CURVA DE RIO Deus afogou, foi? Deus soltou bolinha esse tempo todo, é? Sei que foi bem isso que eu ouvi, moço, tem até gente de farda mandando o povo abrir espaço, é, vamos abrir espaço pra palavra do homem respirar. Gente falando que a fé parou na curva do rio ou coisa que preste. Decora o que tô dizendo, moço, xerocaram a palavra do homem, é, jogaram tudo naquela máquina, é, naquela máquina de ver luz passar na cara. E agora olha lá o povo ajoelhando no barro pra entender cada palavra manchada do tal de lá de longe, de lá de cima, homem de deus, é, homem de Deus com 'd' de homem com sobra de tamanho. Se o homem nasceu do barro, imagina só o coisa ruim que nasceu da lama. E olha lá a fé daquele mundo de lá no seco, moço, um monte de gente analisando letrinha miúda pro povo cansar e se errar no que a coisa quer dizer por inteiro. Se você quer saber, moço, a fé só dá pé pra quem fica na pontinha dos dedos, com a boca aberta soprando pro céu. Tem coisa de um minuto atrás um velho gritou que esse cara Isaías que conhecia o cara Jotam que conhecia o cara Ezequias só queria saber de tomar o povo pela mão direita e levar pra longe do que o povo entende. Parece coisa de político, moço, tô achando que o homem lá de longe sabia prometer e fazer um muito acreditar. Eu só acredito em décimo-terceiro, feijão com pouco caldo e chapinha. Mas o povo não entende e olha-olha lá o bombeiro resgatando o monte de folhinha pedurada naquele espiral transparente. Parece prova de crime, moço. Até chamaram policial de bigode pra ver de perto. Ele viu e cheirou o troço e alisou com a ponta do dedo e lambeu a bordinha da quina e ficou quieto e cheirou de novo e alisou com a ponta do outro dedo e mastigou um tequinho do papel e falou: o crime se enquadra na lei um-zero-nove-meia-cinco e compreende a violação dos direitos e divulgação sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, sob pena de reclusão de dois a quatro anos. Ai, moço, não sei o que é reclusão não mas deve ser coisa ruim pra ter um nome cheio de dificuldade assim e pra precisar chamar um homem de bigode pra olhar. Ouvi até uma senhora falar que esse monte de folhinha tem valor sagrado, que é coisa lá de um tal Cristianismo. Se o moço quer saber, o mais perto que eu conheço disso aí é o Cristiano, um menino com cara de moleque que vende pastel no fim do rio e que, nossa, tem um jeito que frita a alma da gente. Agora o moço dá licença que olha lá o meu trem chegando. Pra me levar a tempo de ver a novela. E cozinhar pro meu homem de lama. Graças a Deus. A esse um afundado aí. MICROCONTOS DO RIO 1. O rio está na fossa. 2. A água é o suor do rio.