que ninguém o visse e o chamasse de regresso, fosse para lanchar, fosse para brincar, ou para ir à Escola. Mas a realidade era outra. E muito feliz se dava por poder namorar as paisagens tempos indefinidos. Um dia, de tanto imaginar, conseguiu entrar no orifício minúsculo de um bugalho e decidiu só sair quando lhe apetecesse. Agora ali seria a sua casa. Sairia para visitar os amigos, dar duas de conversa com a Ruça ou importunar as ovelhas. Mas sempre ali regressaria e dali seria mais fiel às paisagens. Sim, paisagens, porque apesar da pequenez da casa, havia quatro janelas: uma voltada a nascente, outra a norte, outra a poente e outra a sul. E depois, com o rodar do sol, cada paisagem vai-se transformando, tem cores diferentes, tem os seus movimentos e os seus humores. E foi assim que este menino passou a ter uma casa, continuou a ter os seus amigos e pôde namorar as suas paisagens do alto do seu bugalhinho. E a Inês inventou-lhe uma quadra que dizia: O meu amigo menino Foi morar num bugalhinho E de entre as frescas ramagens Namora as belas paisagens. Nuno Higino O menino que namorava paisagens e outros poetas Porto, Campo das Letras, 2001 O menino que namorava paisagens Havia um menino que não tinha casa, nem rua, nem aldeia, nem família. Só tinha amigos. Aparecia não se sabe donde, umas vezes alegre, outras vezes triste. Na sua alegria ou tristeza havia mistério. Outras vezes, não era possível definir o contraste dos seus sentimentos. Mas só nos primeiros momentos é que isso acontecia, porque depois, quando chegava à beira dos seus três amigos, às vezes cinco ou seis, ou mais, o seu rosto ficava diferente. Acontecia como aquelas manhãs que nascem cobertas de névoa, mas depois vem o sol e dissipa-a, e elas ficam claras e cheias de cores e sons e brilhos e aromas suaves. (…) Mas, logo a seguir, refugiava-se para um sítio isolado. Ninguém se apercebia. Todos pensavam que estava com os brinquedos e os amigos. Mas não estava. Ia até ao fundo dos campos, sentava-se e olhava. Olhava não se sabia o quê, certamente o que estava à sua frente: as árvores, as oliveiras carcomidas, o rio ao fundo, o pequeno rebanho na encosta, a burra pastando ao cimo da encosta. Quando se pensava que tinha desaparecido, ou andava perdido, ou se tinha ido embora, ele estava ali sentado, imóvel como um arbusto ou um tufo de ervas. Era então que a Inês, quando o via assim, como se estivesse plantado na terra, dizia para os outros amigos: — Lá está ele a namorar as paisagens… Tudo neste menino fazia lembrar a terra, as coisas da terra. O seu olhar era como o orvalho da manhã nas folhas tenras, ou como a água reluzindo ao sol. As suas mãos eram como as folhagens roçando levemente no rosto ou como os ramos das oliveiras de luz tingida pelo negrume dos frutos. O seu andar era vagaroso e seguro, que é o andar dos dias e das horas quando se vive no campo. Este menino não tinha pressa nem vagar. Tinha tempo. E o tempo era para ele o tempo dos amigos, o tempo das paisagens, o tempo de namoro das paisagens. Se apanhava um bugalho, não o olhava como uma coisa estranha, nem o despedaçava debaixo dos pés. Olhava-o por fora e por dentro, observava as larvas que ali tinham a sua casa e imaginava-se entrando nos pequenos orifícios e percorrendo os caminhos interiores que havia nos bugalhos. Se por acaso se cansasse, haveria lá dentro um sítio para descansar e frescura ou calor conforme as estações. Também lá dentro haveria paisagens para olhar e namorar, mais limitadas, claro, do que aquelas que estava habituado a ver cá fora. Mas teriam o seu encanto. Também as larvas constroem as suas paisagens interiores. Gostava de ir para junto da burra, a Ruça, de pelugem malhada e ares de quem sabe apreciar as companhias. Esta olhava-o pelo prazer de olhar e de ter a certeza de que ele estava ali. E ele correspondia da mesma forma: fitava-lhe os movimentos e as expressões por fitar, pelo prazer da companhia. O mesmo fazia com o pequeno rebanho de ovelhas, mais exactamente sete, e dois cordeirinhos. Só que estas eram mais ariscas do que a Ruça. Parecia-lhe que apreciavam menos a sua companhia. E como não queria ser inconveniente, deixava-as lá. Mesmo assim, não resistia a fazer umas graças aos cordeirinhos, nascidos há dois meses da Negra e da Bonita. Difícil se tornava tal intenção, porque eles fugiam-lhe em pequenos pulos e depois olhavam para trás como que a provocá-lo para a brincadeira. Pelo menos parecia-lhe… Mas aquilo de que ele mais gostava era mesmo afastar-se das coisas, dos animais e das pessoas, e ver tudo ao longe: observar os movimentos, as cores, a estatura, a luz, o desenho das sombras. E imaginava um lugar onde nada houvesse, onde coisa nenhuma o rodeasse, para que pudesse ver apenas o que lhe era distante. Imaginava esse lugar no ar, envolvido só pela aragem. E mais: imaginava-se transparente para