Canções de Redenção Fernando França Pereira [email protected] A palavra redenção é rica de significados. Segundo o Aurélio, redenção significa remir que significa salvar, libertar, livrar, resgatar, reabilitar, fazer esquecer, expiar, pagar, indenizar, compensar, reparar. Podemos perceber que não são sinônimos mas vários significados que pertecem a uma família. Digo uma família porque me parece que todos eles se referem de alguma maneira a uma mudança de oitava. Um deixar para traz o que se era e um vir a ser o mesmo modificado. Tirei o título desse texto de uma linda canção de Bob Marley que se chama Redemption Song, e fala de como os negros foram trazidos da África para as Américas e sobreviveram ao cativeiro e transcederam sua condição miserável criando uma cultura poderosa. A música dos negros de todas as Américas e sua importância em tudo que se fez em música depois dela dá o que pensar. Como povos destruídos, com seus poucos indivíduos sobreviventes massacrados e privados das condições mínimas que permitem que nos identifiquemos como seres humanos, vindos de culturas muito diferentes, reagrupados num outro continente sob o título genérico de negros, foram capazes de mesmo depois de séculos de opressão, durante esse tempo e depois dele até hoje, criar e manter viva essa música. Eu não sei a explicação mas a palavra redenção me diz muito a esse respeito. Sabemos que tudo começou no lamento solitário desse homem escravizado e também nos momentos de alegria e festa que mesmo nessas condições o homem é capaz de criar. E a grande mistura entre esses povos negros oprimidos e os povos ameríndios igualmente oprimidos e as várias culturas européias, gerou uma música cuja história se confunde com o surgimento das novas tecnologias e os meios de comunicação de massa e os primórdios do que hoje se chama de globalização. Sabemos que esse homem escravizado, desterrado, humilhado, literalmente tratado como animal de trabalho, não tinha nada. Mas sua essência de homem prevaleceu e a voz e a palavra estão no seu cerne. Quando a voz humana se une à música surge algo único. Com palavras ou sem elas, em qualquer língua, compreensível ou não para o ouvinte, sua capacidade de criar empatia, de ecoar na alma de quem ouve e de quem canta, é única. Nascemos com ela. Cada pessoa traz consigo esse instrumento único. Ela é o instrumento e o instrumentista ao mesmo tempo. Não existem duas vozes iguais assim como não existem impressões digitais iguais. Ao mesmo tempo, a voz de uma pessoa cantando uma canção pode encarnar o sentimento de muitas e muitas pessoas cantando juntas se tornam uma só voz. Cantar faz parte da natureza humana. Na barriga de nossa mãe ouvimos sua voz como pura melodia. Antes de mais nada somos seres cantantes. As palavras vêm depois. Mas logo nos tornamos bem falantes e desde pequenos Texto elaborado por participante do curso Antropomúsica Disponível em www.ouvirativo.com.br 2 misturamos esses dois universos na forma de canções. Todos os povos nas mais diferentes épocas têm suas canções. Acreditamos que cantar seja tão antigo quanto o próprio homem. O espanto diante da beleza do universo, o horror diante da perda, e tantas outra situações que fazem parte da experiência de existir, podem gerar uma interjeição que, manifesta no ar, puxa de dentro do homem outro som que cria um diálogo com o primeiro que gera um terceiro, que pode fechar um ciclo que se repete infinitamente ou se desdobrar num quarto e assim por diante. Desse universo surge o que cantamos. Tudo isso nas diferentes culturas e momentos históricos tem desdobramentos diferentes. Vivemos num momento em que tudo se mistura, nos comunicamos musicalmente com todos os lugares do mundo e com todas as épocas. Com tudo isso, ouvimos muitas músicas diferentes e muitos cantos que vem de muitas escolas diferentes.Dentro disso há uma outra questão que não diz respeito exatamente ao que cantamos mas sim ao como cantamos. Aí existe uma via de duas mãos porque o “o que cantamos” vai interferir no “como cantamos” e vice-versa. O subtítulo do livro de Valborg Werbeck-Svärdström, A Escola do Desvendar da Voz, é Um caminho para redenção na arte do canto. Nesse livro, que funda uma escola de canto, ela nos conta como a perda da própria voz gerou uma grande pesquisa interior , uma busca pela essência que lhe trouxe uma redenção pessoal, o reencontro com a própria voz num nível muito superior ao anterior à perda. Essa pesquisa trouxe o fonema de onde toda a escola brotou, o ng. Essa busca e essa redenção causaram tamanha transformação, que surgiu a necessidade de compartilhar com os outros, não apenas a arte do canto do ponto de vista da performance mas também como um caminho de libertação. Nesse caminho o “como cantamos” vai se modificando e modificando o “o que cantamos”. Ficamos entusiasmados quando percebemos que por esse caminho brotam lindas melodias e outras já são árvores frondosas que estão lá há muito tempo mas ainda não tínhamos tido oportunidade de encontrar com elas. Conforme vamos nos modificando o que criamos e o que somos capazes de apreciar também vai se modificando. Nos alegramos em perceber que o caminho é longo e cheio de surpresas e de companheiros de viagem, com quem podemos dividir nossas descobertas e aprender coisas novas e misturar nossas vozes em novas e velhas melodias que serão sempre como frutas frescas pois cada vez que se canta é sempre a primeira e a última vez, sempre a voz de cada um e de todos nós. Recebi uma mensagem em pps, da amiga e colega antropomúsica Marcia Hennemann, que me atingiu profundamente. O texto é atribuído a Tolba Phanem. Tudo que consegui descobrir sobre ela é que se trata de uma poetisa africana. Não sei de qual país e nem onde esse texto foi publicado mas acho que vale a pena reproduzir: "Quando uma mulher, de certa tribo da África sabe que está grávida, segue para a selva com outras mulheres e juntas rezam e meditam até que aparece Texto elaborado por participante do curso Antropomúsica Disponível em www.ouvirativo.com.br 3 a canção da criança. Quando nasce a criança, a comunidade se junta e lhe canta a sua canção. Logo, quando a criança começa sua educação o povo se junta e lhe canta sua canção. Quando se torna adulto, o povo se junta novamente e canta. Quando chega o momento do seu casamento a pessoa escuta a sua canção. Finalmente, quando sua alma está para ir-se deste mundo, a família e amigos aproximam-se e, igual como em seu nascimento, cantam a sua canção para acompanhá-lo na viagem. Nesta tribo da África há outra ocasião na qual os homens cantam a canção. Se em algum momento da vida a pessoa comete um crime ou um ato social aberrante, o levam até o centro do povoado e a gente da comunidade forma um círculo ao seu redor. Então lhe cantam a sua canção. A tribo reconhece que a correção para as condutas anti-sociais não é o castigo; é o amor e a lembrança de sua verdadeira identidade. Quando reconhecemos nossa própria canção já não temos desejos nem necessidade de prejudicar ninguém. Teus amigos conhecem a tua canção e a cantam quando a esqueces. Aqueles que te amam não podem ser enganados pelos erros que cometes ou as escuras imagens que mostras aos demais. Eles recordam tua beleza quando te sentes feio; tua totalidade quando estás quebrado; tua inocência quando te sentes culpado, e teu propósito, quando estás confuso." Quando tomei conhecimento deste texto achei realmente emocionante. Primeiro, pelo conteúdo do texto em si e segundo, porque, guardadas as devidas proporções, tem tudo a ver com o trabalho que venho fazendo desde junho de 2009. Trabalho numa casa de festas, principalmente festas infantis, chamada Vilarejo em Juiz de Fora e pra cada aniversariante compomos uma música. Até agora, já foram mais de vinte canções e o momento em que os músicos, junto com os monitores, tocam e cantam a música do aniversariante é sempre muito especial. Os pais ficam surpresos e emocionados e as crianças acham muito divertido. Acho que esse tipo de atividade musical resgata um pouco uma função da música que na nossa sociedade super especializada se perdeu. Claro que isso é uma coisa pequena, mas existir um lugar onde se pode executar este tipo de proposta, junto com brincadeiras de roda, contação de histórias, interpretação de peças teatrais, tudo sem música mecânica, para comemorar aniversários, pode ser um começo. Quem sabe isso possa acender nas pessoas que frequentam a casa uma luzinha que permita ver novas possibilidades para se aproximar da música e trazê-la para dentro de suas casas e de suas vidas. Texto elaborado por participante do curso Antropomúsica Disponível em www.ouvirativo.com.br