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Observador Online
País: Portugal
Âmbito: Informação Geral
ID: 57954967
15-02-2015
OCS: Observador Online
Os portugueses que querem pôr a Europa a ´tweetar´ sobre crises
URL:
http://observador.pt/especiais/os-portugueses-que-querem-por-europa-tweetar-sobrecrises/
Num tempo em que as redes sociais se tornaram poderosas formas de comunicação, como conseguir
que elas sejam ferramentas úteis à proteção civil e aos cidadãos? A resposta tem dedo de
portugueses. Um número anormal de tweets sobre um pequeno aeroporto no leste da Finlândia
começa a aparecer aos utilizadores do Twitter em todo o mundo. O que se passa? Ao que parece, uma
aeronave teve um acidente e as pessoas perto do aeroporto de Kuopio foram as que primeiro
repararam nisso, começando imediatamente a invadir as redes sociais com informações diversas. Há
fumo. É provável que haja mortos. Aliás, parece que o próprio Justin Bieber ia a bordo e pode ter
morrido. Como devem os serviços de emergência e proteção civil reagir perante estas informações?
Obviamente, tudo o que está no primeiro parágrafo é mentira, mas a resposta a esta pergunta tem
cada vez mais importância, dada a quantidade de gente que hoje utiliza as redes sociais e tem
smartphones. É que nem todos os utilizadores do Twitter, Facebook, YouTube e Instagram escrevem
só sobre o sushi que almoçaram ou sobre quão fofos são os gatinhos que têm lá em casa. Muitos
partilham informações sobre crises e situações de emergência, o que é um desafio para as
autoridades. A pensar nisso mesmo, criou-se em 2013 o iSAR+, um projeto de dezasseis entidades de
toda a Europa que visa estudar e desenvolver a melhor forma de os cidadãos e serviços de
emergência comunicarem entre si através das redes sociais. E é o grupo tecnológico português
Tekever que lidera o consórcio. O iSAR+ está a ser desenvolvido com dinheiro europeu há 25 meses e
está na recta final. Depois de encontros em Cascais e em Paris, o último teste ao sistema decorreu
esta semana em Kuopio, na Finlândia, nas instalações de um dos parceiros envolvidos. Enquanto
coordenadora do projeto, a Tekever levou uma comitiva até aos lagos gelados do Norte para perceber
como as autoridades finlandesas encaravam a utilização deste sistema e das novas formas de
comunicação em algumas situações de emergência. A resposta parece ter sido positiva: ainda antes
de o exercício terminar, a polícia pedia uma reunião aos responsáveis do iSAR+ para avaliar a
possibilidade de implementar o sistema na realidade. Na terça-feira passada, em Kuopio, houve três
simulacros: um acidente de comboio onde havia químicos perigosos, um acidente aéreo (de que já
falámos) e uma tempestade de neve, que provocou um acidente de viação com três viaturas e um
incêndio. Estes exercícios tinham como ponto central a Pelastusopisto, uma escola profissional
equivalente a universidade onde se formam todos os bombeiros finlandeses. A Pelastusopisto literalmente: Escola de Emergências - fica em Kuopio, mas fora do centro, a vinte minutos de
distância em autocarro. Num dos seus edifícios estava instalado o centro de comando de onde os
simulacros eram controlados. Os exercícios, esses, tinham lugar no campo de treino da escola, a cerca
de dez quilómetros de distância. O "avião" que serviu o simulacro e onde, durante uns minutos, se
pensou que estava Justin Bieber Voltemos então ao acidente de avião onde, quem sabe, até vinha
Justin Bieber. Foi pelas 19h15 que começaram a chover os primeiros tweets sobre o assunto, enviados
por estudantes universitários especialmente destacados para isso. Na sala emprestada pela
Pelastusopisto para o controlo das operações, o burburinho não foi grande, toda a gente parecia saber
já o que tinha de fazer. O sistema desenvolvido pelas dezasseis entidades de nove países que
compõem o iSAR+ é de explicação relativamente fácil, o que pode iludir sobre a real complexidade dos
trabalhos. No que diz respeito à dimensão tecnológica, o iSAR+ é composto fundamentalmente por
três etapas. Na primeira, os serviços de emergência rastreiam as redes sociais - neste caso, o Twitter
- para perceber se há algo de anormal a acontecer e que credibilidade se deve atribuir a cada
informação que os utilizadores enviam. Este trabalho é feito com a ajuda de um software francês, o
Osint Lab, programado para rastrear tweets com as mesmas palavras e/ou provenientes de uma
mesma localização. A segunda etapa começa quando o operador do Osint Lab, depois de escolhida a
informação relevante, a faz chegar aos serviços de emergência. É aqui que entra tecnologia
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portuguesa. A plataforma usada por estes serviços (na segunda etapa) e pelas autoridades políticas
(na terceira) tem como base o software próprio da Tekever, o More, usado por dezenas de empresas
nas mais diversas funções (gestão de stocks, contabilidade, etc.). Neste caso, a plataforma,
agregadora de tecnologias, dá aos serviços de emergência um feed de informações com geolocalização
que lhes permite escolher a que situações acudir primeiro. E é na terceira fase, através de um
software muito semelhante, que a polícia e as autoridades políticas decidem o que fazer e comunicam
com os cidadãos. Caído o avião, os participantes no simulacro - polícias e bombeiros reais e
funcionários da câmara municipal de Kuopio - rapidamente percebem que a notícia da morte de Justin
Bieber foi manifestamente exagerada, mas que o acidente é grave e merece uma comunicação
cuidada com os cidadãos. Isso faz-se através das contas oficiais de Twitter dos serviços de emergência
finlandeses, utilizadas para enviar e receber informações do local. Uma hora depois do início do
exercício, há uma conferência de imprensa onde são dados mais pormenores: morreram pelo menos
seis pessoas, mas entre elas não se encontra Bieber, até porque, ao que a polícia apurou, não havia
canadianos a bordo. As margens do Kallavesi não se distinguem do lago nesta altura do ano Kuopio é
uma cidade pequena. Menos de uma hora chega para dar a volta completa ao centro, que se
desenvolve sobretudo ao longo de uma só rua, que atravessa a cidade de uma ponta à outra. O centro
de tudo é a Praça do Mercado, onde está o mais imponente edifício de Kuopio - a câmara municipal - e
onde, no verão, centenas de barracas ocupam o espaço agora dominado pela neve para venda dos
mais variados produtos. Em redor desta praça há pelo menos quatro centros comerciais. O que mais
impressiona o visitante de Kuopio, e sobretudo aquele desabituado a termómetros a oscilar entre as
temperaturas negativas e os 2 ou 3 graus positivos, é talvez a enorme paisagem branca que se
encontra a uns dez minutos de caminhada a partir da praça central. O local onde agora dezenas de
finlandeses se passeiam em esquis ou em patins é um dos muitos lagos da região, o Kallavesi,
completamente gelado. Quando a neve derreter, os navios aqui ancorados vão recomeçar a fazer
passeios turísticos e as gentes da terra vão regressar à praia que existe a pouca distância. Mas, até
esses dias soalheiros voltarem, Kuopio é uma cidade em suspenso, encapsulada em neve. Os baloiços
dos parques infantis estão vazios, os jardins estão inacessíveis, a catedral (luterana) fechada. Três em
cada quatro europeus não sabe que o número de emergências da União é o 112 Dados da Comissão
Europeia Na sede lisboeta, no Parque das Nações, os representantes da Tekever têm uma paisagem
bem diferente quando olham pela janela. Mas a verdade é que a empresa está habituada a voos
distantes. A Tekever começou nas instalações do Instituto Superior Técnico e hoje tem representações
no Brasil, na China, Estados Unidos e Inglaterra, além de diversos projetos que levam constantemente
os funcionários e os produtos da empresa a cidades de todo o mundo. Entre outras coisas, a Tekever é
responsável pela produção dos drones utilizados por vários Exércitos, incluindo o português, que em
2014 levou esta tecnologia lusa para uma missão no Kosovo. Em setembro passado, o iSAR+ esteve
em Paris para um exercício semelhante ao de Kuopio, sob o olhar atento de dois representantes da
Comissão Europeia, a quem cabe decidir se o dinheiro dos contribuintes deve continuar a ser gasto
nestes programas. Nessa altura, o relatório foi globalmente positivo. Desta vez também, mas, na
reunião de quarta-feira onde se discutiu como as coisas tinham corrido no dia anterior, o dinamarquês
Soren Ostergaard, auditor independente, aproveitou para falar da importância do Facebook, ainda
nunca usado como plataforma de comunicação através do iSAR+. Até agora, tem sido por questões de
privacidade que esta rede social tem estado fora do projeto, o que é um problema significativo, uma
vez que os europeus utilizam mais o Facebook do que o Twitter e mais facilmente falariam de uma
emergência naquela plataforma. Reparo feito, é o próprio Soren que avança uma solução: ele mesmo
falará com o diretor europeu do Facebook para que se avalie a possibilidade de este impedimento
ético e legal ser ultrapassado. É uma notícia relevante para os participantes deste projeto. Quase três
horas depois de as cerca de vinte pessoas que compõem a comitiva do iSAR+ saírem de Kuopio,
começam finalmente os simulacros. São 18h e parece meia-noite. A reportagem do Observador é
levada da Pelastusopisto ao campo de treinos. Os finlandeses conduzem extraordinariamente depressa
para quem tem de lidar com o gelo da estrada, pelo que poucos minutos bastam para vencer os dez
quilómetros que separam os dois espaços. Depois de atravessar uma estrada florestal ao longo da
qual se multiplicam os lagos, chega-se a Korvaharju, uma área de 38 hectares junto a um aterro
sanitário onde se preparam os bombeiros finlandeses do futuro. Na Finlândia, os bombeiros são quase
todos profissionais e todos têm obrigatoriamente de ter o curso da Pelastusopisto, que confere um
grau equivalente ao do bacharelato. Por isso, todos eles passam por este campo de treinos que mais
parece o cenário de um filme pós-apocalíptico ou de ficção científica. Há um auditório interior só para
demonstrar diferentes tipos de incêndio, há diversos edifícios próprios para pegar fogo, há uma pista
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de rally para treinar condução de camiões, há carros espatifados por todo o lado, há comboios e
mesmo uma pequena linha férrea para exercícios com eletricidade, há uma pequena refinaria de gás.
Enfim, o sonho de qualquer bombeiro. Ou pirómano. É no meio desta enorme infraestrutura que se
encontram algumas pessoas agarradas aos telemóveis ou aos tablets. Estão junto a um vagão de
comboio onde alguns químicos perigosos se libertaram e têm como missão tweetar sobre o que estão
a ver. Alguns foram instruídos para criar ruído, pelo que o operador do Osint Lab, no Pelastusopisto,
vai receber muitas fotografias de cães ternurentos que terá de ignorar. Apesar do frio extremo, estes
voluntários estão divertidos - uma sensação confirmada no dia seguinte por alguns deles aquando da
reunião de discussão sobre os simulacros. Nessa reunião, os parceiros ficam a saber que a
esmagadora maioria das pessoas que participou no teste nunca tinha utilizado o Twitter, mas
considerou a primeira experiência positiva. Por outro lado, alguns inquéritos realizados em países da
União Europeia (a maioria na Alemanha) revelam que 78% dos entrevistados têm um smartphone e
consideram as redes sociais como boas fontes de informação antes e durante uma situação de
emergência. O terceiro simulacro, o da tempestade de neve que provoca um acidente de viação e um
incêndio, é o de efeito mais sensacional. Depois de uns sete ou oito voluntários terem começado a
tweetar, aparecem os bombeiros, bastante calmos, em ritmo de simulação. Enquanto uns se preparam
para desencarcerar o passageiro que quase ia ficando esmagado por um camião de combustíveis,
outros estabelecem um perímetro de segurança enquanto os cidadãos levantam os telemóveis e os
tablets para captar imagens do que se está a passar. No centro de comando, os serviços, além da
comunicação de voz que têm com os operacionais no terreno, podem acompanhar toda a ação à
medida que os vídeos e fotografias são colocados nas redes sociais. No meio de tanto tweet, será que
alguém se lembrou de ligar para o 112? Ninguém sabe responder. Mas isso, atualmente, e enquanto
um sistema como o iSAR+ não está disponível para utilização, é um problema, porque os bombeiros
ou os serviços de emergência médica não vão socorrer ninguém que não telefone para o número
mágico. E mesmo assim, são poucos os europeus que conhecem o 112, segundo dados divulgados
pela Comissão Europeia a propósito do Dia Europeu do 112, assinalado na quarta-feira passada. Em
cada quatro pessoas, apenas uma sabe que é este o número que deve ligar em caso de necessidade.
"The voice is something else", comenta Tom Stirling, da polícia de New Yorkshire, Reino Unido, na
reunião de quarta-feira de manhã. Isto é, num momento de emergência não há nada que substitua
falar oralmente com um humano, muito menos um Facebook ou um Twitter, onde a própria explicação
do que está a suceder pode ser mais difícil do que através do telefone. Há situações, no entanto, em
que as redes sociais podem ser boas alternativas ao 112: quando a emergência afeta um deficiente
auditivo ou mudo e quando não se pode fazer barulho (num sequestro, por exemplo). Um futuro em
que cidadãos, proteção civil e autoridades políticas estejam todos interligados através das redes
sociais e das comunicações móveis para partilharem entre si informações sobre crises e emergências
parece ainda relativamente distante. A tecnologia, como se vê, já existe, e parece também haver
aceitação por parte de quem já testou o iSAR+ para esta nova realidade. O desafio agora é como
tornar esta plataforma acessível. "Esta é a última oportunidade" para testar o iSAR+, comentava João
Belfo, coordenador geral do projeto, ainda antes de os simulacros se iniciarem e quando um certo
nervoso miudinho parecia afetar os envolvidos no exercício. Foi mesmo a última oportunidade. Em
junho, o projeto termina, o financiamento europeu também. Será então altura de ponderar se o
programa faz sentido, se tem condições para se tornar um negócio, se deve ser um projeto
comunitário ou se, simplesmente, cada país e parceiro vai para seu lado. Uma coisa é certa: nada será
como dantes no que à comunicação de crises diz respeito.
15 Fevereiro 2015
João Pedro Pincha
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