Reflexões de Cinema
A ideia desta coluna não é uma crítica cinematográfica, mas trabalhar sobre os temas tratados nos filmes
para convidar a algumas reflexões. Recomendamos ao leitor ver o filme para melhor desfrutar dos aspectos
aqui tratados.
Relatos Selvagens
Por Marco Guimarães e Myrthes Gonzalez
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O filme de Damian Szifron, produzido por Pedro Almodóvar traz tons de Um Dia de Fúria de Joel
Schumacher. Aqui, porém, não temos apenas uma, mas seis historias cujo fio condutor é a reação
inesperada e desesperada frente a um transbordamento do limite do tolerável diante de uma determinada
situação. Ao contrario do que fazemos normalmente, os personagens decidem reagir e ir até as ultimas
consequências na indignação.
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Mesmo sem perceber, diariamente somos submetidos a situações que são humilhantes e indignantes.
Fomos educados para manter o controle e nos submeter, para não questionar. Quando temos a chance
fazemos pequenas vinganças disfarçadas, que em psicologia costumamos chamar de atuações. Às vezes,
também liberamos a raiva sob a forma de mau humor com as pessoas mais próximas ou mesmo nos
jogamos em atividades que “gastem” a energia que a indignação nos causa. Outras vezes, simplesmente nos
deprimimos e adoecemos. A conduta de liberar nosso protesto e colocar em ação a indignação costuma ser
muito mal vista em nossa cultura. Por outro lado, a conduta sínica, violenta e cotidiana, a usurpação dos
direitos deve ser tolerada, engolida em seco pelos cidadãos ditos civilizados. O fio da navalha que separa a
civilização da barbárie transita por uma realidade crua e imprevisível.
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1. O bullying, o maltrato, a desmoralização e falta de cuidado geraram em Gabriel Pasternak o desejo
de vingança que foi sendo construído laboriosamente durante anos. Como em um microcosmo de
11 de Setembro, Gabriel deixa de ser músico para se dedicar à aviação e finalmente reunir todos os
seus desafetos em um mesmo avião, que terá um desfecho catastrófico no quintal de seus pais.
2. Uma jovem garçonete em um restaurante de estrada vazio numa noite de chuva se vê frente a
frente com um único cliente que foi o político corrupto que provocou a morte de seu pai, a perda da
casa da família e a infelicidade da sua mãe. A jovem mulher, que pensa em dizer alguns desaforos ao
político, tem como alter ego a cozinheira, uma senhora atarracada e com olhar alucinado, que quer
a todo custo envenenar o político.
3. Desde a animação Pateta no Transito de Disney (este vídeo está disponível em nossa revista deste
mês) que o cinema vem retratando nossa transformação dentro da proteção de um carro. Quando
dirigimos fazemos muitas coisas que não faríamos se não estivéssemos em nosso escudo de aço. Na
terceira historia “O mais forte”, vamos revelar o carro como símbolo de status e virilidade. O que
inicia com um aparente “luta de classes”, onde um veículo flagrantemente decadente tenta impedir
a passagem de um último tipo potente e veloz, vai descambando para uma medição de potência
viril. A disputa se transforma quase em uma dança que por traz da agressividade traz uma
sensualidade oculta, sugerida por músicas inusitadas na cena. A medição de forças, a vingança
parece ter um desejo oculto como motivação de fundo - não é por acaso que a hipótese da polícia
para a morte dos dois ocupantes seja “crime passional”.
4. Em “Bombita” vemos a violência do estado contra o cidadão sob a forma de multas de trânsito. A
multa deixa de ter a função de inibir ou “educar”, e passa simplesmente a ser uma indústria de
dinheiro fácil e arrecadação garantida por uma intrincada rede de armadilhas e obstáculos ao
cidadão. Ricardo Darín (um engenheiro de implosões) acaba por encarnar o herói das sombras
quando milimetricamente devolve ao departamento de transito de Buenos Aires toda a indignação
dos Porteños achacados pelo sistema.
5. O enredo “A proposta” conta a historia de um jovem rico e mimado que atropela e mata uma
mulher grávida e foge sem prestar socorro para se esconder na casa dos pais. O pai, auxiliado por
um advogado, pede ao jardineiro da casa, um trabalhador pacato e humilde, que assuma a autoria
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O filme passeia por seis situações que costumam ser toleradas e disfarçadas no cotidiano:
do crime em troca de uma polpuda quantia em dólares. A partir deste, desgraçadamente corriqueiro
episódio, começa a se revelar uma rede infinita de corrupção e tentativas de tirar vantagem da
situação em todas as instâncias, inclusive pelo humilde jardineiro. O atropelamento vira um produto
de valor agregado, onde o preço final será impagável.
6. “Até que a morte nos separe” inicia com uma feliz festa de casamento. Em um determinado
momento a noiva percebe que uma das convidadas é amante de seu marido. Em um ritmo frenético
se desata uma onda de vingança que em questão de alguns minutos revela uma trama passional que
poderia se vir a se desenvolver durantes anos de relação. A compactação temporal do processo de
vingança no curto espaço da cerimonia de casamento mostra uma densidade de emoções
imprevisíveis e um não menos desconcertante desfecho.
Apesar da dramaticidade das historias, que parecem tão reais que beiram o surreal, quase Dantesco, Relatos
Selvagens é um filme de humor refinado. O fato de rirmos de situações tão violentas é por que nos
identificamos de alguma forma com os furiosos personagens. Talvez uma parte de nós gostaria de fazer
exatamente o mesmo diante da impotência contra o sistema, das agressões do cotidiano e das relações nas
grandes cidades cada vez mais decadentes.
Por outro lado, nos convida a pensar quanto vale uma pequena rusga ou uma réplica que acarretará uma
tréplica e assim por diante. As reações que temos no calor do momento – ou que ficam acumuladas por
inúmeras pequenas alfinetadas durante nossa vida – podem mudar em um segundo o rumo da história.
Vislumbrando com sabedoria os próximos trôpegos passos da infinita cadeia de consequências podemos ter
a lucidez da escolha – ou não.
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