Clarice Lispector
Felicidade
clandestina
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
1. BIOBIBLIOGRAFIA
Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, na antiga União
Soviética, no ano de 1920. Veio para o Brasil ainda criança, passando a residir na capital pernambucana. Já no
Rio de Janeiro, formou-se em direito, não exercendo a
profissão. Casou-se com o diplomata Gurgel Valente, o
que lhe valeu conhecer vários países, travando amizade com escritores estrangeiros. Separada, voltou para o
Brasil, dedicando-se, exclusivamente, à literatura.
Clarice Lispector causou surpresa ao escrever, com
apenas 19 anos de idade, o romance Perto do coração
selvagem, obra de clara concepção introspectiva, fazendo-nos lembrar os bons momentos de Machado de Assis
(1839-1908), romancista e contista realista de Memórias
póstumas de Brás Cubas e O alienista, e Graciliano Ramos
(1892-1953), romancista modernista de São Bernardo.
Romancista e contista, além de cronista e autora
de livros infantis, Clarice Lispector é um dos expoentes da Geração de 45 do Modernismo. Irmã da romancista Elisa Lispector (1911-1989), autora de O dia mais
longo de Teresa (1965), Clarice Lispector foi a escritora
que mais se destacou na questão existencialista na literatura brasileira. Fumante inveterada, certa vez dormiu com o cigarro aceso, acordando entre as chamas
do lençol, ocasionando-lhe algumas marcas nas mãos
e nos pés.
Clarice Lispector morreu em 1977, aos 57 anos de
idade.
Obras
Romances
Perto do coração selvagem (1944); O lustre (1946);
A cidade sitiada (1949); A maçã no escuro (1961); A paixão segundo G.H. (1964); Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres (1969); Água viva (1973); A hora da estrela
(1977).
Contos
Alguns contos (1952); Laços de família (1960); A legião
estrangeira (1964); A felicidade clandestina (1971); A imitação da rosa (1973); A via-crúcis do corpo (1974); Onde
estiveste de noite? (1974); A bela e a fera (1979).
Crônicas
Visão do esplendor (1975); Para não esquecer (1978);
A descoberta do mundo (1984).
Livros infantis
O mistério do coelhinho pensante (1967); A mulher que
matou os peixes (1969); A vida íntima de Laura (1974);
Quase verdade (1978).
Outros
De corpo inteiro (entrevistas, 1975); Um sopro de vida
(‘pulsações’, 1978).
Estilo de época
Pertencente ao Modernismo brasileiro, Clarice Lispector situa-se na chamada Geração de 45, cujo início
coincide com o final da Segunda Guerra Mundial, estendendo-se até o início dos anos 1960.
Nesta época, o Brasil vivia um período politicamente
difícil, com a deposição de Getúlio Vargas e a eleição de
Eurico Gaspar Dutra. Era o começo de uma redemocratização nacional. Em 1950, Getúlio Vargas volta à Presidência,
dessa vez eleito pelo voto popular. Entretanto, por causa
de sua conturbada administração, que contrariava as elites, suicidou-se em 1954. Café Filho assume o controle da
nação. Um ano depois, Juscelino Kubistschek foi eleito presidente, cujo lema de campanha, “50 anos em 5”, foi posto em prática com a chegada das fábricas estrangeiras e a
construção da nova capital federal, Brasília.
No campo literário, a Geração de 45 procurou, de
certa forma, inovar, principalmente na área linguística,
notadamente com Guimarães Rosa e Clarice Lispector;
o primeiro, de caráter regionalista; a segunda, intimista.
Além deles, fazem parte desta geração: Dalton Trevisan,
João Cabral de Melo Neto, Rubem Fonseca, Mario Quintana, Fernando Sabino, Rubem Braga, Dias Gomes, Ariano Suassuna, Jorge Andrade e Josué Montello.
2. Características centrais
de Clarice Lispector
Notável prosadora, Clarice Lispector é uma das poucas
1
Prosa introspectiva
Para Clarice Lispector não interessa, propriamente,
o enredo, e sim o amadurecimento da personagem na
presença do leitor, seguindo, dessa maneira, a linha machadiana, em que o leitor acaba fazendo o papel de um
analista, enquanto a personagem faz o do analisado.
Portanto, o enredo é mera desculpa para a autora desfiar toda uma gama de subjetividade presente na personagem e colocá-la aos olhos nus do leitor. Assim, podemos considerá-la uma escritora universal, pois o que,
realmente, interessa é a essência humana, isto é, aquilo
que é inerente ao ser humano. O trecho abaixo, retirado
do conto “Os desastres de Sofia”, dá-nos o exemplo:
Não, eu não era engraçada. Sem nem ao mesmo saber,
eu era muito séria. Não, eu não era doidinha, a realidade
era o meu destino, e era o que em mim doía nos outros. E,
por Deus, eu não era um tesouro. Mas se eu antes já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que se
nasce e com que se rói a vida — só naquele instante de
mel e flores descobria de que modo eu curava: quem me
amasse, assim eu teria curado quem sofresse de mim. Eu
era a escura ignorância com suas fomes e risos, com as pequenas mortes alimentando a minha vida inevitável – que
podia eu fazer? e já sabia que eu era inevitável. Mas eu não
prestava, eu fora tudo o que aquele homem tivera naquele
momento. (p. 118)
Universo feminino
2
Não podemos, nem devemos confundir essa literatura feminina com literatura feminista. Clarice Lispector
não era uma feminista, como a maioria dos escritores
não são taxados de machistas.
Linguagem insólita e metafórica
O que faz um escritor ser grande não é somente o conteúdo por ele explorado, mas também a forma, ou seja, a
linguagem empregada. No caso de Clarice Lispector percebemos um grande domínio de figuras de linguagem,
principalmente, metáforas, que nada mais são do que comparações imaginárias, muitas delas causadoras de belas surpresas, como a que aparece em “A repartição dos pães”:
Só a dona da casa não parecia economizar o sábado
para usá-lo numa quinta de noite. (p. 89)
O existencialismo
É a corrente filosófica que põe a existência no centro de
suas especulações. É o modo como o ser se encontra no
mundo. Um texto introspectivo favorece esse tipo de filosofia, já que a personagem, ou mesmo o narrador, explora
os anseios, frustrações, sonhos, fantasias… Para Sartre, o
ser é tomado por aquilo a que chamou de náusea, isto é,
a forma emocional violenta de angústia. O trecho abaixo,
retirado do conto “O ovo e a galinha”, exemplifica:
Ou é isso mesmo que eles querem que aconteça,
exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou
estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo o
que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é
que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa:
eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais
absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso
de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente
por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que
está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer.
Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu
espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um
agente, ou é a traição mesmo. (p. 57)
Temática social
Como todo bom escritor, Clarice Lispector também é
uma autora engajada em seu tempo. Fiel à proposta do
próprio Jean-Paul Sartre, em que a literatura visa conscientizar as pessoas e, consequentemente, a transformação da sociedade, Clarice Lispector só fez confirmar ainda
mais a sua posição de destaque em nossa literatura.
3. O QUE É O EXISTENCIALISMO
SEGUNDO SARTRE
Antes de começarmos a entender o que vem a ser,
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grandes mulheres de nossa literatura. Colocada ao lado de
Cecília Meireles (1901-1964), autora de Vaga Música (1942),
e Lígia Fagundes Telles (1923), autora de Ciranda de pedra,
Clarice Lispector-escritora tem como principais características:
• prosa introspectiva;
• universo feminino;
• linguagem insólita e metafórica;
• existencialismo;
• temática social.
O que vem a ser cada uma dessas características?
A seguir, procuraremos, de forma superficial e sucinta,
definir cada uma das características para que tenhamos
uma noção da importância dessa escritora que tão bem
soube representar o feminino numa literatura, basicamente, machista e preconceituosa, que é a literatura
brasileira.
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propriamente, o existencialismo sartreano, é importante ressaltarmos o sentido da palavra, que já nos dá uma
boa ideia para ingressarmos, de forma mais segura, nesse universo que causa tanta controvérsia entre os mais
diversos especialistas no assunto.
Segundo o professor João da Penha, em sua pequena obra O que é o existencialismo, a palavra existência, derivada de existere, significa sair de uma casa, um domínio,
um esconderijo. Mais precisamente: existência, na origem,
é sinônimo de mostrar-se, exibir-se, movimento para fora.
Daí, denominar-se existencialista toda filosofia que trata
diretamente da existência humana. (p. 11)
Jean-Paul Sartre, talvez o mais popular filósofo do século XX, retoma, de maneira contundente, o que havia
sido colocado por diversos filósofos anteriores, como o
dinamarquês, Sören Kierkegaard, considerado este o Pai
do existencialismo, e o alemão Heidegger, isto é, as questões existencialistas.
Considerando-se mais um ideólogo do que propriamente um filósofo, Sartre levou até as últimas consequências as suas convicções, sendo, por esse motivo, criticado
por uma gama de intelectuais da sua época. Até mesmo
no Brasil, Sartre encontrou ferrenhos opositores, chegando
alguns deles, às raias do xingamento.
Como todo existencialista, Sartre parte do mesmo
ponto que os outros filósofos, isto é, do homem concreto. O que vai diferenciá-lo dos demais é o seu ateísmo.
E, a partir disso, tem-se uma ausência de valores, princípios e normas. Ao homem resta a sua subjetividade,
sem, contudo, desligar-se do fundamento racional.
Propondo uma análise do indivíduo, Sartre procura
romper com as limitações provenientes do marxismo.
Com isso, o filósofo francês conclui que o homem é liberdade, escolhendo o que realmente deseja ser. Quando isso
acontece, ele, o homem, tem o poder de criar o seu próprio
valor, valor este determinado pelo grau de liberdade com
que se realiza. Portanto, se o destino não existe, o homem
é que escolhe ser. Lembremos aqui da famosa palestra realizada por Sartre em Araraquara, em que disse:
Neste momento, por conseguinte, encontramos o problema da existência. Isso significa que, no fundo, a noção
de projeto, a noção que nos conduzia aos limites do terreno da liberdade e algumas outras noções semelhantes nos
remetem a esta ideia de desraigamento do presente. Ao
fato de que somos objeto, mas ultrapassamos o objeto. Ela
nos conduz, em suma, a uma realidade prática do homem,
onde existir e fazer-se são uma só e mesma coisa e esta realidade prática, que nela mesma escapa à ciência embora a
fundamente, é justamente o que a ideologia da existência
se propõe a estudar. (p. 81)
A literatura, por exemplo, tem o poder de refletir
estas escolhas, ocasionando o que Sartre denominou
de náusea, isto é, a angústia, a dor, o desespero etc.
Ao escolher, o homem estabelece um vínculo com a
própria humanidade. Para Sartre, existe uma ausência
de critérios racionais, mas não podemos negar que
é o existencialismo o responsável por conduzi-lo ao
Humanismo.
Mas por que isso teria causado tanta ira nos outros
filósofos?
Sartre criou polêmica ao discutir a fórmula empregada pelos existencialistas anteriores, a existência precede
a essência. Mas isso não é correto? Para o filósofo francês, não. Para ele, somente o ser humano é que pode
encaixar-se em tal fórmula. Mas por quê? O próprio Sartre responde:
O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a
existência precede a essência, um ser que existe antes de
poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é
o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana.
Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a
essência? Significa que o homem primeiramente existe,
descobre-se, surge no mundo; e que só depois se define.
O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é
definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois
será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer.
João da Penha, p. 44.
Portanto, para Sartre a existência precede a essência
no que concerne ao ser humano. É interessante ainda
ressaltarmos que esse ateísmo sartreano é o ponto diferencial do existencialismo cristão de Kierkegaard (1813-1855), filósofo e teólogo dinamarquês, considerado,
como vimos anteriormente, o Pai do existencialismo, autor de, entre outras obras, O alternativo e Temor e tremor.
Em Felicidade clandestina, um livro de contos em que
vários temas pertinentes ao existencialismo sartreano
podem ser claramente identificados, mais uma vez Clarice Lispector, com a maestria de um grande escritor,
faz-nos pensar sobre o ser e a sua relação com tudo e
com todos que o cercam. O trecho abaixo pertence ao
conto “A repartição dos pães”:
Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e
todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe.
Existe. (p. 91)
3
Uma menina “gorda, baixa, sardenta e de cabelos
excessivamente crespos, meio arruivados” é filha de um
dono de livraria. Sente inveja das amigas bonitas, esguias e altas. Uma dessas meninas, que narra a história,
por ser uma leitora compulsiva, se submetia a humilhações da filha do livreiro para ter livros emprestados. Em
especial, pelo Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, um livro grosso, pesado, de valor muito acima das
posses da sedenta leitora. Então, começa a sofrer uma
“tortura chinesa” com a promessa de empréstimo no
dia seguinte e no outro, e no outro… e nada: um sofrimento. Até o dia em que a mãe da menina cruel, que era
uma boa mulher, descobre o que estava acontecendo
e obriga a filha a emprestar o livro, com devolução por
tempo indeterminado. Aquilo foi “tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer”.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não
o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois
abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo,
fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão
com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro,
achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais
falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era
a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para
mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia
no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha
delicada. (p. 10)
“Uma amizade sincera”
Narrado em 1a pessoa, por uma personagem masculina, em que se sobressai novamente o tema da amizade
e, novamente, de maneira insólita. Dois amigos, que sabiam que nutriam um pelo outro uma amizade sincera,
salvaram-na separando-se, pois, juntos, não tinham assunto, tornando-se dois companheiros solitários. Daí a
providencial separação, apesar de ambos saberem que,
mesmo não se encontrando mais, seriam para sempre
amigos sinceros:
A pretexto de férias com minha família, separamo-nos.
Aliás, ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não
nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso, que
não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos
amigos. Amigos sinceros. (p. 14)
“Miopia progressiva”
4
Narrado em 3ª pessoa, o conto traz a história de
um menino que não sabia se era ou não inteligente: às
vezes dizia algo que despertava nos adultos um olhar
de satisfação e quando resolvia repetir o que tinha dito,
muitas vezes esses adultos não davam a atenção como
ele esperava que deveriam dar. Então, “ser ou não inteligente dependia da instabilidade dos outros”, sendo que
o menino buscava insistentemente apoderar-se da chave de sua inteligência, repetindo suas próprias frases de
sucesso.
Que a sua própria chave não estava com ele, a isso ainda menino habituou-se a saber, e dava piscadelas que, ao
franzirem o nariz, deslocavam os óculos. E que a chave não
estava com ninguém, isso ele foi aos poucos adivinhando
sem nenhuma desilusão, sua tranquila miopia exigindo
lentes cada vez mais fortes. (p. 16-17)
Às vezes, o menino ficava muito inspirado. Foi o
que lhe aconteceu quando lhe disseram que ele iria
passar “um dia inteiro” na casa de uma prima casada,
sem filhos, e que adorava crianças. Logo o menino
começou a pensar em como agiria: se diria algo inteligente logo de entrada ou se seria muito “bem comportado” — o amor da prima de apenas “um dia inteiro” deveria ser estável e o menino não poderia correr
o risco de ser erroneamente julgado, apesar de entender que aquela prima teria por ele um amor sem seleção, sem impor condições, apenas o amaria. Abandonou esses pensamentos para passar a pensar em que
cheiro teria a casa da prima, o que teria dentro das
gavetas, como seria o quintal em que ele iria brincar
e, finalmente, pensou em como seria a tal prima e “de
que modo deveria encarar o amor que a prima tinha
por ele”. Mas foi só quando chegou, que pensou que
havia esquecido de pensar em um detalhe: “a prima
tinha um dente de ouro do lado esquerdo”. Essa visão,
da qual ele duvidou, já que era míope, desequilibrou
toda a ideia que havia montado, pois deparou-se com
algo que não havia contado. A prima disse-lhe para ir
brincar sozinho enquanto ela arrumava a casa, dando
ao menino “um dia inteiro vazio e cheio de sol”.
Lá pelas tantas, limpando os óculos, tentou, embora com certa isenção, o golpe da inteligência e fez uma
observação sobre as plantas do quintal. Pois quando ele
dizia alto uma observação, ele era julgado muito observador. Mas sua fria observação sobre as plantas recebeu
em resposta um “pois é”, entre vassouradas no chão. Então
foi ao banheiro onde resolveu que, já que tudo falhara, ele
iria brincar de “não ser julgado”: por um dia inteiro ele não
seria nada, simplesmente não seria. E abriu a porta num
safanão de liberdade. (p. 21)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
“Felicidade clandestina”
A prima não queria nada daquele menino de óculos,
senão que ele fosse o seu filho e seu ideal inatingível se
realizasse e o menino, pela primeira vez, viu o mundo
claramente, sem precisar dos seus óculos.
família proprietária. Uma das moças da casa, não mais
aguentando de curiosidade, perguntou à misteriosa Mocinha por que ela acordava de madrugada e por onde
ela andava quando desaparecia o dia todo e a velhinha,
com um sorriso, respondeu-lhe que ficava passeando.
“Restos do carnaval”
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Narrado em 1ª pessoa, este conto tem o seguinte
enredo: quando o carnaval ia se aproximando, grande
agitação tomava conta da menina de oito anos. Apesar
de nunca a terem levado a um baile infantil, sentia-se
imensamente feliz com um lança-perfume e um pacote
de confete que ganhava para ficar até umas onze horas da noite à porta do sobrado onde morava em Recife,
observando a diversão alheia. Até o susto com os mascarados era essencial para aquela menina. Um dia, pela
primeira vez, ela ganhou uma fantasia de rosa, feita de
papel crepom pela mãe de uma amiga, que, por bondade, aproveitando o que sobrara da fantasia da filha e observando o “mudo desespero de inveja” da menina, resolveu presenteá-la. E, apesar de pensar que recebera os
restos da fantasia da amiga, resolveu engolir o orgulho
que nela era feroz e aceitou com humildade a “esmola”:
[…] o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo
armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge — minha mãe de súbito piorou muito de saúde,
um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me
comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo
vestida de rosa — mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil
—, fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros
me espantava. […] E, como nas histórias que eu havia lido
sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas,
eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo
uma simples menina. (p. 26)
Somente horas depois, ela foi salva por um “rapaz” de
12 anos, muito bonito que parou diante dela e cobriu-lhe os cabelos de confetes e, sem nada falar, sorriu para
ela, fazendo com que se sentisse de novo uma rosa.
“O grande passeio”
Margarida, protagonista deste conto narrado em 3a
pessoa, era chamada de Mocinha e “era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo”. Vivia de favores e esmolas,
contentando-se em comer muito pouco e viver sem nenhum conforto. Passou, então, a dormir no quarto dos
fundos de uma casa grande, por um ato de caridade da
Acharam graça que uma velha, vivendo de caridade,
andasse a passear. Mas era verdade. Mocinha nascera
no Maranhão, onde sempre vivera. Viera para o Rio não
há muito, com uma senhora muito boa que pretendia interná-la num asilo, mas depois não pudera ser: a senhora
viajara para Minas e dera algum dinheiro para Mocinha se
arrumar no Rio. E a velha passeava para ficar conhecendo
a cidade. Bastava aliás uma pessoa sentar-se no banco de
uma praça e já via o Rio de Janeiro. (p. 29)
Mas chegou um dia em que aquela família começou
a não ter mais paciência com Mocinha. Resolveu-se então que os filhos da casa, que iam passar o final de semana em Petrópolis, levariam a velha de carro e a deixariam
aos cuidados da família de Arnaldo, irmão deles, a quem
não mais visitavam. Durante a viagem, a velha senhora tem algumas recordações entre um cochilo e outro,
lembrando-se do filho (morto atropelado por um bonde
no Maranhão), da filha Maria Rosa (que morrera de parto) e do marido, que também morrera, deixando-a tão
sozinha no mundo. Não sentia saudades deles, apenas
se lembrava. Em Petrópolis, Arnaldo não aceita hospedar Mocinha, dando-lhe um dinheiro para que voltasse
ao Rio, dizendo-lhe que sua casa não era asilo e ela que
retornasse à casa da família do Rio. Ela aceita o dinheiro
e, mesmo sendo destratada por aquelas pessoas da casa
de Arnaldo, que se fartavam à mesa, sem nem sequer
oferecer-lhe um café, agradece “— obrigada, Deus lhe
ajude”, e sai pelas ruas de Petrópolis, afastando-se cada
vez mais da estação até alcançar a estrada.
A estrada subia muito. A estrada era mais bonita que
o Rio de Janeiro, e subia muito. Mocinha sentou-se numa
pedra que havia junto de uma árvore, para poder apreciar.
O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha
muito passarinho que voava do abismo para a estrada.
A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde.
Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça
no tronco da árvore e morreu. (p. 37)
“Come, meu filho”
Neste curto conto, quase uma crônica, há um diálogo
entre Paulinho e sua mãe. Paulinho é um menino que
não para de falar, só para não precisar comer, enquanto
a mãe incansável insiste para que o menino se alimente.
5
“Perdoando Deus”
Narrado em 1ª pessoa por uma mulher que se sentia
livre e satisfeita quando fazia uma caminhada pela avenida Copacabana, “via tudo, e à toa”.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por
puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra,
o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou
igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube
também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia
— e não possivelmente um equívoco de sentimento —
que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se
deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo.
Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo,
e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser.
Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo, e reverência. Mas nunca tinham me
falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe
do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. (p. 40-41)
Aquele rato enorme, mesmo que morto, foi para a
mulher uma visão aterradora, já que sentia um medo
infinito de ratos. Ela se perguntava por que Deus havia
de insultá-la com tamanha grosseria e brutalidade, já
que tudo o que pensava naquela caminhada era no seu
carinho. Naquele grande amor que estava sentindo até
tudo ser quebrado pela presença daquele rato horroroso. Na sua incompreensão, pensa até em se vingar de
Deus, mas depois vai compreendendo que amar não é
mesmo fácil, que ela só queria amar o que lhe convinha,
que era muito teimosa e, às vezes, era preciso que lhe
dissessem isso com brutalidade, que ela nunca poderia
ser a mãe de todas as coisas enquanto desejasse que os
seres fossem mortos, ainda que fosse aquele rato asqueroso e que seu orgulho não a deixava aceitar sua verdadeira natureza.
6
[…] Porque enquanto eu amar a um Deus só porque
não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha
vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não
existe. (p. 44)
“Tentação”
Narrado em 3ª pessoa onisciente, o conto gira em
torno de um encontro entre uma menina ruiva e um
cachorro da raça bassê (portanto, também ruivo). Identificando-se com o cão como sendo ele a sua outra
metade, a menina sabia que não podia perder tempo,
comunicando-se com ele rapidamente. E um pedindo
ao outro: Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse mulher. Ele, com
sua natureza aprisionada. (p. 70)
E a dona do bassê, já impaciente com aquela situação,
fez com que o cão se afastasse da menina para acompanhar a sua dona. A menina espantada, com o acontecimento nas mãos, acompanhou-o até vê-lo dobrar a esquina.
Este, por sua vez, foi mais duro e não olhou uma vez sequer
para trás.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol,
ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio
de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores,
de tantos esgotos secos — lá estava uma menina, como
se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o
suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade
com que se pedia.
Mas ambos eram comprometidos. (p. 46)
“O ovo e a galinha”
Um dos mais insólitos contos de Clarice Lispector,
“O ovo e a galinha” é mais uma dissertação sobre o ovo,
em que a narradora vai tratando de assuntos filosóficos
como a oposição Vida x Morte, tendo como base a velha
pergunta: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?
O mais interessante é que Clarice Lispector responde a
esta pergunta sem titubear:
[…] Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou
a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha
é diretamente uma escolhida. — A galinha vive como em
sonho. Não tem senso da realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio.
A galinha é um grande sono. — A galinha sofre de um mal
desconhecido. O mal desconhecido da galinha é o ovo.
— Ela não sabe se explicar: “sei que o erro está em mim
mesma”, ela chama de erro a sua vida, “não sei mais o que
sinto” etc.. (p. 52)
Sem uma ordenação, o conto (ou simplesmente uma
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
— Não fala tanto, come.
— Mas você está olhando desse jeito para mim, mas
não é para eu comer, é porque você está gostando muito
de mim, adivinhei ou errei?
— Adivinhou. Come, Paulinho.
— Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não
pensar só em comida, mas você vai e não esquece (p. 39).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
narrativa) é um belo exemplo da prosa introspectiva de
Clarice Lispector. Diante de um simples ovo em cima
da mesa, num certo dia de manhã, a narradora devaneia, fazendo com que um simples fato cotidiano (o do
ovo estar em cima da mesa) vire motivo para toda uma
questão existencial:
técnica do flash-back (recurso memorialístico), discorre
sobre a sua relação com Ofélia (em que ódio e amor se
confundem), menina que causava nela certo complexo
de inferioridade, pois a menina, filha de arrogantes vizinhos, dava-lhe conselhos sobre a educação dos filhos,
sobre as despesas com a casa etc.
E me faz sorrir o meu mistério. O meu mistério é que eu ser
apenas um meio, e não um fim, tem me dado a mais maliciosa das liberdades, não sou boba e aproveito. Inclusive faço um
mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me
deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro, inclusive o
dinheiro que me dão como diária para facilitar minha vida de
modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado
para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações
da Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram e
que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça,
pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade (p. 56-57).
Se me perguntassem sobre Ofélia e seus pais, teria
respondido com o decoro da honestidade: mas os conheci. Diante do mesmo júri ao qual responderia: mal
me conheço — e para cada cara de jurado diria com
o mesmo límpido olhar de quem se hipnotizou para a
obediência: mal vos conheço. Mas às vezes acordo do
longo sono e volto-me com docilidade para o delicado
abismo da desordem.
“Cem anos de perdão”
Narrado em 1a pessoa por uma menina pequena que
se especializou em roubar rosas e pitangas. Na primeira
vez em que roubou uma rosa, armou um plano: entraria em uma grande casa, onde o jardineiro não estava
à vista; as janelas, por causa do sol, estavam fechadas;
naquela rua não passavam bondes e, raramente, passavam carros e ainda, para tornar o plano perfeito, ela teria
a sua amiguinha a vigiar caso aparecesse alguém.
[…] E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa.
O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha. (p. 61)
Sempre que roubava rosas ou pitangas, procedia da
mesma forma, com o coração batendo forte: a amiga vigiando, ela entrando, quebrando o talo e fugindo — era
uma glória que ninguém tirava dela.
Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por
exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em
vez de amadurecer e morrer no galho, virgens. (p. 62)
“A legião estrangeira”
A partir de um pintinho trazido para os seus filhos
na época do Natal, a narradora, usando novamente da
Estou tentando falar sobre aquela família que sumiu há
anos sem deixar traços em mim, e de quem me ficara apenas uma imagem esverdeada pela distância. (p. 63)
E ao descobrir o pintinho na cozinha, a menina se
despe daquela “roupa” de adulta, deixando-se ver despida de criança. Era a chance de a narradora se impor,
mostrar-se superior àquela frágil criatura, que não se
conteve, após os seus carinhos no pintinho, ao vê-lo
morto no chão da cozinha:
A uma distância infinita eu via o chão. Ofélia, tentei eu
inutilmente atingir a distância o coração da menina calada. Oh, não se assuste muito! às vezes a gente mata por
amor, mas juro que um dia a gente esquece, juro! a gente
não ama bem, ouça, repeti como se pudesse alcançá-la
antes que, desistindo de servir ao verdadeiro, ela fosse altivamente servir ao nada. Eu que não me lembrara de lhe
avisar que sem o medo havia o mundo. Mas juro que isso é
a respiração. Eu estava muito cansada, sentei-me no banco da cozinha.
Onde agora estou, batendo devagar o bolo de amanhã.
Sentada, como se durante todos esses anos eu tivesse com
paciência esperado na cozinha. O amarelo é o mesmo, o
bico é o mesmo. Como na Páscoa nos é prometido, em dezembro ele volta. Ofélia é que não voltou: cresceu. Foi ser
a princesa hindu por quem no deserto sua tribo esperava.
(p. 81)
“Os obedientes”
Narrado em 3ª pessoa onisciente, este conto tem
como tema a solidão entre duas pessoas casadas, que
levavam uma vida correta, honesta, mas sem nenhum
atrativo:
7
Como foi que cada um deles chegou à conclusão de
que, sozinho, sem o outro, viveria mais — seria caminho
longo para se reconstruir, e de inútil trabalho, pois de vários cantos muitos já chegaram ao mesmo ponto. (p. 87)
comeu a comida e não o seu nome. E termina, dizendo:
Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos. (p. 92)
“Uma esperança”
Sonhadores, eles passaram a sofrer sonhadores, era heroico suportar. Calados quanto ao entrevisto por cada um,
discordando quanto à hora mais conveniente de jantar, um
servindo de sacrifício para o outro, amor é sacrifício. (p. 88)
“A repartição dos pães”
Narrado em 1a pessoa, o conto é um dos tantos insólitos saídos da pena existencialista de Clarice Lispector.
Num sábado, o narrador e outras pessoas estrangeiras
são convidados a um farto almoço, que, para ele, bem
poderia ser trocado por uma quinta-feira. Clarice Lispector, usando de uma metáfora — a do trem descarrilado
—, mostra a impossibilidade dos convidados de saírem
dali. De repente, aludindo à Santa Ceia, a anfitriã começa a lavar os pés dos convidados:
[…] Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos. (p. 90)
Logo após, o narrador passa a descrever a farta mesa
que se mostrava diante dos olhos dos estrangeiros:
A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre
a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs
vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido,
abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas
e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa,
pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos —
tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho,
ruivas como junto de uma boca. (p. 90)
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Todos, enfim, estavam ocupados em comer, não havendo holocausto, pois, ao mesmo tempo que eles queriam comer, tudo aquilo que estava sobre a mesa queria
ser comido. E estavam todos ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre,
e come (p. 92). E o narrador comeu como quem não engana o que come. E, numa referência metalinguística,
Narrado em 1ª pessoa por uma mãe que conta a visita de um inseto verde — a esperança — que pousou
na parede da casa, “e mais magra e verde não podia ser”.
— Ela quase não tem corpo, queixei-me.
— Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos
são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele
falava das duas esperanças. (p. 93)
Ela não voava, só andava muito devagar e quando já
estava prestes a ser devorada por uma aranha, que saíra
detrás de um quadro, o menino mata a aranha para poupar a esperança (também conhecida por louva-a-Deus
ou bendito, conforme a crendice popular é um inseto
que não deve ser morto, deve ser protegido em sua forma frágil, delicada e inofensiva). “Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo”:
Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei
consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza.
Eu não mexi o braço e pensei: “e essa agora? que devo fazer?” Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta
como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me
lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu
nada. (p. 95)
“Macacos”
Narrado em 1ª pessoa, este conto gira em torno da
identificação da narradora com a macaquinha Lisette.
Segundo o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, ao comentar os contos de A legião estrangeira, há uma oposição entre o Eu × o Outro. Este Outro pode ser um animal
(como acontece no conto “Macacos”) ou uma criança
(como em “A legião estrangeira”) ou uma coisa (como
em “O ovo e a galinha”).
Em “Macacos”, o cotidiano ordinário é sublimado quando, após o primeiro contato que teve com um macaco —
Estávamos sem água e sem empregada, fazia-se fila para
carne, o calor rebentara (p. 51) —, a narradora se deparou
na rua com um vendedor de micos. E lá estava Lisette com
pulseiras e sua saiazinha de baiana. Levou-a para casa:
Quanto a essa, era mulher em miniatura. Três dias esteve conosco. Era de uma tal delicadeza de ossos. De uma
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A questão existencialista está fortemente presente
neste conto. A descoberta do casal de que, apesar de
toda uma vida lado a lado, deixaram de realizar muitos
sonhos, caindo na mais profunda frustração:
tal extrema doçura. Mais que os olhos, o olhar era arredondado. Cada movimento, e os brincos estremeciam; a saia
sempre arrumada, o colar vermelho brilhante. Dormia muito,
mas para comer era sóbria e cansada. Seus raros carinhos
eram só mordida leve que não deixava marca. (p. 97)
Adoecida, Lisette é levada ao hospital. Lá, a narradora é repreendida pelo enfermeiro, que lhe disse que não
se devia comprar animais na rua, pois muitos já vinham
doentes. Notem a ironia da narradora, um dos traços
marcantes de Clarice Lispector: Não, tinha-se que comprar macaca certa, saber da origem, ter pelo menos cinco
anos de garantia do amor, saber do que fizera ou não fizera, como se fosse para casar. (p. 98)
Lisette ficou no hospital, inalando oxigênio, após ser
ela oferecida ao enfermeiro caso sobrevivesse. Mas Lisette não resistiu e morreu:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O menor me perguntou: “Você acha que ela morreu de
brincos?” Eu disse que sim. Uma semana depois o mais velho me disse: “Você parece tanto com Lisette!” “Eu também
gosto de você”, respondi. (p. 99)
“Os desastres de Sofia”
Narrado em 1ª pessoa e usando a técnica do flash-back, a história gira em torno do relacionamento entre a
aluna de nove anos e o seu professor primário. Ao descobrir que ele estava ali em sua controlada impaciência para
ensinar, a menina, num misto de atração e repúdio, faz
de tudo para irritá-lo, falando alto, mexendo com os colegas, interrompendo as suas explicações. Cada vez mais
Sofia se interessava por aquele professor grande, gordo,
de ombros contraídos, vestindo terno menor que o seu
número. Entretanto, o professor passou a ignorá-la, nem
mesmo olhando para ela. Numa redação feita em sala de
aula, que se esforçou para ser a primeira a entregá-la e
sentir-se superior aos seus colegas e ao professor, Sofia,
inconscientemente, despertou a atenção do professor,
quando este leu o que escrevera. Segundo o professor, no
encontro entre os dois a sós na sala, ela havia escrito que
a felicidade estava no interior de cada um e não do lado
de fora. Ao confessar a admiração pela sua redação, Sofia
se “desmorona” para aí viver o seu momento de epifania:
a descoberta do que é o verdadeiro amor. É a partir daí
que Sofia vivenciará sentimentos que jamais pensaria em
vivenciá-los, principalmente ao saber que, aos 13 anos de
idade, aquele que a despertou para os mais profundos
sentimentos, havia morrido:
Mas ainda não divisara o fim sombreado do parque, e meus passos foram se tornando mais vagarosos,
excessivamente cansados. Eu não podia mais. Talvez por
cansaço, mas eu sucumbia. Eram passos cada vez mais
lentos e a folhagem das árvores se balançava lenta. Eram
passos um pouco deslumbrados. Em hesitação fui parando, as árvores rodavam altas. É que uma doçura toda estanha fatigava meu coração. Intimidada, eu hesitava. Estava
sozinha na relva, mal em pé, sem nenhum apoio, a mão
no peito cansado como a de uma virgem anunciada. E de
cansaço abaixando àquela suavidade primeira uma cabeça finalmente humilde que de muito longe talvez lembrasse a de uma mulher. A copa das árvores se balançava para
a frente, para trás. “Você é uma menina muito engraçada, você é uma doidinha”, dissera ele. Era como um amor.
(p. 117-118)
“A criada”
Com foco narrativo em 3a pessoa, este conto tem o seguinte enredo: uma criada, “seu nome era Eremita. Tinha
19 anos. Rosto confiante, algumas espinhas”. Uma moça
doce e prestimosa, apesar de responder, às vezes, com
má criação e justificar depois que ela era assim mesmo,
desde pequena. Tinha medo de trovoadas, tinha fome
de pão (e era o único momento em que deixava de ser
serena), “que comia depressa como se pudessem tirá-lo”,
tinha vergonha de falar. Era gentil e tinha um noivo, que
dizia que a respeitava muito. Eremita tinha as suas ausências. Às vezes, era tomada por uma tristeza infinita,
seus olhos paravam vazios e, em um suspiro, voltava de
“seu repouso de tristeza”, com olhos completos de brandura e ignorância, parecia que voltava de uma floresta,
para a qual havia descoberto um atalho.
[…] Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa
esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o
noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa.
A roubar de leve ela também aprendera nas suas florestas.
(p. 124)
“A mensagem”
Narrado em 3ª pessoa, este conto trata da angústia.
Um dia, um casal se encontra e diz um ao outro que ambos sentem angústia, então, forma-se o pacto horrível,
porque somente naquele único dia eles se compreenderam com perfeição.
Ele, que recebera até então somente o afeto da mãe,
por vergonha, preferiu tratar a moça por camarada.
Eram ambos poetas e muito infelizes e precisavam um
do outro temporariamente. Eram obstinados rivais, apesar de ela ser tão feminina e ele tão indeciso, mas viril.
Além de tristes, eram orgulhosos e audaciosos, como se
fossem homossexuais de sexo oposto. (p. 128)
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Ensaiavam o tempo todo, o momento em que cada
um pudesse dar o grande voo solitário e o adeus um ao
outro:
para outra coisa, isso não se podia negar.” E era de um amigo que ele precisava. (p. 139)
“Menino a bico de pena”
Detestavam a palavra poesia, mas experiência não,
falavam sem pudor e, às vezes, até confundiam com
mensagem.
Chegou o dia em que estavam eles, rapaz e moça,
prontos para um acontecimento: de repente, viram-se
diante de uma grande casa antiga, vazia, enraizada, angustiada e calma. Uma mansão que eles olhavam como
crianças diante de uma escadaria. Ficaram ali por uns
instantes, presos pelo fascínio e pelo horror. Divididos
estavam entre o sonho de serem escritores (futuro inventado por eles mesmos) e o divertimento que era
muito diferente da angústia que os salvaria.
O rapaz, com um cinismo reconfortante, olhou curioso a moça e pensou se seria possível que uma mulher
soubesse o que é a angústia realmente. E viu que ela
não passava de uma moça e que mulher servia mesmo
era para outra coisa, não se podia negar.
Despediram-se, ela tomou o ônibus e partiu e ele
teve vontade de chorar… E agora, quem o deixaria que
fosse longe demais e se perdesse?
Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Mas dentro desse sistema de duro juízo final, que não permite nem
um segundo de incredulidade senão o ideal desaba, ele
olhou estonteado a longa rua — e tudo agora estava estragado e seco como se ele tivesse a boca cheia de poeira.
Agora e enfim sozinho, estava sem defesa à mercê da mentira pressurosa com que os outros tentavam ensiná-lo a ser
um homem. Mas e a mensagem?! a mensagem esfarelada
na poeira que o vento arrastava para as grades do esgoto.
Mamãe, disse ele. (p. 141)
E a palavra “angústia” (num processo metalinguístico) passa a ser analisada, assim como a relação entre
angústia-mulher:
10
Vendo-a afastar-se, ele a examinou incrédulo, com um
interesse divertido, “será possível que mulher possa realmente saber o que é angústia?” E a dúvida fez com que
ele se sentisse muito forte. “Não, mulher servia mesmo era
O menino é aquele em quem acabam de nascer os
primeiros dentes, não se sabe se será médico ou carpinteiro. É muito difícil desenhar esse menino (diz o
narrador em 1ª pessoa), já que, mesmo a bico de pena,
é ainda muito pequeno “e assim continuará progredindo até que, pouco a pouco — pela bondade necessária
com que nos salvamos — ele passará do tempo atual ao
tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existência à vida”. Por enquanto, ele senta-se no chão, ensaia
os primeiros passos, cai, levanta, chora, cansa e dorme.
Súbito, o menino desperta e que horror!, não vê a sua
mãe, “o que ele pensa estoura em choro pela casa toda”.
[…] Quase desfalece em soluços, com urgência ele tem
que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida
senão ele ficará só, tem que se transformar em compreensível senão ninguém o compreenderá, senão ninguém irá
para o seu silêncio, ninguém o conhece se ele não disser
e contar, farei tudo o que for necessário para que eu seja
dos outros e outros sejam meus, pularei por cima de minha
felicidade real que só me traria abandono, e serei popular,
faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico
chorar para ter em troca: mãe. (p. 145)
A mãe tira-lhe a fralda molhada e coloca outra bem
sequinha e os seus olhinhos também ficam assim: “secos
como a fralda nova”.
“Uma história de tanto amor”
Narrado em 3a pessoa este conto gira em torno do seguinte enredo: uma menina de tanto observar galinhas,
passa a conhecer-lhes a alma e os mais íntimos anseios.
Essa menina tinha duas galinhas: Pedrina e Petronilha.
Às vezes, achava que uma delas estava doente do fígado
e pedia, então, a uma tia, um remédio para tratá-las.
[…] A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns
pingos de café — e vinha o inferno de tentar abrir o bico
das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de
serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido
que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas; tanto o homem
como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha
é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à
própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar. (p. 148)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Talvez estivessem tão prontos para se soltarem um do
outro como uma gota de água quase a cair, e apenas esperassem algo que simbolizasse a plenitude da angústia
para poderem se separar. Talvez, maduros como uma gota
de água, tivessem provocado o acontecimento de que falarei. (p. 132)
Outro problema era quando a menina achava que as
galinhas estavam magras demais: ela “não entendera que
engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa”. A família da menina resolve, um dia, levá-la para passear na
casa de um parente e quando ela volta, sua tia conta que
haviam comido Petronilha. A menina passa a odiar a todos
na casa, menos a sua mãe, que não gostava de comer galinha e os empregados que haviam comido carne de vaca.
Mas por seu pai sente uma raiva muito grande. Sua mãe,
percebendo-lhe a angústia, explica à menina:
Ela deixa que a primeira onda lhe cubra o corpo, depois mergulha e os cabelos escorrem água salgada no
rosto e, enfim, com a concha das mãos cheia de água
salgada, bebe uns bons goles e agora o mar estava também dentro dela. Depois de ficar de pé parada no mar e
já sabendo o que quer “caminha dentro da água de volta
à praia”, pisa na areia. Brilham em seu corpo: água, sal e
sol. E a mulher “sabe que fez um perigo. Um perigo tão
antigo quanto o ser humano”.
“A quinta história”
— Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais
parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro
de nós. É uma pena. (p. 149)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Pedrina acabou morrendo de morte morrida e mais
tarde, quando a sua outra galinha, a Eponina foi para a
panela, a menina, que já estava maiorzinha, entendeu
que aquele era o destino fatal de quem nasce galinha.
[…] As galinhas pareciam ter uma presciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo.
Uma galinha é sozinha no mundo. (p. 150)
[…] E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na
gíria o termo galinha tinha outra acepção. (p. 148)
Como a menina não esqueceu o que a sua mãe disse sobre bichos amados, ela foi quem mais comeu com
prazer a Eponina, que se incorporaria nela para sempre,
ainda mais porque a galinha fora preparada ao molho
pardo e a menina, como num ritual pagão, “comeu-lhe a
carne e bebeu-lhe o sangue”.
[…] Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que
se tornou moça e havia os homens. (p. 150)
“As águas do mundo”
A mulher e o mar — o mais ininteligível dos seres vivos e a mais ininteligível das existências humanas. No
silêncio da praia vazia, às seis horas da manhã, a mulher,
sozinha, com coragem, entra no mar gelado e ele, o mar,
não está sozinho “porque é salgado e grande” (eis o assunto para este conto em 3ª pessoa).
[…] Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no
entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem. (p. 152)
Neste pequeno conto, narrado em 1ª pessoa, Clarice
Lispector trabalha com o processo metalinguístico, isto,
com a reflexão sobre o fazer literário. Trata-se de pequenas histórias (ou cinco versões) de como matar baratas
(aliás, uma das obsessões da autora). De uma receita (para
matar baratas) dada a ela por uma senhora que ouvira se
queixar de baratas, a narradora vai mostrando ao leitor as
várias maneiras de se contar uma mesma história. O início
do conto nos faz remeter ao livro A hora da estrela, em que
vários títulos para a novela são oferecidos:
Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro
nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar
Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras
porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única,
seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem. (p. 154)
“Encarnação involuntária”
Narrado em 1ª pessoa, assim se inicia o conto:
Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e
assim dou um grande passo para conhecê-la. (p. 158)
O maior risco de se encarnar em uma vida atraente
e perigosa é não querer mais o “retorno a mim mesmo”. Porque estava muito ocupada com seus deveres e
prazeres, incomodava-a muito encarnar a vida de uma
missionária que conhecera, um dia, no avião, mas já era
tarde, pois a encarnação acontecia sempre involuntariamente e, por mais que tivesse implorado a Deus que
não queria ser aquela missionária — “quando entrei no
avião estava tão sadiamente amoral. Estava, não, estou!”
—, fingindo ler uma revista enquanto ela lia a Bíblia, já
não houve mais jeito, só mesmo dali a dias conseguiria
recomeçar a sua própria vida que “talvez nunca tinha
sido própria, senão no momento de nascer, e o resto
tinha sido encarnações”. Certa vez, em uma outra viagem, encontrou uma perfumadíssima prostituta, que
fumava e olhava de maneira sensual para um homem
11
“Duas histórias a meu modo”
Também com foco narrativo em 1ª pessoa, o narrador conta um bom e divertido exercício de escrever que
praticou certa vez. Tomou-se como tema duas histórias
de vinho, inventadas por Marcel Aymé: na primeira, Félicien Guérillot, casado com Leontina (mulher “nem mais
bonita, nem bem feita do que o necessário para a tranquilidade de um honesto homem”), rico proprietário de
vinhedos, mas que sofria da maldição de não gostar de
vinhos e vivia a procurar aquele que o libertaria “de não
amar a excelência do que é excelente”. A esposa era a
sua cúmplice na ocultação de tamanha vergonha. Mas,
eis que, Marcel Aymé não quer mais escrever esta história, chateia-se e bebe vinho para esquecer: desistiu
de inventar uma história para Félicien, lamentando-se
muito que este personagem não fosse alguém que o interessasse e passa a outra história: à de Etienne Duvilé
e este gostava de vinho, mas não podia comprá-lo, pois
tinha em casa muitos filhos, esposa e um sogro — família pobre que vivia sonhando em ter uma mesa farta, enquanto Duvillé não parava de sonhar com o vinho. E de
tão desesperado pela bebida tem um pesadelo e acorda
odiando o sogro e esse ódio “mais uma sede parecia”. E
acordado já manifestava a doença: “queria beber todo
o mundo, e no distrito policial manifestou o desejo de
beber o comissário”. Então, até hoje, Duvillé permanece
no asilo de alienados e os médicos, sem compreendê-lo,
pretendem curá-lo dando água mineral, que acaba apenas com pequenas sedes e não com a grande.
Enquanto isso, Aymé, talvez de sede e piedade, ele mesmo tomado, espera que a família de Duvillé o envie à boa
terra de Arbois, onde aquele primeiro homem, Félicien
Guérillot, depois de aventuras que mereceriam ser contadas, o gosto pelo vinho já pegou. E, como não nos dizem de
que modo, também por aqui ficamos, com duas histórias
não bem contadas, nem por Aymé nem por nós mas de vinho quer-se pouco da fala e mais do vinho. (p. 163)
“O primeiro beijo”
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Neste conto que encerra Felicidade clandestina, narrado em 3a pessoa, em começo de namoro, a namorada,
com todo ciúme a que tem direito, pergunta ao namorado se ele já havia beijado uma mulher antes dela. Ele
diz que sim e tenta explicar, sem saber muito bem como
começar. Conta que, certa vez, estando num ônibus de
excursão, que subia a serra, viu-se, em meio a algazarra
dos companheiros, com uma sede absurda, que tendia
só a aumentar: “brincar com a turma, falar bem alto,
mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida!”. Aquela sede estava tomando-lhe o corpo
todo e a brisa já dava lugar ao sol de meio-dia. Talvez
ainda tivesse de esperar muito até poder matar aquela
sede alucinante. Quando, enfim, o ônibus parou num
chafariz, ele conseguiu chegar ao líquido milagroso antes de todos e bebeu a água até se saciar.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que
era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que
realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato
gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da
estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa
boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai líquido vivificador,
o líquido germinador da vida… Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado. (p. 166)
Naquele momento, o menino tornara-se homem
(sentindo jorrar de “uma fonte oculta nele a verdade”),
pois percebera, pela primeira vez, por causa daquele primeiro beijo, que uma parte de seu corpo antes relaxada,
agora mostrava-se com “uma tensão agressiva”. O susto
transformou-se em orgulho e, com o coração batendo
forte, sentiu que a vida era nova, transformada.
4.BIBLIOGRAFIA
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
PENHA, João da. O que é existencialismo, Rio de Janeiro: Brasiliense, 2001.
SARTRE, Jean-Paul. Sartre no Brasil: a Conferência
de Araraquara, Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra /
Unesp, 1986.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
que já começava a se interessar por ela. A mulher passa
a se comportar como a prostituta, tentando seduzir um
homem gordo que escolhera para experimentar uma
alma de prostituta, mas o homem não tirava os olhos do
jornal que estava lendo — “e meu perfume era discreto
demais. Falhou tudo”.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
1. (UFCE) A respeito do estilo da escritora Clarice Lis-
4. A figura presente no seguinte trecho, retirado do
pector, pode-se dizer (assinale Verdadeiro ou Falso):
I. Uma importante característica de sua obra é a captação do fluxo da consciência, num verdadeiro mergulho na subjetividade da personagem.
II. Em suas obras, a reflexão sobre a existência humana
desencadeia-se, muitas vezes, a partir de acontecimentos aparentemente triviais.
III. Suas personagens são construídas com a objetividade de uma perspectiva determinista e mecanicista.
IV. A autora revela uma percepção aguda de detalhes.
V. A erudição e a complexidade sintática de sua linguagem a
aproximam de escritores como Euclides da Cunha.
conto “A repartição dos pães”, do livro Felicidade clandestina, de Clarice Lispector — Ocupados como quem
lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come — chama-se:
a) metonímia.
b) catacrese.
c) polissíndeto.
d) hipérbato.
e) antonomásia.
a) V – V – F – V – F
b) F – V – F – V – F
c) V – V – F – F – V
d) V – V – V – V – F
e) F – V – F – V – F
2. (U. F. Santa Maria-RS) Considere as afirmativas:
I. Frequentemente, as personagens de contos de Clarice Lispector vivem perturbações psicológicas desencadeadas por visões que lhe são reveladoras.
II. As situações focalizadas na ficção de Clarice Lispector contemplam uma ansiedade por profundas mudanças sociopolíticas em torno das quais as personagens debatem-se com ardor.
III. Os contos de Clarice Lispector apresentam passagens em que as referências ao mundo nebuloso e
abstrato se refletem na composição, colocando em
questão o sentido convencional da narrativa.
Está(ão) correta(s):
a) apenas I.
b) apenas I e II.
c) apenas I e III.
d) apenas II e III.
e) apenas III.
3. Além de Clarice Lispector, que outro autor do Modernismo brasileiro explorou a prosa introspectiva, recebendo forte influência machadiana?
a) José Lins do Rego
b) Jorge Amado
c) José Américo de Almeida
d) Graciliano Ramos
e) Marques Rebelo
Leia o trecho a seguir, do conto “Os desastres de Sofia”, retirado do livro Felicidade clandestina, de Clarice
Lispector, para responder às questões de 5 a 8.
Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o
abandonara, mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos
dele.
O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros
contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com
um fio de ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu
era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos
ensinar e que, ofendida, eu adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas, interrompia a lição com piadinhas, até que ele dizia,
vermelho:
— Cale-se ou expulso a senhora da sala.
Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me
mandar! Ele não mandava, senão estaria me obedecendo.
Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para
mim ser o objeto do ódio daquele homem que de certo
modo eu amava. Não o amava como a mulher que eu seria
um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera de que ainda não
foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos.
5. (Fuvest-SP) Qual o significado que se pode dar a e
passara pesadamente a ensinar no curso primário?
6. (Fuvest-SP) Que significado se pode dar à expressão
ombros contraídos, de que a autora se serve para caracterizar o professor?
13
7. (Fuvest-SP) Quais as expressões que, no texto, exemplificam o sentido de passei a me comportar mal?
8. (Fuvest-SP) O sentimento que o narrador-personagem tem pelo professor é ambíguo ou não? Explique.
9. (UFRS, adaptada) A prosa de Clarice Lispector:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a) filia-se à ficção romântica do século XIX, ao criar heroínas idealizadas e mitificar a figura da mulher.
b) define-se como literatura feminista por excelência,
ao propor uma visão da mulher oprimida num universo masculino.
c) prende-se à crítica de costumes, ao analisar com
grande senso de humor uma sociedade urbana em
transformação.
d) explora até as últimas consequências, utilizando embora a temática urbana, a linha do romance neonaturalista da geração de 1930.
e) renova, define e intensifica a tendência introspectiva
de determinada corrente de ficção da segunda geração modernista.
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1. a
2. c
3. d
4. c
5. O sentido da frase pode ser entendido como alguém que já está enfastiado. A autora usou o termo pesadamente, referindo-se ao fato de o professor ser gordo, pesado.
6. Clarice Lispector usou uma metonímia (a parte pelo todo) para caracterizar a personalidade do professor.
7. Falava alto, mexia com os colegas, interrompia o professor.
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8. Sim, o sentimento que a narradora-personagem nutria pelo professor era ambíguo já que ela, ao mesmo tempo
em que o destratava, sentia-se atraída por ele.
9. e
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