Foto: Manuela Cavadas
Da cana-de-açúcar nada se perde
SOCIOECONOMIA
Rapadura: uma arte que
atravessa os tempos.
Fonte de renda para a agricultura familiar de Senhor
do Bonfim, Bahia
José Dionísio Borges de Macedo*
A cana-de-açúcar (Saccarum
officinarum L.), originária da Ásia, introduzida no Brasil pelos colonizadores
é uma planta que apresenta elevada
importância econômica, sendo utilizada
desde a mais simples ração animal, até a
mais nobre elaboração de sacarose. Da
cana não se perde nada, dela se obtém
o caldo, a cachaça, a rapadura, o açúcar,
combustível, a ração, e o adubo (cobertura morta), dentre outros.
Em Senhor do Bonfim, na Bahia, cidade localizada no Território de Identidade
Piemonte Norte de Itapicuru, distante
374 km da capital, a cana-de-açúcar é
utilizada para produção do “caldo de
cana”, ração animal e rapadura. A rapadura é um produto sólido obtido pela concentração a quente do caldo de cana, de
formato geralmente retangular, pesando
cada bloco cerca de 1000g. Nutricionalmente é uma excelente fonte de energia
e sais minerais (cálcio, fósforo, potássio,
magnésio e ferro), consumida de diversas
maneiras. Na região é consumida basicamente de forma in natura, mas é muito
usada na fabricação de doces e como
substituto do açúcar cristal ou refinado
(PINTO, 1990).
A fabricação de rapadura teve seu
início nas Ilhas Canárias, no século XVI,
e foi exportada para toda a América espanhola no século XVII. A rapadura, na
realidade, originou-se da raspagem das
camadas (crostas) de açúcar que ficavam
presas às paredes dos tachos utilizados
para fabricação de açúcar. No Brasil, os
engenhos de rapadura existem desde o
século XVII, ou antes (GOUVÊA, 2006).
Em Senhor do Bonfim, a fabricação
de rapadura tem sido uma das fontes de
renda para alguns pequenos agricultores,
principalmente do Mulungu e Barroca do
*Engenheiro Agrônomo, Mestre em Agronomia – UFBA, Professor de Cooperativismo e Extensão Rural da Escola Agrotécnica Federal de Senhor do Bonfim; e-mail: [email protected]
- Fotos do autor.
Bahia Agríc., v.8, n. 2, nov. 2008
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Faleiro, comunidades que se destacam
nesta atividade. Para se chegar ao local
de produção viajamos pela zona rural, subindo e descendo estradas, cortando riachos e vegetações diversificadas. Alguns
engenhos de cana-de-açúcar, puxados
por bois, atravessam os tempos, passando de geração a geração, sem quase
nenhuma tecnologia científica, onde o
senso comum resiste aos avanços tecnológicos. Assuntos como boas práticas de
fabricação, grau brix, não fazem parte do
vocabulário dos produtores rurais.
A produção de rapadura ocorre durante todo o ano, sendo que em períodos mais secos (menos chuvas) o rendimento da cana para rapadura é melhor,
comenta um dos produtores. Todo o
conhecimento sobre a produção foi adquirido pelos familiares mais velhos. Na
atividade trabalha toda a família, desde
crianças até adultos. Os mais jovens carregam cana para as moendas ou puxam
os bois e os mais velhos moem a cana ou
ficam à frente do forno, na concentração
do caldo.
Figura 1 - Bois e moendas
A MOAGEM
Figura 2 - Forno a lenha
No processo de fabricação de rapadura participam de quatro a cinco
pessoas, de forma ininterrupta, fazendo
apenas rodízio de função nos momentos
de refeição, período em que fazem um
rápido repouso. No engenho, ‘moedor’ é
aquele que fica responsável para passar
a cana pelas moendas, sua atividade começa juntamente com o ‘tangedor’, pessoa encarregada de tocar os bois, fazendo girar as moendas (Figura 4). O caldo
(garapa) extraído da moagem cai numa
calha e através de uma tubulação chega
ao tanque de recepção, com capacidade
para mais de 300 litros. O caldo (garapa),
antes de cair neste tanque, é filtrado por
meio de um saco de aninhagem, usado
somente para este fim.
Figura 3 - Gamela e espátulas
A LIMPEZA E CONCENTRAÇÃO
DO CALDO
O CORTE E O TRANSPORTE DA CANA
A produção de rapadura se inicia
com o corte da cana no campo, depois
esta é transportada em lombo de animais
(jumentos) até o local do engenho. Cada
carrego que o animal faz é chamado de
carga e, nesta operação, são levados de
80 a 100 pedaços, em média, de cana,
equivalente a uma média de 40 a 50 canas. Os produtores trabalham com 12 a
14 cargas por dia, visando a produzir, em
média, 100 rapaduras. Este trabalho é iniciado num dia, para no outro bem cedo
começar o processamento de fabricação
da rapadura. Após iniciado, o trabalho
só para após processar todo o caldo das
canas, terminando toda a operação por
volta das 18h.
Figura 4 - Moedor
OS MATERIAIS DO ENGENHO
Figura 5 - Colocação do caldo no tacho 2
Os engenhos do Mulungu e Barroca do Faleiro são constituídos de uma
moenda acionada por tração animal,
um forno a lenha de cinco bocas, cinco
tachos de cobre, uma gamela grande de
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Figura 6 - Retirada das impurezas no tacho 2
madeira, bancadas e formas de madeira,
conchas e espátulas. Todos os materiais
foram confeccionados de forma rústica e
artesanal (Figuras 1, 2 e 3).
Bahia Agríc., v.8, n. 2, nov. 2008
O caldo (garapa) é retirado do tanque
e levado para o forno, que já está devidamente aquecido com a queima de lenha.
O caldo é colocado no segundo tacho (2)
da seqüência de cinco, onde o ‘ponteiro’,
pessoa responsável pelo cozimento do
caldo até o ponto de rapadura, fica retirando as impurezas na forma de espuma,
quando vai aquecendo e coloca em baldes plásticos para depois jogar fora. Esse
processo é feito até se perceber que o
caldo está totalmente limpo. Daí o caldo
é colocado aos poucos no tacho 1, onde
vai sendo aquecido e perdendo a umidade, daí, é jogado nos tachos 3, 4 e 5, de
forma cadenciada, ao tempo que o caldo
vai ficando cada vez mais concentrado.
Não existe um tempo para permanência
em cada tacho, a regra é visual. Do tacho
5, o caldo já bem concentrado é transferido para a gamela de madeira (Figuras 5,
6, 7, 8 e 9).
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O RESFRIAMENTO E A MEXEDURA
O caldo concentrado despejado na
gamela passa agora por um processo de
mexedura ou batedura, realizada pelo
mesmo ‘ponteiro’. Neste momento, outra
pessoa o substitui, temporariamente, no
comando dos tachos. Durante a mexedura, o material perde calor, iniciando o
resfriamento. A massa é batida até ficar
com um aspecto brilhante, agora já mais
concentrada e menos quente. O ponto
ideal é determinado pelo ‘ponteiro’, pois
quem não vivencia esta atividade não
consegue determinar o ponto ideal com
facilidade (Figuras 10 e 11). No momento
certo o ‘ponteiro’ despeja o caldo concentrado nas formas de madeira
Figura 11 - Batendo e esfriando o caldo
concentrado na gamela
Figura 7 - Visão geral do forno
O ENFORMAMENTO DA RAPADURA
Figura 12 - Retirando a rapadura pronta da forma
As fôrmas tradicionais têm capacidade para sete rapaduras e meia, confeccionadas especialmente para este fim. São
facilmente montáveis e desmontáveis.
A massa é colocada nas fôrmas e permanece o tempo suficiente até ocorrer
o endurecimento (Figura 12). O formato
tradicional das rapaduras produzidas na
comunidade é retangular, com peso médio de 1000g, mas foi constatado fôrmas
em forma de coração.
Figura 8 - Transferência do caldo nos tachos
A “BATIDA”
Além da rapadura tradicional os produtores também produzem a “batida”,
uma rapadura branco-amarelo claro, produzida com a mesma matéria-prima, o
caldo concentrado, só que esse é batido,
puxado e esticado com as mãos até ficar
bem claro, daí, é só colocar nas formas
para resfriar e solidificar totalmente. Esse
processo é iniciado com a colocação do
caldo concentrado, que está sendo batido na gamela, na superfície de uma cana
selecionada e raspada para tal fim (Figuras 13 e 14).
Figura 9 - Caldo concentrado no tacho 5
Figura 13 - Banhando a cana com caldo
concentrado
Figura 10 - Caldo concentrado jogado na gamela
Figura 14 - Batendo e puxando o caldo concentrado
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Figura 16 - Rapadura exposta à venda na feira livre
Figura 15 - Produção transportada por jumento
O ARMAZENAMENTO E TRANSPORTE
de cocadas, doces, xaropes e como substituto do açúcar refinado.
Depois de resfriadas, as rapaduras e
‘batidas’ são armazenadas nas bancadas
de madeira até terminarem todo o processamento do caldo. Em seguida são
colocadas nos caixotes de couro de bovinos (confecção caseira) e são transportadas pelos jumentos até as residências
(Figura 15). No dia seguinte, bem cedo,
a produção é levada para a feira livre do
município, no centro da cidade, para comercialização.
Toda a produção é artesanal, não
existindo nenhum controle de produção; os produtores não sabem quais são
os custos de produção, a quantidade de
matéria-prima por quilo de rapadura produzida, nem sabem se a atividade é lucrativa ou não. Vendem cada rapadura por
R$ 3,00 (três reais), mas não sabem qual
o custo, nem o lucro que recebem por
unidade. Eles comentam que não conseguem sobreviver da rapadura, precisam
cultivar e vender outros produtos (principalmente frutas) para complementar a
renda familiar.
A COMERCIALIZAÇÃO
A comercialização é feita na feira livre
do município, nas sextas-feiras e sábados.
O preço de cada rapadura é de R$ 3,00,
mas também os produtores vendem
meia rapadura (R$ 1,50), atendendo a
pedidos dos consumidores. As rapaduras
são expostas na bancada das barracas,
sem nenhuma proteção contra os contaminantes do meio (poeira, insetos, mãos
sujas...), e são manipuladas sem nenhuma
medida de higiene (Figura 16). Os consumidores também não fazem exigência.
Pessoas de todas as classes consomem rapadura, entretanto, o consumo
per capita é baixo, considerando outros
doces vendidos em supermercados. A rapadura é comprada, quase exclusivamente, para consumo in natura, porém, às
vezes, é comprada para compor receitas
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ações voltadas para implementar a
produção devem ser empreendidas nas
comunidades. Pequenas transformações
pontuais, vinculadas ao planejamento do
Município, Estado e Brasil devem ser incentivadas na busca da melhoria da agricultura familiar e justiça social. A comunidade do Mulungu e Barroca do Faleiro
devem ser capacitadas e apoiadas nas diversas técnicas de cultivo, bioquímica, diversificação de produtos, gerenciamento
de produção, comercialização, marketing,
turismo, desenvolvimento sustentável e
comércio solidário.
Sabemos que outras regiões do Brasil
produzem rapadura de forma industrial,
com altas produções e rendimentos, ge-
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rando lucros significativos e movimentando a economia de muitas cidades. Em
nossa região a exploração é mantida por
amor e tradição, e a cada dia vem se reduzindo, devido à restrição de consumidores, principalmente nas gerações mais
novas, pois as guloseimas artificiais são
mais atrativas e difundidas.
A incrementação da rapadura na merenda escolar seria uma boa alternativa
para o aumento do consumo deste produto, elevando a produção, ajudando na
manutenção dos engenhos, atualmente
ameaçados de extinção, e formando consumidores mais conscientes e voltados
para a valorização de suas raízes histórico-cultural e social. Os engenhos devem
ser explorados como pontos turísticos de
nossa cidade, pois além de aproveitar a fabricação artesanal de rapadura com o uso
de engenhos movidos a energia dos bois,
os visitantes podem se deleitar nas belezas naturais do local como a vegetação,
os riachos, os pássaros, as pessoas com
seus costumes e o ar puro da natureza.
Melhorias na produção, na renda familiar e na qualidade de vida das pessoas,
sem perder o brilho e o espírito bucólico
da região do Mulungu e Barroca do Faleiro é uma conquista que todos bonfinenses devem buscar, mantendo viva a arte
da fabricação de rapadura, a história e a
biodiversidade de Senhor do Bonfim.
REFERÊNCIAS
GOUVÊA H., Rapadura se qualifica como o mais famoso doce nordestino. Disponível: <http://www.paraiba.
pb.gov.br/index2.php?option=com_content&do_
pdf=1&id=7399 >
PINTO G. L. Fabricação de rapadura e açúcar batido.
Informe Técnico, ano 11, n.65, Viçosa: Conselho de
Extensão, Universidade Federal de Viçosa, 1990.
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