TINHA QUE DAR NISSO Ela começou lendo diariamente as páginas dos jornais. Quando viu que a inflação não despencava nem com a troca de ministros, e que alguns fazendeiros incendiavam cafezais desiludidos com a baixa cotação do café, ela passou para as páginas policiais. “Só podia dar nisso – ela pensava – a recessão aumentando a delinqüência”. E continua a leitura de jornais: “mercado de automóveis paralisado”, “Fornecedores de cana-deaçúcar sem crédito”, “Metalúrgicos ameaçam greve”, “Fabrica fecha em Conselheiro Lafaiete”, “Pedreiro desempregado mata o filho e tenta o suicídio”, “Ladrões limpam mansão no São Bento”. Ela não consegue perder o interesse por esse noticiário – era uma compulsão. Recesso rimando com marginalidade. Tosos os dias. Daí para ficar com mania de perseguição foi um pulo. - Meu bem – pergunta ao marido – não é melhor a gente colocar grade na casa de Cabo Frio? Com tanto crime por aí, tanto desemprego... Como o marido concordou, vejam o que eles precisam levar agora quando vão passar alguns dias naquela casa gostosa com cheiro de mar: 25 chaves com bolinhas pintadas em cores diferentes para serem identificadas. Cor laranja para as duas tetra chaves da porta principal; amarelo para o pega- ladrão da parte interna; verde para o relógio de luz; vermelho para o cadeado à esquerda da janela do quarto de casal; marrom para o cadeado à direita do quarto de casal; rosa para a porta do quarto de Gracinha; azul para a grade de cima da varanda; roxo para a parte baixa da grade da varanda; cinza para o armário onde fica guardada a televisão... Está na cara que a mania não podia se limitar à casa de Cabo Frio. Carminha já se preocupou com o porteiro do prédio. “Será que ele fica mesmo sem dormir a noite inteira? Será que não é perigoso ele ficar ali sozinho na guarita? Que tal colocar grades na guarita?” – ela perguntava ao marido, que nem prestava atenção. Agora pegou no pé da cozinheira. - Dalva, não anda sozinha de ônibus porque os pivetes estão assaltando quase todos os ônibus. - Dalva, vai menos à igreja. Reza aqui mesmo. Deus está em todo lugar, mas você, em casa, está mais segura. Será? De qualquer maneira, achou melhor também colocar grades no seu apartamento térreo. E foi fechando, gradeando, inventando moda. Até a porta do corredor que separa a sala de almoço da parte íntima da casa tem duas tetra chaves. Os filhos estão furiosos. Ô mãe, esta chave é tão grande que se houver uma batida policial no barzinho, posso ser detido por porte de arma. Nada acaba com o medo de Carminha. - Toma floral de Bach que você perde o medo aconselha a irmã. - Mas eu não quero perder o medo. Se eu não proteger minha família, quem vai proteger? Até meu marido está com mania de ser valentão, me critica, diz que estou exagerando. Logo ele, que tinha tanto bom senso... Quando ela soube da demissão coletiva dos ministros teve uma crise. - Agora ninguém segura a criminalidade. Estamos perdidos!... Carminha só se acalmou quando à noite viu a cara mansa do ministro Marcílio Marques garantindo que fica, e os empresários dando o maior apoio. Quando ela viu a foto do porta-voz Cláudio Humberto indo embora para Portugal ficou mais aliviada ainda. - Quer dizer que as coisas no Brasil estão mudando... Bem, ela continua lendo as páginas de economia e de polícia, mas já consegue dar uma olhadinha nas manchetes esportivas e notícias de moda. “Williams é a favorita no GP do Brasil”. “Pied-de-poula vai ser o máximo no inverno”. Outro dia até copiou uma receita de culinária. Realmente, Carminha voltou a ser feliz. Também pudera! Com grades em todas as janelas, tetra chave até na porta do elevador e um sistema de alarme de alta tecnologia, ela nunca se sentiu tão livre como agora. Bendidas grades, amada liberdade!