Considerações sobre a elaboração de projeto de pesquisa em psicanálise Manoel Tosta Berlinck Um projeto de pesquisa é um objeto escrito que resulta de um processo de elaboração, esclarecimento e precisão. Neste trabalho pretendo fornecer ao leitor alguns elementos que sirvam de referência para a elaboração de um projeto de pesquisa. Antes, porém, é necessário explicitar algumas considerações a respeito da importância e da especificidade de um projeto de pesquisa em psicanálise. A pesquisa em psicanálise faz parte da atividade clínica do psicanalista, ou melhor, a clínica psicanalítica é, também, uma intensa atividade de pesquisa em que se engajam paciente e psicanalista. Entretanto, essa atividade de pesquisa não termina quando o psicanalista encerra suas atividades cotidianas. Ela faz parte, também, da própria formação do psicanalista que, é sempre bom lembrar, se apóia em sua análise pessoal, em sua atividade de supervisão e nos estudos que empreende. Esses estudos vem, recentemente, ocorrendo no âmbito da universidade e, dentro dessa instituição, a atividade de pesquisa adquire outros significados. Assim, ao contrário do que ocorre no âmbito da clínica, onde o psicanalista não explicita nada além de que ele é um psicanalista, no âmbito universitário é necessário que ele acrescente especificidade e clareza em sua atividade de pesquisa. Assim, por exemplo, quando um paciente, numa entrevista preliminar, indaga qual minha linha de trabalho, costumo responder que minha linha é a de pescar. Ou seja, por estar numa situação clínica vejo-me na contingência de manter a ambigüidade necessária para que o contrato psicanalítico seja feito. Se disser aos colegas universitários que estou ali para pescar, certamente produzirei um intenso estado de estranhamento e, provavelmente, produzirei fantasias exóticas. Algumas vezes sou procurado por estudantes solicitando orientação de dissertação ou de tese e quando pergunto qual o tema de pesquisa que pretendem desenvolver na universidade, ouço uma estranha resposta: "Estou meio perdido. Não sei direito o que quero fazer". Quando isso ocorre, costumo sugerir ao estudante que ele, primeiro, se ache e depois me procure para conversarmos. Ou seja não considero recomendável que um professor defina um tema de pesquisa para um psicanalista já que este deriva da sua atividade clínica e não da do professor. Um psicanalista que não sabe qual o tema que deseja pesquisar mas procura a universidade é, em geral, alguém que não está pronto para freqüentar um programa de pós-graduação em psicanálise. O primeiro passo para elaborar um projeto de pesquisa em psicanálise é perceber então, que ele nasce na atividade clínica e é um prolongamento desta. O segundo passo porém, é o de reconhecer que a universidade possui requisitos de precisão e clareza que são muito diferentes do que ocorre na clínica onde predomina aquilo que chamo de epistemologia onírica, em que a transferência comanda o ritmo da investigação. Assim, entre a clínica e a universidade há uma distância que vai sendo preenchida pela formulação do projeto de pesquisa. O primeiro passo que vai da clínica à universidade é a escolha de um tema. Assim, por exemplo, meu tema de pesquisa, nos últimos 16 anos é: a noção de sujeito em psicanálise. A escolha de um tema de pesquisa em psicanálise, ainda que se derive da clínica e dela faça parte, quando é desenvolvido na universidade, precisa ser pensado em relação ao tipo de posição que o pesquisador ocupa. Assim, um tema de pesquisa para uma dissertação de mestrado é muito diferente de um tema de pesquisa para quem está na universidade há 40 anos. O mestrando está iniciando sua carreira de pesquisador universitário e deve ser bastante modesto em suas pretensões. O mestrado é uma primeira etapa da pósgraduação que visa a formação de doutores, ou seja, de pesquisadores autônomos, que dispensam o trabalho do orientador. No mestrado, o futuro pesquisador está começando a fazer pesquisa universitária e, por isso, deve ter cuidado em não eleger um tema tão vasto e complexo como "a noção de sujeito em psicanálise". Um projeto de pesquisa visando a obtenção do grau de mestre deve durar, no máximo, dois anos, incluindo a redação da dissertação, e o pesquisador deve estar cônscio disso. O bom pesquisador deve ser audacioso e ambicioso na escolha de seu tema de pesquisa, mas deve recortá-lo, de forma a permitir a feitura de uma dissertação de mestrado. O mesmo tema pode ser retomado, depois, no doutorado onde um novo projeto de pesquisa, mais sofisticado será solicitado. O doutorado deve ser realizado, atualmente, em quatro anos e o pesquisador deve levar em conta essa exigência universitária na maneira como recorta seu tema de pesquisa. Digo isso, porque penso, como os grandes pesquisadores, que um tema de pesquisa é tão interessante quanto mais respostas solicitar. Em outras palavras, as respostas são, neste âmbito, muito menos importantes que as perguntas. Quando o doutorado termina, o pesquisador deve estar apto a formular um projeto de pesquisa e a realizá-lo sem a ajuda de um orientador. Mas isso freqüentemente não acontece pois seis anos e meio é pouco para se formar um pesquisador autônomo competente. É por isso que as universidades oferecem hoje programas de pós-doutorado onde o pesquisador experimenta sua autonomia num ambiente suficientemente bom para que ele possa voar sozinho, sentindo-se seguro e perto de pesquisadores mais experientes, a quem ele pode recorrer quando se sentir inseguro ou num beco sem saída. A escolha de um tema é, portanto, um passo que não é primeiro e que circunscreve um campo restrito no interior da psicanálise. Dizer que pesquiso a noção de sujeito na psicanálise já é uma primeira especificação. Entretanto, é algo que ainda é muito vasto, muito amplo e que requer, ainda, muito trabalho para se transformar num projeto de pesquisa. Uma pesquisa em psicanálise se sustenta, então, em primeiro lugar, pela transferência. Esta, por sua vez, por colocar o psicanalista num lugar muito específico que é o lugar de um saber a respeito de um enigma, lança imediatamente o psicanalista numa atividade de pesquisa pois ele sabe ou, pelo menos desconfia, de que ele não sabe aquilo que o paciente supõe que ele sabe. O tema de pesquisa contém, portanto, um enigma que precisa ser especificado pelo psicanalista. Este enigma pode ser traduzido como sendo uma discrepância entre aquilo que é e aquilo que deveria ser. O reconhecimento do enigma produz então, uma situação problemática que requer um trabalho de especificação. Assim, prosseguindo no exemplo que dei acima, o tema a noção de sujeito em psicanálise, se transforma numa situação problemática quando consigo formular um enigma, uma discrepância entre aquilo que é e o que deveria ser. Neste caso específico, o enigma se refere à descoberta absolutamente corriqueira de que muita gente apresenta sintomas, sofrimento psíquico, atos falhos, tragédia e, no entanto, que leva alguns a um interminável processo psicanalítico, não produz, freqüentemente, nenhum efeito desse tipo ainda que as pessoas saibam da existência da psicanálise. Dizendo de outra forma, porque determinadas pessoas se engajam numa análise pessoal enquanto outras, que manifestam os mesmos sintomas, não se engajam ? É claro que o enigma, assim formulado, não me leva longe já que não tenho como saber sobre as pessoas que não se analisam. Mas a pergunta assim formulada me serve para pensar e pesquisar sobre a natureza da crise psíquica que empurra alguém para uma análise, ou seja, abre um enorme espaço de pesquisa que é o que me interessa. O pesquisador, então, não deve se preocupar muito com as respostas mas com as perguntas que possam sustentar sua atividade de pesquisa. Esse enigma se transformou-se assim, numa situação problemática, ou seja na especificação de um enigma que me pesca. Na verdade, depois de 16 anos de empenho nessa tarefa, não estou minimamente interessado em encontrar uma resposta que me satisfaça, para esse enigma. Ao contrário, o enigma sustenta uma série de atividades que são, em si, estimulantes e gratificantes. Há, portanto, na formulação de uma situação problemática, uma específica articulação entre uma matriz biológica que sustenta um desejo de saber, e uma matriz cultural que produz um efeito de significação que constitui o sujeito. Em outras palavras, eu me reconheço como um psicanalista que se dedica a investigar uma situação problemática que implica meu corpo, minha energia em direção à matriz cultural, que vai atribuindo sentido a essa minha inquietação, que se traduz por essa situação problemática. Resumindo, então, um projeto de pesquisa contém: A. um tema de investigação, ou seja, um campo circunscrito em que a pesquisa vai ocorrer e, B. uma situação problemática, ou seja, um enigma, uma discrepância entre aquilo que é e aquilo que deveria ser, que é formulado pelo pesquisador. Entretanto, esses são apenas os dois primeiros passos de um projeto de pesquisa. C. o terceiro passo para que um projeto de pesquisa se constitua, refere-se ao estabelecimento de uma teia de relações entre a situação problemática e a produção cultural já existente a respeito do enigma formulado. Uma situação problemática encontra na matriz cultural a sua filiação e a sua especificação. Isso se traduz, na formulação de um projeto de pesquisa, num levantamento bibliográfico que situe e especifique ainda mais a situação problemática. Assim no projeto que está servindo de exemplo, realizei, em primeiro lugar, uma pesquisa na obra de Freud para ver o que ela diz a respeito da noção de sujeito e descobri que ela não diz, explicitamente, quase nada. Descobri, nas poucas vezes em que Freud emprega a expressão "sujeito", que ele está se referindo ao sujeito da enunciação. Descobri, também, que o eu possui, em Freud, também um significado de sujeito. Descobri, finalmente, que ainda que Freud não trate da noção de sujeito, há, em sua obra, uma clara noção subsumida de sujeito que requer explicitação. Nessa altura, já sabia que Lacan havia se dedicado a tratar a noção de sujeito e isso me fez ler Lacan. É necessário observar então, que a revisão da literatura pertinente sobre uma situação problemática e subordina a essa. Tenho lido uma série de projetos de pesquisa que fornecem uma lista de livros a serem lidos pelo pesquisador. O que o pesquisador pretende ler interessa muito pouco para um projeto de pesquisa. As citações bibliográficas em um projeto de pesquisa possuem uma função muito precisa: a de articular a situação problemática a uma tradição de pensamento que se dedicou a elaborar e esclarecer o enigma contido na situação que se pretende pesquisar. Além disso, a articulação entre a situação problemática e a bibliografia se faz visando especificar, ainda mais, o enigma a ser investigado. Assim, Lacan me ensinou que a noção de sujeito está intimamente articulada à noção de significante. Freud, por sua vez, ensinou-me que não há outro caminho de subjetivação humana que não seja pela via do patológico. Então, a noção de sujeito em psicanálise supõe uma articulação entre significante e psicopatologia. Mas, não tinha certeza sobre essa constatação. Dizer, então, que a noção de sujeito em psicanálise depende de uma articulação entre significante e psicopatologia é formular uma hipótese que passa a orientar o meu trabalho de pesquisa. Neste ponto, quando se formula uma hipótese de investigação temos , então, um problema de pesquisa . Em outras palavras, o problema de pesquisa é uma especificação de uma situação problemática e essa especificação é concluída com uma hipótese, ou seja, numa sentença que estabelece uma relação entre dois conceitos, relação essa que requer demonstração, comprovação, argumentos que a sustentam. Resumindo, então, um projeto de pesquisa contém: A. um tema a ser pesquisado; B. uma situação problemática; C. uma revisão da bibliografia ; D. um problema de pesquisa que inclui uma hipótese que orienta o trabalho de pesquisa. A partir desse ponto, as coisas ficam um pouquinho mais fáceis pois entramos na parte prática do projeto. O que falta no projeto ? Dizer, é claro, como a pesquisa vai ser realizada, ou melhor quais os passos que o pesquisador pretende dar para concluir a pesquisa ? Essa parte do projeto é chamada metodologia. No caso da pesquisa sobre a noção de sujeito em psicanálise, a metodologia é um conjunto de procedimentos que incluiu: uma pesquisa bibliográfica sobre a noção de sujeito na filosofia para se revelar as diferenças específicas entre a noção de sujeito filosófico e a noção de sujeito em psicanálise. Além disso, a pesquisa bibliográfica se estende a noção de significante; A. uma pesquisa bibliográfica sobre o que é psicopatologia e como se manifesta; B. uma pesquisa clínica sobre como a psicopatologia opera uma ação que produz um efeito de subjetivação no significante. Além de se determinar os principais passos que o problema de investigação solicita, a metodologia inclui uma descrição, a mais específica possível, das maneiras como a pesquisa será realizada. C. Após a formulação da metodologia, o pesquisador deve conceber o tempo necessário para realizar cada etapa da pesquisa. A essa fase do projeto dá-se o nome de cronograma. Finalmente, o pesquisador deve conceber os recursos materiais necessários para que sua pesquisa ocorra. A essa fase do projeto, em que se inclui tanto a descrição dos recursos materiais necessários com seu custo discriminado, dá-se o nome de orçamento. Resumindo, então, um projeto de pesquisa inclui: 1. um tema de investigação; 2. uma situação problemática; 3. uma revisão da literatura; 4. um problema de investigação; 5. uma metodologia de pesquisa; 6. um cronograma e , 7. um orçamento. Quando todas essas etapas estiverem escritas, é aconselhável que o pesquisador redija um resumo de 10 a 20 linhas que explicite o seu projeto. Esse resumo, além de ser útil para o leitor do projeto e ser , muitas vezes um requisito de fontes financiadoras de pesquisa, é muito esclarecedor para o pesquisador que, dessa forma, torna ainda mais preciso o seu problema de investigação para si mesmo. Um projeto de pesquisa deve ser muito bem apresentado. Deve ser escrito em bom português, sem erros ortográficos ou de composição. Deve revelar, em outras palavras, que o pesquisador trabalhou e investiu nele. Um projeto de pesquisa com uma apresentação gráfica desleixada, feia, mal elaborada, é, freqüentemente rejeitado por aqueles que o julgam tendo em vista financiamentos ou entradas em programas universitários de ensino e pesquisa. Jovens pesquisadores freqüentemente me perguntam quantas páginas deve conter um projeto de pesquisa. Respondo que isso varia de acordo com a finalidade do projeto. Mas acrescento que ele não deve ultrapassar 30 páginas e que o pesquisador deve estar pronto a reformulá-lo, reduzi-lo dependendo da situação específica. Recomendo, também, que o projeto seja discutido com colegas e professores, pois isso ajuda o trabalho de especificação do projeto e da pesquisa. Alguém que esteja começando a sua carreira de pesquisador na universidade pode pensar que está perdendo tempo precioso formulando um projeto de pesquisa e que deveria estar empregando esse tempo fazendo a pesquisa. Fazer pesquisa sem projeto é como construir casa sem uma planta. Ou a casa é muito simplisinha e pode ser construída sem a planta, ou a casa é complexa e se torna um verdadeiro frankenstein. Além disso, se não há uma cuidadosa planta que detalhe, não só a arquitetura, mas também a parte hidráulica e elétrica, o gasto de tempo, material e dinheiro torna-se brutal. Na pesquisa universitária então, a falta de um projeto precisamente formulado, pode lançar o pesquisador num labirinto sem saída que pode ter conseqüências trágicas. Um projeto cuidadosamente elaborado facilita muito a vida do mestrando, do doutorando, do orientador, da fonte financiadora que concede bolsa e auxílio à pesquisa e da universidade, que freqüentemente, é solicitada a dizer o que estão fazendo seus professores e estudantes. Um pesquisador deve, com freqüência, voltar a ler seu projeto de pesquisa, e modificá-lo à medida em que a pesquisa se desenvolve. Esta prática é muito útil pois reorienta e redireciona o pesquisador, dando-lhe fôlego para continuar seu trabalho. Por isso, recomendo aos psicanalistas que pretendem ingressar na universidade para pesquisar, que tenham sempre à mão um projeto de pesquisa bem elaborado.