpreendentemente, a corrente afastanos da orilha, primeiro um pouco, depois mais longe e eu penso que vai ser difícil sair. Por vezes as ondas fazemnos engolir água e depois olhamonos e rimos porque é também emocionante ou simplesmente porque estar dentro do mar é melhor do que estar na orilha. Outras vezes as ondas são maiores, e o mar, a corrente, traz coisas que roçam as nossas pernas batendo contra elas, coisas que eu não sei o que são, mas parece que tu sim que o sabes, o teu olhar diz que estás a reconhecer essas coisas embora não estivesses à espera de sentilas, algumas doem e tu ficas muito sério. Aquilo se está a prolongar mais do que aquilo que tu queres. Agora já estás farto de estar aí, de tudo aquilo inesperado que o mar traz e daquilo que te deixa em terra e perguntasme porque procurei a tua mão e lembraste que poderias estar lá fora e nessa altura passas a falar de sereias, da terra e do jogo de futebol... o mar agitado comigo já não te parece tão boa combinação. A mim o mar ainda me arrasta... consigo ouvirte mas não consigo fazer nada...”sermos amantes”...”fazer de conta que não existes”...engulo água. Num momento há qualquer coisa que nos inunda, ultrapassanos, arrastanos, volteianos. Por vezes não conseguimos ficar no lugar que nos têm reservado. Também não podemos sair das vidas dos outros quando os outros querem, nem sequer quando nos dizem que não nos querem. Por vezes a vida não nos deixa ser assim tão civilizados e a corrente arrasta também a aqueles que nos dão a mão. 3 Contos no Mediterráneo 2012 Categoria B. Accèsit. Autora: Ruth Pérez Roble Soa estranho pedir desculpa em noites de tormenta, assim como soa estranho impedirmos a vida de entrar. Mas agora já consegui ouvir aquilo que estavas a dizer. No meio da tormenta tinha entupidos os ouvidos, também os ouvidos do coração. Mesmo estando ao pé de ti, estava muito longe para conseguir ouvirte. Já consegui ouvir, mas para além de ouvir precisei de ver e, naquela tarde, quis a tua mão. Aquilo que nunca quereria é ter de me esconder. Se fossem incompatíveis... Já consegui ouvir Por vezes a própria tormenta devolvenos à orilha 4