ASCESE CRISTÃ Frei Almir Ribeiro Guimarães http://www.franciscanos.org.br/ 1. O que efetivamente significa ascese? “Do ponto de vista humano, a ascese é necessária para que alguém dê o máximo de si mesmo: demonstra-o, por exemplo, a prática desportiva que submete o atleta a uma série de exercícios que lhe permitam potenciar a habilidade, melhorar a competência, ter o corpo desperto. Do ponto de vista do fiel, a ascese é prática necessária porque a vida é marcada pelo pecado, pela parcialidade e pelo limite. Trata-se do exercício de libertar a própria vida da inautenticidade, da escravidão dos instintos e dos impulsos momentâneos; para que se tenha consciência disposta a lutar contra o pecado; para dilatar os espaços do coração e da vida à caridade e ao dom de si”. (Paola Bignardi, Ascesi, in Consecrazione e Servizio 10/2012, p. 12). - See more at: http://www.franciscanos.org.br/?p=31494#sthash.sWo8qL75.dpuf 2. A vida cristã necessita de vigilância. A ascese fará com que tomemos distância do espírito de manada. Faz com que sejamos senhores de nós mesmos. Em nosso mundo encontramonos diante de situações ou dinamismos que não escolhemos, nem bons, nem maus, mas que nem sempre nos ajudam a viver o Evangelho. Entre eles está o trabalho e tempo do lazer, com seu ritmo tantas vezes pouco humano. Virtus in medio. Há os dinamismos da informação, da comunicação, do consumo. Todos esses nos homogeneízam e nos despersonalizam. Coletivizam-nos. Dizemos: “Fazemos como todo mundo faz”. “É assim que todos fazem”. Aos poucos não somos mais capazes de dar respostas pessoais. Vivemos como os outros vivem e nos acomodamos. A solidão típica de nosso mundo individualista e a falta de senso crítico faz com que sejamos todos envolvidos nesse mundo da superficialidade, do consumo e da tagarelice. Não somos mais o animal político de Aristóteles, mas convertemo-nos em animal de manada. O homem-massa pode ser emotividade, mas não tem vida espiritual. Reconhecemos que muitos valores recebemos da televisão e da internet. É necessário estarmos informados para vivermos no mundo. Anormal, no entanto, viver imerso no mundo da comunicação: acordar com a televisão ligada, ir dormir com áudio-fones, pensar com a cabeça dos outros, agir como uma máquina, viver em “manada”. A inflação de informação e essa invasão de ruídos não ajudam a vida espiritual e nem nos levam a uma vida de fraternidade. A vida espiritual e a vida fraterna evangélica serão prejudicadas se nos deixamos estruturar pelos desejos consumistas, querendo ter tudo o que se pode ter, vivendo sempre com apetites continuamente dilatados, na crista da onda do consumo, seres incapazes de viver em profundidade. Nesse contexto é que tem sentido o cultivo do silêncio, da meditação, da abstinência a qualquer coisa que nos é oferecida e venha nos nivelar na vida por baixo. (cf. Juan Antonio Guerrero Alves, SJ, Desintoxicarse, situarse en la paz y caminar en el bien: notas para uma nueva ascética, in Sal Terrae 93 (2005) p, 789-803). - See more at: http://www.franciscanos.org.br/?p=31494#sthash.sWo8qL75.dpuf 3. Não queremos deixar o mundo. Vivemos no mundo como Jesus viveu no mundo. Ele mesmo nos garantiu que no mundo vivemos mas não temos o espírito mundano. Como ele saímos da manada, deixamos de ser massa, buscamos viver o que nos propomos viver. Desconectar-se de inércias é grande ajuda para a vida espiritual. Usaremos os avanços tecnológicos, mas seremos senhores de nós mesmos em seu uso. Não queremos ser apêndices de uma imoral sociedade de consumo. Não desejamos ser seus alto-falantes, nem terminais de consumo de um sistema produtivo cheio de ambiguidades. Queremos ter as rédeas da vida cristã em mãos. 4. Os que fazem a opção pelo seguimento de Cristo querem construir uma personalidade forte e autêntica. Não desejam ser escravos de caprichos e de modismos. A ascese nos ajuda a nos exercitar no bom uso da liberdade. A moda, no vestir, no ouvir música, no consumo de determinados produtos mais do que outros condiciona muito os mais jovens, uniformizando seu comportamento, fazendo assim com que sintam membros de grupos. Do contrário experimentariam a sensação da exclusão. Desta maneira, gera-se uma passividade que tira das escolhas pessoais todo o vigor e originalidade. Tudo é superficial, tudo perde força, tudo é sem originalidade. As pessoas, sem uma ascese vigilante, não conseguem ser fiéis às suas escolhas. Uma personalidade robusta tem necessidade de libertar-se da pressão do “todo mundo faz assim”, abrindo o caminho para decisões próprias nas quais se colocam valores e a visão própria que se tem da vida. Jovens e adultos precisam ser levados a exprimir os valores que animam a existência” (Paola Bignardi, op.cit., p. 14). 5. “Não conseguiremos nos subtrair da inércia da manada enquanto não tomarmos distância (…). Somos natureza e pessoa. Estamos submetidos a dois movimentos: necessidade e liberdade, apetite e oblatividade, a dois amores cupiditas e caritas. A natureza cresce e se desenvolve absorvendo, consumindo… a pessoa cresce ao dar-se, ao sair de si mesma, oferecendo-se de maneira oblativa. Duas dinâmicas necessárias e contrapostas precisam ser ordenadas. Trata-se de controlar o apetite a partir da oblatividade, a necessidade a partir da liberdade, trata-se de ordenar nossos desejos naturais, nossas pulsões e tendências a tudo absorver a partir do amor, da caritas” (Juan Antonio Guerrero Alves, op.cit., p.796). 6. Fala-se da inércia da autonomia autossuficiente. Autonomia de modo autossuficiente é aquela que nos faz pender de nossa própria vontade, sem outras referências, que nos fecha em nós mesmos. Esse girar em torno de nossa vontade não nos permite ver os interesses e os desejos dos outros. Os antigos mestres da espiritualidade sempre chamavam atenção para os malefícios da vontade própria. O duvidar de meus valores, minhas opiniões, minhas teorias me permite recuperar a abertura para o Outro e para os outros. Romper com esta inércia pode significar que voltemos a ser pessoas de escuta, capazes de serem atingidas por Deus e pelos outros. Fala-se de ascese dos relacionamentos: saber escutar, saber acolher o outro como ele é sem julgá-lo, saber estar com as pessoas numa conversa franca, amiga sem cair na futilidade e na banalidade, saber colaborar, saber valorizar, tudo isso exprime a caridade que não se improvisa e que requer um constante trabalho sobre si mesmo. 7. Há uma indiferença ou inércia diante do pecado e da desordem. A espiritualidade tradicional assinala como raiz da desordem e do pecado, o amor próprio, amor a si que se contrapõe ao amor de Deus. Quando alguém se sente tocado pela graça, compreende que alguma coisa em sua vida precisa mudar. Produz-se um encontro, acende-se uma luz que organiza a vida, que faz com que algumas coisas percam seu sentido e outras ganhem novas dimensões. Quando Francisco de Assis começou seu processo de conversão, com o beijo do leproso, o doce tornou-se amargo e o amargo, doce. A ascética tradicional propunha a “mortificação” e a “penitência” como formas de ruptura com as inércias do pecado e da desordem. Ora, parece que ambas, devidamente adaptadas, continuam sendo necessárias. Mortificação tem a ver com “matar”. O que se pretende matar são as raízes do pecado e da desordem. Em Colossenses 3, Paulo apresenta, como sinais do se ter ressuscitado com Cristo, uma lista de aspectos a serem “mortificados” porque queremos viver das coisas do alto. Trata-se de matar o que nos desumaniza, o que nos tira a vida, o que nos separa do amor: os vícios como a avareza, a luxúria, a ira, a maldade. Sem uma boa terapia desse tipo, a fé cristã segue então as sabedorias pagãs. 8. A penitência é outro instrumento útil para a conversão e que continua sendo necessário. Importante a penitência interna: compunção, arrependimento, dor pelos pecados, de haver ofendido a Deus e sido infiel nos relacionamentos. A penitência externa está em função da penitência interna no sentido de reeducar hábitos e apetites de maneira que desapareçam o desejo e o afeto por aquilo que nos levou ao pecado. Parece que a sobriedade, a frugalidade e aceitação dos incômodos da vida constituem um exercício para sair de si mesmo e boa ajuda para a criação de bons hábitos. 9. Juan Antonio Guerrero Alves, SJ, abordando o tema da ascese, fala do situar-se na paz. Menciona cinco palavras da tradição espiritual que podem nos ajudar a situarmo-nos como seres humanos diante de Deus, dos outros e de nós mesmos e do mundo. ● Recolhimento – Quer significar recolher o que está derramado. Em outros tempos, talvez, as pessoas podiam ter tido um contacto imediato consigo mesmas. Hoje estamos esparramados, desconjuntados e mesmo alienados. Uma primeira tarefa “ascética”, seja a de reconhecermo-nos a nós mesmos e recolhermos. Para tanto será necessário reduzir os relacionamentos e conexões, arrumar as coisas à nossa volta e dentro do coração. Recolher é, antes de tudo, recuperar o ser. O recolhimento significa que sejamos donos de nós mesmos e que habitemos nosso interior. Abre-nos para uma presença e nos capacita para o dom. ● Fraternidade – Outro exercício que, em nossos dias, parece importante e que não acontece espontaneamente, na cultura narcisista, consiste em reconhecer o outro como igual e abrir-nos a relacionamentos recíprocos. Se não prestarmos atenção, corremos o risco de tratar os outros como objetos. O outro é uma pessoa e não pode ser instrumentalizada. ● Adoração - A adoração é a relação natural do homem com Deus. Adorar é viver com Deus reconhecendo-o como tal. A adoração é a afirmação e reconhecimento de que somente Deus é Deus. ● Humildade - Situar-se com os pés no chão, na terra (húmus), sem querer estar por sobre…, sem querer olhar de cima, é aceitar seu lugar de ser humano, diante de Deus e do mundo, e entre seres humanos, nem mais nem menos. É isso que chamamos de “humildade”, que sempre foi a base de uma vida espiritual sadia. A humildade é a arte de encontrar-se exatamente no próprio lugar. A ascese busca encontrar a profunda e adequada verdade do homem com sua verdade. ● Pureza de coração - Os meios de comunicação e as novas tecnologias, com tantas possibilidades, foram se convertendo em mecanismos de saturação e de colonização do eu que nos impedem o acesso à nossa própria interioridade. Há “vozes mudas” que falam em nós. Não sabemos quais os pensamentos puros e aqueles que, vindo de fora, não são nossos e pretendem nos dominar e nos subjugar. Em nossa cultura é mais fácil viver com o eu saturado e a interioridade colonizada. Somos governados a partir do interior por um “outro”, um outro difuso. Nunca temos tempo para nada. A ascese deverá nos levar às raízes irracionais da alma, até à fonte pura ou turva, da imaginação e dos desejos para saber o que de verdade desejamos. É como se vivêssemos numa tirania, submetidos a uma outra vontade, mas sem identificar o tirano e, ao mesmo tempo, com uma sensação de liberdade. Como elaborar meu projeto numa cultura cheia do “do que se tem que fazer” e “do que se deve ter”? Numa cultura que nos vende o que temos que desejar? Como satisfazer o desejo que mora no fundo de nosso ser quando mergulhando em mim mesmo encontro slogans semeados por outros? Ora, o trabalho ascético consistirá em fazer uma limpeza em nosso interior para poder sentir e acolher um chamamento, para reconhecer os apelos do Espírito e deixar-nos conduzir por eles. Precisamente isto é o que a espiritualidade tradicional chamava de pureza de coração, que correspondia à bem-aventurança dos puros de coração que verão a Deus. “Concebia-se o coração como um “poço lamacento” com mistura de água limpa e lodo e do qual se devia ir tirando incessantemente a água turva e, aos poucos, o poço ia se purificando e a água se aclarava. A pureza de coração continua sendo necessária para se ver a Deus, ouvi-lo e acolher seu chamamento ou dito em termos existenciais, para aceitarmos nossa realidade, recuperar nossa verdadeira identidade e fazer o que temos que fazer”. Vale, neste contexto, transcrever uma das admoestações de Francisco de Assis: “Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus (Mt 5,8). São verdadeiramente puros de coração os que desprezam as coisas terrenas, buscam as celestes e nunca desistem de adorar e de procurar o Deus vivo verdadeiro com o coração e a mente puros” (Adm XVI). Frei Almir Ribeiro Guimarães - See more at: http://www.franciscanos.org.br/?p=31494#sthash.sWo8qL75.dpuf