A MULHER NA LÍNGUA DO POVO
UMA ANÁLISE LINGUÍSTICO-SEMÂNTICA
Cristina Borges 1
A fêmea é fêmea em virtude de certa
carência de qualidades. Devemos
considerar o caráter das mulheres como
sofrendo de certa deficiência natural.
(Aristóteles, in Beauvoir, Simone, 1970)
Resumo:
O artigo pretende, utilizando dados colhidos já há algum tempo na cidade de Lins-SP (1995),
mostrar as diferenças nos comportamentos social, linguístico e semântico existentes entre o
homem e a mulher na sociedade brasileira, alertando o leitor que hoje, no ano de 2015, muitas
coisas já se transformaram, mas, muitas delas, infelizmente, ainda permanecem com muita
intensidade. Vale a pena informar que nada há, na autora, de comportamento feminista. Há, sim,
constatações consequentes de pesquisa de campo.
Palavras-chave: Mulher. Sentido. Língua. Significado. Preconceito.
INTRODUÇÃO
A que se refere o título? Trata-se de expressão popular, de um estereótipo ou de
um título ambíguo que permite ao leitor ter suas idéias expandidas? É o que
pretendemos explorar.
Em primeiro lugar, temos a discriminação sexual (jamais diríamos o homem na
língua do povo); por outro lado, língua pode ser considerada, no caso, idioma nacional.
Linguisticamente é um código que permite que o homem se coloque na sociedade e na
história; é, ainda, um órgão físico. A língua como órgão tem uma dupla função: a de
falar e a de saborear. Colocar a mulher na língua do povo tem também um sentido
qualitativo – saboreá-la – por isso, a mulher é comível, quando é bonita, é uma uva;
quando indigesta, é um abacaxi. Por fim temos o povo. Quem é? Somos todos nós,
homens e mulheres.
Vamos, entretanto, interromper a divagação e iniciar o trabalho a que nos
propomos. Este artigo pretende fazer um passeio pela linguística, levantando os termos
e expressões utilizados pelo povo em relação ao sexo feminino, ao pensamento da
1
Maria Cristina Ramos Borges é mestre e doutora em Análise do Discurso, pela UNICAMP e
UNESP/SP, respectivamente. É professora titular aposentada da UFRO – Universidade Federal de
Rondônia e Coordenadora de Pesquisa da FACIMED – Faculdade de Ciências Biomédicas de
Cacoal/RO.
cultura brasileira sobre o dito sexo frágil, a seus condicionamentos da infância à velhice,
à posição social, às funções orgânicas, ao campo profissional, ao estereótipo da mulherobjeto, à moral imposta, aos valores sexual e social; e pela semântica, procurando os
referentes dos termos encontrados, com a fidelidade necessária a esse tipo de estudo.
Informamos, antes de tudo, que nada do que se disser aqui é criação da autora; é, sim,
fruto de pesquisa feita há muitos anos na cidade de Lins – Estado de São Paulo.
Tentaremos, então, privilegiar a mais significativa marca da cultura de um povo, a sua
língua materna, tendo como pano de fundo a mulher.
Só um pouquinho de teoria e a análise
Sabemos que a língua não é falada por nós, mas é ela quem nos fala. É dito que,
ao nascermos, recebemos um código já pronto, dentro da cultura na qual estamos
inseridos. Cabe-nos, apenas, selecionar e combinar os elementos deste código. Neste
ato, ocorre a revelação do nosso subconsciente ou até mesmo do inconsciente.
O que a língua nos mostra é a dependência e a subordinação da mulher ao homem,
a desigualdade de papéis masculinos e femininos. Hall (1959) já dizia que língua e sexo
estão ligados de diversas formas. Quem tem dúvida é só começar a falar como um
membro do sexo oposto por algum tempo e ver o que pode acontecer...
A invisibilidade da mulher ocorre em campos diversificados, embora já se possa
dizer que diminui com o passar dos anos. Nos ambientes sociais – clubes, bares, salões
de jogos, etc. – nas companhias particulares, nas diretorias governamentais, nos altos
escalões do governo e até mesmo no núcleo familiar, são os homens que decidem, com
raras exceções. Elas sãos notadas por sua ausência ou por sua passividade.
Na estrutura gramatical da língua nota-se essa desigualdade, por meio do uso do
masculino como forma de gênero não-marcada. Segundo Dubois (1993, p. 302),
Nas descrições linguísticas, um dos gêneros é tomado como base do
sistema (caso não-marcado), sendo os outros gêneros descritos
relativamente a ele (casos marcados): assim, em português, o feminino
é geralmente descrito por uma variação morfológica do masculino
tomado como base (o feminino professora é descrito pela adjunção do
afixo-a ao masculino professor).
A língua portuguesa admite dois gêneros – o masculino e o feminino. Quando as
palavras admitem, -o é a desinência para o primeiro e -a, para o último. Ocorre que nem
sempre é assim, Quando em uma frase há concorrência de gêneros, isto é, quando as
duas formas estão presentes e faz-se necessária a concordância, verificamos que o
adjetivo aparece em sua forma masculina, salvo naturalmente quando é uniforme (cf.
2
meninos e meninas estudiosos, sapatos e camisas vermelhos. É lógico que tal
posicionamento não inferioriza a mulher, mas prova sua invisibilidade, sua rejeição.
Outro fato visível é a invisibilidade feminina nos pronomes indefinidos. Sabe-se
que tais pronomes de referência à pessoa – ninguém, alguém e outrem – não podem ser
considerados nem femininos nem masculinos, pois não trazem marca de gênero.
Entretanto, a concordância nominal, quando se faz necessária, é feita com o adjetivo em
sua forma masculina. Vejamos: “Ninguém famoso compareceu ao show” ou ainda
“Ficava na janela a ver se alguém conhecido passava”.
Quando, entretanto, ouvimos sentenças onde a concordância de tais indefinidos se
faz com a forma feminina, constatamos que, na realidade, esta não se dá com os
indefinidos ninguém, alguém e outrem, e sim com a pessoa a que se referem os
pronomes: “Nunca vi ninguém tão bonita quanto Maria” ou “Alguém anda saudosa dos
pais”. No primeiro exemplo, a concordância se dá com o nome Maria e no segundo,
com a pessoa que o falante tinha em mente. Em ambos a concordância não se deu com o
pronome indefinido e sim com o seu referente.
Outro exemplo é a concordância com concorrência de gênero. É aspecto
conhecido que, num contexto onde se verifica a concorrência de gêneros, ou seja,
figuram juntas uma ou mais formas masculinas e femininas, pode-se constatar que o
adjetivo posposto que as determina é usado obrigatoriamente no masculino plural.
Assim “Homens e mulheres idosos”. Outro exemplo do predomínio da forma masculina
sobre a feminina encontra-se nas palavras usadas para sintetizar substantivos de gêneros
diferentes. Suponhamos que alguém tenha um irmão e uma irmã. O modo de referir-se a
eles é meus irmãos. O mesmo acontece com o pai e mãe – pais –, com o vizinho e a
vizinha – vizinhos –, rei e rainha – reis –, enfim, um número ilimitado de formas que,
quando expressas em pares, têm o masculino como elemento de referência.
Ainda há a escolha do pronome pessoal masculino de terceira pessoa do plural,
quando há mistura de referentes, isto é, quando temos nomes masculinos e femininos
juntos. Na frase “João e Maria saíram”, se quisermos substituir os nomes próprios por
um único pronome, só temos uma saída – eles (Eles saíram). Isso também se aplica no
caso de uma sala de aula. Se tivermos 39 alunos, sendo 38 do sexo feminino e 01 do
sexo masculino, o professor terá que se referir a eles como meus alunos. É mais um fato
que comprova a invisibilidade feminina.
E assim, vemos constantemente: “O homem conquistou a lua”. “Os brasileiros são
alegres”. Esse é o uso genérico da forma masculina e não causa problemas em relação à
identificação. O contrário, entretanto, limitaria o conjunto a um elemento dele. “A
3
mulher conquistou a lua”, não estaríamos nos referindo ao conjunto de seres humanos, e
sim a um elemento desse conjunto, porque a palavra mulher não é usada para designar
“qualquer indivíduo pertencente à espécie animal que apresenta maior grau de
complexidade na escala evolutiva”. Essa é, entretanto, a significação primeira da
palavra “homem”. A mulher, então, se quiser expressar algo que lhe é básico, o fato de
existir como ser humano, vê-se obrigada a usar a palavra homem.
Só a forma masculina pode englobar os dois sexos. Apesar dessa característica, o
uso genérico do substantivo masculino pode, em certos contextos, tornar-se ambíguo.
Vejamos: “Os mongóis foram grandes conquistadores. Nas localidades a que
chegaram, tomaram dos camponeses suas terras e prostituíram suas mulheres. Nesse
exemplo, mongóis refere-se, obviamente, ao povo mongol, sem distinção de sexo e
idade. Mas, certamente, nenhuma mulher ou criança prostituíram suas mulheres. No
final da frase, o assunto deixou de ser genérico para ser especificamente masculino.
Esse – a confusão entre genérico e particular – é um típico fenômeno linguístico que
excluiu da humanidade, na maioria das vezes, as mulheres, principalmente quando as
frases têm referências históricas.
Podemos ainda, levantar o problema de que, na nossa língua, a palavra homem,
usada como equivalente a humanidade não é assim tão genérica como parece. Pode ser
entendida como exclusivamente masculina. No exemplo O homem foi à lua, não dá para
deixar de pensar no substantivo homem no sentido particular, mesmo porque não é
possível, pelo menos não é comum e corriqueiro uma mulher ir à lua. A mulher, sabese, não se lança em qualquer tipo de conquista ou descoberta. Assim, nesse caso, homem
não se refere à humanidade, mas a homem mesmo, do sexo masculino. Até mesmo na
sentença O homem descobriu o rádio isso acontece. O referente imediato desse
vocábulo é o homem ou a humanidade, jamais a mulher. Esta, só é lembrada, no caso,
quando se lembra que a descoberta do elemento químico rádio foi feita também por
Madame Curie e não só por seu marido.
A desvantagem do dito segundo sexo é grande. Os meninos ouvem, desde cedo,
termos masculinos referindo-se a eles, mas as meninas precisam aprender que, em
certos contextos, são homens.
Outro aspecto desta análise, a mulher como objeto, mostra a desumanização da
mulher, pela valorização excessiva da aparência física em detrimento da capacidade
intelectual. Assim, basta ser bonita para ter um lugar assegurado dentro da sociedade,
que a estereotipa como sendo aquele ser que não precisa ser culto, nem inteligente e, até
mesmo, em alguns casos, esses predicados assustam o homem. Não dá para esquecer a
4
frase dita por José Messias a Marisa Urban, no dia 01 de abril de 1979, no Programa
Flávio Cavalcanti2: Você é bonita demais para ter tanto talento. Já faz muito tempo,
mas marcou muito. Até hoje ainda se percebe que a nossa cultura dá importância à
aparência física da mulher em oposição a sua capacidade intelectual.
Em relação ao homem, é lógico que seu aspecto físico é relevante, mas não tanto
quanto suas capacidades intelectuais e sexuais. É isso que a sociedade valoriza. Ele, se
não for muito bonito, mas inteligente, não terá nenhum problema, mas pobre da mulher
que se encontra na mesma situação: Mulher feia não dá palpite, Mulher feia é como
sucata, não tem lugar no mercado, Que as feias me perdoem, mas beleza é fundamental
(V. Moraes).
Algumas expressões são, para a mulher, mais pejorativas e ofensivas do que
outras. Você pode chamá-las de burras, mas nunca de gordas, barrigudas. Isso é ofensa
mortal. Gordura é uma característica negativa para as mulheres, pois implica em estar
fora da competição sentimental. Se usarmos expressões como minha gordinha para a
nossa mãe ou para uma tia mais velha, tudo bem, mas se chamarmos uma mulher de
gorda, estaríamos também chamando-a de baleia, baleote, balofa, balona, bolota,
barril, bujão, Casa da Banha, elefante, Mar e Terra, redonda, etc. É a velha área
semântica do insulto.
Já em relação à velhice, mulher de cabelos brancos é velha e homem de cabelos
brancos é charmoso. Do mesmo modo, podemos utilizar minha coroa, minha velha para
a mãe ou tia mais velha, mas nunca para mulheres jovens. Essas palavras terão uma
conotação afetiva. A mulher vai envelhecendo e se tornando bagulho, sucata, traste,
coroa, etc. Por essa razão não quer envelhecer e como para esse problema não há
solução, apela para tintura nos cabelos, arranja tratamentos faciais e corporais e esconde
como pode a sua idade. Tipos de frases como esta: Você está se descuidando, assim ele
arranja outra são muito comuns e constituem um verdadeiro horror para as mulheres de
meia idade. Assim, enquanto a mulher se preocupa em descobrir o elixir da longa vida e
juventude, o homem envelhece com dignidade. A ele é permitido cobrir-se de rugas,
tornar-se careca, ter cabelos brancos (cf. cabelo branco em homem é charme, é dos
carecas que elas gostam mais), porque o seu lugar na sociedade não está subordinado a
sua aparência física.
Além de ter que ser bonita para ocupar um lugar na sociedade, a mulher é definida
também em função de sua sexualidade. O homem, na maioria das vezes, não a vê como
um ser humano, e sim como um objeto sexual, com características físicas que devem lhe
2
Devo lembrar que esta autora já tem 65 anos.
5
agradar. Isso ocorre porque a nossa sociedade é absolutamente machista, foi criada
pelos homens e, até pouco tempo atrás, era dirigida exclusivamente por eles. As
mulheres são vistas como a outra metade, a outra costela, de quem o homem precisa
para satisfazer a sua sexualidade ou por em prática o preceito divino “Crescei e
multiplicai-vos”.
A nossa língua mostra claramente que, para ser mulher, é necessário ser membro
de uma classe sexual em oposição à classe do ser humano. Vejamos: João é um
profissional e Maria é uma profissional. Parece tudo igual, não? Mas, se um falante do
português ouve essas duas frases, vai concluir imediatamente que João é médico,
engenheiro, mecânico, etc. Todavia, o mesmo não acontecerá com Maria, porque a
palavra profissional, quando fora do contexto, usada em relação à mulher pode ter dois
significados: ou a mulher desempenha realmente uma tarefa por ofício, ou então ela é
prostituta, pratica a mais velha das profissões.
A palavra homem aparece nas expressões:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
Homem da rua – homem do povo
Homem de bem – indivíduo honesto
Homem de ação – indivíduo enérgico
Homem de Deus – santo piedoso
Homem das letras – intelectual, literato
Homem do povo – considerado representativo dos interesses e
opiniões do homem comum
Homem público – indivíduo que se consagra à vida pública.
A palavra mulher aparece nas seguintes expressões:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Mulher à toa – meretriz
Mulher da rua – meretriz
Mulher da vida – meretriz
Mulher pública 3– meretriz
Mulher perdida – meretriz
Mulher de César – mulher de reputação inatacável 4
Há ainda uma outra forma de se privar a mulher de seu status de ser humano: o
julgamento prévio de sua conduta sexual e de regras comportamentais que a diferenciam
do homem, tanto naquele campo quanto no social. Para ele, tudo é permitido e visto
como normal; para ela tudo é proibido e dado como vergonhoso e sujo, surgindo então
uma série de palavras e expressões que mostram claramente esse duplo valor imposto
pela sociedade. Algumas delas, que ouvimos constantemente, são: O homem é um
animal polígamo por natureza (a palavra homem, aqui, não está sendo usada como
3
Atualmente, a expressão mulher pública também tem a mesma significação de homem público, em
algumas comunidades.
4
É uma exceção à regra, pois não traz conotação sexual.
6
genérico). Assim, um homem com muitas mulheres é polígamo; uma mulher com
muitos homens comete poliandria; um homem com uma só mulher é monotonia.
Ao lado da permissividade sexual para o homem, encontramos a total proibição
para a mulher que pratica a poliandria. Aquela que ousa ter relações extraconjugais é
piranha, puta, mulher de muitos homens, Maria Batalhão, atalaia jurubeba, etc., ao
passo que ele é simplesmente desonesto, insatisfeito, sem-vergonha, mulherengo.
Um caso interessante e diferente é o que acontece com a palavra inocente. Se for
aplicada ao homem, significa “aquele que não tem culpa”, ou seja, “o que não praticou
um crime” e, por extensão, pode significar ainda “imbecil”, “idiota”. Todavia, se a
mesma palavra for usada em relação à mulher, significa também “aquela que é pura,
casta”, aquela que não teve relações sexuais. Então, inocência equivale à virgindade.
Outros exemplos são honrado/a, honesto/a, ambas em sua forma masculina denotam
sinceridade, honestidade, mas honrada e honesta são usadas em relação à mulher que
não tem relações ilícitas, ou seja, aquela que é fiel ao marido.
Vale a pena ressaltar, também, o caso das metáforas zoomórficas usadas para a
mulher, nas quais encontramos a mesma dicotomia notada nos exemplos acima.
1. GATO - GATA
Gato - animal mamífero carnívoro da família dos felídeos
- indivíduo ligeiro, esperto, bonito.
Gata - fêmea do gato - mulher boa, bonita, gostosa (não está
dicionarizado).
2. MARIPOSA - designação comum aos insetos lepidópteros
noturnos ou crepusculares - meretriz
3. PIRANHA
- designação comum a várias espécies do peixe teleósteo,
caraciformes, da família dos caracídeos.
- mulher que, sem ser necessariamente meretriz, leva a vida
licenciosa.
4. CACHORRO – CADELA
Cachorro - cão novo e pequeno
- indivíduo indigno, canalha, cafajeste
Cadela – a fêmea do cão - mulher de procedimento censurável,
desavergonhada, meretriz.
5. GALO – GALINHA
Galo – gênero de aves galináceas, de cristas carnudas e asas curtas e
largas.
– o macho da galinha doméstica
– ser um galo = ter (o homem) um orgasmo muito rápido/
galinha – a fêmea do galo. Mulher que se entrega com
facilidade, ou, acrescentemos, aquela que aceita qualquer
forma de relação sexual.
6. CAVALO – ÉGUA – POTRANCA - GARANHÃO
Cavalo – quadrúpede doméstico solípede
- macho da égua
- ser cavalo é ser estúpido
Égua – fêmea do cavalo
– mulher sem-vergonha
7
Potranca – jovem égua
– moça jovem, gostosa, cheia de carnes, fogosa
Garanhão – cavalo reprodutor
– homem que come todas.
E são muitos os conceitos de duplo valor na sociedade brasileira. Mas há uma
expressão usada quase que exclusivamente para mulheres. É língua venenosa. A mulher
que recebe tal denominação é aquela que passa seu tempo criticando a vida alheia.
Pode-se chamá-la também de língua viperina ou ainda língua ferina. Não há
equivalentes masculinos, na língua portuguesa (pelo menos eu não conheço), para
palavras ou expressões que denotam uma conduta ilícita da mulher, tais como meretriz,
piranha, mulher da rua, sem-vergonha, mulher de vida fácil, mulher de cama, puta,
prostituta.
O conceito de virgindade é o ponto culminante da ideologia do duplo valor. Esse
conceito raramente é aplicado aos homens, embora isso seja possível. Virgem é um
atributo tipicamente feminino. Se ouvirmos uma frase do tipo Altair é virgem,
pensaremos que se trata de uma mulher, conquanto também pudesse ser homem, pois o
nome Altair é tanto um nome masculino quanto feminino.
Pela assimetria de sentido existente entre as expressões usadas para a mulher nãovirgem e para homem virgem, observa-se que tanto o desvirginamento da mulher
solteira quanto a virgindade do homem são tidos como vergonhosos, ainda que as
sanções sociais se façam sentir muito mais sobre o sexo feminino. Ser virgem para o
homem é vergonhoso e não ser mais virgem para a mulher é igualmente vergonhoso,
embora o conceito de vergonha, nesse contexto seja totalmente diferente. Não se ouve
um pai dizer que expulsou o filho de casa por não ser mais virgem. Porém, pais e irmãos
da mulher que se perdeu tomam atitudes drásticas (tal atitude estão se tornando raras).
Há ainda o problema da esterilidade. Embora o termo estéril admita sujeito
masculino e feminino, usâmo-lo quase exclusivamente como sujeito feminino. É
comum ouvirmos frases do tipo Maria é estéril; porém, essa mesma sentença com o
sujeito masculino é raramente ouvida, porque a esterilidade do homem é tida como um
tabu. Aquele que é estéril esconde como pode essa incapacidade. E, se um casal não
pode ter filhos, supõe-se desde logo que a incapaz é a mulher.
A moral do duplo valor ultrapassa o campo sexual e estende-se também ao campo
social. Basta a mulher comportar-se com mais espontaneidade que a sociedade já a
marginaliza. A ela não é permitido falar alto na rua, encontrar-se em botequins,
frequentar certos locais sozinha, dirigir-se a qualquer homem ou convidá-lo para sair ou
8
dançar, pois logo ouvirá frases do tipo: Se fosse uma mulher direita/honesta não faria
isso.
Na língua portuguesa, o uso da voz passiva denota a submissão da mulher ao
homem, ou seja, a sua passividade. Ela foi comida por ele. A mulher não pode tomar a
iniciativa, pois essa é prerrogativa dele. Mas é um erro pretender que a passividade
constitui um fator biológico. É, na realidade um destino imposto à mulher pelos
educadores e pela sociedade, desde séculos passados. A ela sempre foi ensinado que
para ser aceita é preciso procurar agradar, ser prendada, cheia de predicados, fazer-se
objeto e, portanto, renunciar à sua autonomia. Deve evitar cuidadosamente mostrar que
está tomando a iniciativa, pois essa é atitude para o homem. Afinal, “os homens não
gostam de mulher decidida, nem de mulher que sabe o que quer”. Para eles não há
nenhum problema, porque a sua vocação de ser humano não se choca com a de macho.
E pode quem quiser dizer que isso já é passado, não é, não senhor, ainda hoje se observa
no cotidiano atitudes verossimilhantes.
Vale a pena ressaltar dois verbos encontrados na língua portuguesa: ir e levar.
Vejamos a frase: João leva Maria à praia. O objeto do verbo levar em frases desse tipo
só pode ser uma mulher, uma criança, uma pessoa enferma ou aleijada, dificilmente será
outro homem que possa ser comparado a João. Quando o sujeito e o objeto equivalemse, a coisa muda de figura: João vai com Pedro à praia. Se o sujeito é do sexo feminino
e o objeto do masculino, optamos, não raro, pelo verbo ir. Maria vai (mas não leva) com
João à praia. Na nossa língua, se João e Maria têm as mesmas condições físicas e
etárias, Maria não ocupa a posição de sujeito do verbo levar.5 Só usamos a frase Maria
leva João `a praia, se Maria for responsável por João, se ele for doente ou uma criança.
É interessante também observarmos frases como Vou com minha namorada à
praia, onde o verbo ir reflete uma autonomia de ação por parte do homem, mas
subentende uma dependência feminina, pois para ele esse enunciado equivale a Vou
levar minha namorada à praia.
Ainda em relação à passividade da mulher, veja-se essas expressões: encomendar
bebê, ganhar bebê, ele fez um filho nela. Nelas, a participação feminina é quase nula,
para não dizer totalmente nula. Em encomendar bebê, encomendar encontra-se no
dicionário como “o ato de pedir a outra pessoa para fazer alguma coisa”; ganhar, na
expressão acima, equivale a receber e mostrar a total passividade da mulher; em ele fez
um filho nela, a atividade de fecundação é atribuída totalmente ao homem, que, nesse
caso, assume também o papel de beneficiário, pois é ela quem lhe dá um filho.
5
Nem todos fazem essa distinção.
9
O verbo engravidar, embora admita sujeito do sexo feminino (cf. Ela
engravidou), é o resultado de um ato praticado pelo sexo masculino. É ele quem a
engravida.
Tudo o que foi comentado até agora mostra a imensa dependência da mulher. Isso
vem da infância, quando a mulher começa a aprender a ser dependente. É nesse período
que se ensina ao ser humano qual é o seu papel social e sexual, que sabemos distintos
em relação à mulher e ao homem. Eles são educados para se tornarem seres adultos,
homens (diz-se “com H maiúsculo”); elas, para se tornarem mocinhas, moças, jamais
mulheres. Pais e professores não falam aos meninos: Comportem-se como um senhor,
como um donzelo, como um senhorito, mas sim, comporte-se como um homem. Para as
meninas, o falante do português não usa o enunciado paralelo – comporte-se como uma
mulher; ele substitui por comporte-se como uma moça/mocinha.
O uso do termo moça no lugar de mulher é bastante significativo. O primeiro
representa um ideal de feminilidade, ou seja, a falta de experiência sexual (cf. Ela já
não é mais moça, onde a palavra moça equivale a virgem). O fato de não usarmos
mulher nesse contexto específico, tem uma significação marcante porque forma par
semântico com homem. São palavras paralelas, e o não estabelecimento desse
paralelismo revela que há algo errado em ser mulher. Isso ocorre porque mulher tem
conotações depreciativas, pode equivaler a vagabunda, prostituta. É nesse ponto que
afirmamos que esta palavra nunca poderia fazer parte de uma expressão de advertência
corretiva.
Depois da fase de gracinhas da família, os amores do papai e da mamãe, os
mimos da casa, o menino passa a ser considerado o homem da casa e a menina é vista
como a princesinha do lar/casa, a boneca de papai e mamãe e sempre dependente do
irmão (homem), mesmo que este seja um pouco mais novo. É muito comum ouvirmos
pais, ao saírem de casa, dizerem João, tome conta da casa e de sua irmã, porque você é
o homem da casa (quando papai não está).
Logo cedo, a menina descobre que, se a mãe tem autoridade, a do pai é sempre
mais forte: a palavra do pai é a que decide tudo. É ele quem pune, quem proíbe, etc.
Joãozinho, se não ficar quieto vou contar para seu pai; Não adianta insistir, você sabe
que seu pai não vai deixar; Seu pai não gosta que você chegue tarde. Assim, com raras
exceções, no período da infância, a criança aprende a ver no pai aquele que alimenta a
família, o responsável pela casa, enfim, o chefe.
10
As meninas são induzidas a brincar de comidinha, de casinha, de gente grande
(veste-se com as roupas da mãe, pinta-se, etc.) e os meninos a jogar bola, brincar de
cowboy, de mecânico, etc. Isso acontece também no domínio da língua. As meninas
aprendem mais sobre o vocabulário da culinária, da moda, dos cuidados com as
crianças, com a casa, etc. Já os meninos, o vocabulário referente ao futebol, à balística
e, quando dominam um vocabulário feminino, são profissionais (cf. decorador, mestrecuca – em oposição à cozinheira - psicólogo infantil, etc.).
Todas essas imposições lembram-me a declaração dada por Simone de Beauvoir
para a revista Desfile nº 102, em 1970, no Rio de Janeiro: Ninguém nasce mulher,
torna-se. Tudo que li, vi, aprendi nesses últimos 30 anos me confirmou essa tese.
Fabrica-se a feminilidade como se fabrica também a masculinidade, a virilidade.
Assim sendo, na infância, salvo as exceções, quando os agentes socializadores
terminam o seu papel, o destino que o menino e a menina deverão seguir já se encontra
rigidamente traçado.
Filha de quem? Esposa de quem? Trabalha onde? São questões que mostram que
a identidade da mulher, após a infância, continua ligada ao homem com o qual está
relacionada. O homem tem autonomia – o Sr. Silva, o Sr. Leal. A mulher é inteiramente
dependente dele – o casal Silva, o casal Leal. Nem mesmo ao morrer, a mulher libertase dessa dependência do homem – a viúva de X – e só em situações muito raras nós o
mencionamos como sendo o viúvo da fulana, pois o homem é identificado por seu
próprio nome ou por sua atividade profissional, tanto é que há uma abreviatura oficial
para a viúva – V.ª – que não tem correspondente masculino, porque viúvo não é
considerado título.
Quando se casa, a mulher adota o nome do marido – é a nova marca de
propriedade. E em alguns casos, abdica do seu nome e passa a chamar-se somente o
nome do marido – a Sra. João Albuquerque.
Carlos Drummond de Andrade mostra esse problema em sua crônica “Divorciou?
Tirou o nome”:
Mulher divorciada não precisa mais usar o nome do ex-marido, se
ganhar contra ele a causa na Justiça. E se perdê-la, muito menos, pois
o ex é que lhe exigirá o corte do nome.
Muito bem. Isso de adicionar ao nome de registro civil da mulher o
sobrenome do marido lembrava – desculpem a crueza da comparação
– a marca do fazendeiro impressa na anca da rês de sua propriedade.
Impressa a ferro em brasa... No casamento, a operação dispensa o
ferro incandescente, com as iniciais ou o símbolo do proprietário,
11
reduz-se a simples anotação em cartório, mas dá na mesma: aquela
mulher está marcada; se fugir, será fatalmente reconhecida; se a
roubarem, o ladrão fica desmascarado. (Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 13 dez. 1977).
Vejamos, agora, como se manifesta a língua em relação ao preconceito contra as
solteiras, aquelas que decidiram não ser definidas em função de um homem, aquelas
que, para sobreviverem, lutam como um homem. Há então, uma defasagem entre a vida
real que ela adquiriu e o modelo ideal de vida imposto pela sociedade.
Se a mulher resolve ficar solteira, logo é assediada com perguntas do tipo: “Como
é que você, tão bonitinha, ainda não se casou? Ou ainda está sujeita a ouvir
comentários como: Este tipo de vida é ilusão, o que toda mulher normal deseja é um
lar, marido e filhos; Isso tudo é muito bonito enquanto você é moça, mas daqui a algum
tempo...; Você já pensou no que é ficar para titia? O sujeito da expressão estar na idade
de casar na maioria das vezes vem marcado pelo traço [+ feminino], o que mostra como
a idéia de casamento absorve a vida de uma jovem entre seus 18 e 25 anos 6.
A mulher solteirona é aquela que já é passada, sem nenhuma utilidade e é motivo
de chacota para toda a sociedade; já o homem, o solteirão, é aquele que tem boa vida e é
motivo de inveja, haja vista que tem a vida que quer, que não se amarrou em ninguém, é
um homem livre, que pode ter o comportamento que quiser sem sofrer nenhuma crítica
maldosa. O não paralelismo entre a posição de solteira e da solteirona encontra-se
marcado na estrutura da língua pela expressão ficar para a titia, cujo correspondente
masculino não existe.
A solteirona, por consequência, leva alguns outros ‘predicados’, como por
exemplo, mal humorada (devido à crença de que a mulher que não tem vida sexual
frequente torna-se nervosa). Assim, quando alguém decide que o comportamento da
mulher é desagradável, julga logo que ela está precisando de homem, ou seja, de ter
relações sexuais. Já o uso metafórico de solteirão tem conotações positivas. Vejamos os
exemplos: Maria espera casar-se com um solteirão e João espera casar-se com uma
solteirona. A primeira é absolutamente natural, porém a segunda é de pouca
aceitabilidade dentro da língua, porque solteirona é a sobra, a encalhada, a que já teve a
sua chance e a deixou escapar, é um calendário depois de 31 de dezembro.
Para o falante do português, as palavras solteirão e solteirona têm ainda outras
conotações. Enquanto que a primeira sugere liberdade, tanto sexual, quanto econômica,
a segunda lembra sanções sexuais, puritanismo, neurose, frustrações, etc.
6
Por mais que a decisão de não se casar varie de uma sociedade para outra, os princípios básicos de
inevitabilidade do casamento são um traço comum a todas as culturas.
12
Outra expressão que mostra a situação da mulher solteira é estou solteirinha da
silva. Dizendo isso, a mulher tenta demonstrar que seu estado civil não a incomoda nem
preocupa. Mas... se tal expressão for usada em uma conversa onde há presença
masculina, conscientemente ou não, ela está insinuando ser livre e que se alguém se
candidatar, será bem aceito. A falsa preocupação com o casamento também se evidencia
quando em uma conversa informal indagamos estado civil de uma mulher. Quando ela
já passou da idade de se casar e diz que é solteirona, a resposta normalmente vem
acompanhada de uma expressão defensiva, do tipo: não tenho pressa, os homens não
prestam, os homens só querem mulher para farra, etc. Tais expressões são necessárias
porque o fato de ser solteira implica no fato de ter sido rejeitada. Assim, quanto mais
velha for a mulher, mais enérgica será a defesa. Para o homem, entretanto, essa defesa
não é necessária, porque ser solteiro tem conotações positivas, ele está livre e tudo lhe é
permitido.
Em relação ao casamento, também se verifica assimetria de sentido entre as
palavras usadas com referência aos parceiros. Os falantes do português, com raras
exceções, empregam esposa e não mulher, uma vez que mulher tem conotação
depreciativa, a de fêmea, prostituta. Um exemplo são as frases do tipo Efigênia não é a
esposa, é a mulher de Lucas. A esposa está em casa, cuidando dos filhos, aquela é a
mulher. Por isso, para se referir à esposa, há eufemismos do tipo senhora, dona, patroa,
cara-metade e, além disso, o uso do primeiro nome da mulher.
As palavras senhor e senhora têm por sentido primeiro “aquele que exerce o
domínio sobre alguém ou sobre alguma coisa”, mas enquanto a forma masculina pode
ser usada nesse sentido, a feminina perdeu essa carga semântica. Em muitos contextos, a
palavra senhora equivale a esposa (cf. Esta é a senhora do diretor = esta é a esposa do
diretor), mas senhor não substitui marido. Assim, não usamos em português a frase
Fulano é o senhor (=marido) de Maria.7
É interessante perceber que há um ato social em que a mulher continua
aparentemente sendo mulher. É na cerimônia de casamento, quando o padre, ou juiz, faz
a oficialização do matrimônio: Eu vos declaro marido e mulher, para ela, tudo continua
da mesma forma, pois se antes já era mulher, continua sendo. Para o homem, entretanto,
há uma mudança, ele deixa de ser homem para tornar-se marido. Mas só
superficialmente, uma vez que ele será o ‘cabeça’ da família, como sempre.
O homem sempre leva alguma vantagem no casamento, em relação às
comodidades que lhe são oferecidas por ele – come-se melhor em casa de que no
7
Talvez porque a situação real estaria muito evidente.
13
restaurante, a roupa é mais cheirosinha do que se fosse para a lavadeira. Mesmo assim, é
comum ouvirmos expressões que mostram a aversão dele pelo matrimônio. Aquele que
deseja casar é louco, bobo, imbecil, peça rara, otário, babaca, sendo que alguns
comparam esse evento a uma doença (cf. Tomara que ele não pegue esta doença =
casamento), mas a mulher é inteligente, esperta. Já ouvimos, em certas ocasiões, a
seguinte frase: O homem nasce, cresce, fica bobo e casa.
As palavras que se referem ao homem que quer se casar têm semas negativos,
porém as usadas para mulher os têm positivos. Há ainda ditos populares como: Casa o
filho quando quiseres e a filha, quando puderes, Do vinho e da mulher livre-se o
homem se puder, Antes casada arrependida que freira aborrecida, e frases como:
Homem não pensa em casamento, homem não faz questão de se casar, casamento para
homem é prisão, mulher é que pensa em casamento, para ela é libertação (= da casa
dos pais, é óbvio).
Até um santo casamenteiro há na crença religiosa do nosso povo. É possível que
os homens também façam pedidos a Santo Antônio, mas a nossa cultura popular não os
registra. Os versos populares dirigidos ao santo pedem sempre que ele arranje marido,
nunca esposa. Vejamos:
Meu Santo Antônio querido,
Meu Santo Antônio de carne e osso,
Se tu não me dás marido,
Não tiro você do poço.
Há ainda outro campo onde a assimetria de sentido se manifesta: nas relações
extraconjugais. Além do termo amante, temos amásia, amiga, a outra, a mulher, a
concubina, etc. Todos esses termos colocam a mulher em uma situação de
marginalizada porque, entre nós, ela só pode ser identificada mediante o homem a que
pertence, ou seja, o marido. Quando resolve rebelar-se contra o seu dono e sair à
procura de outro, a sociedade não perdoa e a classifica de puta, vagabunda, piranha,
etc. Já ao homem é permitido procurar outra sem agravos sérios, pois esse ato não
atinge aquela com quem se casou, a sua esposa e a mãe dos seus filhos.
O homem adulto quase não sofre discriminação na sociedade, mas a mulher, para
esta não há nenhuma tolerância. Um exemplo disso são as rodas de amigos – quando o
homem relata suas aventuras extraconjugais, provoca admiração e inveja, mas a mulher,
quando faz a mesma coisa, provoca solidariedade em relação a seu marido e reação de
crítica e de repúdio à sua conduta, como em Mas também coitado do marido, ela é uma
vagabunda, vive saindo com um e com outro. Tal atitude tem uma explicação simples e
corriqueira – a mulher é o algoz da mulher, ela mesma costume julgar o comportamento
14
de suas companheiras, aplicando um código rigoroso e indignando-se diante da mínima
transgressão, principalmente se esta for cometida no campo sexual.
Quando uma mulher séria e virtuosa separa-se do marido, não é vista com maus
olhos pelas outras, como uma “ameaça” aos seus casamentos. Mas, a menos virtuosa,
provoca o afastamento das amigas, uma vez que pode ‘roubar seus maridos’, porque
poderá desejar ter amantes e escolher um deles. Entretanto, não é só o ciúme que
provoca tais reações a esse tipo de procedimento. A sociedade patriarcal deu ao sexo
feminino a honra de ser o suporte moral da humanidade, por isso não lhe é permitido
sair fora do sério, e frases como: Nenhuma mulher deve pensar em outro homem que
não seja seu marido ou Mulher não pode trair revelam qual deve ser sua conduta moral.
Não se ouvem, porém, frases equivalentes, ditas em relação ao homem.
Se a homem trai, ela será chamada de corneada, chifruda, mas sempre será a
coitadinha que foi enganada, porque todo marido é assim mesmo e por isso a mulher
tem de fazer vista grossa a certas coisas e fingir que não sabe. Mas... se ela trai, ele será
visto como um corno, ou seja, aquele que foi corneado e sua situação será humilhante,
primeiro porque sua masculinidade foi ofendida no que lhe é mais caro, sua honra
(como se a mulher não a tivesse); segundo, porque a sua posição torna-se passiva (cf.
Ele foi corneado, Ele foi passado para trás). Assim, ele deverá tomar uma atitude para
lavar a sua honra.
Um outro assunto que mostra claramente a situação feminina diz respeito aos
valores do homem (machismo) em relação à mulher e vice-versa. Sabemos que a
mulher, como todo ser humano, tem qualidades e defeitos. Ocorre que a sociedade
revela apenas as qualidades negativas. A imagem que a sociedade e a própria mulher
fazem de si não é nada agradável. Mulheres são inferiores aos homens e, no nosso
léxico, encontramos algumas expressões do tipo Homem de palha vale mais que mulher
de ouro ou As mais belas cabeças raras vezes são das mulheres comprovam claramente
esse conceito.
O gênero humano divide-se em dois: mulher e homem. Enquanto a primeira, em
vários contextos, é eufemenizada, o segundo não o é. Quando é necessário lançar mão
do eufemismo no lugar da palavra homem, constata-se que tal fato ocorre, não porque
haja algo de errado com essa palavra, e, sim, por causa da moral do duplo valor. O
falante masculino pode dizer sem nenhum problema frases como: Vou sair com uma
mulher ou Vou sair com minha mulher. Entretanto, frases paralelas ditas por uma pessoa
do sexo feminino (cf. Vou sair com um homem ou Vou sair com meu homem) têm
conotação grosseira e pejorativa. Logo, a palavra homem, nesse contexto, deve ser
15
eufemenizada por amigo, namorado, marido etc. e tal fato ocorre não por causa do
homem, mas porque não pega bem para uma mulher dizer uma frase desse tipo.
Se considerarmos o uso metafórico das duas palavras – homem e mulher –,
veremos que o sexo feminino é inferior, uma vez que percebe-se que, quando o núcleo
da metáfora é a palavra homem, a expressão tem conotações positivas; ao contrário,
quando é mulher. Enquanto agir como homem é agir com bravura, ser valente,
corajoso, agir como mulher é ser covarde, maricas, frágil, etc.
Há ainda a expressão seja homem (usada tanto em relação ao sexo masculino
quanto ao feminino) que significa: assuma suas decisões; a expressão paralela seja
mulher não tem o mesmo significado, porque, em princípio, na nossa sociedade, só aos
homens era permitido tomar decisões. Bancar o homem é usado em relação a ambos os
sexos, tem conotações positivas e significa tomar atitudes de homem. Já a expressão
paralela bancar a mulherzinha/mulher dita para os homens é aviltante. Há ainda as
expressões tomar atitude de homem (cf. Que é isso, fulano, vê se toma atitude de
homem!) e ser homem (cf. .... mas seja duro! Você tem de ser homem, diabos!) que
denotam coragem, valentia. Entretanto, as formas paralelas tomar atitude de mulher e
ser mulher não têm o mesmo sentido.
Ainda é interessante lembrar que hombridade (derivado de homem) usada em
relação a uma pessoa que tem nobreza de caráter, dignidade, não encontra seu paralela
em mulheridade, termo que não existe.
Além de tudo que já abordamos, vale a pena lembrarmos das diferenças existentes
entre os dois sexos, expressas pelas palavras macho e fêmea. Macho tem conotações que
permitem o seu uso metafórico como em ele foi macho pra burro ou ele agiu como
macho, expressões que equivalem a ele agiu corajosamente. Esse palavra,
transcendendo o domínio da língua portuguesa, é usada quase que universalmente para
designar aquele que exagera o seu papel, ou seja, aquele que é dominador, valente,
agressivo. Porém, em português atualmente, esse termo vem adquirindo outro sentido.
Aquele que se diz macho é tido como ridículo, babaca, uma vez que a sociedade
moderna não admite mais atitudes que possam ser consideradas radicalmente machistas
(embora ainda encontremos muito da antiga concepção de macho). Ainda encontramos
supermacho, que significa aquele que exagera o seu papel sexual.
A forma feminina de macho é machona. O aumentativo parece querer dizer o
seguinte: para ser chamada de macho, a mulher tem que ser corajosa demais para o
chamado sexo frágil, pois ser macho é coisa para homem. Assim, esse último fato traria
para ela o adjetivo machona, uma vez que macho se aplica aos homens. Machona,
16
talvez se explique pela duplicidade de atitudes – ser mulher - macho. Mas, o adjetivo
demonstra que uma mulher corajosa é inconcebível, pois quando desejamos dizer que
uma pessoa do sexo feminino é valente, somos obrigados a lançar mão de uma palavra
que, embora esteja na forma feminina, tem por morfema lexical macho. Assim, bravura
e valentia são características masculinas e não há, em português, uma palavra feminina
em sua essência que designe a mulher corajosa. Fêmea, por outro lado, é empregada
quase que exclusivamente pelos homens, quando desejam enfatizar o aspecto sexual de
uma mulher.
É evidente que características masculinas são muito mais valorizadas do que as
femininas, e esse conceito está expresso na língua pelo uso metafórico de castrar8, que
significa ‘cortar ou destruir os órgãos reprodutores’ (do homem). Até na ordenação de
frases verifica-se essa supremacia. Dizemos o homem e a mulher, marido e mulher,
senhor e senhora Gonzaga, etc.
Como tudo tem seu oposto na língua portuguesa, conforme se valoriza as
características do homem, desvaloriza-se as da mulher. Nosso léxico revela essa
diferença através de expressões já analisadas como agir como homem e agir como
mulher e no uso de palavras femininas empregadas para insultar os homens, como
mulherzinha, solteirona, etc.
Considerações
Vamos fazer uma retrospectiva na história. Foram os homens que descobriram as
terras, inventaram instrumentos e lançaram-se às conquistas. Eva não foi criada para si,
e, sim, para ser companheira de Adão. Nas lendas antigas, o princípio masculino deveria
triunfar sobre o feminino. Na tragédia grega, Clitemnestra foi morta por seu filho,
Oreste, que foi absolvido pelo Areópago porque era filho de seu pai antes de o ser de
sua mãe (desonrada por ser adúltera). Os filósofos vão ainda mais longe. Atribui-se a
Pitágoras o dito Há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um
princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher. E Aristóteles: A fêmea é fêmea em
virtude de certa falta de qualidade. E até hoje é comum ouvirmos frases como Ele
pensa que pode mandar em mim, só porque sou mulher, que mostram claramente a
superioridade masculina.
Enfim, apesar das repetidas conotações degradantes dos termos relativos à mulher,
não podemos aceitar que haja qualquer qualidade inata nesse sexo que possa ser
8
Os homens referem-se ao seu pênis, que é por eles supervalorizado, usando nomes próprios (cf. Zezão,
careca, etc.) Quem não se lembra do Bráulio?
17
associada ao desencadeamento dessas palavras pejorativas. A mulher é geralmente
conhecida como mais moderada no sexo, menos promíscua e mais monogâmica. Qual
será então a causa desse processo? Alguns autores sugerem o medo, tendo por base a
suposta ameaça feminina ao poder masculino, e Mariel R. Schulz, falando da teoria de
Fry, nos diz que “ele tem a teoria que o poder torna-se um problema porque o macho é
biologicamente inferior à fêmea em diversos aspectos. As meninas amadurecem mais
cedo que os meninos, física, sexual e intelectualmente. Os meninos são mais frágeis no
seu primeiro ano de vida que as meninas. No fim do seu período de vida, eles também
demonstram serem mais fracos.
Mais homens do que mulheres sofrem ataques cardíacos, artritismo, doenças
pulmonares, câncer, diabetes e outras enfermidades degenerativas 9. Já Marthin
Grotfahan10 acha que a fonte do medo reside na incapacidade sexual do homem, pois a
mulher sabe sempre a verdade sobre a capacidade sexual do sexo masculino, mas a sua
é secreta.
Obviamente que, pelo seu dinamismo, a língua pode, a cada minuto criar formas
novas, expressões diferentes, acerca de todos os temas possíveis. Não dá, portanto, para
dizer que conseguimos levantar tudo sobre o assunto. Os dados colhidos na pesquisa,
que se iniciou há muitos anos, mas precisamente em 1995, de forma não-científica e
absolutamente informal, apenas por curiosidade, são, parece-nos, evidentes para
evidenciar a hipótese central. Hoje muita coisa já mudou, pois mudanças sociais
acarretam mudanças linguísticas e não vice-versa. Optamos, entretanto, em fazer o
relato utilizando os mesmos dados que colhemos, porque temos certeza de que, apesar
de não podermos generalizá-los, ainda são extremamente atuais em muitas
comunidades.
Todas as palavras e expressões citadas produzem o mesmo efeito, refletem o
mesmo fenômeno – que é a colocação da mulher no papel de dominada, de segundo
sexo11 (apesar das grandes mulheres das quais conhecemos a história). Com a liberação
sexual na atualidade, podem ter sido alteradas, sofrido modificações, mas é bom que se
lembre, as modificações linguísticas, são bem mais lentas do que as sociais...
9
SHULZ, Muriel R. The semantic derogation of womem. In: THORNE, Barrie & HENLEY, Nancy. Eds.
Language and Sex: difference and dominance. Rowley, Mass, Newbury House, 1975, p. 64-75.
10
Elizabeth Maria Azevedo Bilange. O áspero humor de Lobo Antunes. Tese de Doutorado. Programa de
Pós-Graduação em Literatura Portuguesa. USP. 2007.
11
Simone de Beauvoir, 1970.
18
BIBLIOGRAFIA
AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 5. Ed. Rio de
Janeiro, Ed. Delta S.A., 1970.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão
Europeia do Livro, 1970.
DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de Linguística. São Paulo: Cultrix, 1993.
FARBER, Seynour M. Quem é a mulher. Simpósio copilado por Seymour M. Farber e
Roger H. L. Wilson. Trad. Sylvia de Oliveira Jatobá. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura,
1966.
FRIEDAN, Betty. Mística feminina. Trad. Áurea B. Weisenberg. Petrópolis: Vozes,
1971.
LAVWE, Paul-Henry Chamboatde. Imagem da mulher na sociedade.Trad. Geny C.
Pinto. São Paulo: Senzala, 1967.
MEAD, Margaret. Macho e fêmea, um estudo dos sexos num mundo de transformações.
Trad. Margarida Maria Moura. Petrópolis: Vozes, 1974.
RECTOR, Mônica. A linguagem da juventude: uma perspectiva geossociolinguística.
Petrópolis: Vozes, 1975.
SILVA, Carmem da. A arte de ser mulher. 2 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1967.
STUDART, Heloneida. Mulher, objeto de cama e mesa. Petrópolis: Vozes, 1975.
19
Download

A MULHER NA LÍNGUA DO POVO UMA ANÁLISE