PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Helena de Lima Corvini Quem tem medo de Oscar Wilde? Vida como Obra-de-Arte MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em CIÊNCIAS SOCIAIS, sob a orientação da Profa Doutora Mariza Martins Furquim Werneck SÃO PAULO 2012 1 Dissertação intitulada “Quem tem medo de Oscar Wilde? – Vida como Obrade-Arte”, de autoria da mestranda Helena de Lima Corvini, apresentada à banca examinadora constituída pelos seguintes professores: Banca Examinadora ___________________________________ ___________________________________ ___________________________________ 2 RESUMO A presente dissertação busca acompanhar os passos de Oscar Wilde pela Londres da era vitoriana tardia, o centro pujante de um Império já em decadência. Nesse momento, o status quo produz um discurso positivista e imperialista sobre o mundo. A homossexualidade é disputada pelos discursos da ciência médica e da jurisprudência. Numa época em que a autoridade simbólica para nomear o desejo homoerótico se encontra questionada, Wilde tem a ousadia de afirmar a primazia do artista em nomear o mundo. Com sua vida e sua obra, Wilde provoca reações exaltadas. Suas excentricidades chocam a alta sociedade londrina, da qual se torna o árbitro da elegância, apesar de sua posição de outsider: irlandês e homossexual. Vivendo plenamente os ideários do Esteticismo e do dandismo, tem um estilo de vida acintosamente gay e suscita o medo da "corrupção" e da "influência" sobre os homens jovens por parte da sociedade inglesa. As masculinidades estão sendo elaboradas nesse momento e há o medo de que os homens jovens deixem de ser viris cavalheiros para se tornarem afeminados dândis. Em seus escritos, por meio de paradoxos e inversões simbólicas, Wilde também mostra a costura por baixo do texto aparentemente neutro da realidade normativa. Em seu julgamento, é transformado em bode expiatório de uma sociedade severamente reprimida e puritana. Suas obras permanecem hoje como fundadoras da sensibilidade camp e de uma estética decididamente homossexual. Palavras-chave: Oscar Wilde, era vitoriana tardia, masculinidade, teoria da inversão, homossexualidade, literatura, decadentismo, esteticismo, dandismo, Dorian Gray, paradoxo, inversão simbólica, camp 3 ABSTRACT This present dissertation intends to accompany Oscar Wilde's steps through late Victorian London, the booming center of an already decadent Empire. At this time being, positivist and imperialist discourses explain the reality. Both the medical science and the law fight over the theme of homosexuality. In a time when the symbolic authority to name homosexual desire is being questioned, Wilde is brave enough to state the precedence of the artist in naming the world. His life and works cause exalted reactions. His excentricities outrage London's high-society, of which Wilde becomes the arbiter of elegance, despite being a complete outsider: Irish and homosexual. He lives Aestheticism and dandism to the fullest, he lives a purposedly gay lifestyle and excites the fear of exerting some sort of "corruption" or "influence" over young men of the British society. His writing, through the use of paradoxes and symbolic invertions, shows the underpinnings of the aparently neutral text of normative reality. In his judgment, he is turned into the scapegoat of a severely repressed and puritan society. His works have founded the camp sensibility and a decidedly homosexual aesthetics. Keywords: Oscar Wilde, late victorian era, masculinity, invertion theory, homossexuality, literature, decadentism, aestheticism, dandism, Dorian Gray, paradox, symbolic invertion, camp 4 À vó Helena e à mãe Tereza 5 AGRADECIMENTOS Agradeço à minha orientadora, a Professora Doutora Mariza Werneck pela paciência e acolhida quando eu atravessava momentos difíceis. Agradeço à minha amiga Carla Cristina Garcia, antes de qualquer coisa, simplesmente pela sua existência, que me devolve a fé na humanidade. E também pela generosidade, pelas aulas inspiradoras, pela alegria de vida e pela sugestão do tema de pesquisa. Não tenho palavras para agradecer tudo o que você fez por mim. Agradeço à mãe Tereza, ao pai Luis, ao Luisinho, à vó Helena e também à tia Aida, ao tio Nhandar, ao vô Décio, ao bisavô Pedrinho, à bisavó Teresa e ao vô Luis. Agradeço à vó Nair, à tia Neusa, ao tio Zé, à tia Cidinha e às meninas, Camila, Carina, Clarissa, Marcela, Patrícia e Milena. Agradeço à família Ferreira da Silva pela acolhida em São Paulo durante todos esses anos: Ednalva, Teca, Kátia, Juliana Nozue, Nelson Canteri e também pela presença luminosa do pequeno Lucca. Guel, Pitchula, Capitu, vocês jamais serão esquecidos. Agradeço ao Batatinha e ao Ovelha, por me ensinarem tantas coisas todo dia. Saudades de Coragem, a criatura com o nome mais inspirador que consigo imaginar. Agradeço à Marina Costin Fuser, por viver esse processo junto comigo, na tristeza e na alegria. Agradeço aos amigos e amigas que me ouviram reclamar das dores do processo de mestrado tantas e tantas vezes e me consolaram nos momentos de desespero: Lorena Phillips, Andressa Nozue, Débora Lessa, Ellen Taline Ramos, Ana Carolina Gebrim, Mayra Castro, Ana Kelson, Amanda Fraga, Michelle Barros, Bruna Domenico, Rachel D'Amico, Ariane Aboboreira, Bruno Cohen, Amanda Bacaleinick, Lilian Breschigliaro, Gabriela Pozzoli, Josie Berezin, Luciana Milnitsky, Tânia Regina Vizachri, Rafael Bruno, Rafael Pinheiro, Aline Passos, Luiza Uehara, Marina Rodrigues, Mariana Cristtal, Ana Paula Varani, Isaac Vitório Ferraz, João Paulo Fagundes Lêdo, Edson Alencar Silva, Mariana Lopes, Victor Hungaro, Raquel Lorenzetti, Alessandro Ezabella, Mariana Serafim Xavier Antunes, Liliane Caetano, Márcia Cristina Gomes, Leda Vasconcellos, Marcelo Rocco, Marina Trivelli Tambelli, Gustavo Racy, Alê Carvalho, Cauê Ueda, Maria Helena Uliani e todo o pessoal colorido, divertido, bonito e estiloso do Inanna. 6 Agradeço ao CNPq e ao programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais por viabilizarem a bolsa que custeou meus estudos. Agradeço à Carmen Junqueira pela honra de haver freqüentado suas aulas. Agradeço ao querido grupo Inanna por todas as felicidades, risadas, amigas, amigos, reflexões, preocupações e leituras que já me proporcionou e proporcionará no futuro. Agradeço a Oscar Wilde pela coragem de ser ele mesmo. 7 Sumário Introdução.....................................................................................................................9 Capítulo I O retrato da sociedade vitoriana...............................................................................11 Capítulo II O universo estético de Oscar Wilde..........................................................................24 Capítulo III A importância de ser Wilde.......................................................................................43 Capítulo IV A derrocada de um homem de gênio........................................................................64 Capítulo V Take a walk on the Wilde side..................................................................................79 8 INTRODUÇÃO Neste trabalho, pretendemos fazer um estudo introdutório a respeito da vida e obra de Oscar Wilde, tentando mostrar o quão subversivo este escritor foi, tanto em sua vida pessoal quanto na literatura que produziu. A escrita de Wilde, com seus paradoxos, prefigura as inovações formais que somente se cristalizariam no início do século XX, nas obras de James Joyce e Virginia Woolf. A vida de Wilde exemplificou a coragem de um indivíduo de assumir inteiramente a si mesmo no momento exato em que as identidades sexuais estavam sendo elaboradas. A obra de Wilde inicia uma sensibilidade nova, que abre caminho para a nascente cultura e estética homossexuais que floresceriam no século XX. No primeiro capítulo, fizemos um retrato da sociedade vitoriana tardia, da Londres pela qual Wilde circulou, dos muitos medos que assombravam o homem da época. Esse sentimento tomava várias formas: medo dos operários, medo da chamada "nova mulher", medo do "enfraquecimento corporal masculino". Tentamos fazer um panorama da ciência médica da época e das várias teorias que explicavam esse mundo que se "degenerava". É nesse momento que surge a ciência sexual e, com ela, as teorias a respeito da homossexualidade e o questionamento das sexualidades em geral, da masculina (com a contraposição dos dândis e dos cavalheiros) e da feminina (com o surgimento da "nova mulher", elaborada muitas vezes como "masculinizada"). No segundo capítulo, procuramos mostrar o universo estético pelo qual se movia Oscar Wilde. Falamos dos movimentos literários que estavam ocorrendo nesse momento e de seus respectivos ideários para contextualizar a produção de Wilde nesse momento histórico. No final do capítulo, analisamos o único romance de Wilde (e sua obra mais conhecida), O Retrato de Dorian Gray. O terceiro capítulo tenta desvendar essa figura enigmática que foi Wilde, com suas muitas contradições, segredos e mistérios. Como um irlandês homossexual se torna o árbitro de elegância da alta sociedade londrina? É o que tentamos descobrir aqui. Tentamos analisar como suas excentricidades contribuem para compor o mito em torno da figura de Oscar Wilde. No quarto capítulo, analisamos seu julgamento, a "derrocada deselegante e impiedosa de um homem de gênio" segundo H. G. Wells. Analisamos o que subjaz a essa condenação, à necessidade de punir exemplarmente Wilde por seu "crime" (ou por 9 seu "vício") justamente no momento em que a definição simbólica da homossexualidade está em jogo. Também mencionamos as repercussões desse julgamento na literatura e entre os escritores. Tratamos também, brevemente, da famosa carta que Wilde escreve da prisão para seu ex-amante, Lorde Alfred Douglas. No quinto capítulo, tentamos analisar as repercussões da vida e da obra de Wilde hoje, o que seu estilo e, principalmente, sua panache nos legou, o quanto seu espírito subversivo ajudou a formar o século XX. A obra de Wilde inicia a sensibilidade camp e modula um discurso estético da homossexualidade, que se tornaria cada vez mais prevalente e importante desde então. 10 Capítulo I O RETRATO DA SOCIEDADE VITORIANA Parece-me que encontrei a humanidade em decadência. O pôr-do-sol ferrugem me fez pensar no pôr-do-sol da humanidade. Pela primeira vez comecei a perceber um estranho resultado dos esforços sociais que praticamos agora. E, no entanto, pensem, é uma conseqüência bastante lógica. Força é o resultado da necessidade; segurança é uma premiação da fragilidade. O trabalho de aprimorar as condições de vida – o processo verdadeiramente civilizador de fazer a vida mais e mais segura – havia chegado calmamente a um clímax. Um triunfo da Humanidade unida contra a Natureza havia se seguido a outro. Coisas que agora são apenas sonhos haviam se convertido em projetos deliberadamente realizados. E a colheita era o que vi! - H. G. Wells, "A Máquina do Tempo" A Inglaterra do final do século XIX era um mundo conturbado. O Império inglês via sua hegemonia ameaçada tanto em seus limites externos quanto internamente. Uma crise se anunciava entre as classes sociais e os burgueses tinham medo de que ocorresse uma insurreição de trabalhadores. Estes eram elaborados pelos burgueses como se pertencessem a uma raça diferente, degenerada em termos intelectuais. Traçavam-se paralelos entre o East End (bairro operário de Londres) e o Oriente: a classe operária era comparada aos povos "selvagens" e "primitivos" dos confins do Império Britânico. Segundo Celso M. Paciornik1: Para a população européia em geral, a necessidade imperial era vendida pelas elites econômicas e sociais como o esforço civilizatório de uma sociedade desenvolvida para com as hordas e tribos incivis, bárbaras, fetichistas, canibais, e o que mais se quiser lembrar. Levas de missionários se embrenhavam nas selvas para levar a palavra de Deus aos 'bons selvagens' e arrastá-los, se preciso à força, das trevas da barbárie para as luzes da civilização moderna. Evidentemente, conforme este mesmo ideário, o 'branco' conquistador, generoso e altruísta, era superior ao 'negro' primitivo, bárbaro. Colonizar aqueles seres inferiores era mais que uma necessidade, era uma missão para a Europa civilizada e moderna, beneficiando 'mais o colonizado que o colonizador', o emblemático 'fardo do homem branco' do poema tristemente célebre de Rudyard Kipling, um dos arautos e defensores da espansão imperial britânica. Essa visão de mundo era justificada pela ciência vitoriana, que se baseava em teses evolucionistas. Estas transpunham, de uma forma praticamente literal, um 1 Celso M. Paciornik, "Posfácio" in O Coração das Trevas, p. 172 11 pensamento pós-darwinista da biologia para o meio social e assentavam-se sob a crença de que algumas "raças" seriam mais evoluídas, mais adaptadas que outras, consideradas mais bárbaras e primitivas (essa ideologia também era aplicada para explicar o comportamento das diferentes classes sociais). Especialmente a antropologia física visava estabelecer a legitimidade da hierarquia e da diferenciação entre as raças e demonstrar as degenerações que ocorriam quando estes limites eram desrespeitados. Em fins do século XIX, a medicina clínica (como a conhecemos hoje) se desenvolve sob bases positivistas, racistas e misóginas. Esta assume a posição central das ciências cartesianas, firma-se como a ciência-modelo, detentora da verdade última sobre o ser humano. É nesse momento que nasce a scientia sexualis, a explicação científica a respeito das práticas sexuais. Como um típico discurso da ciência médica, define a norma a partir do que é elaborado como "desviante", "não-natural", "anormal". Nesta área do conhecimento, mais do que em outras, pululavam os preconceitos da sociedade vitoriana disfarçados de determinismos biológicos. Os órgãos humanos e de primatas são medidos, pesados, analisados: comparam-se os cérebros dos homens e dos primatas machos ao passo que, em relação às mulheres e às primatas fêmeas, seus órgãos sexuais é que são comparados. Ao mesmo tempo, a craniometria, por meio da medição e comparação de cérebros de homens e de mulheres, oferecia provas irrefutáveis das diferenças evolutivas entre ambos e estabelecia cientificamente a inferioridade intelectual feminina e sua menor racionalidade. A esta ciência médica soberana, junta-se o Estado, que passa a regular, cada vez mais de perto, as práticas dos cidadãos: "Por se encontrar, de fato, no cerne do pensamento político e econômico, das preocupações sociais, morais e médicas da época, o privado leva à criação de inúmeros discursos teóricos, normativos ou descritivos centrados na família"2. As táticas higienistas impostas pela aliança Estadomedicina se constituíram numa manipulação político-econômica que a burguesia impôs às outras classes. As múltiplas técnicas normalizadoras demarcam as figuras elaboradas como representativas do "desvio" e da "antinorma". Nesse momento, 2 Michelle Perrot, "Introdução", História da Vida Privada 4 – Da Revolução Francesa à Primeira Guerra, p. 9 12 através da articulação de táticas disciplinantes e políticas centralizadoras do Estado, são constituídas a norma da família e a família como norma. Na Inglaterra do século XIX, ocorre um processo de "higienização" dos costumes. A chamada "higiene" retoma a problemática sexual religiosa com novos fins: a sexualidade conjugal se torna objeto de regulação médica. Na elaboração ideológica da família burguesa, há a identificação da masculinidade à paternidade e da feminilidade à maternidade. Há uma fixação do homem à figura do pai: este recebe uma autorização para ser "macho". Para o "homem médio", destituído de outros poderes, a higiene oferece o machismo: um dos raros "direitos" e uma das raras parcelas de poder social que poderá usufruir sem restrição. Ao cidadão comum, reduzido a um animal social pela sociologia nascente e a um animal sexual comandado por impulsos inconscientes pela medicina clínica e pela psiquiatria, a moral higiênica oferecia o domínio total de sua mulher: "de propriedade jurídicoreligiosa, a mulher passou à propriedade higiênico-amorosa do homem"3. O cavalheiro másculo, que detinha o controle absoluto sobre sua família, era o defensor da nova ordem médico-política: "estava sempre disposto a reprimir com violências físicas e morais todos aqueles que, por incompetência ou rebeldia, ousassem contestar os novos mandamentos da conduta masculina"4. Nessa sociedade extremamente puritana, higienizada de todo excesso, em que o homem de bem, o "pai de família" é o exemplar típico do cidadão saudável do país, a sexualidade é negada, obliterada. Esta existe apenas como uma obrigação matrimonial de procriar crianças igualmente saudáveis e higienizadas, livres de qualquer tipo de contágio, infecção ou inversão imorais. Nesse contexto, o homossexual era visto como um "perdulário sexual" que ousava questionar o modelo do homem-pai. Segundo Jurandir Freire Costa5, eram elaborados como anti-homens, desertores da obrigação de ser pai, assassinos do próprio corpo e do bem-estar biológico-social. Para a medicina higienista, o homossexual consistia numa antinorma ao "viver normal" e possuía um valor "teratológico" segundo a ótica populacionista. 3 Jurandir Freire Costa, Ordem Médica e Norma Familiar, p. 252 Ibid., p. 253 5 Ibid., p. 240 4 13 A família burguesa existe para procriar os futuros burgueses sólidos e trabalhadores e suas respectivas mulheres etéreas, invisíveis, angelicais e infantilizadas. A sensibilidade vitoriana tardia, apesar de todas as mudanças que vinham acontecendo nos costumes desde a década de 1870, continuava a elaborar as mulheres burguesas como "anjos do lar", como ao longo da maior parte do século XIX. As mulheres que não se encaixavam nesse ideal eram vistas como "monstros". Essas imagens são tão prevalentes que, no início do século XX, Virginia Woolf6 ainda sente a necessidade de urgir às mulheres escritoras que elas matem tanto o anjo quanto o monstro. Segundo Sherry Ortner7: Ambos símbolos femininos subversivos (bruxas, mau olhado, poluição menstrual, mães castradoras) e símbolos femininos de transcendência (mães-deusas, piedosas mulheres salvadoras, símbolos femininos de justiça) apontam para o fato de que mulheres podem aparecer, dependendo do ponto de vista, tanto abaixo como acima (mas, na realidade, simplesmente fora) da esfera da cultura hegemônica. Nos últimos anos do século XIX, em Viena, houve uma proliferação de "monstros": muitas mulheres começam a sofrer de um novo mal, batizado de "histeria". A psiquiatria nasce com o teatro das histéricas de Jean-Martin Charcot em Salpêtriere e com os estudos de Sigmund Freud sobre a sexualidade feminina. Acreditava-se que a "doença feminina" (cujo nome é inspirado na palavra grega para útero, hyster) era causada pelo sistema reprodutivo feminino, como muitas outras "doenças nervosas" da época. De acordo com Sandra Gilbert e Susan Gubar8, este conceito parece ter sido elaborado a partir da noção de Aristóteles de que o corpo da fêmea era, em si mesmo, uma deformidade. A julgar pelas teorias de Freud, era mesmo: a mulher consistia num ser "castrado" que tinha inveja do pênis que lhe faltava. O corpo feminino é pensado pela psiquiatria nascente sob o signo da ausência. Curiosamente, tudo isso acontecia no mesmo momento em que surgia a chamada "nova mulher" (new woman), que buscava se libertar de seus papéis tradicionais em busca de maior autonomia. Isso era visto com séria desconfiança pela 6 Virginia Woolf, "Professions for Women", The Death of the Moth and Other Essays, New York: Harcourt, Brace, 1942, pp. 236-38 apud Sandra Gilbert e Susan Gubar, Madwoman in the Attic, p. 17 7 Sherry Ortner, "Is female to male as nature is to culture?" in Woman, Culture, and Society, Michelle Zimbalist Rosaldo e Louise Lamphere, Stanford: Stanford University Press, 1974, p. 86 apud Sandra Gilbert e Susan Gubar, Madwoman in the Attic, p. 19 8 Sandra Gilbert e Susan Gubar, Madwoman in the Attic, p. 53 14 "boa sociedade", que tinha medo de uma possível revolução das mulheres. Suspeitava-se que estas "traidoras" pudessem se unir aos nativos colonizados em sua luta contra o status quo. Muitos vitorianos, como Karl Pearson9, por exemplo, consideravam que os dois grandes problemas da vida social eram o "problema das mulheres" e o "problema do operariado". Para Peter Gay10, eles estavam certos em temer: segundo o historiador, a legislação de reforma feminista da década de 1880 "começou a demolir o venerável sistema patriarcal na Inglaterra". No entanto, esse caminho se provaria acidentado. Em meio ao puritanismo histérico, rondando o fog londrino, temos a figura assustadora de Jack, o Estripador, que assassinou e mutilou uma série de prostitutas no bairro operário de East End em 1888, abrindo os corpos das mulheres e removendo com perfeição o útero e as vísceras. Levantaram-se suspeitas de que o Estripador poderia ser um médico, já que ele estaria acostumado a realizar esse tipo de operação em suas pacientes. Logo os assassinatos do Estripador se tornaram "um mito moderno da violência masculina contra as mulheres, uma história cujos detalhes se tornaram vagos e generalizados, mas cuja mensagem 'moral' era clara: a cidade é um lugar perigoso para as mulheres, quando elas ultrapassam os estreitos limites do lar e ousam penetrar no espaço público"11. Note-se que esses assassinatos, apesar da caçada policial massiva que foi instaurada, jamais foram solucionados. A história de Jack, o Estripador não é apenas um mito, ilustra um fetiche, uma imagem recorrente da época. É nesse momento histórico que há a cristalização do conceito do corpo feminino como uma caixa de Pandora a ser aberta, um objeto para confinamento e exibição. Segundo Elaine Showalter12: A imagem da mulher jovem cujo corpo é invadido pela medicina já possuía na década de 1880 uma longa tradição desde o período pósiluminista. No século XVIII, os estudantes de medicina europeus estudavam os órgãos internos com o auxílio de uma 'Vênus Anatômica', 9 Karl Pearson, "Woman and Labour" in Fortnightly Review 129 (maio 1894), p. 561 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 20 10 Peter Gay, The Bourgeois Experience 1: Victoria to Freud, Nova York: Oxford University Press, 1984, p. 175 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 20 11 Judith Walkowitz, "Jack the Ripper and the Myth of Male Violence" in Feminist Studies 8 (outono 1982), p. 544 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 171 12 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 172 15 sofisticados modelos de cera de mulheres (...) que se abriam para exibir os órgãos da reprodução. Para Ludmilla Jordanova13, esses modelos ao mesmo tempo evocam uma feminilidade abstrata, equiparam o conhecimento ao exame profundo do corpo e ressaltam o destino reprodutivo da mulher. Essa imagem do corpo feminino como vitrine estendeu-se para o mundo social. Para o século XIX, a ânsia de abrir a mulher e examinar profundamente os segredos do seu corpo e da reprodução é central ao processo e ao método da própria ciência. É nesse período que muitos instrumentos ginecológicos são inventados, inclusive o espéculo. Há um paralelo entre as conquistas do Império Britânico na África (como atesta a "literatura de aventura" da época, dirigida a um público leitor especificamente masculino) e a conquista e o domínio do corpo feminino. Muitos médicos vêem-se como conquistadores que penetram em terra estrangeira: Enquanto os romancistas do sexo masculino (...) descreviam suas viagens até o interior de Kôr, do Kafiristão ou do coração da treva, como expedições sexuais para o interior de um corpo primevo, os médicos descrevem suas invasões ao corpo feminino como sagas aventureiras em busca de tesouro e poder.14 Um tema popular na pintura do final do século XIX, assim como na literatura médica, era o do médico realizando uma autópsia no corpo de uma prostituta afogada: "O que será encontrado no corpo dessas mulheres afogadas? Será a verdade oculta da natureza da mulher, o que as mulheres querem...? A cabeça da Medusa, com todo seu poder castrador?"15. Os estudos de caso de Freud sobre mulheres histéricas não deixa de repetir esse padrão de cientista detentor do poder, do controle e do conhecimento masculinos versus paciente feminina doentia. A revelação dos corpos femininos ficou associada à visão médica e científica, algo a ser desvelado pelo olhar penetrante do domínio sexual e intelectual. Significativamente, Freud, em seus últimos trabalhos, chama a sexualidade feminina de "continente negro", traçando um paralelo entre as terras 13 Ludmilla Jordanova, Sexual Visions: Images of Gender in Science and Medicine between the Eighteenth and Twentieth Centuries, pp. 50, 54 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 173 14 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 174 15 Sander Gilman, Sexuality, pp. 249-250 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 176 16 africanas desconhecidas e exóticas a serem conquistadas e as mulheres, essas eternas estrangeiras na sociedade patriarcal. Tais "corpos estranhos", segundo a sociedade e a ciência da época, devem ser penetrados, conquistados e dominados pelo homem branco, detentor da razão e do poder. A proliferação dos discursos sobre o sexo, que já vinha acontecendo desde o século XVIII, gradualmente define uma norma de desenvolvimento sexual da infância à velhice e caracteriza cuidadosamente todos os desvios possíveis. Essa explosão discursiva provoca um movimento centrífugo em relação à monogamia heterossexual ao mesmo tempo que é definida uma dimensão específica do "contra-natureza" no campo da sexualidade. Segundo Michel Foucault16, Afigura-se um mundo da perversão, secante em relação ao da infração legal ou moral, não sendo, entretanto, simplesmente uma variedade sua. Surge toda uma gentalha diferente, apesar de alguns parentescos com os antigos libertinos. Do final do século XVIII até o nosso, eles correm através dos interstícios da sociedade perseguidos pelas leis, mas nem sempre, encerrados freqüentemente nas prisões, talvez doentes, mas vítimas escandalosas e perigosas presas de um estranho mal que traz também o nome de 'vício' e, às vezes, de 'delito'. (...) No decorrer do século eles carregaram sucessivamente o estigma da 'loucura moral', da 'neurose genital', da 'aberração do sentido genésico', da 'degenerescência' ou do 'desequilíbrio psíquico'. A caça promovida pela nascente ciência sexual às sexualidades periféricas provoca a incorporação das perversões e a nova especificação dos indivíduos. Nesse contexto, a sodomia (proscrita pelo direito canônico desde a Idade Média17) se transforma no "homossexualismo" ou "inversão sexual", ou seja, sai da esfera religiosa para se tornar assunto de uma ciência médica cartesiana, positivista, racionalista. A sodomia era simplesmente um tipo de ato interdito e o autor não passava de seu sujeito jurídico. Apesar de sua suposta "não-naturalidade", a atração erótica por indivíduos do mesmo sexo não era colocada numa categoria espiritual especial: era apenas um dos vários pecados da "carne decaída", do frenesi carnal condenável. A sodomia era um pecado de que qualquer homem era considerado capaz. Já o século XIX cria o conceito de identidade sexual: 16 Michel Foucault, História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber, p. 47 É curioso notar que as práticas sexuais lésbicas não "existiam" aos olhos da Igreja. Estas simplesmente não são mencionadas no direito canônico. O corpo feminino, no patriarcado, foi sempre elaborado em termos da ausência do falo. 17 17 O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ela é o princípio insidioso e infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado habitual, porém, como natureza singular.18 Havellock Ellis, Cesare Lombroso, Richard Krafft-Ebing e Max Simon Nordau patologizam o chamado "homossexualismo", fazendo deste um assunto médico, um problema mental (e moral) a ser tratado pela psiquiatria nascente19. Mesmo os reformadores progressistas que procuravam reabilitar o homossexualismo não como uma doença, mas sim como atributo de uma identidade sexual legítima (como John Addington Symonds e Edward Carpenter) ainda inscreviam-no no discurso controlado pelos profissionais da ciência20. A palavra "homossexual" é cunhada em 1869 pelo escritor húngaro Karoly Benkert. Só entra para o vocabulário da língua inglesa em 1892, quando o livro Psychopathia Sexualis de Krafft-Ebing (apresentando alguns dos primeiros estudos de caso de homossexualismo masculino) é traduzido21. Na Inglaterra, o primeiro livro a tratar do assunto é Sexual Invertion de Ellis, publicado em 1897. Na década de 1860, é descoberta a existência de dois hemisférios cerebrais. O hemisfério esquerdo, responsável pelas capacidades motora e intelectual, é considerado mais importante que o direito e praticamente define a distinção entre o animal e o humano. O hemisfério direito, sede de características "inferiores", nãoverbais, tem função secundária. Segundo Showalter22: Ao descrever ou imaginar as operações dos dois hemisférios, os cientistas europeus sofriam a influência de suas premissas culturais acerca da dualidade, incluindo-se as de sexo, raça e classe. Eles classificavam um lado do cérebro e do corpo como masculino, racional, civilizado, europeu e altamente evoluído enquanto o outro lado era feminino, irracional, primitivo e atrasado. 18 Michel Foucault, História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber, p. 50 O que pode ser percebido pelo próprio uso do sufixo "-ismo" nesse momento. 20 Lawrence Danson, Wilde's Intentions: the Artist in His Criticism, p. 45 21 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 224 22 Ibid., p. 156 19 18 Obviamente, acreditava-se que pessoas "normais", heterossexuais seriam destras enquanto homens afeminados e mulheres masculinizadas seriam parcial ou inteiramente canhotos. Esses indivíduos "degenerados", nos quais o hemisfério direito predominava, ocupariam uma posição inferior na escala de evolução humana. É cunhada a teoria da inversão sexual, segundo a qual a homossexualidade se deveria a uma "inversão" da sensibilidade e das características associadas a cada sexo: a lésbica seria uma mulher "masculinizada" e o homem homossexual seria "afeminado", ambos mostrariam em seu comportamento tendências consideradas do sexo oposto. De acordo com Foucault, o artigo de Westphal de 1870 sobre as "sensações sexuais contrárias" pode servir de data natalícia para a constituição da categoria psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade. Essas sensações são caracterizadas menos como um tipo de relações sexuais do que como uma determinada qualidade da sensibilidade sexual, uma maneira de inverter, em si mesmo, o masculino e o feminino. Segundo o historiador, "A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de androginia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie".23 O discurso acerca do homossexualismo continua a evoluir durante esse período e eventualmente surgem dois modelos conflitantes de identidade homossexual. O primeiro consiste no modelo paradigmático de inversão sexual do final do século, ilustrado pela obra de Edward Carpenter e John Addington Symonds na Inglaterra. De acordo com esse modelo de transposição de fronteiras e de limiaridade, as pessoas gays seriam um "sexo intermediário", localizado na fronteira entre os dois sexos. Segundo essa teoria, os homens homossexuais seriam pessoas nascidas com um alto teor de feminilidade essencial enquanto que as lésbicas seriam mulheres com um alto teor de masculinidade essencial. O segundo modelo propõe o oposto: o homossexualismo seria o "estágio evolutivo mais alto e mais perfeito da distinção sexual". Segundo essa teoria, o homem identificado com a masculinidade e a mulher identificada com a feminilidade dariam expressão a formas intensificadas da masculinidade e da feminilidade e seriam os representantes mais "masculinos" ou "femininos" de seus respectivos sexos. 23 Michel Foucault, História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber, p. 51 19 Acreditava-se que a preferência sexual pelo próprio sexo era determinada pela repulsa ao sexo oposto ao invés de por uma identificação com os seus desejos. Afinal, o homossexual é um doente psiquiátrico ou um criminoso? A categoria da homossexualidade, assim como muitas outras, se encontrava em pleno processo de nomeação. O século XIX foi, segundo Michelle Perrot24, a idade de ouro do privado, "onde as palavras e as coisas se precisam e as noções se refinam". Havia uma disputa por parte de vários tipos de candidatos para ver quem possuía a autoridade simbólica de nomeá-la. As duas capitais culturais do século XIX, Londres e Paris, viviam momentos diametralmente opostos em relação à criminalização da homossexualidade. Enquanto em Paris penas menos severas passavam a ser aplicadas mais sistematicamente (dada a despenalização crescente da homossexualidade desde a Revolução Francesa e a generalização desse pensamento mais humano por toda a Europa a partir do Código Napoleônico), na Inglaterra, foi exumado em 1828 um estatuto da época de Henrique VIII. Segundo este, "Que toda pessoa reconhecida culpada do abominável crime de sodomia [buggery] ou com um ser humano ou com qualquer animal, seja condenada à morte conquanto que criminosa"25. O homossexualismo se constituía em um tópico de considerável interesse tanto científico quanto jurídico. Na Inglaterra, em janeiro de 1886, a Emenda Labouchere entrava em vigor. Esta emenda prescrevia uma pena de dois anos de reclusão com ou sem trabalhos forçados para aqueles que fossem considerados culpados do crime de "indecência grave" [gross indecency]. É curioso notar que "mais uma geração se passaria antes que o homossexualismo feminino atingisse um nível de articulação correspondente. A identidade lésbica era definida de modo muito menos claro, e a subcultura lésbica era mínima em comparação com a do homossexualismo masculino"26. Mesmo em 1921, os legisladores ingleses se recusaram a incluir as mulheres na Emenda Labouchere porque o lesbianismo era inconveniente demais até mesmo para ser proibido. Um parlamentar alegou que a adoção de uma cláusula dessa 24 Michelle Perrot, "Introdução" in História da Vida Privada 4: Da Revolução Francesa à Primeira Guerra, p. 9 25 Paolo Zanotti, Gay: la Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 37 26 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 162 20 natureza "seria prejudicial ao apresentar às mentes de seres perfeitamente inocentes os pensamentos mais revoltantes"27. A ciência sexual define sexualidades e, por conseguinte, masculinidades. Há uma polarização entre as figuras do "cavalheiro" e do "dândi". Nordau lança, em 1895, um livro chamado Degeneração, em que ataca as "artes degeneradas" de seu tempo, tais como as obras de John Ruskin, Dante Gabriel Rossetti, Paul Verlaine e Charles Baudelaire. A esta arte degenerada, obviamente, correspondem vidas degeneradas. Nordau critica todos os movimentos artísticos da segunda metade do século XIX: o simbolismo, o decadentismo, o pré-rafaelismo, o esteticismo. Segundo Paolo Zanotti28, as vanguardas artísticas poderiam ser definidas como "uma espécie de contracultura que se opõe à cultura oficial da época e a seus ideais em questão de arte, utilidade e virilidade normativa". O grande medo do século era o de que os sólidos valores burgueses estariam se desvanescendo, que o homem, antes robusto, estaria se debilitando e que se aproximaria um período de decadência, degeneração e "afeminação" do homem europeu. As temidas "novas mulheres" também poderiam ser consideradas parte dessa contracultura. Para a mentalidade conservadora da época, a "nova mulher" e o "decadente" estavam vinculados como um casal com muitos atributos em comum: ambos desafiavam a instituição do casamento e ignoravam as distinções entre os sexos. Também faziam algo que era considerado motivo de grande surpresa e comoção na Inglaterra vitoriana: aos olhos da sociedade burguesa, violavam os organismos sociais e as hierarquias perfeitas ao celebrar, em sua ficção, alianças românticas entre as classes sociais. Para a burguesia, este era um momento de profunda insegurança e incerteza: as tradições pareciam estar se "enfraquecendo", as "novas mulheres" estavam dispostas a questionar as convenções sociais, a supremacia industrial inglesa deixava de ser indiscutível. O mundo como o conheciam parecia desvanecer-se no ar e a "culpa" era atribuída a esses corpos estranhos. No fin-de-siecle, borbulhavam intensos sentimentos antipatriarcais por parte da avant-garde artística, que eram combatidos com um recrudescimento da misoginia, 27 Parliamentary Debates, Commons, 1921, vol. 145, p. 1805 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 163 28 Paolo Zanotti, Gay: la Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 44 21 do racismo e da homofobia por parte da sociedade burguesa. A masculinidade tradicional passava por uma crise, que refletia os estresses e as tensões da rígida estruturação dos papéis masculinos. Ao mesmo tempo em que havia uma valorização exacerbada do poder físico e intelectual masculino (por parte dos cavalheiros), temiase a "degenerescência" representada pelos dândis, artistas e homossexuais, cuja postura era percebida como um declínio da virilidade na sociedade. Em fins do século XIX, a identidade sexual masculina burguesa suplanta em definitivo a antiga identidade masculina herdada da aristocracia. Esta não era incompatível com a música, o balé, a literatura – atividades que, neste momento, recebem um novo recorte de gênero (são "feminizadas") e se tornam marginalizadas. Deixam de ser ofícios adequados para um burguês "respeitável" e "são". Os artistas são pessoas que são pensadas, cada vez mais, em termos da concepção romântica de genialidade e loucura. Essas atividades e ocupações "marginalizadas" viriam a ser realizadas por grupos também marginalizados, por indivíduos cujos corpos já fossem considerados "corpos estranhos", fora do padrão "correto", ou seja, estrangeiros, judeus e homossexuais. Estes dois tipos de identidade masculina eram elaborados como pólos opostos. Na realidade, quem podia afirmar em que momento a misoginia extrema (aceita e encorajada socialmente) se transformava num possível desejo homoerótico? Para Showalter29, "A Clubelândia do final do século repousava sobre a frágil linha limítrofe que separava as amizades entre homens das relações homossexuais e que distinguia uma misoginia máscula de um homoerotismo repugnante". A contraposição do cavalheiro másculo ao dândi degenerado fingia não perceber que o desejo homossocial masculino é muito mais fluido do que parece à primeira vista. Como afirma Eve Kosofsky Sedgwick30, "Para um homem, gostar da companhia masculina fica separado de interessar-se por homens apenas por uma linha invisível, cuidadosamente apagada, sempre já transposta". Esse era um dos maiores medos da Inglaterra vitoriana tardia: o de que seus homens jovens, ao invés de se tornarem robustos e sólidos cavalheiros, burgueses e pais de família, se tornassem afeminados e artísticos decadentes, estetas e dândis. 29 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 29 Eve Kosofsky Sedgwick, Between Men: English Literature and Male Homosocial Desire, Nova York: Columbia University Press, 1985, p. 89 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 29 30 22 Tudo isso era complicado ainda mais pelas reivindicações das "novas mulheres", que não se contentavam mais em ser etéreos "anjos do lar". Se essas mudanças se generalizassem, o que aconteceria com a raça inglesa? 23 Capítulo II O UNIVERSO ESTÉTICO DE OSCAR WILDE Em todas as questões pouco importantes, o estilo, e não a sinceridade, é o essencial. Em todas as questões muito importantes, o estilo, e não a sinceridade, é o essencial. - Oscar Wilde Um ar de decadência varre a Europa em fins do século XIX. A civilização finde-siecle se sabe um mundo envelhecido, pressente que muitas de suas características estão morrendo para dar lugar ao novo. Muitos artistas, ao invés de lastimar, se alegram e festejam a degenerescência da humanidade. Charles Baudelaire (18211867) é o primeiro escritor, em meados do século XIX, a positivar o conceito de decadência, baseado no antigo conceito clássico das Idades do Homem. Segundo esse conceito, a humanidade se encontraria num processo de degenerescência, estaria numa escala descendente em termos artísticos a partir de uma suposta Idade do Ouro, representada na literatura latina por Ovídio e Cícero. Esse conceito se coadunaria mais tarde com a escatologia católica e sua linha descendente que liga um suposto paraíso perdido a um apocalíptico fim dos tempos. Para Baudelaire31, "Tudo está dito, e chegamos tarde demais após mais de sete mil anos que há homens e que pensam". O autor de As Flores do Mal (1857) é o primeiro a celebrar a decadência: "Je suis venu trop tard dans un monde trop vieux"32. Baudelaire é um típico exemplo de poete maudit, o poeta que vive, por escolha própria, nas margens de uma sociedade que detesta. Com suas Flores do Mal, inicia a estética marginal, "da sarjeta". Nasce muito tarde para ser um dos românticos, morre muito cedo para ser um dos simbolistas. Baudelaire se constitui no elo entre Romantismo e Decadência, esses dois momentos que, de modos bem diferentes, celebram o sonho e o fantástico em face a um realismo cientificista e industrialista. No entanto, ao contrário do Romantismo, a 31 Charles Baudelaire, Caracteres apud Paul Bourget, "Teoria da Decadência" in Fulvia Moretto, Caminhos do Decadentismo, p. 54 32 "Vim muito tarde a um mundo muito velho", Charles Baudelaire, Rolla apud Paul Bourget, "Teoria da Decadência" in Fulvia Moretto, Caminhos do Decadentismo, p. 54 24 Decadência começa a vilificar os grilhões da verossimilhança entre arte e realidade, começa a questionar a "natureza". Em O Pintor da Vida Moderna33, o autor pergunta "quem se atreveria a atribuir à arte a função estéril de imitar a natureza?" e procura libertar a arte da tirania da representação. Para Patrick McGuinness 34, Baudelaire "em seus textos sobre arte moveu uma cruzada filosoficamente marcante e moralmente implacável contra la Nature". Baudelaire acreditava que era a natureza que fazia com que os seres humanos se matassem e se brutalizassem, considerava que as leis, as religiões, os códigos morais, a própria autoridade e a civilização que preservavam os valores humanos eram artificiais. Baudelaire, por sua vez, se inspira na obra do escritor norte-americano Edgar Allan Poe para criar o que viria a ser considerada a estética decadente. O escritor francês encontrou em Poe um precursor: ambos partilhavam uma sensibilidade com tendência para o macabro, o sobrenatural e o melancólico. Baudelaire se baseia principalmente em O Princípio Poético, ensaio em que Poe descreve a sua teoria literária. Neste ensaio, podemos ver prefigurados muitos dos princípios estéticos que guiariam o Decadentismo nascente. Talvez a asserção mais famosa de Poe neste texto seja a de que um poema deva ser escrito for the poem's sake: o poema deve referir-se a si mesmo, consistir numa busca pela Beleza e não pela Verdade moral. De acordo com o escritor norte-americano, é apenas através da arte (em especial da música) que somos capazes de vislumbrar os prazeres divinos, a beleza celestial. O ensaio partilha da tendência da época de associar as sensações físicas que a Beleza produz a uma excitação da alma, que reconheceria nesta a manifestação do que Poe chama de Princípio Poético. Esta teoria se tornaria o substrato do Decadentismo e do Esteticismo e segue o "espírito da época" que separa de vez a esfera ética da esfera estética (a arte deixa de ter a "função moral" de iluminar o espectador). A expressão cunhada por Poe, poem for poem's sake, inspira o motto do Esteticismo, art for art's sake, afirmando a intenção do movimento de produzir uma literatura que não estivesse necessariamente vinculada à realidade, que fosse julgada somente a partir de parâmetros estéticos e não de critérios didáticos ou utilitários. O Decadentismo possui representantes por toda a Europa nessa época. Não se constitui numa escola literária, mas sim num l'air-du-temps que se infiltra, como um 33 34 Teixeira Coelho (org.), A Modernidade de Baudelaire, p. 204 Patrick McGuinness, "Introdução" in Joris-Karl Huysmans, Às Avessas, p. 55 25 perfume com notas orientais, nas subjetividades da época. Na França, onde floresce, a escrita decadente é associada principalmente aos poetas simbolistas e seus principais expoentes são Arthur Rimbaud, Paul Verlaine, Auguste Villiers de L'Isle Adam, Stéphane Mallarmé e Tristan Corbiere. Este movimento celebra tudo o que há de outonal nesse mundo que morre. As palavras de ordem do movimento são: imaginação, intuição, "novo lirismo". O estilo de seus autores é incrustrado de palavras arcaicas e neologismos. Os decadentes mostram um "espírito de revolta", uma desconfiança em relação ao mundo que a ciência e o progresso prometem. Prega-se a volta a um "primitivismo": são recuperadas e revalorizadas lendas celtas, nórdicas (lendas arturianas, histórias do Graal), antigas, medievais e bíblicas (a judia Salomé é a "deusa da decadência"). Os mitos gregos também voltam à voga: há uma recuperação dos mitos de Édipo, de Prometeu, de Orfeu e da Esfinge pelos escritores da época. O olhar dos autores se volta para o passado, há uma recusa do mundo contemporâneo. Segundo Fulvia Moretto35, alguns dos temas trabalhados mais obsessivamente nesse momento são: a natureza petrificada e fria dos bizantinos, os reflexos dourados de outono, o elogio à maquiagem e ao artifício em geral, a descrição de uma flora exótica, o reflexo na água, o gosto por pedrarias, por metais, por vegetais terrestres ou submarinos (temas da art nouveau), a beleza do sol poente, a consciência da finitude das coisas, a evasão para a arte da decadência latina e bizantina, "como se o preciosismo da escritura e da pintura pudesse salvar um mundo que morre". O primeiro romance considerado decadente é Às Avessas de Joris-Karl Huysmans. O autor havia sido discípulo de Émile Zola, mas, ao invés de usar sua pena para pintar um painel da sociedade ao gosto dos escritores realistas, faz o retrato de um homem sozinho, um solteirão, um ermitão recluso, que se isola de um mundo que detesta. Seguimos o aristocrata Jean Des Esseintes, esteta, homossexual, hedonista, blasé, misógino, numa busca narcísica e egocêntrica de educar seus sentidos em todos os assuntos "elevados", como o estudo de sua própria genealogia, de pedrarias, de perfumes, de tapeçarias, de música, de jóias, de teorias místicas e de religiões. Trata-se de um romance sem enredo e com um único personagem. De 35 Fulvia Moretto, Caminhos do Decadentismo Francês, pp. 32-3. 26 acordo com McGuinness36, "Às Avessas é um híbrido, composto de diferentes modalidades de escrita: catálogo, inventário, estudo de caso, enciclopédia e tratado erudito, enquanto os capítulos são dispostos como compartimentos ou vitrines". Des Esseintes se tornou o protótipo do herói (ou anti-herói) decadente. Des Esseintes/ Huysmans cria o conceito de um cânone literário alternativo, faz uma lista de "malditos", a começar por Baudelaire. O livro, quando de sua publicação em maio de 1884, se torna uma coqueluche, é celebrado efusivamente por vários escritores como o nascimento de um novo tipo de romance, de uma nova sensibilidade literária. Forma as mentes de toda uma geração de novos escritores, cansados da "frieza" e da "crueza" das escolas realista e naturalista. Zola, de sua parte, critica o livro pelo que considera sua falta de desenvolvimento, sua circularidade e suas transições dolorosas. Provavelmente pressentindo o nascimento de uma nova sensibilidade literária, Zola o considera um terrível golpe contra o Naturalismo. Segundo McGuinness37: Tem mais em comum com as narrativas não lineares e aparentemente sem enredo do modernismo do que com a maior parte da ficção francesa do finde-siecle que ele, a um tempo, inspirou e ultrapassou de antemão. (...) Às Avessas fica mais à vontade ao lado das obras de Proust, Musil, Joyce e Woolf que junto das de Jean Lorrain, Rachilde ou Octave Mirbau. O Esteticismo partilha do ar outonal e do espírito de degenerescência do Decadentismo que varrem o continente, mas enfatiza determinados elementos, criando uma teoria estética especificamente inglesa. Esta se inspira no PréRafaelismo, no Romantismo (especialmente na poesia de John Keats) e nos filósofos do século XVIII Immanuel Kant e Alexander Gottlieb Baumgarten38. Este movimento também celebra a Renascença e os textos clássicos "redescobertos" nessa época. Seus idealizadores enfatizam vários elementos da Grécia Clássica, bem mais do que os escritores do continente. Eles criam uma verdadeira filosofia de vida (devidamente "vitorianizada") a partir dos clássicos gregos. Com a demolição dos paradigmas tradicionais, a recusa da estética prevalente e a ojeriza pela vida produtiva do capitalismo industrial, só resta aos decadentes um 36 Patrick McGuinness, "Introdução" in Joris-Karl Huysmans, Às Avessas, p. 58 Ibid., p. 59 38 Nicholas Frankel, Oscar Wilde: The Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored Edition, p. 70 37 27 neo-hedonismo, a busca do "novo, o raro, o estranho, o refinado"39. Na Inglaterra, Walter Pater se torna o patrono dessa filosofia, escrevendo em The Renaissance: Studies in Art and Poetry, em 1873: nossa única chance está em (...) conseguir reunir o máximo de pulsações possíveis num determinado período. As grandes paixões nos proporcionam essa percepção acelerada da vida. (...) O amor à arte pela arte tem o máximo, porque a arte nos chega propondo-se francamente a não nos dar nada a não ser a melhor qualidade aos momentos à medida que vão passando, e apenas em prol desses momentos. 40 A decadência é um termo de notória dificuldade para se definir, consistindo, segundo John Reed41, no rótulo pejorativo aplicado pela burguesia a tudo que lhe parecesse anormal, artificial e pervertido, desde o art nouveau ao homossexualismo, uma doença com sintomas associados à degeneração e à decomposição cultural. Para além da visão tacanha da burguesia, tratava-se de um movimento estético pósdarwiniano que ultrapassava as fronteiras européias. A estética decadente questionava todos os pilares nos quais se assentava a moral burguesa, já que considerava a natureza um mecanismo impiedoso, alheio à espécie humana; a religião, uma superstição do passado; e o amor, um impulso biológico para a reprodução da espécie. Na Inglaterra, tais idéias são vinculadas principalmente pelos escritores e artistas filiados à escola do Esteticismo, que eram publicados pelo periódico The Yellow Book. Seu maior expoente é Oscar Wilde. Os decadentes ingleses associados a este periódico parecem ter sido as vítimas mais dramáticas da crise da masculinidade. Ao passo que as escritoras do movimento da nova mulher eram robustas e bemsucedidas, os decadentes eram elaborados como criaturas fisicamente frágeis, sendo caricaturados, muitas vezes de maneira impiedosa, nas páginas da revista Punch. De acordo com Showalter42, "O termo 'decadência' era também um eufemismo do final do século para o homossexualismo, a fachada pública ou cultural que designava uma 39 Jean Pierrot, The Decadent Imagination, p. 10 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 223 40 Walter Pater, The Renaissance: Studies in Art and Poetry (1873) apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 223 41 John Reed, Decadent Style, Athens: Ohio University Press, 1985, p. 7 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 222 42 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 224 28 posição complexa e na verdade contraditória ao longo do eixo da formação da identidade homossexual inglesa no final do século XIX". As novas mulheres e os homens homossexuais "aparecem" mais ou menos na mesma época, na década de 1890. A sociedade da era vitoriana tardia se sabia decadente em vários sentidos, mas, ao mesmo tempo, acreditava em seus poderes de renovação: "um mundo proclamando sua própria morte a plenos pulmões, um fin du monde degenerado e decadente; mas ele também proclamava seu poder de renascer como o moderno, o novo: a Nova Mulher, a Nova Ficção, o Novo Drama, o Novo Hedonismo43". A Londres de Wilde era o centro pujante (e agonizante) de um Império que já mostrava sinais inequívocos de decadência. Especialmente os artistas sentiam o "cansaço" do fim do século e comparavam sua época com a decadência, a lassidão de costumes, o langor associados ao fim dos impérios romano e bizantino. A literatura "decadente" do período registra essa cultura do fin-de-siecle. Havia uma preocupação muito grande por parte da sociedade normativa em relação a essa literatura decadente e a "influência" que esta teria sobre mentes jovens. O médico Max Nordau44, em seu livro Degeneração, refere-se ao personagem fictício Des Esseintes do livro de Huysmans para descrever o artista degenerado: E ei-lo agora, pois, como o 'super-homem' com que Baudelaire e seus discípulos sonham e com quem desejam se parecer: fisicamente, doente e frágil; moralmente, um rematado patife; intelectualmente, um inacreditável idiota que passa todo o tempo escolhendo as cores e os tecidos com que revestir artisticamente seu quarto, a observar os movimentos de peixes mecânicos, cheirando perfumes e provando licores [...]. Um parasita do mais baixo grau de atavismo, uma espécie de sáculo humano, estaria condenado, se pobre fosse, a morrer ignobilmente de fome se a sociedade, com uma caridade equivocada, não lhe assegurasse as necessidades da vida num hospício de cretinos. As narrativas da época (mesmos as que não se encaixam nos moldes decadentes ou estéticos) nos oferecem um retrato fiel dos debates vitorianos, das grandes questões que preocupavam os homens do final do século XIX. Segundo 43 Holbrook Jackson, The Eighteen Nineties, p. 21 apud Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in His Criticism, p. 10 44 Max Nordau, Degeneração, 1892 apud Patrick McGuinness, "Introdução" in Joris-Karl Huysmans, Às Avessas, p. 318 29 Showalter45, "Os personagens da virada do século tornaram-se parte da nossa mitologia cultural. Desde o instante da sua criação, Sherlock Holmes, Jekyll e Hyde, Drácula, Dorian Gray, o Viajante do Tempo e Mr. Kurtz saltaram das páginas dos livros para entrar para a cultura popular". Nesse momento, o mundo editorial passava por sérias mudanças, dentre elas, a proliferação de revistas e da imprensa popular e o desaparecimento do romance vitoriano em três volumes. Este havia sido projetado para a leitura em família e era presença garantida no lar vitoriano (um exemplo típico seriam os romances e contos de Natal de Charles Dickens). Como haviam sido projetados para a circulação na família, os romances vitorianos eram obrigados a ser castos e respeitáveis. O desaparecimento do romance em três volumes se deveu a uma decisão de cunho econômico tomada em 1894 por parte das bibliotecas de empréstimo. De acordo com Showalter46, os romancistas celebraram o fim de um gênero que havia sido fonte de inibição e repressão. Os antigos volumes em suas encadernações resistentes eram também associados em termos físicos à família nuclear vitoriana: pai, mãe e filho. Os novos romances passam a tratar de uma gama mais variada de assuntos: com a perda de seu caráter familiar, os romancistas podem começar a escrever sobre temas que haviam sido até então expurgados da literatura pela sensibilidade vitoriana. Para Showalter47: Já os romances esbeltos, finamente encadernados do fin-de-siecle, com suas capas douradas e seus desenhos de Beardsley, sugeriam uma imagem muito diferente tanto no caráter quanto na sexualidade: o celibatário, o solteirão, a 'mulher sem par', o dândi e o esteta. Novas combinações sexuais e ficcionais caracterizavam o meio narrativo [a partir] da década de 1880. Com o desaparecimento do romance em três volumes, segue-se também um período de vinte anos em que, aparentemente, não aparece nenhuma escritora de talento. As escritoras, que, de acordo com Showalter48, haviam dominado o mercado editorial desde 1840, entram num perigoso período de declínio após 1880. Por que isso acontece? Esse fato pode ser pensado como um aspecto da crise da masculinidade 45 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 31 46 Ibid., p. 32 Ibid., p. 32 48 Elaine Showalter, A Literature of Their Own, p. 39 47 30 que intensificava a luta entre os sexos. A literatura produzida ao longo do século XIX na Inglaterra possuía "uma venerável tradição narrativa, controlada pela diferença, pela nítida separação entre sujeito e objeto, entre público e privado, ativo e passivo – classificações intimamente vinculadas ao dualismo radical do masculino e feminino"49. A era vitoriana tardia trouxe o fim dessas convenções literárias: na medida em que as certezas sexuais entravam em colapso, as certezas ficcionais também se alteravam. O desaparecimento do romance em três volumes sugeria um afastamento de temas, assuntos e formas associados à feminilidade e à maternidade (George Eliot foi o exemplo mais ilustrativo desse gênero narrativo). Segundo Showalter50: A estrutura de três partes determinava uma visão da experiência humana que fosse linear, progressiva, causal e tripartite, terminando com o casamento ou a morte. Quando não havia mais três volumes a preencher, os escritores puderam abandonar as estruturas temporais de começo, meio e fim, bem como as fábulas genealógicas e procriadoras de heranças, casamentos e mortes que estavam tradicionalmente associadas às mulheres escritoras e ao realismo vitoriano. Ao invés disso, a narrativa do final do século questionava as próprias crenças em términos e encerramentos, em casamentos e heranças. Em franca oposição aos romances vitorianos sobre famílias e relacionamentos (e na tentativa de fuga da sombra que a escrita de George Eliot deitava sobre o romance inglês), surgem as narrativas de aventura, escritas por homens e pressupondo uma audiência masculina. A literatura de aventura fantástica de Jules Verne já fazia sucesso desde a década de 1860. A Ilha de Coral de R. M. Ballantyne, A Ilha do Tesouro de Robert Louis Stevenson, As Minas do Rei Salomão e Ela de H. Rider Haggard, A Ilha do Dr. Moreau de H. G. Wells e O Coração das Trevas de Joseph Conrad se constituem em exemplos ilustrativos dessas narrativas de aventuras que envolviam "a penetração do centro imaginado de uma civilização exótica, no cerne, Kôr, coeur ou coração da treva que é um ponto vazio no mapa, o reino do inexplorado e do desconhecido. Para os escritores do final do século, esse espaço livre é geralmente a África, o 'continente 49 Kahane, "Bostonians", p. 287 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 34 50 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 34 31 negro', ou alguma região misteriosa do Oriente, local habitado por uma outra raça mais escura"51. Nas terras exóticas, distantes, tropicais, de florestas exuberantes, que estavam sendo dilapidadas pelo Império Britânico, eram permitidos comportamentos que seriam considerados inaceitáveis na ilha da Grã-Bretanha. Essas narrativas refletem o lado otimista e eufórico do colonialismo e, em alguns casos (como em A Iha do Dr. Moreau e em O Coração das Trevas), também o lado obscuro e sombrio do processo civilizatório. Estes dois livros mostram a natureza dúbia desse processo, que usa por um lado um discurso missionário e humanitário ao mesmo tempo em que se utiliza de uma prática que acaba por desumanizar a todos, inclusive aos próprios "civilizados". De uma outra forma, os romances de H. G. Wells também lidam com as paranóias da sociedade vitoriana tardia. Dois de seus romances mais famosos, A Máquina do Tempo (1895) e A Guerra dos Mundos (1898) refletem alguns dos grandes debates da época, algumas das grandes preocupações do homem vitoriano. Em A Máquina do Tempo, o protagonista, após viajar para o ano 802.701 d.C., se depara com os Elói, um dos dois ramos em que a humanidade se dividiu. Estes são caracterizados como uma raça degenerada, enfraquecida, pouco inteligente, que só se preocupa com o lado belo da existência e que não participa do processo produtivo. Para o protagonista, os Elói representam o fim da humanidade: "Parece-me que encontrei a humanidade em decadência. O pôr-do-sol ferrugem me fez pensar no pôrdo-sol da humanidade"52. Em oposição a estes, temos os Morlocks, os repugnantes seres do subterrâneo, que, no entanto, se encontram no topo da cadeia alimentar dessa sociedade do futuro (e possuem os meios de produção). Essa narrativa reflete crenças típicas da sociedade vitoriana tardia: a crença em um darwinismo social que, eventualmente, transformaria as classes abastadas e os trabalhadores em espécies ("raças") diferentes, dados seus estilos de vida opostos. Também ilustra a histeria da época a respeito da degenerescência da raça, óbvia alusão aos afeminados dândis e estetas. Já em A Guerra dos Mundos, a Inglaterra parece bem mais distante da França do que de Marte. O assunto é, de novo, o fim dos tempos, em que as "conquistas" do 51 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 115-116 52 H. G. Wells, A Máquina do Tempo, p. 48 32 positivismo foram dizimadas: "Cidades, nações, progresso, civilizações... nada disso existe mais. Esse jogo acabou. Fomos derrotados"53. Sobreviverão apenas os homens "de verdade", em detrimento aos artistas e boêmios, retratados como gordos, estúpidos e degenerados: "Formaremos um bando de homens lúcidos e fortes. Não aceitaremos qualquer porcaria que aparecer. Colocaremos os fracotes para fora. (...) os que são inúteis, incômodos e prejudiciais precisam morrer. Devem morrer. Devem estar dispostos a morrer. Afinal, é um tipo de traição continuar vivo e manchar a raça"54. O que deve ser preservado para o futuro, para a eventual reconquista da Terra pelos homens são "não romances e poesias açucaradas, mas idéias, livros de ciência"55. O grande medo que se vê aqui é que uma "raça alienígena" venha a destruir a ciência, o racionalismo e o progresso do orgulhoso Império inglês. Além disso, como já vimos, a psicanálise começa a questionar o ego vitoriano estável e linear no final do século. A literatura reflete essa fragmentação, essa dissolução da psique humana. O gênero fantástico passa a apresentar o tema da dupla personalidade e a descrever os desvios, a rebelião e a anormalidade: "À semelhança dos relatos de Freud de pacientes histéricos, essas histórias são fragmentadas, contraditórias, incoerentes e alheias à seqüência cronológica"56. As histórias, ao invés de serem contadas pelo narrador onisciente do realismo vitoriano, são relatadas por narradores múltiplos, que dão suas opiniões e versões sobre o que está sendo contado. Os finais das histórias passam a ficar em aberto. No fin-de-siecle, a solidez da vida burguesa vitoriana era corroída pela degenerescência trazida por essa nova literatura. Um dos grandes debates vitorianos se desenvolve a respeito da "essência" do homem. O homem é eminentemente bom ou mau? Ou uma mistura das duas coisas? Em textos da época, é comum a imagem de que, na alma do homem, coabitam o animal (representado pelo corpo baixo e material, corruptível) e o anjo (representado pelo espírito racional e pela alma imortal). O mais ilustrativo romance que se utiliza desse tema é O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Stevenson. 53 H. G. Wells, A Guerra dos Mundos, p. 206 Ibid., p. 210 55 Ibid., p. 210 56 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 34 54 33 Nessa época, também há o florescimento da história de detetive, que tem como sua maior figura o famoso personagem de Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes. Ao seguir o método científico à risca, Holmes junta na mesma persona o cientista e o policial, dando forma definitiva e icônica ao detetive sangue-frio e sabetudo. Suas histórias se passam numa Londres tomada pelo fog, pelo medo burguês da "imundície" do bairro operário do East End e pelos desaparecimentos (afinal, a Londres dessa época era conhecida como "a cidade dos desaparecimentos"57), assassinatos e descobertas de corpos boiando no Tâmisa, acontecimentos corriqueiros de então. O método utilizado por Holmes é ilustrativo do modelo epistemológico que surge nessa época: o paradigma indiciário. Este se baseava na investigação de pormenores normalmente considerados sem importância, triviais, "baixos", que, acreditava-se, forneceriam a chave para aceder aos produtos mais elevados do espírito humano. Segundo Carlo Ginzburg58, esse modelo derivava da semiótica médica, "a disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo". A história de detetive (com as convenções de gênero que perduram até hoje) é inventada em meados do século XIX pelo escritor norte-americano Edgar Allan Poe. Em 1841, é publicado o conto "Os Assassinatos da Rua Morgue", em que aparece pela primeira vez o detetive C. Auguste Dupin. Este é seguido por dois outros contos, "O Mistério de Marie Rogêt" e "A Carta Roubada". Outro conto influente do autor é "O Homem da Multidão" (1840), que prefigura tanto a história de detetive quanto a flanêrie pela grande cidade. Segundo Walter Benjamin59, "A figura do flâneur prenuncia a do detetive". Este conto faz referência à quantidade nunca antes vista de indivíduos anônimos que circulam pelas metrópoles do século XIX, ao aparecimento da "turba" da cidade moderna, de onde tanto pode emergir uma bela passante vestida de negro quanto um ladrão ou um assassino. A princípio, o autor nos descreve toda a "fauna humana" que pode ser observada na Londres de meados do século XIX. Anoitece, mas, devido à recente 57 Nicholas Frankel, Oscar Wilde: The Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored Edition, p. 70 58 Carlo Ginzburg, Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História, p. 151 59 Walter Benjamin, Passagens, p. 485 34 instalação de lampiões de gás nas ruas60, a multidão permanece circulando pela cidade. Depois, devido a seus traços fisiognômicos notáveis, o narrador começa a seguir um indivíduo em específico. Este homem perambula por toda a cidade de Londres durante uma noite e um dia, alternando um comportamento de suspeita e desconfiança com uma atitude blasé perante a tudo. Nada prende sua atenção por muito tempo e ele sente como que uma compulsão por caminhar sem parar pela cidade. Estavam lançadas as características do infatigável flâneur baudelairiano. Qual a diferença entre o flâneur e o dândi, essas personagens típicas do século XIX? De acordo com Benjamin61, "Paris criou o tipo do flâneur". A flânerie é um fenômeno tipicamente francês (e, mais especificamente, parisiense) que denota essa vontade incontrolável de andar pela Paris do século XIX, por seus boulevars e magasins, que os artistas, escritores, poetas e literatos em geral passam a sentir após as reformas promovidas na cidade pelo Barão de Haussman. O flâneur, portanto, é um homem que caminha pela cidade, apreciando o planejamento urbanístico, as novas avenidas largas, a arquitetura moderna e observando os tipos humanos da multidão. Refere-se à cidade, ao espaço urbano. Já o dandismo ocorre tanto na Inglaterra quanto na França, constituindo-se em mais um caso de influência cruzada entre as duas culturas. Surge no período da Regência inglesa com Lorde George "Beau" Brummel (1778–1840), conselheiro do regente Jorge IV, no final do século XVIII e início do XIX. Penetra na França na época da Revolução Francesa, numa onda de anglomania, torna-se uma moda entre os homens do mundo, poetas e romancistas e encontra seus teóricos em Baudelaire e Barbey d'Aurevilly. Um dos mais famosos dândis franceses será Robert de Montesquiou (1855-1921), inspiração de Marcel Proust para criar a personagem do Barão de Charlus em Em Busca do Tempo Perdido. Curiosamente, nas últimas décadas do século XIX, o dandismo é recuperado pelos estetas ingleses, agora como imitação das modas francesas. Segundo Zanotti62, os estetas ingleses recuperaram através da França uma tradição autóctone, ainda que a maioria bem-pensante a imaginava de origem francesa, já que consideravam a França o exportador oficial de produtos 'imundos': as novelas francesas (...); os beijos de língua (French kisses); os preservativos 60 Os lampiões a gás foram instalados em 1812 em Londres e em 1820 em Paris. Walter Benjamin, Passagens, p. 462 62 Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 45 61 35 (French letters); a sífilis (French pox) e inclusive o sexo pago (French lessons). O dândi é herdeiro de uma longa linhagem. Apesar do fenômeno do dandismo propriamente dito ter a sua origem no período da Regência britânica, Roger Kempf63 identifica muitos antepassados ilustres dos dândis ao longo da História, tais como Júlio César, Catilina, Alcibíades e Paul de Molenes. Thomas Carlyle, em Sartor Resartus, escreve sobre o dândi: "Toda faculdade de sua alma, espírito, bolsa e pessoa é heroicamente consagrada a esse objeto único, ao uso inteligente e elegante de roupas: enquanto outros se vestem para viver, ele vive para se vestir...". Honoré de Balzac cria o primeiro modelo literário de dândi na figura de Henri de Marsay em La fille aux yeux d'or (1835), parte da Comédia Humana. Baudelaire alça o dandismo a uma esfera metafísica: compara-o ao espiritualismo e ao estoicismo e considera-o uma espécie de religião. Para o pensador francês, o dandismo não consistiria apenas num amor desmesurado pela indumentária e pela elegância física; a preocupação com essas coisas seria um símbolo da superioridade aristocrática do espírito do dândi. Para Baudelaire64, este é um homem em luta contra a trivialidade e a mediocridade burguesas: (...) alguns homens, deslocados de sua classe, descontentes, destituídos de uma ocupação, mas todos ricos de uma força inata, são capazes de conceber o projeto de fundar uma nova espécie de aristocracia, tanto mais difícil de abater quanto estará baseada nas mais preciosas, nas mais indestrutíveis faculdades, e nos dons celestes que nem o trabalho nem o dinheiro podem conferir. O dandismo é o último rasgo de heroísmo nas decadências. De acordo com Antoine Compagnon65, o dândi herda o ódio ao burguês e o flair pelo sublime do Romantismo (apesar de ser contemporâneo ao Esteticismo e ao Simbolismo, que se contrapunham à escola romântica anterior). É notável no dândi seu sentimento antiburguês, sua ojeriza ao homem comum, ao homem medíocre, ao comerciante. Para se diferenciar do vulgar burguês, o dândi adota hábitos e costumes aristocráticos; o próprio corpo do dândi faz referência a uma época aristocrática, a um 63 Roger Kempf, "Citations pour une famille" in Dandies – Baudelaire et Cie, pp. 137-156 Charles Baudelaire, "O dândi" in Tomaz Tadeu (org.), Manual do Dândi: A Vida com Estilo, p. 17 65 Antoine Compagnon, Os Antimodernos, p. 135 64 36 passado em que a brandura e o ornamento podiam recair sobre a figura masculina. Para Compagnon, o dândi, assim como o romântico, continua sendo um individualista refratário e rebelde que vive sob a ameaça do spleen e da dor. Baudelaire66 também não deixa de notar uma espécie de tristeza no dandismo: "O dandismo é um sol poente; como o astro que declina, é soberbo, sem calor e pleno de melancolia". Outro dos maiores teóricos franceses do dandismo, juntamente com Baudelaire, foi o escritor Barbey d'Aurevilly. Em seu ensaio sobre o maior dândi de todos os tempos, "O Dandismo e George Brummell", o pensador tenta definir a filosofia de vida por trás do dandismo, que, a seu ver, é bem mais sutil do que pode parecer a princípio. Segundo d'Aurevilly67, "o dandismo é toda uma maneira de ser que não se resume ao aspecto materialmente visível. É uma maneira de ser inteiramente composta de nuances". A partir de sua definição, percebemos bem a oposição ferrenha do dândi ao burguês, pois uma das principais características do dandismo seria a de produzir o imprevisto, aquilo que o espírito acostumado às regras não poderia antever. De acordo com ele, o dândi teria a capacidade de se valer do "socialmente aceitável" em termos de apresentação social e, ao mesmo tempo, fazer uma crítica sutil a essas regras e convenções: O dandismo (...) brinca com a regra e, contudo, respeita-a ainda. Sofre com ela e dela se vinga quando tem de cumpri-la; invoca-a quando dela consegue fugir; domina e é dominado, alternadamente: duplo e móvel caráter! Para jogar esse jogo é preciso ter a seu serviço todas as levezas que fazem a graça, tal como os matizes do prisma, ao se reunirem, formam a opala.68 Ou seja, segundo d'Aurevilly, o dândi tem um je-ne-sais-quoi que o diferencia dos outros homens; não é a roupa que faz o dândi, mas sim o dândi que "faz" a roupa: "É uma maneira de vesti-lo que cria o Dandismo"69. O modo como o dândi usa o seu traje cria a moda: uma qualidade intangível de refinamento, bom-gosto e sofisticação separa um homem comum de um legítimo dândi. De acordo com d'Aurevilly, os dândis, durante o reinado de Beau Brummell (ou seja, no auge de sua impertinência), 66 Charles Baudelaire, "O dândi" in Tomaz Tadeu (org.), Manual do Dândi: A Vida com Estilo, p. 17 67 Barbey d'Aurevilly, "O dandismo e George Brummell" in Tomaz Tadeu (org.), Manual do dândi: a vida com estilo, pp. 130-1 68 Ibid., pp. 131 69 Ibid., p. 184 37 não conseguiram mais conter sua ousadia e inventaram a moda do "traje lixado". Esta consistia em lixar toda a roupa, antes de usá-la, com um pedaço de vidro afiado até transformá-la praticamente em uma gaze. Para d'Aurevilly, "Eis aí um verdadeiro ato de Dandismo. O traje pouco importa. Praticamente, ele não existe"70. O dândi é um homem livre, não está preso pelas amarras das convenções sociais. Pelo contrário, sente-se totalmente à vontade para questionar a sociedade e seus pressupostos através da ironia, para inverter a valoração simbólica tradicional das coisas. O dândi cria para si a aura do livre-pensador e se outorga a liberdade de renomear o mundo a seu bel-prazer, como o artista. Constitui-se num verdadeiro "artista da vida". Para d'Aurevilly71, Não é o dandismo o livre pensar em questões de maneiras e de convenções do mundo, da mesma maneira que a filosofia o é em matéria de moral e de religião? Como os filósofos que erigiam, perante a lei, uma obrigação superior, os dândis, com sua autoridade privada, estabelecem uma regra acima daquela que rege os círculos mais aristocráticos, mais presos à tradição, e pelo gracejo, que é um ácido, eles conseguem fazer com que seja aceita essa regra móvel que não é, ao final das contas, senão a audácia de sua própria personalidade. O dandismo, com sua celebração da beleza e do corpo masculinos, assim como a literatura decadente, não poderia deixar de ser misógino. Baudelaire descreve a mulher como um ser totalmente governado pelos seus impulsos físicos e biológicos: "A mulher é o contrário do Dândi. Ela deve, pois, causar horror. A mulher tem fome: ela quer comer; sede: quer beber. Está no cio: quer ser fodida. Grande mérito! A mulher é natural, isto é, abominável. Ela é, pois, sempre vulgar, isto é, o contrário do Dândi"72. Em termos de elaboração simbólica, Baudelaire relega a mulher a uma natureza irredutível e inescapável, condenada a seu corpo feminino destinado à reprodução. Como é mais "natural" que o homem, precisa lançar mão de mais artifícios para esconder sua natureza "animal". Curiosamente, nela, o uso de artifícios advém dessa falta de humanidade original enquanto que, no homem, a artificialidade é uma escolha, uma decisão, um gosto a ser celebrado. Em relação às mulheres, 70 Barbey d'Aurevilly, "O dandismo e George Brummell" in Tomaz Tadeu (org.), Manual do dândi: a vida com estilo, p. 185 71 Ibid., pp. 139-40 72 Baudelaire, "Meu coração desnudado" apud Tomaz Tadeu, Manual do Dândi, p. 212-3 38 haveria como que uma obrigação ao adorno, ao enfeite, à ornamentação ao passo que, nos homens, isto seria uma eleição, uma demonstração de estilo, de bom-gosto. O questionamento feito pelo dandismo ao ideal normativo é restrito aos homens: não há mulheres dândi. O corpo feminino sofre uma "naturalização" impossível de ser questionada: o dândi constitui-se num "sujeito-objeto" por livre e espontânea vontade enquanto a mulher, como não é sujeito da Razão, não pode "escolher" tornar-se objeto. O dandismo, a valorização estética do homem afeminado, belo, coberto de adornos, cria um padrão alternativo de masculinidade. No entanto, a mulher continua condenada à natureza e elaborada em termos de coletivo e não de indivíduo. Significativamente, essa voga do dândi surge em uma época de redescoberta não só dos clássicos como de uma "vitorianização", de uma estetização do amor grego. Nos escritos de Wilde, há a valorização do homem belo, do male muse. Igualmente, o dandismo é um ideal de beleza masculina. O feminino é celebrado na medida em que pode ser observado num homem; já numa mulher, esse feminino sempre é vilificado. Assim, o dandismo é a aplicação de uma característica feminina (beleza, ornamento, adorno) a indivíduos do sexo masculino (únicos sujeitos do conhecimento). Obviamente, seguir o dandismo à risca se constituía em um tapa com luvas de pelica no ideal normativo de masculinidade. A mentalidade imperante da época fez do gosto dos estetas um indício de degeneração. O corpo normativo do cavalheiro serve fundamentalmente para marginalizar os "outros" e é erigido em símbolo do corpo são da pátria. Em contraposição ao dândi, o cavalheiro não se nega ao trabalho, prefere o útil ao belo ou agradável, não deixa dúvidas a respeito da sua heterossexualidade normativa. O cavalheiro usa sua força para defender as mulheres e as crianças: sua "supremacia varonil" dita um comportamento hiperprotetor em relação a seres elaborados como "inferiores". Significativamente, é também do final do século XIX a "invenção" do esporte, pensado para exaltar a proeza masculina. Segundo Eric Hobsbawm73, "Que o esporte era considerado elemento importante na formação da nova classe governante, segundo o modelo do gentleman britânico burguês treinado em escola pública, é evidente". 73 Eric J. Hobsbawm, A Era dos Inpérios: 1875-1914, p. 287 39 O corpo de Wilde não é apenas acidental ou simbólico: assim como as mulheres, ele é julgado primordialmente a partir dessa existência corporificada. Atestam isso as inúmeras charges que ressaltam a delicadeza, a artificiosidade, a afeminação do corpo do escritor. Segundo Zanotti74, "Os cavalheiros têm um corpo, os 'outros', exatamente igual às mulheres, são um corpo. O corpo não-normativo é um corpo observável, sexualizado, socialmente inapropriado, independentemente de que essa diferença seja ostentada (caso dos dândis e dos boêmios) ou que seja imposta (como acontece com os homossexuais)". O corpo de Wilde (como um legítimo corpo de dândi) se refere a um código aristocrático segundo o qual é permitida a coexistência da autoconfiança e de uma certa brandura no corpo masculino. Talvez um dos maiores "pecados" de Wilde fosse se mostrar tão seguro, tão confiante de sua imagem, sendo esta tão desviante da norma. O dândi seria o epítome da individualidade num mundo que se tornava cada vez mais igual. Era um homem que ousava se apresentar de um modo diferente e ousado numa sociedade que literalmente uniformizava cada vez mais os homens. Cada vez mais normas e interditos recaíam sobre o modo como os homens deveriam se apresentar socialmente. A moda masculina havia sofrido uma curva descendente em termos de originalidade e criatividade desde a ascenção da burguesia: o dândi procurava recuperar o exagero, a cor, o adorno perdidos com a decadência da aristocracia. (No século XVIII, os homens nobres ainda usavam peruca, maquiagem e saltos altos vermelhos.) O que era considerado "aceitável" em termos de traje masculino diminui em paralelo com a normatização progressiva da masculinidade que ocorre nesse mesmo período. Diferentes peças e cores são tachados de "femininos" e "afeminados" e são limados do guarda-roupa do sério burguês, pater familias. Tudo isso abre caminho para a uniformização total que ocorre no início do século XX, quando se torna praticamente impossível imaginar um homem saindo de casa trajando outra vestimenta que não o terno preto, a gravata e o chapéu-coco (o traje típico do funcionário público). Kempf75, em Dandies – Baudelaire et Cie, após uma descrição minuciosa dos estilos de vida e dos tipos de dândi, chega a uma conclusão que pode parecer bastante inesperada, em se tratando do dandismo: diz que toda a mística do dândi não é mais 74 75 Paolo Zanotti in Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 48 Roger Kempf, Dandies – Baudelaire et Cie, p. 181 40 que uma antecipação da morte. Segundo ele, de uma forma heróica, o dândi se vale de seus gestos depreciativos, de sua pose blasé, de sua ironia ao se mover pela vida, mas, a todo momento, se sabe "condenado" à morte e a um provável esquecimento, como todos os outros. Ou seja, o dândi aceita a falta de sentido da vida; dá tanta atenção à aparência e às coisas ditas supérfluas justamente porque percebe, mais que os outros, a transitoriedade de tudo. Pode-se dizer que o dândi tenha (ou afete) uma pose "debochada" em relação à seriedade da vida. Desde o começo, Wilde assume essa pose de esteta e dândi, a qual manterá até o fim. O dandismo do escritor é uma postura estética muito bem definida a respeito dos usos e costumes de seu tempo. Pode ser pensado como complementar a seu posicionamento em matéria de arte ou de crítica literária: em todos esses casos, Wilde afirma o poder da personalidade individual do artista. O vestir-se com esmero, a escolha cuidadosa de pedrarias e jóias, a flor na lapela que se adequa perfeitamente a cada situação social, tudo isso consiste, a seu ver, numa arte do bem viver. Segundo Tzvetan Todorov76, "Nas últimas décadas do século XIX, tanto na Europa quanto na América do Norte, um homem mais do que todos os outros encarna a idéia de que a vida deve ser conduzida de acordo com as exigências únicas da beleza: ele se chama Oscar Wilde". Curiosamente, num dos livros que lança após a morte de Oscar, Lorde Alfred Douglas diz que Wilde detestava o modelo que era "obrigado" a usar como dândi. Este consistia, de uma forma geral, num chapéu de seda, um casaco de caimento solto (que lembrava o caimento de um vestido), calças listradas, botas de couro, um par de luvas cinza de camurça e uma grande bengala com adornos dourados. A qualquer hora do dia ou da noite, Wilde sempre se encontrava vestido de forma extremamente elegante, como se fosse para as ocasiões mais solenes (a expressão inglesa dressed to the nines engloba esse conceito perfeitamente). Segundo Douglas77, "No mais, eu acredito que ele [Wilde] odiasse o modelo, especialmente no calor, mas ele permanecia fiel a esse estilo como um troiano". O dandismo de Wilde pode ser visto como uma postura agressiva do escritor 76 Tzvetan Todorov, A Beleza Salvará o Mundo – Wilde, Rilke e Tsvetaeva: Os Aventureiros do Absoluto, p. 25 77 Lorde Alfred Douglas, Oscar Wilde and Myself, Nova York, 1914, pp. 35-36 apud Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in His Criticism, p. 25 41 frente à normatização que as masculinidades sofriam nesse período, especialmente com a figura do gentleman, o exemplar "correto" de homem inglês. No entanto, esta não era a menor de suas impertinências. O curioso em Wilde é como todos os aspectos de sua vida (escrita, vestimenta, teoria estética) se coadunam num todo harmônico. Cada uma de suas poses parece ter sido pensada para irritar o establishment. 42 Capítulo III A IMPORTÂNCIA DE SER WILDE Seus nomes são símbolos de sua pessoa: Oscar, sobrinho do rei Fingal e filho único de Ossian na amorfa Odisséia celta, morto à traição pelo homem que o convidara a sentar à sua mesa. O' Flahertie, a selvática tribo irlandesa cuja missão era derrubar as portas das muralhas das cidades medievais; nome que produzia terror nos homens de paz, que o mencionam, entre as pragas, como a ira de Deus e o espírito de fornicação, na antiga litania dos santos: 'do espírito selvagem dos O' Flahertie, libertanos Senhor'. Igual ao outro Oscar, Wilde encontraria a morte pública na flor da idade, sentado à mesa, coroado com falsas folhas de louro e falando de Platão. Como aquela tribo selvagem, arremessaria as lanças de seus fluidos paradoxos contra o corpo dos convencionalismos práticos, e ouviria, como exilado sem honra, o coro dos justos mencionar seu nome juntamente com o dos impuros. - James Joyce As figuras da sexualidade feminina do fin-de-siecle eram com freqüência representadas como seres exóticos e cobertos por véus. Wilde trabalha o tema do véu na peça Salomé. Sandra Gilbert e Susan Gubar78 afirmam que o véu é uma espécie de fronteira aberta, uma imagem de confinamento e reclusão que é também extremamente penetrável: "mesmo quando opaco, ele é muito transitório, enquanto a transparência o transforma numa entrada ou saída possível". Segundo Showalter79, o véu sugere a possibilidade de acesso a uma outra esfera, uma outra sexualidade, uma outra identidade. Curiosamente, nas histórias do final do século sobre a "mulher" por trás do véu, há sempre um homem oculto sob o véu. Essa figura reflete a ambigüidade e a transparência da diferença sexual e da sensação de culpa, decadência, transgressão e anarquia sexual. A mulher de véus mais popular do fin-de-siecle é Salomé, que se torna um ícone obsessivo da sexualidade feminina para os artistas decadentes. Ela é "a fêmea fálica preferida do fin-de-siecle"80. De acordo com Philippe Jullian81, a Salomé que 78 79 Sandra Gilbert e Susan Gubar, The Madwoman in the Attic, p. 468 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 196 Carl Schorske, Viena fin-de-siecle – Política e Cultura, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 217 apud Eliane Robert Moraes, O Corpo Impossível, p. 27 80 81 Philippe Jullian, Esthetes et Magiciens, Paris: Perrin, 1969 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 197 43 recordamos como a "Deusa da Decadência" é a protagonista da peça de Wilde. Essa personagem bíblica se torna uma verdadeira febre nesse momento, sendo representada na pintura por Gustave Moreau, Aubrey Beardsley e Gustav Klimt e sendo celebrada na literatura por Gustave Flaubert, Stéphane Mallarmé e Guillaume Apollinaire, além de Oscar Wilde. Tal coqueluche, segundo Eliane Robert Moraes82, "nos autoriza a concluir que as histórias da perversa bailarina que fascinou o fin-de-siecle constituem, no seu conjunto, um mito; mais que personagem literário ou iconográfico, Salomé foi figura emblemática de uma sensibilidade que a época viveu com intensidade e inquietação". De acordo com Joaquim Brasil Fontes83, a femme fatale representava o duplo feminino do dândi: "encarnando o contrário da mulher, ela ostentava a perfeição da antiphysis, a dramatizar a própria idéia de decadência que a época acalentava". A peça é proibida pelo Lorde Chamberlain, baseado numa antiga lei, por tratar de um tema bíblico. Wilde ameaça deixar a Inglaterra e adotar a cidadania francesa se a peça fosse proibida: "Não vou me conformar a ser chamado de cidadão de um país que demonstra uma avaliação artística tão mesquinha". Poucos escritores, atores ou críticos se apresentam em sua defesa (com as exceções de Bernard Shaw e Mallarmé). O escritor se torna motivo de chacota por parte da imprensa: "Toda Londres ri da ameaça de Oscar Wilde de se tornar francês"84. Wilde jamais vê a peça ser encenada: na época em que Salomé tem sua primeira encenação em Paris em 1896, o autor já estava preso. Quando a peça começa a sua carreira de sucesso no início do século XX, o escritor já era falecido. Salomé pode ser vista como uma peça não-assumida, tanto no sentido de ser uma peça que existe principalmente como texto de leitura quanto no sentido contemporâneo do termo "não-assumido", uma peça "heterossexual" criada por um autor homossexual com um significado sexual gay nas entrelinhas. Examinando imagens de véus e máscaras nos contos e críticas de autoria de Wilde, Katherine Worth85 conclui que "o afastamento do véu era uma imagem adequada para a 82 Eliane Robert Moraes, O Corpo Impossível, pp. 29-30 Joaquim Brasil Fontes, Eros, Tecelão de Mitos, São Paulo: Estação Liberdade, 1991, p. 42 apud Eliane Robert Moraes, O Corpo Impossível, p. 30 84 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 199 83 85 Katherine Worth, Oscar Wilde, Nova York: Grove Press, 1983, p. 66 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 199 44 atividade que Wilde considerava ser o principal dever do artista: o da auto-expressão e da auto-revelação. Ao apresentar a dança dos sete véus, Salomé talvez esteja oferecendo não só uma visão do corpo nu, mas também da alma ou do seu ser mais profundo". É comum afirmar que as ilustrações que Aubrey Beardsley fez para a primeira edição da peça não corresponderiam às cenas descritas no texto. Elliot Gilbert86 considera tanto Beardsley quanto Wilde artistas homossexuais que "através de uma extraordinária representação da sexualidade pervertida na sua obra, participam de um devastador ataque do final do século contra as convenções da cultura patriarcal, mesmo quando exprimem seu horror diante da ameaçadora energia feminina que é o instrumento daquele ataque". Wilde, aparentemente, gostou das ilustrações. No volume que deu de presente ao ilustrador, o autor escreveu: "Para o único artista, além de mim mesmo, que sabe o que é a dança dos sete véus e que é capaz de ver aquela dança invisível". Para Showalter87, os desenhos de Beardsley "realçam com grande intensidade o subtexto, as entrelinhas secretas ou improferíveis da peça, especialmente seus elementos homoeróticos e blasfemos". A autora acredita que as imagens do ilustrador concretizem uma verdadeira fusão entre Wilde e Salomé: "A fusão realizada por Beardsley de Wilde e Salomé, do corrosivo amor feminino e do amor homossexual masculino, traz à tona as mensagens ocultas e cifradas da peça"88. As personagens das ilustrações de Beardsley são andróginas, são figuras ao mesmo tempo assexuadas e lascivas. Esse tipo de representação era comum na época. Fiéis ao espírito transgressor da peça de Wilde, muitas montagens atuais se valem do transformismo. Segundo o crítico de teatro Laurence Senelick89, o travestismo teatral tem suas raízes nas origens mágicas e religiosas do teatro, através da apresentação do xamã, cujas transformações sexuais ritualizadas eram um sinal de que "os papéis sexuais de elaboração social podem ser embaralhados, e que ninguém 86 Elliot Gilbert, "Tumult of Images: Wilde, Beardsley, and Salome" in Victorian Studies 26 (inverno 1983), pp. 133, 150, 154 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 200 87 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 200 88 Ibid., p. 204 Laurence Senelick, "Changing Sex in Public: Female Impersonation as Performance" in Theater, 1989, pp. 6-11 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 218 89 45 que possua a centelha divina precisa ficar para sempre relegado a um só sexo". O transformismo no palco é "uma expressão sublime da potencialidade humana, considerando-se a artificialidade das convenções teatrais que oferecem não a verdade, mas o símbolo"90. Talvez não seja necessária a "escolha" entre a nova mulher e o homossexual: "o desvio através do travestismo deixa, afinal, claro que essa 'qualidade de ser mulher' consiste na colocação de véus, em se 'fantasiar de mulher'91". Segundo esse ponto de vista, o feminino seria necessariamente uma "máscara", uma construção. A mulher e sua pretensa feminilidade "natural" não consistiriam em nada além de uma invenção perniciosa do patriarcado. Wilde desconstrói a elaboração simbólica de gênero, mostrando o quanto de artificialidade existia no feminino e ressaltando a capacidade que qualquer homem teria de escapar do ideal normativo viril da masculinidade. Wilde não apenas escreve, mas usa o seu corpo como texto para ilustrar o que quer dizer. Na biografia escrita por Richard Ellmann, há uma fotografia tirada em Paris na década de 1890 do próprio Wilde posando como Salomé, de peruca e fantasia coberta de jóias, braceletes enroscados, ajoelhado com os braços estendidos diante da cabeça decepada. (Estranhamente, essa foto não é muito conhecida nem muito divulgada.) O que o escritor queria dizer deixando-se fotografar desse modo? Seria uma afirmação no estilo "Eu sou Salomé"92? Podemos imaginar que Wilde, desse modo, faz referência ao subtexto secreto da peça, às suas entrelinhas, como se passasse uma mensagem cifrada que apenas um determinado tipo de público entenderia. Talvez quisesse dizer que a peça não se trata da "nova mulher" e de seu temido poder sexual, mas sim da sexualidade homossexual velada, que não podia mostrar seu rosto, que tinha que se esconder por baixo de um véu. Esse jogo de esconder e desvelar é uma constante na vida de Wilde. Desde o começo de sua carreira, Wilde cria um tipo notório por suas excentricidades e se mantém fiel a ele. 90 Laurence Senelick, "Changing Sex in Public: Female Impersonation as Performance" in Theater, 1989, pp. 6-11 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 218 91 V. Joan Riviere, "Womanliness as a Masquerade", Formations of Fantasy, Victor Burgin, James Donald e Cora Kaplan (org.), Londres e Nova York: Methuen, 1986, p. 36 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 221 92 Reminiscente do "I am Heathcliff" da personagem Catherine Earnshaw de O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Brontë e do "Madame Bovary, c'est moi" de Flaubert. 46 Nasce em Dublin a 16 de outubro de 1854, numa família de intelectuais. Seu tio-avô Charles Maturin havia escrito um romance gótico, Melmoth the Wanderer, e a mãe, conhecida como Lady "Esperanza" Wilde, escrevia poemas nacionalistas. Seu pai era um renomado médico. Sua mãe tinha um salão literário, do qual participava Sheridan Le Fanu. Estudante brilhante desde novo, quando jovem é admitido no Magdalen College, a faculdade de estudos humanistas da universidade de Oxford, onde estuda os clássicos e se torna discípulo de Walter Pater, passando a integrar o círculo dos estetas. Em Oxford, começa a se tornar notório por seu dandismo e seus ditos de espírito. Ele usa cabelos compridos e a flor que usa na lapela é sempre perfeita para a ocasião. Suas acomodações na faculdade são decoradas com esmero: girassóis, lírios, porcelana chinesa e penas de pavão. Ele abertamente desdenhava de esportes "masculinos" (apesar de lutar boxe às vezes). Na universidade, em determinado momento, é aberta uma competição literária para ver quem traduziria melhor o Novo Testamento. Wilde é impedido de participar, pois todos sabem que, se ele entrasse no concurso, ganharia sem dúvida. Afirma então que "não queria saber mesmo como terminaria essa história". Mais tarde em sua vida, afirmaria "meu sotaque irlandês é uma das muitas coisas que esqueci em Oxford". Wilde começa a criar o seu mito. Após a graduação em Oxford, Wilde retorna a Dublin com a intenção de se casar com a sua namorada da juventude. No entanto, esta havia se casado com Bram Stoker (que escreveria Drácula). Tenta conseguir um posto acadêmico em Oxford (o que garantiria uma relativa segurança financeira ao aspirante a escritor), mas não é aceito. Com essa rota em direção à fama literária barrada, Wilde se muda definitivamente para Londres e começa a se fazer conhecido pelos ricos e poderosos da sociedade londrina. Muito de seu esforço é gasto em cultivar uma imagem que o distinguiria dos outros no meio literário de Londres. Adota a mesma pose dos seguidores do Esteticismo, que eram alvo de desaprovação e condescendência públicas. Wilde aperfeiçoa de tal modo sua persona que se torna conhecido na Londres de fins dos anos 1870 e começo dos anos 1880 como o esteta prototípico. Com sua aparência extravagante e sua verve, Wilde se faz presente em todas as festas importantes, premieres e reuniões da alta sociedade. Aproveitando-se de sua celebridade, Wilde aceita, em dezembro de 1881, embarcar para os Estados Unidos para promover a ópera cômica "Paciência" de 47 Gilbert e Sullivan93. Muitos acreditavam que a ópera consistia numa sátira à própria pose estética de Wilde. As palestras foram extremamente bem-sucedidas e tornaram Wilde ainda mais famoso do que antes. Ele ficou reconhecido como porta-voz da "Nova Renascença" da arte inglesa, o interesse renovado em artes decorativas e aplicadas que ocorreu na Inglaterra na segunda metade do reinado da Rainha Vitória. No entanto, o sucesso literário continua a lhe escapar: publica um livro de poemas, ao qual a crítica reage de maneira hostil. Wilde se casa com Constance Lloyd, tem dois filhos e a família passa por dificuldades econômicas. Para se manter, escreve artigos para jornais e revistas e se torna, por um tempo, editor do periódico Woman's World94. Só começa a fazer sucesso em 1891, quando quatro de seus livros são publicados. Dentre esses, dois livros de contos, um volume de ensaios (Intentions, que também pode ser considerado seu manifesto estético) e O Retrato de Dorian Gray. Finalmente, inicia-se a parte áurea da carreira e da vida de Wilde, em que ele escreve suas famosas peças, tais como A Importância de Ser Prudente, Um Marido Ideal e Uma Mulher sem Importância. Pede a seus amigos para comparecem à estréia de A Importância de Ser Prudente usando um cravo tingido de verde na lapela, para dar a impressão de uma sociedade secreta. Wilde se torna o árbitro da elegância em Londres. É impiedosamente caricaturado pela imprensa por seu dandismo e por defender uma postura estética perante a vida. Da noite para o dia, deixa de ser o dramaturgo mais celebrado da Inglaterra para se tornar seu mais famigerado criminoso sexual. É acusado de "sodomia" pelo Marquês de Queensberry, pai de seu amante, Lorde Alfred Douglas. Segue-se um julgamento por "indecência grave", no qual Wilde é sentenciado à pena máxima, dois anos de aprisionamento com trabalhos forçados. O nome do juiz que o condena é, ironicamente, Justice Wills (que poderia ser traduzido como "a justiça vencerá"). Este declara nunca haver julgado um caso pior que esse e diz considerar a pena totalmente inadequada ao caso, dando a entender que esta deveria ser mais severa. Na prisão, Wilde escreve o poema A Balada de Reading Gaol e a longa carta De Profundis, endereçada a Douglas. Durante seu tempo encarcerado, morre sua mãe, de 93 W. S. Gilbert e Arthur Sullivan, uma parceria teatral que produzia óperas cômicas na Inglaterra vitoriana. 94 Vale notar que é Wilde quem muda o nome do periódico de Lady's World para Woman's World. Ele também passou a inserir artigos literários na revista, pois acreditava que as mulheres não deveriam ler apenas sobre assuntos do lar. 48 quem era muito próximo. Nesse mesmo período, dadas as condições insalubres das prisões, é acometido por uma infecção no ouvido que eventualmente o mataria. Sua mulher Constance pede o divórcio e muda o sobrenome seu e de seus filhos, já que o nome "Wilde" ficara associado à ignonímia do "crime sexual". Quando sai da prisão, é um homem destroçado. Conta-se que foi perseguido por homens mandados pelo Marquês assim que é liberado da prisão. Encontra-se falido, sem o direito sobre suas obras, mantido afastado dos filhos pela ex-esposa. Wilde se torna um completo excluído, totalmente marginalizado da sociedade. Tenta reconstruir sua carreira literária e sua vida em Nápoles e Paris, mas em vão. Em seu exílio, adota o nome de "Sebastian Melmoth", uma homenagem a São Sebastião e ao andarilho do romance escrito por seu tio-avô. Bosie (que praticamente não havia visitado Wilde na prisão) reaparece e eles reatam o relacionamento, que dura três meses, até o minguado dinheiro de Wilde acabar. No fim da vida, Wilde se torna praticamente um mendigo-dândi, oferecendo poemas em troca de dinheiro. Um pouco antes de morrer, converte-se ao catolicismo. Aparentemente, não perde a pose nem na hora da morte. De acordo com o mito, mencionando as cortinas rotas de seu quarto de hotel barato, diz: "Ou se vão essas cortinas ou vou eu". A causa de sua morte é o agravamento da infecção no ouvido que havia contraído na prisão. Aparentemente, seus contemporâneos acreditavam que o escritor havia morrido de sífilis, dado o seu estilo de vida "degenerado". Morto em novembro de 1900, Wilde é enterrado num túmulo simples no Cemitério de Bagneux. Ironicamente, a Rainha Vitória morre em 1901: sua morte encerra o período vitoriano e o século XIX. Wilde permanece como homem prototípico do século XIX, não vê a aurora do novo século que, com seus escritos, ajudara a forjar. 49 QUEM TEM MEDO DE DORIAN GRAY? O Retrato de Dorian Gray, o único romance escrito por Wilde pode ser interpretado de uma miríade de maneiras diferentes: pode ser considerado um manifesto estético, uma alegoria sobre a interpretação, um ensaio sobre a conduta crítica, uma fábula gótica, uma fábula moral que critica o próprio Esteticismo, um melodrama, um conto filosófico, um conto fantástico, uma sátira social, uma novela criminal, uma fantasia mórbida. É um livro estético que, sob vários pontos de vista, critica e satiriza a própria doutrina do Esteticismo. Há duas versões do romance. A primeira é publicada no periódico Lippincott's Monthly Review em 1890. Esta versão tem apenas 13 capítulos e é muito mais focada nos três personagens principais, o artista Basil Hallward, o polêmico Lorde Henry e o belo Dorian Gray. É também abertamente homoerótica; tem-se a impressão de que, nesta versão, Wilde leva ao ponto máximo o que poderia ser escrito em relação a esse tema na época. Obviamente, essa primeira versão de O Retrato de Dorian Gray é severamente criticada pela imprensa. As críticas faziam referência à "sujeira", "afeminação" e "imoralidade" do livro. De acordo com o Daily Chronicle: "Tédio e sujeira são as principais caraterísticas de Lippincott's este mês". Para o Scotts Observer, "o Senhor Wilde tem cérebro e arte e estilo; mas se ele não consegue escrever para ninguém a não ser nobres fora-da-lei e garotos pervertidos que trabalham no telégrafo, o quanto antes ele se iniciar na alfaiataria (ou qualquer outra profissão decente), tanto melhor". O romance é chamado de "infeccioso" e "corruptor". Quando da publicação da história em livro em 1891, Wilde adiciona personagens e torna-o mais tipicamente vitoriano, por exemplo, com a história da vingança de James Vane. Ao mesmo tempo, o escritor insere no livro várias passagens que questionam a existência de livros infecciosos e corruptores. Adiciona também o famoso prefácio, em que afirma: "Um livro não é, de modo algum, moral ou imoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo"95. 95 Oscar Mendes (org.), Oscar Wilde: Obra Completa, p. 55 50 Wilde, apontando a perversidade que se escondia sob o puritanismo da época vitoriana tardia, se defende, em réplica ao periódico Scotts Observer: "Todo homem vê seu próprio pecado em Dorian Gray. O que são os pecados de Dorian Gray ninguém sabe. Aquele que os encontra é quem os trouxe à tona"96. Em todo o livro, os propalados "pecados" de Dorian nunca são revelados diretamente. O leitor imagina o que quiser a respeito disso. Wilde não apenas transforma o leitor em cúmplice de Dorian, mas transforma-o também em criminoso. Os "pecados" que cada um imagina são nada mais que um reflexo da mente do leitor. As inversões simbólicas promovidas por Wilde em seus escritos apontavam para uma desestabilização completa do status quo vitoriano. O escritor tinha a intenção de promover um renascimento da sensibilidade clássica, da Estética reconhecida como esfera separada da Ética em um mundo puritano, cinza, moralista (cujo símbolo poderia ser o eterno luto da Rainha Vitória). E esse "programa" de Wilde andava de braços dados com a reabilitação da amizade grega entre dois homens, vilificada na época em que vivia. Como transformar uma paixão não só vista como pecaminosa, mas passível de sanções legais em uma procura pela Beleza, pela personalidade, pela arte em vida, pela Estética em si? A paixão que Basil sente por Dorian (pecaminosa e, pior, criminosa) é transmutada pela escrita de Wilde de algo "não natural" e "indecente" em uma Paixão pela Beleza, pela Estética, em inspiração para a criação artística: "sua personalidade [a de Dorian] me sugeriu um modo completamente novo em arte, um estilo inteiramente novo. Eu vejo as coisas diferentemente, eu penso nelas de forma diferente. Agora, eu posso recriar a vida de um modo que estava escondido de mim antes"97. Através da escrita de Wilde, o que é visto como a coisa mais baixa e vil se transforma, pelo uso de adjetivos numinosos, no que há de mais raro, belo e elevado, na matéria mesma de que a arte é formada. Os riscos associados à homossexualidade eram tantos que poucos autores ousavam tratar desse assunto diretamente. Mais comumente, onde a sugestão de homossexualidade era invocada, um véu de convenção clássica era utilizado. A 96 Marcello Rollemberg (org.), Sempre Seu, Oscar: Uma Biografia Epistolar, p. 28 Nicholas Frankel, Oscar Wilde: Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored Edition, p. 84 97 51 Grécia Antiga é idealizada nesse sentido: por isso as miríades de alusões a personagens mitológicos gregos reconhecidos por sua beleza, a homens belos do mito e da lenda: Narciso, Adônis, Apolo. O livro parece reverenciar e questionar, concomitantemente, a doutrina do Epicurianismo de Walter Pater. Essa teoria almejava o que Pater98 chamava de "aquele ideal helênico segundo o qual o homem se encontra em unidade consigo mesmo, com sua natureza física, com o mundo externo". Esse pensamento era comum entre a elite vitoriana progressista. Nos textos de Wilde, Pater e Symonds, a evocação desse ideal grego se torna um discurso legitimador da homossexualidade. Outro aspecto da teoria de Pater era que esta tinha como objetivo o desenvolvimento harmônico de todas as partes do homem. O Esteticismo reinscreve a ética no corpo, iguala prazer sensível a experiência estética, coloca-se contra a moral puritana etérea que abomina qualquer excesso corporal. Recupera o conceito grego de kalokagathia, que traça uma correspondência entre beleza estética e beleza moral (belo = bom). Essa teoria associa como inseparáveis a excelência e o grau de perfeição nas coisas exteriores, na conduta e no conhecimento. A personagem de Dorian Gray "quebra" esse conceito: a beleza juvenil de Dorian promete uma alma límpida, mas esconde uma personalidade criminosa. Essa caracterização vai contra as teorias fisiognômicas e frenológicas da época. Questiona também a teoria swedenborguiana de correspondência entre corpo e alma: sua beleza física deveria corresponder a uma beleza espiritual. Além disso, a beleza de Dorian inspira um Amor espiritual, estético, mas este professa apenas um amor sensual. O discurso dos estetas reevocava o conceito de pederastia da Antigüidade grega e romana. Em termos humanísticos, o amor pelos rapazes era elaborado como superior, como mais "elevado" do que o amor pelas mulheres. No entanto, na Antigüidade, a sexualidade passiva já se constituía num tabu: a relação homossexual era elaborada como pertencente à esfera da pedagogia, da transmissão corporal do conhecimento, algo que teria lugar entre um homem mais velho (cidadão pleno, detentor do conhecimento) e um adolescente (em formação, ainda não era 98 Nicholas Frankel (ed.), The Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored Edition, p. 95 52 considerado um cidadão pleno). Segundo Paul Veynes99, no caso tido como típico, o adolescente não sentiria prazer nessa relação. Ou seja: a sexualidade passiva já encerrava um mistério intransponível para um mundo que criava um saber falocêntrico. A estetização da homossexualidade masculina trazia em suas entrelinhas um desprezo pelo corpo feminino, mais "natural" e menos "artístico". Como afirma Showalter100, "A misoginia antinaturalista não havia começado com os homens homossexuais, mas ela respaldava seu desejo de idealizar os relacionamentos entre homens como mais espirituais, intelectuais, belos e puros do que o amor heterossexual". O próprio retrato de Dorian Gray seria o início de uma nova escola de arte platônica, que combinaria o romance com a perfeição do "espírito grego". Dorian acredita que o amor do pintor Basil Hallward por ele "nada continha que não fosse nobre e intelectual. Não era essa simples admiração física pela beleza que nasce dos sentidos e que morre quando estes se cansam. Era um amor como o tinham experimentado Michelangelo, Montaigne, Winckelmann e o próprio Shakespeare"101. Embora a beleza de Dorian seja descrita como a beleza da juventude, fica claro que somente a juventude masculina tem qualificações para o ideal da arte helênica e hedonista. Para Showalter, Dorian, sendo a princípio um espécime desmiolado, um lourinho tolo, começa a acreditar ser seu destino se tornar o teórico de um novo hedonismo alternativo. Dorian desenvolve um programa estético que poderia ser o do próprio Wilde ou do próprio Esteticismo: "Ele procurou elaborar algum novo esquema de vida que tivesse sua filosofia racional e sua ordem de princípios e que encontrasse na espiritualização dos sentidos sua maior realização"102. De acordo com Showalter103, essa racionalização do desejo homossexual como experiência estética traz nas entrelinhas um desdém cada vez maior pelas mulheres, cujos corpos parecem atrapalhar a beleza filosófica. O dândi aristocrático 99 Paul Veyne, "A homossexualidade em Roma" in Philippe Aries e André Béjin (org.), Sexualidades Ocidentais, p. 47 100 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 228 101 102 103 Oscar Mendes (org.), Oscar Wilde: Obra Completa, p. 144 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 231 Ibid., p. 231 53 Lorde Henry Wotton profere as frases mais misóginas do romance, generalizações sobre a natureza prática, o materialismo, a vulgaridade e a imanência das mulheres. Para ele, as mulheres não são capazes do amor nobre e intelectual, por serem muito ligadas à carne e aos aspectos materiais. Também não têm nenhum sentido de arte e suas exigências interrompem o filósofo no trabalho. Elas somente penetram na esfera da arte quando se suicidam e se tornam belos objetos. Sybil Vane só se torna interessante para Lorde Henry após seu suicídio por ingestão de ácido prússico (o veneno preferido das mulheres abandonadas nesse momento). Ela só consegue transcender a "natureza" representada por seu corpo de mulher ao se tornar um objeto de arte, uma musa morta. Lorde Henry, o teórico da decadência no romance, encarna também a figura do cientista do final do século que aprecia o poder sádico de fazer experiências com casos humanos: "Ele se sentia fascinado pelos métodos da ciência natural, mas o objeto de experiência dessa ciência lhe parecia trivial e de nenhuma importância. Por isso, ele havia começado a se vivisseccionar, acabando por vivisseccionar outras pessoas"104. Para ele, as mulheres e sua capacidade reprodutiva são descabidas e destrutivas. A única criatividade artística possível é a masculina, de geração autônoma. O romance de Wilde é um dos vários livros do fin-de-siecle que se constituem em narrativas de autogeração masculina, permeados por metáforas assexuadas que rejeitam a procriação natural em prol de versões fantásticas da paternidade, como O Médico e o Monstro de Stevenson, Ela de Haggard, Drácula de Bram Stoker e A Ilha do Dr. Moreau. Pode-se mesmo afirmar que os três homens partilham uma fantasia de autogeração. A personalidade, a identidade, a vida de Dorian é "gerada" por seu fatídico retrato. As personagens femininas ocupam um papel definitivamente secundário no romance: temos a esposa deselegante de Lorde Henry, a irmã deste (que, aparentemente, é "seduzida" por Dorian e fica mal-falada na sociedade) e Sybil Vane, que se suicida por um amor que deixa de ser correspondido. Todas elas ou criaturas desagradáveis que impedem a criação artística, considerada como a própria vida, no caso do dândi (a mulher de Lorde Henry) ou figuras frágeis, aptas apenas a serem usadas, corrompidas e destruídas pelos homens de suas vidas. Curiosamente, 104 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, pp. 231-232 54 nenhum dos personagens principais, em momento algum, faz menção à própria mãe ou a alguma antepassada feminina (vemos, no máximo, "tias", no mais das vezes, velhas viúvas fofoqueiras). O esteticismo homossexual de Wilde, calcado no homem belo, admite "pais" literários e criadores (como o pintor Basil), mas não figuras maternas. O romance elabora uma fantasia de autogênese, em que, artisticamente, homens nascem de homens. De acordo com Showalter105, Wilde se utiliza da obsessão do final do século XIX pela evidência do vício para sugerir que a degeneração do quadro seja uma doença sexual, o indicador externo da sexualidade de Dorian numa cultura repressora. As transformações que ocorrem no retrato como as "corrupções do pecado" o consomem como as patologias progressivas da sífilis. Para Dorian, os sentidos são mal-compreendidos pela época em que vive: Dorian Gray tinha a impressão de que a verdadeira natureza dos sentidos nunca tinha sido compreendida, que os homens permaneciam selvagens e animalizados unicamente porque o mundo tinha querido mantê-los famintos pela submissão, ou matá-los pela dor, em vez de aspirar a torná-los elementos de uma nova espiritualidade, cuja característica principal seria um instinto sutil de beleza.106 A imagem do homossexual que prevaleceu no final do século XIX foi aquela que se coadunava com o "retrato" que é feito deste no romance de Wilde: o esteta afeminado ou o dândi decadente. Outras "possibilidades" do período são desprezadas, como a imagem do social-democrata, anti-imperialista e feminista ao estilo de Edward Carpenter. Eve Sedgwick107 chama esse fenômeno de "feminilização do homossexual inglês" e acredita que isso diminuiria as possibilidades de alianças entre as feministas e os gays. No livro, Wilde trabalha várias temáticas caras ao Decadentismo. Uma delas é a do "livro venenoso" que, com sua "influência corruptora", destrói a vida de suas "vítimas". Muitos livros nesse momento foram acusados de "degenerados", de destruir a moral e os bons costumes (inclusive livros decididamente "moralistas", como os romances realistas de Zola). Havia certos assuntos que eram tabu, que a sociedade 105 Ibid., p. 232 Oscar Mendes (org.), Oscar Wilde: Obra Completa, pp. 152-153 107 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 233 106 55 bem-pensante não queria ver mencionada em livros. O próprio Dorian Gray havia sido acusado de ser um livro "venenoso" por seus críticos, um termo muito usado no repertório da crítica moralista da época. Na segunda versão do romance, Wilde coloca na própria história um questionamento desse conceito na fala de Lorde Henry: "Quanto a ser envenenado por um livro, é qualquer coisa de impossível. A Arte não tem influência sobre a ação. Faz desaparecer o desejo de agir. É soberbamente estéril. Os livros que o mundo considera imorais são os que mostram a própria vergonha dele. E isso é tudo"108. No entanto, não se pode negar que Dorian Gray é "intoxicado" pelo misterioso livro amarelo que recebe de presente de Lorde Henry, livro em que Dorian descobre "a história de sua vida, antes de havê-la vivido". O outonal amarelo era a cor típica da Decadência, os livros franceses "degenerados" eram publicados na Inglaterra com capas desta cor. O próprio Wilde dizia, a respeito de The Renaissance de Walter Pater: "esse livro que exerceu uma influência tão estranha sobre a minha vida" 109. Na primeira versão, Dorian recebe o livro Le Secret de Raoul do fictício autor Catulle Sarrazin (mistura dos nomes de dois autores decadentes); já na segunda versão, Wilde omite o nome do autor, envolvendo o livro num mistério ainda maior, sugerindo ao invés de especificar, aumentando o número possível de candidatos. No mais das vezes, este livro é identificado com o livro que detona a onda do decadentismo na Europa, o também chamado "breviário da Decadência", Às Avessas de Joris-Karl Huysmans. Em 1892, Wilde escreve que o livro foi "parcialmente sugerido por Às Avessas de Huysmans... É uma variação fantástica do estudo realista que Huysmans faz do temperamento artístico em nossa era inartística"110. Wilde era um grande admirador desse romance, que, como vimos, discorre a respeito dos estranhos experimentos hedonistas, estéticos e sexuais (e o eventual colapso físico) de um recluso aristocrata parisiense. Muitos dos experimentos em prazeres e arte de Dorian e a visão empírica e científica que Lorde Henry aplica à vida são modelados em Des Esseintes, o protagonista do romance de Huysmans. 108 Oscar Mendes, Oscar Wilde: Obra Completa, p. 220 Oscar Wilde, De Profundis e Outros Escritos do Cárcere, p. 86 110 Carta a E. W. Pratt in Hart-Davies, Selected Letters of Oscar Wilde (1979), p. 116 apud Robert Mighall, Penguin, p. 244 109 56 Um capítulo inteiro de Dorian Gray (o capítulo IX na primeira versão, o capítulo XI na segunda) é modelado segundo as experiências de Des Esseintes. Neste capítulo, Dorian se dedica, consecutivamente, ao estudo de um determinado gosto decadente: perfumes, jóias, tapeçarias. A descrição deste modo de vida decadente e hedonista é apresentado por Wilde como algo de extremamente interessante e atraente; a "sociedade bem-pensante" tinha muito medo da "influência" que isso poderia ter sobre as mentes dos jovens ingleses. Segundo Eribon111: Wilde queria sem dúvida 'intoxicar' os jovens, escrever sua vida antes que a vivessem e anunciar assim o mundo futuro utilizando como metáfora as mil e uma centelhas de cores que lançavam as jóias colecionadas por Dorian Gray para imitar Des Esseintes, o herói de Às Avessas. Se Wilde se dedica tão extensamente a descrever o infinito esplendor de seus matizes é porque brilham como símbolos da vida livre, aberta aos prazeres dos sentidos. Dorian Gray é um dândi, um "artista da vida". Seu estilo é imitado pelos jovens elegantes dos bailes de Mayfair e dos clubes de Pall Mall: na vida real, Beau Brummel havia cumprido essa mesma função durante o seu "reinado". Dorian vive até as últimas conseqüências todas as sensações e experiências que a vida tem a oferecer: "E certamente considerava a Vida como a primeira e a maior de todas as artes, em relação à qual as outras eram apenas uma simples preparação. A moda, através da qual o que é realmente fantasioso se torna universal por breves minutos, e o dandismo, que é, à sua maneira, uma tentativa para afirmar o modernismo absoluto da beleza, exerciam sobre ele grande fascinação"112. Lorde Henry, ao final do romance, celebra a "esterilidade" da vida que Dorian Gray levara: "A vida foi a sua arte. Você é a própria música. Seus dias são seus sonetos"113. Na qualidade de dândi, a "arte" de Dorian Gray é sua própria vida, ele consiste em sua própria obra de arte. Sobre sua arte/ vida, de acordo com a ideologia da "arte pela arte" do Esteticismo, não podem recair preceitos éticos ou moralistas. Em Dorian Gray, Wilde leva ao extremo lógico as filosofias do dandismo e do Esteticismo: a vida vira arte e o dândi vira uma obra de arte. 111 Didier Eribon, "Las granadas de Oscar Wilde" in Herjías: Ensayos sobre la teoría de la sexualidad, p. 134 112 Oscar Mendes (org.), Oscar Wilde: Obra Completa, p. 152 113 Ibid., p. 219 57 No entanto, Dorian não quer ser "apenas" um árbitro da elegância da Londres de seu tempo, não quer ser consultado somente sobre o uso de uma jóia, o nó de uma gravata ou o manejo de uma bengala (assim como Petrônio, o autor de Satyricon e escritor latino favorito de Des Esseintes, teria sido para Nero). Dorian, depois de receber a "influência corruptora" de Lorde Henry, pensa em fundar um novo hedonismo: "Tentava idealizar o novo esquema de vida que apresentasse uma filosofia sensata, princípios ordenados, e encontrasse na espiritualização dos sentidos sua mais alta realização"114. Dorian leva uma vida dupla, entre o glamour da alta sociedade e as assustadoras casas de ópio do East End (isso sem mencionar sua paranóia de que sua outra "vida secreta", o quadro escondido, seja descoberto). Com isso, Wilde questiona a identidade sólida e una do burguês vitoriano: "Para ele, o homem era um ser de múltiplas vidas e múltiplas sensações, uma criatura complexa e com uma inifinidade de facetas, que levava em si heranças estranhas de pensamentos e de paixões e cuja carne estava minada pela enfermidade monstruosa da morte"115. Poderíamos até mesmo afirmar que Wilde prenuncia, em seus textos, o conceito de identidade nômade: com suas personagens, o escritor busca descentrar o ego estável, seguro de si, "sincero"; procura revelar uma identidade que não tem medo de sua potencial incoerência, uma personalidade que não está sempre em posse de si mesma, incerta de que haja um ego a ser possuído; explora as descontinuidades da personalidade individual. A "personalidade" das personagens de Wilde não é auto-consistente: elas recorrem o tempo todo a máscaras e poses para expressar o que sentem. Nisso, Wilde segue o teórico Pater, que fala da "costura e descostura de nós mesmos". A "personalidade" que o escritor trabalha em seus textos se manifesta através da multiplicidade e da superfície e se coloca frontalmente contra a crença vitoriana na unicidade do indivíduo. Dorian intensifica suas "experiências" com a busca de sensações cada vez mais raras, exóticas e exaltadas. Sua "personalidade" é intensificada através do pecado: "Pode-se imaginar uma personalidade intensa ser criada a partir do pecado". 114 115 Ibid., p. 152 Oscar Mendes (org.), Oscar Wilde: Obra Completa, p. 162 58 O tema do duplo é algo que se repete na literatura vitoriana, a começar pela mais famosa história de duplo da época, O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde de Stevenson (história de que Wilde gostava particularmente). O escritor até mesmo inclui, em A Decadência da Mentira, uma passagem sobre "um amigo meu, chamado Sr. Hyde", que se descobre revivendo estranhamente os acontecimentos da história de Stevenson. Segundo Showalter116, "o fin-de-siecle foi a idade de ouro dos duplos literários e sexuais". Outro exemplo dessa temática é o livro The Mystery of Edwin Drood de Charles Dickens, em que o protagonista, como Dorian, vive uma vida de aparente respeitabilidade, mas de indulgência clandestina em ópio. Também trabalhando com o tema do duplo, Conan Doyle publica o caso de Sherlock Holmes The Man with the Twisted Lip (em que duas personagens levam vidas duplas, circulando entre subúrbios respeitáveis e casas de ópio) em 1891, alguns meses depois da publicação da versão revisada de Dorian Gray. Essa duplicidade não se constituía apenas num tema que estava na moda na época, mas revelava uma profunda preocupação da sociedade vitoriana. De acordo com Showalter117, já na década de 1880, o universo homossexual vitoriano havia evoluído formando uma subcultura secreta, porém ativa, com seus próprios estilos, práticas, locais de reunião e linguajar. Para a maioria dos integrantes da classe média desse universo, o homossexualismo representava uma vida dupla, na qual a parte diurna e respeitável muitas vezes envolvendo o casamento e a família existia lado a lado com uma vida noturna dedicada ao homoerotismo. Essa associação de vida dupla e homossexualidade era algo facilmente reconhecível na época: um crítico de A Importância de Ser Prudente de Oscar Wilde vê na peça "o fingimento e as vidas duplas aos quais os homossexuais estavam acostumados"118. Para a autora, a leitura mais convincente do livro vulgarmente conhecido como "O Médico e o Monstro" é a de "uma fábula sobre o pânico 116 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 146 117 Ibid., p. 146 118 Regenia Gagnier, Idylls of the Marketplace, p. 158 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 147 59 homossexual do final do século, a descoberta e resistência da identidade homossexual"119. Sedgwick denominou o gênero ao qual pertence o romance de Stevenson de "gótico paranóico". Segundo a pensadora, "o romance gótico cristalizou para o público inglês os termos de uma dialética entre o homossexualismo e a homofobia, na qual a homofobia aparecia como tema em enredos paranóicos"120. De acordo com Showalter121, esses textos envolviam figuras masculinas duplicadas, uma das quais se sente obcecada pela outra ou por ela perseguida, bem como a imagem central do segredo impronunciável. O romance de Oscar Wilde também pode ser visto como representante deste gênero. O surgimento do quadro instaura um duplo na vida de Dorian, que passa a levar uma vida de segredo e paranóia a partir de então. Dorian Gray passa a se comportar de uma forma estranha e a levar uma vida secreta. O significado homossexual do termo queer (estranho) já fazia parte da gíria inglesa em 1900122. Karl Miller salienta que " 'estranho', 'esquisito', 'secreto', 'disposto', 'nervoso' são os tijolos com que se construiu a casa do duplo" 123. Apesar de Dorian manter sua aura de respeitabilidade (associada à sua beleza juvenil impoluta), muitos têm uma reação de repulsa, ódio e medo em relação a ele, reações sugestivas da homofobia quase histérica do final do século XIX. O quadro (duplo de Dorian) insere em sua vida a sugestão de anormalidade, criminalidade, doença, contágio e morte, estados alterados que, aparentemente, são "intuídos" por aqueles à sua volta. Wilde nos mostra claramente: por debaixo do belo corpo do dândi se esconde o corpo "monstruoso" do homossexual. Wilde, em Dorian Gray, inverte constantemente as expectativas do leitor ao aproximar noções tidas como antitéticas: beleza/ gênio; dândi/ monstro; artista/ 119 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 149 120 Eve Kosofsky Sedgwick, Between Men, p. 92 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 282 121 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 282 122 V. Veeder, "Children of the Night" in Dr. Jekyll and Mr. Hyde, p. 159 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 153 123 Miller, Doubles, p. 241 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Sieclep. 153 60 criminoso; civilização/ corrupção. Em várias passagens do romance, Lorde Henry traça uma equivalência entre os conceitos de "cultura" e "corrupção": "A civilização não é, de maneira nenhuma, uma coisa fácil de se alcançar. Há apenas duas maneiras de chegar a ela. Uma é a cultura e a outra a corrupção"124. Todos os temas que se repetem obsessivamente em Dorian Gray corroboram a visão de que a civilização não é mais do que corrupção: a máscara, a personalidade, a influência. Todos eles "torcidos" em relação a seu sentido original: a máscara não esconde, mas desvela a verdade; a personalidade é múltipla, cada hora mostra uma faceta, como um diamante; a influência é sempre corruptora. Todos fazem menção à propalada "degenerescência" do homossexual. Wilde, repetidas vezes, aproxima a arte ao crime. Em De Profundis faz menção a "o tom sombrio que, tal como um fio púrpura, perpassa a textura de Dorian Gray"125. No ensaio Pena, Lápis e Veneno, Wilde é explícito a respeito do assunto: "O fato de que um homem seja um envenenador não diz nada contra sua prosa (...) Não há uma incompatibilidade fundamental entre o crime e a cultura"126. Este ensaio consiste num estudo sobre Thomas Griffiths Wainewright, homem de letras e artista do início do século XIX, também falsário e assassino, e é publicado no mesmo ano de Dorian Gray. O subtítulo deste ensaio é Um Estudo em Verde. Boa parte da obra de Wilde se coloca sob o signo das cores e de seu simbolismo. Para Eribon 127, o verde é associado tradicionalmente à bruxaria e aos malefícios (a expressão inglesa poison green atesta seu vínculo com o envenenamento). A essa conotação clássica, Wilde acrescenta outra: "tinha esse curioso amor pelo verde que, nos indivíduos, sempre é signo de um temperamento artístico sutil e nas nações denota um relaxamento e inclusive uma decadência dos costumes". No símbolo do verde, Wilde coloca tudo o que há de "venenoso" para a moralidade burguesa vitoriana: "Ao designar o artista, o literato, o envenenador e o homossexual, a conotação venenosa do verde é polissêmica. Permite que Wilde faça 124 Oscar Mendes, Oscar Wilde: Obra Completa, p. 213 De Profundis e outros escritos do cárcere, p. 93 126 Didier Eribon, "Las Granadas de Oscar Wilde: Un estudio en rojo y verde" in Herejías: Ensayos sobre la Teoría de la Sexualidad, p. 132 127 Ibid., p. 132 125 61 saber a seus leitores como concebe o artista e como concebe o homossexual, em uma palavra, como concebe a si mesmo: como um veneno para a sociedade"128. O verde, nesse momento, se converte no símbolo público do que hoje poderíamos chamar de uma "cultura gay" nascente. O significado do cravo tingido de verde, marca de Wilde, é compreendido pelo público e não será esquecido tão cedo. Grande parte dos textos de Wilde (o tema, o tratamento, a marginalidade das personagens) podem ser lidos em suas referências veladas (ou nem tanto) à homossexualidade. Em muitas de suas obras, Wilde reclama ninguém menos do que William Shakespeare como seu pai literário. A alusão não é gratuita: Wilde aponta para o fato de que o venerado "Poeta Nacional" inglês havia, flagrantemente, escrito sonetos dedicados a um homem. Como outros de seu tempo, Wilde projeta na Inglaterra elisabetana uma liberdade homoerótica comumente associada à Atenas de Platão e à Arcádia de Virgílio. O escritor brinca com essa idéia no conto O Retrato do Sr. W. H., em que, para explicar a misteriosa dedicatória dos sonetos de Shakespeare, Wilde inventa um amante para o dramaturgo, Willie Hughes129, que seria um de seus atores. A dedicatória130 produziu uma série de teorias sobre a identidade do Sr. W. H., já que essas não são as iniciais de Shakespeare. Wilde cria uma história divertidíssima e rocambolesca, em que um retrato de Willie Hughes é forjado (para tentar provar a veracidade da teoria) e em que a crença nessa hipótese passa, como uma contaminação, de uma pessoa para outra. Vários escritores consideram essa a melhor teoria a respeito do mistério da dedicatória dos sonetos, por se revelar em sua artificiosidade essencial. Wilde, ao mencionar Shakespeare, faz alusão ao que Colm Tóibin chama de "linha pontilhada secreta que corre ao longo da literatura ocidental", ou seja, da tradição gay esquecida. A genealogia dos textos que possuem um subtexto homossexual só será feita no século XX, mas podemos ver em Wilde um precursor desse movimento (mesmo que ele faça isso de uma maneira velada). Para Tóibin131, 128 Ibid., p. 132 Teoria proposta pelo crítico literário do século XVIII Thomas Tyrwhitt. 130 "Ao único engendrador destes sonetos que seguem, Senhor W. H., toda a felicidade e essa eternidade prometidas por nosso poeta imortal, deseja o que desejando-o bem se aventura a lançar esta publicação", assinada pelo primeiro editor dos Sonetos, Thomas Thorpe. 131 Colm Tóibín, Love in a dark time, p. 12 129 62 "Pessoas homossexuais... crescem sozinhas; não há uma história. (...) É como se, na frase de Adrienne Rich, 'você olhasse no espelho e não visse nada' ". O suicídio que encerra o romance é a única forma de desfecho narrativo possível no romance gótico gay. Dorian causa a "vergonha" e o suicídio de uma série de rapazes e depois se mata. Segundo Showalter132, "a morte é a única solução para o 'mal' do homossexualismo" dentro da economia dramática desse gênero. Wilde considerava o final "moralista" o único defeito estético do livro; no entanto, manteve a punição do protagonista. Neste tipo de história, é autodestrutiva a atitude de transgredir os códigos sexuais da sociedade em que se vive: na sociedade vitoriana, não há outra narrativa possível para o homem homossexual. 132 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 155 63 Capítulo IV A DERROCADA DE UM HOMEM DE GÊNIO As causas pelas quais o povo da Inglaterra condenou Wilde são muitas e muito complexas, porém não foi a simples reação de uma consciência pura. Qualquer um que analise os graffitis, os desenhos licenciosos, os gestos obscenos deste povo, hesitará muito antes de qualificá-lo de limpo de coração. Qualquer um que preste atenção à vida e à fala destes homens, (...) duvidará muito que aqueles que flagelaram Wilde estejam limpos de culpa. - James Joyce O relacionamento homossexual entre dois homens é demonizado nas terras da Rainha pelo menos desde o período elisabetano, segundo John Kerrigan133. A imaginação popular da época associava a sodomia a lobisomens e basiliscos. De acordo com os ensinamentos da Igreja, o vício se encontrava completamente fora da ordem divina das coisas: consistia em algo tão abominável que o próprio demônio não praticaria a sodomia (apenas seria "responsável" pela concepção de sodomitas ao copular com as bruxas nos sabás). Quando havia pragas, escassez de alimento, mudanças climáticas inesperadas, os sodomitas eram considerados culpados por atrair a ira de Deus – juntamente com outros "pecadores carnais" como os adúlteros, os bêbados, as cafetinas. O reinado de Elizabeth (1558-1603) é considerado o ápice da Renascença Inglesa (fins do século XV ao início do século XVII). Nesse momento, ainda se vê a sobrevivência do conceito de "corpo excessivo", de "corpo grotesco" da Idade Média. As ditas "paixões do corpo" continuam sendo vilificadas: se antes o corpo era considerado inferior à alma divina (de acordo com os ensinamentos da Igreja medieval), este agora se torna inferior à mente racional e ao espírito elevado (de acordo com o racionalismo e o antropocentrismo nascentes, baseados na recuperação ocidental dos textos clássicos, da tradição filosófica grega da abstração do 133 John Kerrigan, "Introduction" in William Shakespeare, The Sonnets and A Lover's Complaint, Penguin Books, p. lvi 64 pensamento). A sodomia é condenada por se tratar de um "excesso", do comportamento de um "corpo excessivo". A Inglaterra elisabetana não possuía os meios de nomear univocamente tal "vício abominável". Este só começará a ser nomeado, como vimos, em fins do século XIX, quando o nascente "homossexualismo" será disputado pelos discursos da ciência sexual (considerado uma doença) e da jurisprudência (considerado um crime). A história de como o sucesso brilhante de Wilde se transforma em desgraça, encarceramento e destituição em semanas é uma das mais conhecidas narrativas da história da literatura. Em 1891, Wilde é apresentado ao Lorde Alfred Douglas, o terceiro filho do Marquês de Queensberry. Douglas era um estudante do Magdalen College de Oxford, como Wilde havia sido há uma década. O jovem era um admirador do trabalho do escritor, queria conhecer o autor de O Retrato de Dorian Gray. Wilde se apaixonou profunda e tragicamente e começou um relacionamento com "Bosie" (o apelido familiar de Douglas). Este relacionamento foi, desde o início, bastante público, o que ocasionou uma reação extremamente violenta e imprevisível por parte do pai de Douglas. Ao ver seu filho ficar reconhecido na sociedade como o "garoto"134 de Wilde, Queensberry começa uma vendeta contra o escritor. Ele tenta criar um escândalo na noite de estréia da peça A Importância de Ser Prudente, mas é impedido pela intervenção da gerência do teatro. Duas semanas depois, em 28 de fevereiro de 1895, o Marquês deixa no Clube Albemarle um cartão onde se lê "For Oscar Wilde posing as a somdomite135". Bosie, vendo nessa oportunidade mais uma chance de brigar com seu odiado pai, convence Wilde a retaliar pela ofensa recebida. Apesar dos conselhos da maioria de seus amigos, que eram contra essa idéia, Wilde processa Queensberry por difamação. Na examinação cruzada no tribunal, Wilde "solta" várias revelações comprometedoras e o caso se vira contra ele. Ele logo seria preso por violar o Criminal Law Amendment Act de 1885 (também conhecido como Emenda 134 O próprio apelido de Lorde Alfred Douglas, "Bosie", é um diminutivo carinhoso de "boy", dado por sua mãe. A palavra "boy" carregava a conotação de um rapaz afeminado, era o termo eufemístico da era vitoriana para designar o jovem amante masculino. Os outros personagens se referem a Dorian Gray deste modo várias vezes ao longo do romance. 135 "Oscar Wilde posando como somdomita": o marquês erra a grafia da palavra. 65 Labouchere), que tornava ilegais as relações homossexuais entre homens, fossem privadas ou públicas. A acusação específica que recai sobre o escritor é a de atos de "indecência grave" com garotos de programa de classe baixa. O júri desse julgamento não chega a uma conclusão a respeito do caso. Um novo julgamento acontece e, em 25 de maio de 1895, Wilde é condenado a dois anos de encarceramento com trabalhos forçados. Sua sentença pressupõe um regime de confinamento solitário e tarefas manuais repetitivas e debilitantes. Wilde descreve, de uma maneira tocante, seu regime de encarceramento em cartas escritas ao jornal Morning Chronicle, em que intercede pela reforma nas prisões. A carta mais famosa desse período viria a ser publicada como De Profundis e consiste numa amarga recriminação que Wilde faz a Douglas. Durante seu tempo na prisão, Wilde é declarado falido e suas posses são vendidas. Após sua libertação, ele leva uma vida nômade na Europa. Reata com Douglas, que permanece com o escritor apenas por três meses. Constance havia morrido em 1898, deixando-lhe uma pequena pensão de 150 libras por ano. Não tem mais acesso a seus filhos. Wilde morre na obscuridade e na pobreza em Paris a 30 de novembro de 1900. A Inglaterra puritana não se incomodava com a "sodomia" praticada pelos cidadãos em sua vida privada. O problema é que Wilde circulava pelos salões, clubes e restaurantes da moda com seu "garoto". O escritor cai em desgraça por causa de seu estilo de vida "degenerado" e homossexual, criticado severamente pelas vozes da ciência e da moral positivas. Segundo Zanotti136, Wilde poderia obter uma sentença semelhante a qualquer outra sentença ditada durante os duzentos anos anteriores. Mas o seu foi mais que um julgamento, foi o símbolo de uma divergência ideológica daquelas que fazem época: a sociedade bem-pensante européia havia conseguido tornar ilegal não apenas um ato, mas um estilo de vida. A nascente cultura homossexual havia encontrado seu mártir. A Emenda Labouchere137 foi uma emenda de última hora feita num artigo que concernia principalmente a "proteção" de mulheres e moças e a supressão de bordéis. O estatuto 11, proposto por Henry Labouchere138, declarava crimes os atos homossexuais entre homens. A emenda teve sucesso em vilificar ainda mais as 136 Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 39 A Emenda Labouchere só seria repelida em 1956. 138 Ironicamente, Labouchere era amigo de Oscar Wilde. 137 66 práticas homossexuais e em aumentar a histeria social a respeito da homossexualidade masculina na Inglaterra139. A lei previa o encarceramento por dois anos, com ou sem trabalhos forçados. Segundo esta emenda, um indivíduo poderia ser considerado culpado não apenas por cometer o ato, mas também por parecer o tipo de pessoa que, dada a ocasião, não deixaria de cometê-lo. Conhecida vulgarmente como a "Carta do Chantagista", a Emenda Labouchere oferecia um risco especial para homossexuais não-assumidos como Symonds e Wilde. Para os contemporâneos de Wilde, a palavra "chantagem" sugeria imediatamente ligações homossexuais. Originada na Escócia do século XVI, ela era geralmente associada a denúncias de sodomia140. Para Eve Sedgwick141, a emenda representou uma importante contribuição para aquela "condição de vulnerabilidade à chantagem" que a autora considera um componente crucial da "influência da homofobia". A emenda tentava conter a borbulhante subcultura homossexual que havia começado a se desenvolver na década de 1870, tornando ilegais todos os atos homossexuais entre homens, quer íntimos quer públicos: Qualquer pessoa do sexo masculino que, em público ou em caráter privado, cometa, partícipe da perpetração, consiga ou tente conseguir de qualquer pessoa do sexo masculino a perpetração de qualquer ato de torpe indecência com outra pessoa do sexo masculino, será acusada de contravenção e, sendo condenada por esse motivo, deverá ser encarcerada segundo a determinação do tribunal por um período que não excederá dois anos, com ou sem trabalhos forçados.142 Note-se que a letra da lei se preocupa apenas com as "pessoas do sexo masculino". É criado um saber positivo que recai apenas sobre os homens, elaborados como sujeitos da Razão. O medo da homossexualidade masculina é que esta funcione como um tipo de "influência corruptora" sobre os outros homens, especialmente os mais jovens. Isso explica a invisibilidade que o lesbianismo enfrentaria ainda por 139 Nicholas Frankel, Oscar Wilde: The Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored Edition, p. 8 140 Alexander Welsh, George Eliot and Blackmail, p. 9 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 153 141 Eve Kosofsky Sedgwick, Between Men, p. 88 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 153 142 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 30 67 muito tempo: a homossexualidade feminina é desimportante em termos simbólicos, pois se refere a indivíduos que são pensados dentro da esfera da natureza e não da Razão. De várias maneiras, pode-se dizer que a publicação de Dorian Gray, chamado até mesmo de "romance sodomítico", chamou a atenção para o autor "degenerado". Para James Joyce, "não cabe a menor dúvida de que [Wilde] cumpriu a função de bode expiatório"143. A atmosfera de puritanismo e repressão sexual estava ainda mais exacerbada que o normal quando da publicação do romance, por conta dos últimos "escândalos sexuais". O artigo de jornal "O Tributo da Donzela à Babilônia Moderna"144, que denunciava a rede clandestina de prostituição de mulheres brancas, recrutadas entre a classe trabalhadora, apontava o dedo para uma elite que comerciava com a "virtude" das jovens de classe popular. O artigo causou uma grande comoção pública e, ao mesmo tempo, foi acusado de ser "perigoso" e "corrupto". Contribuiu para a aprovação da lei na qual seria anexada a Emenda Labouchere. O outro escândalo sexual que ocorrera pouco antes da publicação do romance foi o chamado "Escândalo da Rua Cleveland145". Em setembro de 1889, foi "descoberto" um bordel homossexual que empregava jovens trabalhadores do Escritório Telegráfico para atender aos "gostos" de nobres como o Lorde Arthur Somerset e o Conde de Euston. A nobreza e a classe trabalhadora eram duas classes consideradas "degeneradas" por motivos diferentes, eram elaboradas em oposição ao burguês "saudável" e másculo. A disponibilidade sexual dos jovens das classes trabalhadoras era considerada um fato na Londres vitoriana. Por causa do escândalo, o Lorde Somerset foge para a França em outubro de 1889, com medo de ser processado. Quando foi acusado de "indecência grave", por que Wilde não fugiu para a França, como era costumeiro nessa situação? No caso de acusações de sodomia, infundadas ou não, a expatriação era a opção mais segura. Todos os seus amigos lhe pediram insistentemente que fizesse isso. Um dos motivos para sua permanência pode 143 James Joyce, "Oscar Wilde: Il Poeta de Salomé", Il Piccolo della Sera, Trieste, 24 de março de 1909 in Escritos Críticos, James Joyce, Barcelona: Editorial Lumen, 1971, pp. 291297 apud Antonio Daniel Abreu (ed.), "Introdução ou Oscar Wilde Visto por James Joyce" in Aforismos ou Mensagens Eternas, pp. 13-14 144 Nicholas Frankel (ed.), The Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored Edition, p. 215-6 145 Robert Mighall (ed.), The Picture of Dorian Gray, p. 223 68 ser sido o fato de que sua mãe lhe pedira para ficar e "limpar" o nome da família, já que Wilde era bastante orgulhoso da tradição literária que herdara de seus antepassados. Talvez tenha imaginado que nada de muito grave poderia acontecer a um dramaturgo famoso como ele, reconhecido como o melhor orador de Londres. No julgamento, o advogado de defesa de Queensberry, Edward Henry Carson, ataca, utilizando a arte de Wilde, a doutrina da vida louvada nessa arte. Consciente de que era uma figura em relação simbólica com a arte e a cultura de sua época, Wilde assume acertadamente como questão fundamental sua justificativa da vida como fenômeno estético e não moral. Carson representa a justificativa da vida como fenômeno moral, é o representante da sólida e viril burguesia. O advogado centra seu ataque na admissão artística de Wilde de todas as experiências. Carson se refere claramente àquelas sanções e coerções externas que Wilde se negava a admitir, nem sequer como ficções inevitáveis ou limites à sua busca de auto-realização. Wilde se recusa a abandonar a "pose" de artista e nega-se terminantemente a usar a linguagem médico-legal do sistema penal. Não dá respostas diretas e, nas poucas definições que se digna a dar, inverte o sentido, o significado e a valoração simbólica atribuídos a praticamente todas as palavras de seu discurso. Chamado a definir o "amor que não ousa dizer seu nome", responde: 'O amor que não ousa dizer seu nome' neste século é o amor entre um homem mais velho e um homem jovem, tal como o que houve entre Davi e Jonas, tal como Platão o situou no centro de sua filosofia e tal como se encontra nos sonetos de Michelangelo e Shakespeare. É esse profundo afeto espiritual, que é tão puro quanto perfeito, que dita e permeia grandes obras de arte como as de Shakespeare e Michelangelo e essas duas cartas minhas, assim como são. É mal-compreendido neste século, tão malcompreendido que pode ser descrito como 'o amor que não ousa dizer seu nome' e graças ao qual estou colocado onde me encontro agora. É belo, é fino, é a forma mais nobre de afeto. Não há nada antinatural a seu respeito. É intelectual e existe freqüentemente entre um homem mais velho e um homem jovem, quando o homem mais velho tem o intelecto e o mais jovem tem todo o prazer, a esperança e o glamour da vida à sua frente. Que seja assim, o mundo não o entende. O mundo ri dele e, às vezes, põe alguém na picota por isso.146 Provavelmente movidos pela extrema eloqüência do orador (e esquecendo momentaneamente a moral vitoriana), conta-se que, neste dia, choveram aplausos à fala de Wilde. 146 Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 62 69 A expressão "o amor que não ousa dizer seu nome" havia sido cunhada pelo próprio Lorde Alfred Douglas, num poema intitulado Dois Amores. Neste, Douglas compara dois tipos de amor: o primeiro, legítimo, entre garota e garoto e o segundo, ilegítimo, cujo nome é "Vergonha" e que não ousa pronunciá-lo. A comparação de dois tipos de amores é uma antiga tradição literária; Shakespeare já escrevera esse tipo de poema. As últimas estrofes do poema de Douglas se tornaram famosas: 'Sweet youth, Tell me why, sad and sighting, thou dost rove These pleasant realms? I pray thee speak me sooth What is thy name?' He said, 'My name is Love.' Then straight the first did turn himself to me And cried, 'He lieth, for his name is Shame, But I am Love, and I was wont to be Alone in this fair garden, till he came Unasked by night; I am true Love, I fill The hearts of boy and girl with mutual flame.' Then sighing, said the other, 'Have thy will, I am the love that dare not speak its name.' A combinação de grafomania e homofobia da Londres vitoriana fazia com que muitos homens fossem chantageados por pessoas que tivessem acesso a cartas "perigosas". Em Dorian Gray, o escritor faz menção a esse perigo: "Já tinha ouvido falar de homens ricos explorados durante toda a sua vida por um criado que tinha lido uma carta, ou surpreendido uma conversação, ou recolhido um cartão com uns sinais".147 Uma das cartas usadas como "prova" contra Wilde em seu julgamento consiste em um poema, inspirado nos Sonetos de Shakespeare, em que o escritor compara seu amado a Narciso e a outros homens belos. Por negligência de Douglas, essa carta é perdida, passa de mão em mão e é finalmente usada como prova do crime de "indecência repulsiva". No tribunal, Wilde afirma que essa carta só pode ser 147 Oscar Mendes, Oscar Wilde: Obra Completa, p. 148 70 compreendida em seu teor literário por aqueles que haviam lido O Banquete de Platão, ou seja, desqualifica a capacidade do júri para julgá-lo. No entanto, Wilde não considera que, para a sociedade e o sistema penal ingleses, apesar de todo seu prestígio e sua fama, ele não passaria nunca de um outsider, um irlandês, um dândi, um corpo estranho que jamais se enquadraria plenamente naquela sociedade. Por outro lado, os Douglas eram upper class, estavam no topo do sistema de classes inglês. Apesar de se encaixarem na retórica melodramática da estirpe aristocrática que degenerara numa série de desequilibrados (típica da época), o título de nobreza dos Douglas os tornava intocáveis. O Marquês de Queensbery, como um legítimo cavalheiro, não só praticava esporte, como havia modificado as regras do boxe (vigentes ainda hoje). Wilde o chamava de "o Marquês vermelho" e, a seu respeito, escreve: "Eu nunca imaginei que seria um pária que tornaria a mim mesmo um pária"148. Bosie é citado apenas uma vez pelo advogado de acusação, com a intenção óbvia de mantê-lo à margem do assunto: "Não estou aqui para dizer que haja sucedido algo entre o Lorde Alfred Douglas e o Senhor Wilde. Deus nos livre! Mas tudo leva a pensar que o jovem estava em uma situação perigosa".149 Wilde tinha a pretensão de caminhar livremente por uma sociedade rigidamente hierarquizada em classes. No tribunal, afirma: "Não reconheço a legitimidade de nenhuma distinção social de nenhuma classe"150. Circulava entre a nobreza e os trabalhadores. A postura de Wilde era subversiva, constituía-se em uma grave violação dos códigos de classe: O que estava sendo reconstruído no tribunal era uma espécie de Londres paralela e perfeitamente simétrica à respeitável: nesta Londres-Sodoma, entrava-se em contato com os jovenzinhos da classe trabalhadora nos espaços públicos, isso sem falar da possibilidade de profanar os dois templos da respeitabilidade londrina: o Hotel Savoy e o domicílio conjugal.151 O processo contra Wilde por homossexualismo gerou um pânico moral propiciador de um período de censura que afetou tanto as mulheres progressistas 148 Nicholas Frankel (ed.), The Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored Edition, p. 82 149 Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, pp. 57-58 Ibid., pp. 57 151 Ibid., p. 58 150 71 quanto os homossexuais. A Westminster Gazette saudou a condenação de Wilde como uma justificativa para a censura: Dizem-nos que a arte não tem nada a ver com a moral. Mesmo que essa doutrina fosse válida, há muito ela vem sendo deturpada, com o tratamento dado pelos decadentes, de modo a revelar uma nítida preferência por parte da 'arte' pelo que é imoral, mórbido e maníaco. (...) No entanto, esse terrível caso (...) pode ser o veículo para inculcar o bem se ele deixar sua marca na consciência literária e moral da geração atual.152 Embora alguns dos amigos de Wilde continuassem a lutar pela revogação da Emenda Labouchere e a pressionar pela sua libertação, a maioria dos intelectuais e escritores não se dispôs a apoiá-lo em público. Na França, foi circulado um abaixoassinado em sua defesa, mas a maioria dos escritores (Alphonse Daudet, Jules Renard, Anatole France, Edmond de Goncourt, Pierre Loüys, Émile Zola) se recusou a assinálo. Oscar Wilde é condenado mais por sua "influência" corruptora do que por qualquer outra coisa: é condenado mais por ser um sedutor do que por atos sodomitas especificamente. De acordo com Zanotti153, Não o condenaram como homossexual, mas sim – nas palavras do primeiro e, por muito tempo, único tratado inglês sobre a homossexualidade, A Inversão Sexual (1896), de Havelock Ellis – como exemplo de 'pessoa heterossexual, a qual parece que chega a ser homossexual através do exercício da curiosidade intelectual e do interesse estético'. A homossexualidade de Wilde era vista como um vício livremente elegido, a conclusão de certo modo previsível de uma longa série de comportamentos anticonformistas. O impulso de negar as normas sexuais 'naturais' era o mesmo que o havia levado a praticar uma arte 'perversa' e a saltar as normas de classe para correr atrás de seus amantes da classe trabalhadora. Aqui, vê-se novamente a co-relação arte, anticonformismo e degeneração. Novamente, somos lembrados que não era um indivíduo e seus atos que estavam sendo julgados, mas sim toda a classe artística, vista como degenerada pela sociedade burguesa moralista. 152 Ed Cohen, "Writing Gone Wilde: Homoerotic Desire in the Closet of Representation", PMLA 102 (outubro 1987), p. 80 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 225 153 Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, pp. 62-63 72 O julgamento de Wilde é o momento de convergência de dois estereótipos, um sobre a arte e outro sobre a homossexualidade. A acusação de "afeminação" recai tanto sobre um determinado tipo de arte quanto sobre o homem homossexual. Neste momento (em que o protótipo do homossexual está sendo construído, como vimos), a afeminação ainda estava se firmando como um suposto atributo ou sintoma de homossexualidade. É nesse momento que a delinqüência moral por contato com o (supostamente) feminino se transforma, gradualmente, em delinqüência pelo contato mútuo de dois homens. Segundo Lawrence Danson154, Numa tradição com profundas raízes no mundo medieval, a afeminação estava ligada não ao desejo de mesmo sexo, mas a qualquer desejo que fosse excessivamente indulgido, visto como algo que poderia ameaçar a ordem política estabelecida. O alargamento semântico da palavra em esferas sociais bastante afastadas daquelas consideradas especificamente "sexuais" remete tanto à misoginia quanto à homofobia. Isso faz de qualquer indulgência na paixão (...) uma fraqueza e, da fraqueza, uma qualidade do feminino. Para Showalter155, os esforços do fin-de-siecle no sentido de definir e controlar o homossexualismo, além de isolá-lo da masculinidade em geral, talvez tenham surtido o efeito paradoxal de fortalecer os vínculos homossexuais. De acordo com Jeffrey Weeks156, "parece provável que novas formas de documentação legal, por mais excêntricas que fossem na sua aplicação, tenham tido o efeito de fazer ver a muitos a realidade da sua diferença, criando-se, assim, uma nova comunidade de conhecimento, para não dizer de vida e sentimento, entre muitos homens com tendências homossexuais". Segundo Foucault, esse efeito seria inevitável porque a definição, marginalização e controle oficiais de um grupo em particular, como o dos homossexuais, sempre faz surgir um "discurso inverso", uma identidade em torno da qual uma subcultura pode começar a se formar e a protestar. Como afirma Jonathan Dollimore157, uma vez definido o homossexualismo no final do século XIX, "ele começa a ter sua própria voz, a forjar sua identidade e cultura, muitas vezes nos 154 155 Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in His Criticism, p. 31 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 30 156 Weeks, Sex, Politics, and Society, Nova York e Londres: Longman, 1981, p. 103 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 30 157 Jonathan Dollimore, "Homophobia and Sexual Difference", Oxford Literary Review 8, 1986, p. 7 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 30-31 73 mesmos termos exatos com os quais havia sido criado e marginalizado, e afinal a desafiar a própria estrutura do poder que o havia criado e marginalizado". Para Showalter158, o julgamento de Wilde cristaliza o movimento de emancipação dos homossexuais. O julgamento de Oscar Wilde também tem reflexos na literatura. A Ilha do Dr. Moreau foi escrito por H. G. Wells em 1896, no ano seguinte ao julgamento. Nesse momento, a sociedade discutia avidamente o tema da degeneração. O escritor de ficção científica diz ter pensado muito em Wilde e sua derrocada ao longo do processo de escrita do livro: Naquela época houve um julgamento escandaloso, a derrocada deselegante e impiedosa de um homem de gênio, e essa história era a resposta de uma mente criadora ao lembrete de que o homem não é mais do que um animal, burilado para se tornar razoável e submetido a perpétuo conflito interno entre o instinto e as injunções. A história encarna esse ideal; mas, excetuando-se essa personificação, ela não tem nenhum aspecto alegórico. Ela foi escrita de modo a conferir a maior nitidez possível a esse conceito de que os homens são bestas atormentadas, confusas, grosseiramente esculpidas.159 Vemos aí uma curiosa inversão do Esteticismo elevado de Wilde, em que os homens são idealizados e até mesmo seus sentidos e suas sensações são espiritualizados: Wells quer demonstrar o contrário, que "o homem não é mais do que um animal". O Dr. Moreau, assim como Lorde Henry, vivissecciona os seres vivos à sua volta. Como um perfeito homem da ciência, objetifica completamente a criatura que se encontra do outro lado do bisturi: "Não dá para se imaginar o prazer estranho e pálido desses desejos intelectuais. O que está diante dos seus olhos não é mais um animal, um outro ser humano, mas um problema. A solidariedade na dor – tudo o que sei dela é uma lembrança de algo que eu costumava sentir anos atrás". (É possível imaginar essas frases sendo proferidas por um dos muitos médicos que realizavam clitoridectomias e ovariotomias nas histéricas, frígidas e ninfomaníacas da época.) Na 158 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, pp. 225-226 H. G. Wells, "Prefácio à Ilha do Dr. Moreau" in The Works of H. G. Wells, Nova York: Atlantic Edition, 1924, 2:ix apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 233 159 74 história de Wells, a sexualidade/ reprodução/ criatividade feminina deixa de ser irrelevante (como no romance de Wilde) e se torna a questão central da busca científica do protagonista. O cientista é adepto da máxima da época "torturar a natureza para que ela revele os seus segredos", sendo essa natureza, obviamente, feminina. Portanto, não é uma coincidência que "As fêmeas demonstram especial resistência aos esforços do doutor no sentido de civilizá-las. (...) As fêmeas parecem estar mais vinculadas à própria ilha, à natureza orgânica e ao solo 'rico e lodoso'. São as primeiras a regredir à animalidade e a 'desrespeitar a injunção à decência' "160. O romance de Wells pode ser lido de várias maneiras: como uma crítica à organização social, uma parábola sobre a crueldade da ciência, uma fábula darwinista ou uma alegoria do modo como o colonialismo europeu procurava "civilizar" os primitivos. Ian F. Roberts161 afirma que Wells teria se inspirado, ao criar o Dr. Moreau, em Pierre Louis Moreau de Maupertuis, considerado um precursor da teoria da evolução. É significativo que Wells tenha escrito uma história sobre este cientista no ano do julgamento de Wilde, acusado principalmente por ser considerado uma "influência corruptora", um "degenerado" que não deveria manchar, com seus genes enfraquecidos, a robustez sólida da raça. Após o julgamento, em que é rotulado como um degenerado, Wilde é encarcerado. Quando já se encontrava preso por mais de um ano na Prisão de Reading, Wilde escreve uma carta endereçada ao Ministro do Interior, em que se diz acometido de "loucura sexual". Ele se diz corretamente julgado culpado e usa termos como "erotomania", "monstruosa perversão sexual", "insanidade sexual" e "monomania sexual" para referir-se a si mesmo. Menciona também que todo um capítulo do livro Degeneração de Nordau é dedicado a ele. Habilmente, percebendo a disputa pela autoridade simbólica de nomear e classificar a homossexualidade que ocorria nesse momento entre a lei e a ciência sexual, Wilde tenta transformar seu "crime" num "diagnóstico", tenta convencer as autoridades de que não era um criminoso, mas sim um doente. 160 Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 234 161 Science Fiction Studies 84, julho de 2001 apud Braulio Tavares, "Prefácio" in H. G. Wells, A Ilha do Dr. Moreau, p. 10-11 75 Também de extremo interesse são as cartas que Wilde envia ao jornal Daily Chronicle após sua libertação, em que descreve as condições desumanas a que os presos eram submetidos. Ele diz que os condenados eram terrivelmente malalimentados nas prisões, recebendo um pedaço de pão e água no café-da-manhã e na janta e uma papa no almoço. Tal dieta provocava diarréia nos detentos, que já sofriam com a precariedade das instalações sanitárias. Também se coloca contra o encarceramento de crianças, comum na época. Mas a carta mais famosa que Wilde escreve na prisão é a longa e amarga De Profundis, dedicada a Lorde Alfred Douglas. Nessa carta, Wilde analisa o relacionamento dos dois à luz de seu desfecho e finalmente admite que Bosie foi o responsável pela sua derrocada. Wilde entregou o manuscrito a Ross, pedindo que este mandasse apenas uma cópia datilografada para Douglas, com medo de que este destruísse a obra. Fez bem em agir assim: este realmente destruiu a cópia que possuía, acreditando ser esta a única cópia existente. Alguns anos mais tarde, Douglas descobre a existência do manuscrito original e rompe com Ross. O ex-amante retarda o aparecimento do texto integral da carta o quanto pode (ele viveu até 1945162). O texto integral só foi conhecido em 1962. Seu nome original é Epistola: in Carcere et Vinculis ("Epístola: no Cárcere e Acorrentado"), aparentemente sugerido por Wilde em tom de brincadeira. Foi Robbie Ross, seu executor literário, que, em 1905, deu à carta o nome De Profundis, baseado no Salmo 130. A forma literária de epístola e o nome original mostram muito bem as intenções artísticas de Wilde ao escrever essa carta. Consiste em uma Carta Encíclica sobre o sofrimento estético, em que Wilde repensa os anos passados ao lado de Douglas e em que se compara a Jesus Cristo, elaborando-o como o primeiro romântico e o primeiro individualista da História. A leitura da carta quebra a expectativa do leitor acostumado aos outros escritos de Wilde: nesta, não encontramos as características usualmente associadas aos textos do escritor. Não resta nada da leveza, dos diálogos rápidos das peças de sociedade, dos epigramas rascantes de O Retrato de Dorian Gray: o que temos é 162 Bosie também viria a ser encarcerado em 1923, acusado de difamação por ninguém menos que Winston Churchill. No cárcere, escreve um livro de sonetos e o intitula In Excelsis. 76 profundidade, gravidade, uma apologia ao sofrimento estético. Danson163 sugere uma leitura segundo a qual a obra pregressa de Wilde (especialmente as peças e Dorian Gray) representariam uma literatura calcada num conceito de "superfície" e De Profundis (como perfeitamente intuído por Ross), num conceito de "profundidade". Para o pensador, nas peças de sociedade, as personagens de Wilde não possuem uma psicologia profunda, elas se constituem nas máscaras que usam, distinguem-se umas das outras pelo brilho de suas superficialidades. Já De Profundis pode ser visto alternativamente como a capitulação exausta ou a descoberta final que Wilde faz do modelo sincero de uma personalidade profunda. Nesta obra, a filosofia literária anterior de Wilde (em seu caso, sempre imbricada com sua filosofia de vida) é matizada. Antes da prisão, com o dandismo, o neo-hedonismo e o Esteticismo, Wilde expressa a ideologia de uma vida bela e sensual. É essa a descrição que faz de sua vida com Douglas, uma busca contínua de novas sensações e experiências, que atrapalha a reflexão e o recolhimento necessários ao trabalho de um escritor. Wilde se censura repetidas vezes por haver levado essa vida hedonista com Bosie por tanto tempo e deixado de se dedicar à literatura como deveria. Em De Profundis, Wilde chega à conclusão que questiona sua filosofia de vida anterior: a de que o artista não consegue, simultaneamente, transformar sua vida em arte e criar obras de arte. A high life, os salões, as festas, as conversas brilhantes com figuras extravagantes impediriam a introspecção, o recolhimento necessários para que o artista possa criar. Em vários trechos do texto, censura Douglas pela vida nababesca que levavam juntos (às expensas do escritor): "Dos jantares inconseqüentes com você, nada permanece a não ser a memória de que comia-se e bebia-se muito"164. A isso, Wilde contrapõe a rica frugalidade de sua vida com Ross, lembrando-se de um jantar simples em um café do bairro londrino do Soho, que custara apenas 3 francos e 50 centavos: "Do jantar com Robbie, surgiu o primeiro e melhor de todos os meus diálogos. Idéia, título, tratamento, modo, tudo (...)". Ou seja, dos lautos jantares com Douglas, nada restou, enquanto que um jantar simples com Ross nos legou A Decadência da Mentira165. Em sua Encíclica, Wilde conclui que a vida artística do 163 Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in His Criticism, p. 40 Ibid., p. 36 165 Ibid., p. 37 164 77 dândi fere a capacidade do artista de produzir belas obras e, como sua "religião" é a arte, essa vida hedonista deve ser repudiada. Essa mudança estética de Wilde é perfeitamente resumida num dos trechos mais belos da carta: Lembro de uma vez, quando estava em Oxford, ter dito a um amigo enquanto caminhávamos certa manhã pelos estreitos caminhos cheios dos cantos de pássaros do Magdalen, um ano antes de deixar a Universidade, que eu desejava provar os frutos de todas as árvores do jardim do mundo, e que deixava Oxford com essa paixão em minha alma. E assim fiz. Meu único erro foi ter me limitado às árvores do que me parecia ser o lado ensolarado do jardim, desprezando o outro lado por ser triste e sombrio. O fracasso, a desgraça, a pobreza, o desespero, o sofrimento, a dor e até mesmo as lágrimas, as palavras entrecortadas que saem dos lábios daqueles que sofrem, o remorso que faz caminhar sobre espinhos, a consciência que condena, a humilhação que castiga, a tristeza que joga cinzas sobre a própria cabeça, a angústia que escolhe vestes de aniagem e derrama fel na água que bebe, todas essas eram coisas que eu temia e, como havia determinado jamais conhecê-las, fui obrigado a provar de cada uma delas, alimentar-me delas e na verdade não conheci outro alimento durante muito tempo.166 Sabemos como foi o final da vida de Wilde após a prisão. O escritor nunca mais foi capaz produzir uma linha sequer. Por mais triste que soe esse final, sua história não termina aí. A partir da publicação de suas obras completas em quatorze volumes por Robbie Ross em 1908, a apreciação de Wilde só fez aumentar. Seus textos parecem indicar que uma verdadeira oeuvre não é possível, apenas fragmentos. Harold Bloom o chama de "gênio do paradoxo" e considera seu estilo "antológico". Sua obra prenuncia o Modernismo literário; seus textos, sob vários aspectos, se parecem mais com os de modernistas como James Joyce e Virginia Woolf do que com a maior parte da literatura que estava sendo produzida na sua época. A literatura de Wilde ajuda a conformar o espírito do século XX, com seus paradoxos, suas inversões simbólicas e sua ironia. 166 Oscar Wilde, De Profundis e Outros Escritos do Cárcere, pp. 92-93 78 Capítulo V TAKE A WALK ON THE WILDE SIDE A cada dia, torna-se mais difícil viver à altura de minha porcelana azul. - Oscar Wilde "Os paradoxos funcionam da mesma maneira que a verdade. Para testar a realidade, é preciso vê-la sobre a corda esticada. Quando as verdades se tornam acrobatas, podemos julgá-las." - Oscar Wilde And alien tears will fill for him Pity's long-broken urn, For his mourners will be outcast men, And outcasts always mourn. - inscrição no túmulo de Wilde, retirada de "The Ballad of Reading Gaol" Uma das características mais marcantes das obras de Oscar Wilde é a presença constante de inversões simbólicas e paradoxos. O escritor se dá o direito de renomear o mundo a seu bel-prazer. Algumas das inversões mais marcantes que ele realiza em seus escritos são aquelas entre socialismo e aristocratismo; natureza/ vida e arte (especialmente no ensaio A Decadência da Mentira); arte e crime (especialmente em Dorian Gray); profundidade e superfície; aparência e essência; alta cultura/ respeitável e baixa cultura/ outsider. Em A Decadência da Mentira, Wilde afirma que a natureza e a vida é que imitam a arte e não o contrário. É a postura estética levada ao máximo: a vida não faz mais do que imitar a arte. A afirmação do escritor é totalmente consonante com o ideário da Decadência como este foi estabelecido por Baudelaire: ojeriza à natureza e exaltação da arte e do artifício. Para alguns pensadores, essas inversões de sentido 79 instauram na prosa de Wilde um subtexto decididamente gay. Segundo Danson167, com suas inversões e paradoxos, Wilde quebra o discurso binário que opõe imitação à criação, natureza à forma, vida à arte, realismo à romance e uma sexualidade supostamente "natural" a uma sexualidade que, como a arte, se recusa a ser categorizada ou controlada. Pressupondo uma natureza imitadora e uma arte autogeradora, Wilde promove uma inversão da teoria platônica. Segundo esta, tudo derivaria das formas ideais, inatingíveis, acessadas apenas pelo pensamento abstrato: a natureza como a conhecemos seria falha, apenas uma cópia dessas formas ideais; a arte seria ainda inferior, constituindo-se em "cópia da cópia". Wilde, renomado classicista, inverte completamente esse conceito, fazendo com que a vida, a natureza, toda a realidade ontológica derivem da arte, colocando-a numa esfera "acima" da existência mundana e mesquinha. Wilde revela a costura por baixo do termo "natureza": não há uma natureza primordial, um paraíso perdido. O escritor mostra que o que chamamos de natureza não é "natural", é um derivado da cultura. A sociedade criou essa "natureza" que é, então, celebrada como primigênia. Para Wilde, a natureza "posa" como algo natural: à procura do "natural", passaríamos a vida imitando uma imitação. Isso vai diretamente contra o conceito de "personalidade" do escritor, segundo o qual não deveríamos nunca "expressar algo que não nós mesmos". As "inversões lingüísticas" que Wilde realiza em suas obras implodem por dentro todas as categorias de valor, todas as associações simbólicas nas quais a sociedade ocidental se sustenta. Seu discurso é considerado extremamente perigoso, é rotulado de "corruptor" pelos defensores dos "bons costumes". De acordo com Eribon168, os paradoxos de Wilde têm o objetivo expresso de questionar a rígida moralidade burguesa: Como fiel herdeiro do simbolismo e do decadentismo, nos quais o gosto pelo estranho se mesclava com tudo o que se passava por 'imoral', nos quais o questionamento da arte e da literatura clássica incluía um repúdio radical dos códigos morais em vigor, como grande leitor de Baudelaire, de Gautier e de Huysmans, necessitava desses adornos, dessas flores de 167 Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in His Criticism, p. 11 Didier Eribon, "Las granadas de Oscar Wilde: Un estudio en rojo y verde" in Herejías: Ensayos sobre la Teoría de la Sexualidad, p. 134 168 80 retórica, desses quadros cheios de cores, para poder dizer o que tinha que dizer e fazer surgir no espírito de seus leitores pensamentos, associações de idéias, sentimentos, desejos e aspirações, e assim, talvez, transformar o mundo ao seu redor. Para Danson169, o paradoxo wildeano desestabiliza as categorias, realiza o trabalho adâmico da nomeação. Wilde se utiliza do potencial revolucionário do paradoxo e de sua capacidade de reescrever a geografia da exclusão/ inclusão: por meio deste, busca assegurar para si mesmo uma posição poderosa no centro de uma cultura cujos valores ele estava subvertendo e cujas leis ele estava questionando. Wilde era a própria figura do outsider: um irlandês homossexual que procurava assegurar para si uma posição cultural elevada na Londres vitoriana, centro do Império Britânico. Segundo Danson170, "Ao fraturar categorias sociais, estéticas e mesmo sexuais presumidamente estáveis, [Wilde] criaria o espaço necessário para o seu posicionamento". Por meio de seu uso de alusões, citações, pastiche e paradoxo, Wilde tenta fugir da categorização, do "já elaborado". Para Danson171, a ruptura textual que a escrita de Wilde produz tem um alcance bem maior do que a esfera da literatura especificamente: as inversões lingüísticas subvertem o "normal", apresentam-no como um texto construído como qualquer outro e questionam todos os textos construídos como "normais", como o da heterossexualidade. Wilde, especialmente em seus ensaios, cria um mundo em que apenas o artista teria o poder de nomear e julgar. Faz isso até mesmo num terreno "perigoso" como o do desejo sexual: o escritor dá livre curso a um voluntarismo utópico em relação a esse assunto, acredita ser capaz de produzir textualmente o que Danson 172 chama de "um desejo de sua própria fabulação". Wilde promove uma desestabilização das identidades no momento mesmo em que o conceito de identidade sexual se fixava. Ele quebra o estigma que transforma o desejo sexual numa identidade social: "usa" no peito a injúria atirada contra ele, ao promover uma ressignificação de nomes e identidades pejorativos ou derrogatórios. 169 Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in his Criticism, p. 3 170 Ibid., p. 20 171 Ibid., p. 44 Ibid., p. 5 172 81 A patologização e a criminalização da identidade gay é questionada por vários pensadores nesse momento, mas nunca com o grau de subversão de Wilde. Como vimos, mesmo Symonds e Carpenter, reformadores que queriam transformar a homossexualidade numa identidade sexual legítima, continuavam a inscrevê-la na linguagem da ciência. André Gide insiste que seu desejo homossexual é "natural" à sua identidade autêntica. Apenas Wilde inova nesse sentido: "A estética transgressora de Wilde é o reverso: insinceridade, inautenticidade e não-naturalidade se tornam os atributos liberadores de uma identidade e um desejo descentrados".173 Segundo Zanotti174, alguns estudiosos consideram os paradoxos de Wilde como o nascimento de uma sensibilidade especificamente gay. O nome desta sensibilidade ficou conhecido com o ensaio "Notas sobre o Camp" de Susan Sontag, publicado em 1964. De acordo com Sontag, o camp é um descendente direto do Esteticismo do século XIX, em particular dos célebres aforismos de Wilde. O camp – palavra que nasce no início do século XX para designar gestos enfáticos e teatrais – é interpretado por Sontag como uma visão irônica da vida entendida como uma representação; esta se basearia na inversão de valores, na transformação sistemática do sério em frívolo e do frívolo em sério. Sontag a considera uma sensibilidade típica dos tempos pós-modernos (sucessora do kitsch) e também uma aportação especificamente homossexual à cultura contemporânea. De acordo com a intelectual norte-americana, "foi Wilde quem formulou um importante elemento da sensibilidade camp – a equivalência de todos os objetos – ao anunciar sua intenção de 'corresponder' à porcelana azul e branca, ou ao afirmar que uma maçaneta poderia ser tão admirável quanto uma pintura175". Apesar de parecer, a princípio, algo frívolo, as principais características do camp (esteticismo, sensibilidade, a capacidade de ironizar sobre si mesmo, de falar em código) podem ser consideradas armas defensivas: esteticismo e sensibilidade remetem a características eliminadas da virilidade normativa e, no entanto, toleradas nos "anormais"; ironizar sobre si mesmo e falar cifrado são típicos dispositivos 173 Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in his Criticism, p. 45 Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 64 175 Susan Sontag, "Notes on Camp" in Against Interpretation and Other Essays, p. 289 174 82 necessários para reconhecer-se entre iguais sem se expor muito. Os lugares-comuns da literatura do fim-de-século tinham essa função: Quando, no princípio de O Retrato de Dorian Gray, Wilde compara Dorian a Antínoo, o leitor 'iniciado' da época já sabia que [o escritor] estava aludindo à homossexualidade: a estátua do jovem amante do imperador Adriano havia sido uma das pedras de toque da beleza gay ao longo de todo o século XIX e princípios do XX.176 De acordo com Sontag177, "O Camp é um certo modo de esteticismo. É um modo de ver o mundo como fenômeno estético. Esse modo, o modo do Camp, não julga o mundo em termos de beleza, mas sim em termos do grau de artifício, de estilização". Para a intelectual norte-americana, as origens dessa sensibilidade podem ser traçadas até o século XVIII, quando primeiro surgiu o gosto por romances góticos, chinoiserie178, caricatura, ruínas artificiais (em pleno Romantismo literário). O camp consiste no exato oposto da alta cultura: enquanto esta possui parâmetros moralistas, o camp consiste na experiência consistentemente estética do mundo. Essa sensibilidade é brincalhona, anti-séria: o camp propõe uma visão cômica do mundo. Para Sontag, "Os homossexuais fixaram sua integração à sociedade promovendo o senso estético. O Camp é um solvente da moralidade. Ele neutraliza a indignação moral, incentiva a ludicidade". Dorian Gray possui uma sensibilidade camp. O final que culpa e pune o esteta, que o transforma em monstro é o único final possível que essa história poderia ter na era vitoriana tardia. Como vimos, para Oscar Wilde, a "moral" da história consistia em seu único defeito estético. No entanto, após muitas e muitas páginas descrevendo o estilo elegantemente decadente de Dorian Gray, sentimos que seu final até que não é tão ruim assim. Tem-se a impressão de que, mesmo sabendo qual seria o seu fim, Dorian teria tomado as mesmas decisões, não aceitaria levar uma vida menos brilhante (e menos criminosa) do que a que de fato levou. Podemos ver aí um descolamento da forma e do conteúdo da história: apesar de se travestir de "fábula moral", o romance celebra ostensivamente o estilo de vida decadente. Apesar do final trágico de Dorian, o que não esquecemos é a beleza de sua vida corrompida. 176 Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 66 Susan Sontag, "Notes on Camp" in Against Interpretation and Other Essays, p. 277 178 Gosto por objetos chineses. 177 83 Dorian é um verdadeiro dândi: seu corpo e sua identidade se assumem como uma obra-de-arte, como um texto em perpétua reconstrução. O belo protagonista não é apenas um sujeito da Razão, é também objeto de sua própria mirada: com isso, Wilde realiza a ruptura do sujeito unitário, cartesiano, idêntico a si mesmo e promove a emergência de um sujeito que habita justamente o lugar em que as fronteiras entre o exterior e o interior se confundem. Segundo Foucault179, a consciência do eu como espetáculo típica do dândi prefigura a subjetividade moderna. Como Harold Bloom180 sugere, se tivesse nascido numa outra época, Oscar Wilde provavelmente teria sido um "superstar estético" como Andy Warhol e Truman Capote. Em 1909, com a crescente popularidade do escritor, suas cinzas são transferidas para o Cemitério Pere Lachaise, que abriga os restos mortais de muitas outras figuras da cultura, dentre escritores (como Moliere) e rockstars (como Jim Morrison). Em 1912, sobre seu túmulo, é erigido o monumento da esfinge alada181 de Jacob Epstein. Seu túmulo mantém as marcas da "loucura dos beijos"182, uma tradição iniciada pelos visitantes: notemos que esta tradição denota uma profunda compreensão da obra e da figura de Wilde, já que se constitui numa homenagem de decidida sensibilidade camp. Wilde, e não Dorian Gray, se torna o primeiro mártir do Esteticismo. Com sua vida e seus escritos, pode ser visto como patrono da nascente cultura gay e – por que não? – do rock'n'roll. "Todo pensamento é imoral. Sua própria essência é a destruição. Se pensamos em alguma coisa, nós a matamos: nada sobrevive à reflexão." - Oscar Wilde 179 Michel Foucault, Tecnologías del yo apud Isabel Clúa Ginés, "Cuando Frankenstein encontró a Dorian Gray: Dandysmo, Post-Identidad y Sujetos Virtuales" in Lectora: Revista de mujeres y textualidad 10, 2004 180 Harold Bloom, Gênio: Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura, p. 263 181 É digno de nota que uma das primeiras coisas que o Viajante do Tempo da história de Wells veja no futuro seja justamente uma esfinge alada. 182 Em um poema, Wilde diz que os lábios vermelho-rosados de Bosie foram feitos para a "loucura dos beijos". 84 *** 85 Bibliografia ARIES, Philippe e BÉJIN, André (org.), Sexualidades Ocidentais. Tradução Lygia Araújo Watanabe e Thereza Christina Ferreira Stummer, São Paulo: Brasiliense, 1985 BALAKIAN, Anna, O Simbolismo. Tradução José Bonifácio A. 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