VERDADE, SABER E PODER: A SOCIEDADE DISCIPLINAR Mudanç̧as sociais ocorridas no séc. XVIII e XIX levaram a alterações do jogo do poder, que foi sendo gradativamente substituído pelo que Foucault denomina de sociedades disciplinares, as quais atingiram o seu apogeu no séc. XX. A passagem de uma forma de dominação̧ a outra ocorreu quando a economia de poder percebeu ser mais eficaz e rentável vigiar do que punir. Duas imagens, portanto da disciplina. Num extremo, a disciplina - bloco, a instituição fechada, estabelecida à margem, e toda voltada para funcões negativas: fazer parar o mal, romper as comunicacões, suspender o tempo. No outro extremo, com o panoptismo, temos a disciplina - mecanismos: um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder tornando-o mais rápido, mais leve, mais eficaz, um desenho das coerções sutis para uma sociedade que está por vir. O movimento que vai de um projeto ao outro, de um esquema da disciplina de excecão ao de uma vigilância generalizada, repousa sobre uma transformacão histórica: a extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII, sua multiplicacão através de todo o corpo social, a formacão do que se poderia chamar grosso modo a sociedade disciplinar. Foucault, (1997) Coube as sociedades disciplinares organizar os grandes meios de confinamento, os quais tinham como objetivo concentrar e compor, no tempo e no espaço, uma forma de produção cujo efeito deveria ser superior à soma das partes. O indivíduo não cessava de passar de um espaço fechado ao outro: família, escola, fábrica, universidade e eventualmente prisão ou hospital. A existê̂ncia de mecanismos disciplinares é anterior ao período que Foucault denominou como sociedade disciplinar, mas antes existiam de forma isolada, fragmentada. O padrão de visibilidade das sociedades disciplinares projetou-se no interior dos prédios das instituições, que passaram a ser construídos para permitir o controle interno. Foucault afirma que as instituições não tê̂m essê̂ncia ou inferioridade, nem são fontes de poder. São mecanismos operatórios práticos que fixam relações. Têm necessariamente dois pólos: aparelhos e regras. O pólo negativo compreende a tática do poder em sujeitar e reprimir. O pólo positivo consiste em produzir, mobilizar tipos de forças que constituem o poder, provocando um corpo - a - corpo. Quanto mais poder conseguir produzir, mais deverá sujeitar e administrar. Nesse confronto retira-se um efeito útil, uma notável solução, diria Foucault: o aparecimento da disciplina. A disciplina dissocia o poder desse corpo - a - corpo e reduz o perigo da inversão de um equívoco dessa polarização. Nesse estudo genealógico de interrogar as formações históricas, Foucault descobriu uma engenharia que atravessa quase meio século, praticamente despercebida, enquanto estratégias ou tática de poder. Aparece, contudo, como uma mecânica de observação individual, classificatória e modificadora do comportamento, uma arquitetura formulada para o espaço da prisão, ou para outras administrações, tais como: a fábrica, a escola, o manicômio. Essa maquinaria era o Panóptico. O Panóptico é a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é, no fundo, a sociedade que atualmente conhecemos. Utopia que efetivamente se realizou. Este tipo de poder pode perfeitamente receber o nome de panoptismo. Vivemos numa sociedade onde reina o panoptismo. Com o Panóptico vai-se produzir algo totalmente diferente. Não há mais inquérito, e sim vigilâ̂ncia e exame. O Panóptico teve uma tríplice função a vigilância, o controle e a correção. 1 Panóptico era um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio com uma torre no centro. O anel dividia-se em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior. Em cada uma dessas pequenas celas, havia, segundo o objetivo da instituição, uma criança aprendendo a escrever, um operário a trabalhar, um prisioneiro a ser corrigido, um louco tentando corrigir a sua loucura, etc. Na torre havia um vigilante. Como cada cela dava ao mesmo tempo para o interior e para o exterior, o olhar do vigilante podia atravessar toda a cela; não havia nenhum ponto de sombra e, por conseguinte, tudo o que o indivíduo fazia estava exposto ao olhar de um vigilante que observava através de persianas, de postigos semicerrados de modo a poder ver tudo sem que ninguém ao contrário pudesse vê-lo. Dentre os dispositivos de vigilância do início do século, podemos destacar o Panóptico, de Jeremy Bentham, um mecanismo arquitetural, utilizado para o domínio da distribuição de corpos em diversificadas superfícies (prisões, manicômios, escolas, fábricas). O panoptismo corresponde à observação total, é a tomada integral por parte do poder disciplinador da vida de um indivíduo. Ele é vigiado durante todo o tempo, sem que veja o seu observador, nem que saiba em que momento está a ser vigiado. Aí está a finalidade do Panóptico. Dissociando-se o par ver/ser visto, automatiza-se e desinvidualiza-se o poder. O Panóptico organiza espaços que permitem ver, sem ser vistos, portanto, uma garantia de ordem. Assim, a vigilância torna-se permanente nos seus efeitos, mesmo que não fosse na sua ação. Mais importante do que vigiar o prisioneiro o tempo inteiro, era que o mesmo se soubesse vigiado. Logo, não era finalidade do Panóptico fazer com que as pessoas fossem punidas, mas que nem tivessem a oportunidade para cometer o mal, pois sentiriam-se mergulhadas, imersas num campo de visibilidade. Em suma, o Panóptico desfaz a necessidade de combater a violência física com outra violência física, combatendo-a antes, com mecanismos de ordem psicológica. A essência do Panóptico reside na centralidade da situação de inspeção, ou na construção, sem duvida ficcional, de uma espécie de "inspetor central", onipotente, onipresente e, principalmente, onividente. Todo o Panóptico, na verdade, é estruturado como uma ficção. É precisamente a aparente onipresença do inspetor que sustenta a perfeita disciplina no Panóptico, controlando os movimentos de transgressão entre os internos. Entretanto, como a onipresença não pode ser um atributo humano, resta forjá-la, simulá-la, quer por rondas aleatórias, quer pela arquitetura do lugar, que permite a cada um dentro das celas ser facilmente visto, ao mesmo tempo em que dificilmente vê quem o vê. Em última análise, o inspetor perfeito, o inspetor onipresente, é aquele que nunca aparece - mas que pode aparecer a qualquer instante. O inspetor perfeito é, enfim, uma voz, um olho, um ofício carimbado, uma sombra indistinta no fundo do corredor. Neste tipo de instituições, nós somos vistos, ou pensamos que somos vistos, sem vermos aquele que vê, nós escutamos uma voz, sem vermos o dono da voz. O Panóptico deve ser governado por um olhar e por uma voz desconectados do seu portador. O inspetor torna-se, então, uma espécie de fantasma. Em última instância, é uma entidade de ficção - ele não existe. Justamente por isto, ele pode provocar um medo superior ao de um guarda real, por mais cruel que esse guarda fosse. FOUCAULT E GEORGE ORWELL A utopia panóptica - em si mesma uma obra de ficção - gerou outras tantas obras de ficção. Muitos livros tematizaram o Panóptico, em geral para repudiá-lo, ou exorcizá-lo. Dentre eles, o romance mais conhecido é 1984, de George Orwell, em que a figura onipresente e onividente (entretanto inexistente) do inspetor geral toma a forma do Big Brother, enfim, de um grande olho que pode ver todos os recantos. Orwell escreveu-o em 1948, invertendo os dois últimos algarismos para situar a sua utopia negativa. O esquema Panóptico pode ser utilizado sempre que se deseja impor uma tarefa ou um comportamento a uma multiplicidade de indivíduos. O Panóptico (...) permite aperfeiçoar o exercício do poder. E isto de várias, maneiras: porque pode reduzir o número dos que o exercem, ao mesmo tempo em que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido (...) Sua força é nunca intervir, é se exercer espontaneamente e sem ruído (...) Vigiar todas as dependências onde se quer manter o domínio e o controle. Mesmo quando não há realmente quem, assista do outro lado, o controle é exercido. O importante é (...) que as pessoas se encontrem presas numa situação e poder de que elas mesmas são as portadoras (...) o essencial é que elas se saibam vigiadas. Focault, (1997) As instituições panópticas são leves e fáceis de manipular, utilizam princípios simples de correção e adestramento. É uma espécie de campo experimental de poder, assegura a sua economia, a sua eficácia e o seu funcionamento. A base desta arquitetura institucional é o exame contínuo (a prova, o teste), para controlar "à nascença" as causas dos desvios. O sujeito torna-se culpado (ou "burro", ou louco, ou doente) até prova (exame) em contrário. Em todos os dispositivos de disciplina, o exame, então, tem de ser altamente ritualizado. O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normatiza. É um controle normatizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir e que estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade (...) A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível. Focault, (1997) Saber Poder A questão do ‘poder’ é amplamente discutida pelo filósofo, mas não no seu sentido tradicional, inserido na esfera estatal ou institucional, o que tornaria a concepção marxista de conquista do poder uma mera utopia. Segundo ele, este conceito está entranhado em todas as instâncias da vida e em cada pessoa, ninguém está a salvo dele. Assim, Michel considera o poder como algo não só repressor, mas também criador de verdades e de saberes, e onipresente no sujeito. Ele estuda o que de mais íntimo existe em cada cultura ou estrutura, investigando a loucura, o ponto de vista da Medicina, em “Nascimento da Clínica”, a essência das Ciências Humanas, no livro “As Palavras e as Coisas”, os mecanismos do saber em “A Arqueologia do Saber”. Na sua produção acadêmica ele investiu contra a psiquiatria e a psicanálise tradicionais. Além da sua obra conhecida, muitos cursos e entrevistas do autor contribuem para uma melhor compreensão de sua forma de pensar. Segundo Foucault (1990), o poder é uma prática social e, por isso mesmo, é constituído historicamente e articulase com a estrutura econômica. O que Foucault chamou microfísica do poder significa tanto um deslocamento do espaço de análise quanto ao nível que este se efetua. De acordo com a sua categorização, as sociedades e os seus respectivos regimes de visibilidade podem ser divididos em: sociedades de soberania, onde o rei ou senhor exercia o poder, por meio de uma vigilância externa e geral; sociedade disciplinar, na qual as instituições são um dos maiores dispositivos de visibilidade, principalmente com relação ao funcionamento dos operários institucionais; e, sociedade de controle veio substituir a sociedade disciplinar, na qual ocorre a implementação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação, ou seja, o exercício do poder a distância. Atualmente, encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento da sociedade disciplinar e assistimos à instalação de uma sociedade que controla à distância. Desse modo, a crise das instituições modernas representa a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. A lógica da sociedade disciplinar é analógico, ou seja, descontinua e diferenciada em cada confinamento, enquanto a da sociedade de controle é numérica e constante. Para Foucault, o poder é múltiplo, automático e anônimo. Logo, não se pode possuí-lo “como uma coisa”, tampouco usufruí-lo e/ou repassá-lo “como uma propriedade”. Ademais, seu funcionamento articula-se como “uma rede de relações de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede ‘sustenta’ o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apoiam uns sobre os outros: fiscais perpetuamente fiscalizados” (Idem). Porque percebido como uma rede, o funcionamento das relações de poder projeta luz intensa sobre a contínua tensão intrínseca ao cotidiano da sociedade disciplinar. Já que traz à baila a possibilidade de se pensar uma série de movimentos inesperados do dia-a-dia que concorrem para o enfraquecimento da idéia de que são, somente, os discursos, as ações ou vontades conscientes dos “indivíduos” e/ou “grupos dominantes” que determinam aquelas que passarão a se constituir como principais características do meio social. Afinal, “[...] tanto os discursos são produtos de uma lógica extraída do próprio cotidiano [...], como esse cotidiano orienta-se por certos princípios e temas capazes de ordenar e fornecer uma justificativa mais ampla para as atividades desenvolvidas” (Vianna, 1999: 39). Fontes FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1982. ______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1987. ______. A verdade e as formas jurídicas. Cadernos PUC, Rio de Janeiro, 4a.ed., ano 6, n. 74, p. 05-82, 1991. MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982. http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault