CULTURA
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SÁBADO, 28 DE FEVEREIRO DE 2009
FLORIANO BORTOLUZZI, 9/1/1967
M EMÓRIA
“O gesto puro que
separa o Bem do Mal”
No livro “Mitologias”, o filósofo francês Roland Barthes dedica um longo
capítulo à luta livre, que ele classifica como “um espetáculo de excessos”
A função de cada um não seria a de vencer, mas a de interpretar seu personagem
a contento. Segundo Barthes, o público não
estaria preocupado se as lutas têm seu desfecho combinado ou não. Para os aficionados,
o que importa é abandonar-se à virtude primária do espetáculo, que é a de abolir todas
as motivações e todas as consequências: o
que importa não é o que se pensa, mas o que
se vê.
Tanto mais vis, covardes e ardilosas sejam
as atitudes do lutador malvado, tanto maior
será o prazer do público, confiante de que
essas atitudes serão vingadas olho por olho e
dente por dente (e, na verdade, não é tão raro
assim os lutadores perderem alguns dentes
nas lutas). Cada momento em um espetáculo de luta livre teria a precisão de um exercício de álgebra, em que instantaneamente se
expõe a relação entre causa e efeito. E de nada adianta o lutador mau buscar refúgio nas
cordas: a plateia, na sua insaciável sede de
justiça, autoriza o combatente do Bem a vio-
lar algumas regras – o que importa é fazer a
justiça, não?
Em resumo, um lutador de luta livre pode
irritar ou revoltar sua plateia, mas ele nunca
frustra o que se espera dele, seja para o Bem
ou para o Mal. Na luta livre, não existiria nada exceto o absoluto. Não haveria símbolos,
nem ilusão, tudo seria exposto à exaustão.
Sem deixar nada na sombra, ao descartar
quaisquer significações que não sejam as
essenciais, a luta livre proporciona ao público um significado puro e integral, em uma
grandiloquência que poderia ser resumida
como a mais perfeita percepção da nossa realidade.
No ringue, os lutadores conquistam, mesmo que por instantes, a condição de deuses,
porque eles são a chave que decifra a Natureza, o gesto puro que separa o Bem do Mal e
revela uma forma de justiça que é, finalmente, inteligível.
Quem diria que Scaramouche e Gran Caruso poderiam ser deuses...
BANCO DE DADOS
R
oland Barthes (1915 –
1980) foi escritor, sociólogo,
crítico literário, semiólogo
e filósofo, mas não deixava
que sua formação erudita
o impedisse de explorar
temas populares. Em seu
segundo livro, Mitologias
(1957), um dos capítulos é
reservado para os espetáculos de luta livre, que ele define como “um
espetáculo de excessos”.
Para o francês, a luta livre encena sobre o
ringue o conceito moral de justiça. De um
lado, um lutador personificando o Mal, de
outro, um paladino do Bem. O próprio corpo dos contendores deixaria evidentes as
intenções de cada um: o malvado com uma
aparência asquerosa, gordo e descuidado
com seu visual, enquanto o bonzinho é atlético e simpático, exibindo um penteado que
raramente se desarruma, malgrado quantas
pancadas lhe sejam endereçadas.
Um ringue que dá a volta ao mundo
do Pão dos Pobres.
Nos canais pagos, o que fica claro é como
a luta livre é um grande e lucrativo negócio
nos Estados Unidos. Principalmente nos
programas produzidos pela World Wrestling Entertainment (WWE), a maior corporação privada de lutas livres esportivas
do mundo, que fatura mais de US$ 400 milhões por ano. As lutas da WWE esbanjam
glamour discutível: os lutadores, com um
físico exuberante e suspeito de ser turbinado por esteroides, interpretam personagens
bem definidos. A entrada de cada um deles
ALEX CRUZ, EFE
No Brasil, a luta livre viveu seu período
de ouro entre nas décadas de 1960 e de
1970 – desde então vem em queda livre. O
destaque atual segue com Antônio Carlos
de Aquino, mais conhecido como Michel
Serdan. O empresário e lutador paulistano
lidera um grupo de 60 lutadores que ainda
consegue manter uma média de sete apresentações mensais em ringues espalhados
pelo país. Serdan segue lutando para colocar o telecatch de novo na programação das
TVs. Em Porto Alegre, a última luta importante de telecatch foi em 2001, no ginásio
BANCO DE DADOS
Sapatilhas de luta de Santo, um venerado lutador mexicano, depois astro de cinema no país
em cena, quer dizer, no ringue, é um ritual
cuidadosamente coreografado, que inclui
fogos de artifício e mulheres insinuantes.
O tempo do limão nos olhos ficou para
trás: os lutadores usam cadeiras, mesas, escadas e tudo que puder ser levado ao palco.
Não raro, as escaramuças ganham os bastidores. Os desentendimentos entre os grandalhões alimentam também um rentável
mercado de revistas, games, roupas, equipamentos e CDs, todos relacionados com
os gladiadores da WWE (o difícil é não ser
nocauteado pelo CD em que os próprios lutadores interpretam músicas que têm a ver
com seus personagens).
A luta livre também prospera no México, onde se caracteriza pela overdose de
máscaras e piruetas espetaculares. Personagens como o embuçado Santo viraram
astros do cinema, mas os homens não são
as únicas estrelas da chamada lucha libre
– a partir dos anos 1990, cresceu a participação de mexicanas lutadoras. Nos últimos
anos, uma das sensações é Maximo, um
combatente que tem como seu golpe mais
contundente um beijo estalado na boca do
adversário. A aparência deste combatente sugeridamente gay é o máximo: ele usa
saiote como na Roma antiga e um corte estilo moicano com o cabelo tingido de rosa.
Na Bolívia, a atração são as cholitas luchadoras. Elas sobem ao ringue vestindo saias
e várias anáguas, no melhor estilo aimará,
mas a delicadeza feminina some assim que
bate o gongo, e as cholitas viram bicho, trocam golpes e insultos, cospem no público.
Vale tudo para conquistar a plateia.
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“O gesto puro que separa o Bem do Mal”