corte Agora imagine que esses vizinhos são personagens inspirados nas obras das mais geniais mentes criativas; escritores como T.S. Eliot, Paul Valéry, Italo Calvino, Bertold Brecht, entre outros. Pois na coleção O Bairro, de Gonçalo M. Tavares, somos apresentados a esses moradores, um livro por vez. De maneira espirituosa, Tavares nos leva em uma viagem pelo universo intelectual de escritores memoráveis. Delicie-se com essas homenagens. O SENHOR VALÉRY E A LÓGICA GONÇALO M. TAVARES nasceu em Luanda em 1970 e foi criado em Portugal. Desde a publicação de seu primeiro livro em 2001, Tavares impressiona os leitores pela prolixidade e qualidade de sua escrita. Em 2005, foi agraciado com o Prêmio José Saramago pelo livro Jerusalém. Durante o discurso de premiação, Saramago comentou que Tavares não tinha o direito de escrever tão bem e ter apenas 35 anos. Entre seus livros lançados no Brasil estão O homem ou é tonto ou é mulher (Casa da Palavra) e Viagem à Índia (LeYa). Gonçalo M. Tavares Imagine um bairro de uma cidade qualquer, com novos vizinhos chegando a cada dia e outros se despedindo. Do vencedor dos prêmios José Saramago e Portugal Telecom Do vencedor dos prêmios José Saramago e Portugal Telecom GONÇALO M. TAVARES o senhor VAL É RY GONÇALO M. TAVARES Os escritos do poeta e ensaísta francês Paul Valéry (1871-1945) serviram de inspiração para os 25 minicontos que compõem mais um livro da coleção O Bairro. Valéry é considerado um dos mais importantes poetas franceses do século XX. O senhor Valéry, que mora no bairro imaginário de Gonçalo Tavares, é um homem de baixa estatura que tenta se adaptar ao mundo imponente que o cerca. Sua aparente inocência infantil o faz distorcer a lógica até os limites, na tentativa de explicar as coisas da vida, geralmente das maneiras mais absurdas. Ele tem um animal doméstico nada usual que ninguém jamais viu, uma casa de férias muito estranha e, mesmo sendo homem feito, há quem diga que lembra o Pequeno Príncipe. o senhor VALÉRY e a lógica e a lógica Obra apoiada pela Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas / Ministério da Cultura de Portugal ISBN 978-85-7734-199-3 capa_VALERY V02 com marcador.indd 1 www.casadapalavra.com.br 28/07/11 10:57 O senhor Valéry e a lógica Senhor_Valery_ok_V04.indd 1 21/07/11 11:14 5 Senhor_Valery_ok_V04.indd 5 21/07/11 11:14 Os amigos O senhor Valéry era pequenino, mas dava muitos saltos. Ele explicava: – Sou igual às pessoas altas só que por menos tempo. Mas isto constituía para ele um problema. Mais tarde o senhor Valéry pôs-se a pensar que, se as pessoas altas saltassem, ele nunca as alcançaria na vertical. E tal pensamento desanimou-o um pouco. Mais pelo cansaço, no entanto, do que por esta razão, o senhor Valéry um certo dia abandonou os saltinhos. Definitivamente. Dias depois saiu à rua com um banco. Colocava-se em cima dele e ficava lá em cima, parado, olhando. – Desta maneira sou igual aos altos durante muito tempo. Só que imóvel. Mas não se convenceu. – É como se as pessoas altas estivessem com os pés em cima de um banco e mesmo assim conseguissem mexer- 9 Senhor_Valery_ok_V04.indd 9 21/07/11 11:14 -se – murmurou o senhor Valéry, cheio de inveja, quando regressava já à casa, desiludido, com o banco debaixo do braço. O senhor Valéry fez então vários cálculos e desenhos. Pensou primeiro num banco com rodas, e desenhou-o Pensou depois em congelar um salto. Como se fosse possível suspender a força da gravidade, apenas durante uma hora (ele não pedia mais), nos seus percursos pela cidade. 10 Senhor_Valery_ok_V04.indd 10 21/07/11 11:14 E o senhor Valéry desenhou o seu sonho, tão comum Mas nenhuma destas ideias era confortável ou possível, e por isso o senhor Valéry decidiu ser alto na cabeça. Agora, quando cruzava com as pessoas na rua, concentrava-se mentalmente, e olhava para elas como se as visse de um ponto 20 centímetros mais acima. Concentrando-se, o senhor Valéry conseguia mesmo ver a imagem do topo do cabelo de pessoas que eram bem mais altas que ele. O senhor Valéry nunca mais se lembrou das hipóteses do banco ou dos saltinhos, considerando-as agora, a uma certa distância, ridículas. Porém, concentrado de tal modo nesta 11 Senhor_Valery_ok_V04.indd 11 21/07/11 11:14 visão, como que de cima, tinha dificuldade em se lembrar da cara das pessoas com quem cruzava. No fundo, com a altura, o senhor Valéry perdeu amigos. 12 Senhor_Valery_ok_V04.indd 12 21/07/11 11:14 O animal doméstico O senhor Valéry tinha um animal doméstico, mas nunca ninguém o tinha visto. O senhor Valéry deixava o animal fechado numa caixa e nunca o tirava de lá. Atirava-lhe comida por um buraco da parte de cima da caixa e limpava-lhe as porcarias por um buraco da parte de baixo da caixa. O senhor Valéry explicava: – É melhor evitar os afetos por animais domésticos, eles morrem muito, e depois é uma tristeza para o coração. E o senhor Valéry desenhou uma caixa com dois buracos: um na parte de cima e outro na parte de baixo 13 Senhor_Valery_ok_V04.indd 13 21/07/11 11:14 E dizia: – Quem poderá ganhar afeto por uma caixa? O senhor Valéry, sem qualquer espécie de angústia, continuava, pois, muito contente com o animal doméstico que escolhera. 14 Senhor_Valery_ok_V04.indd 14 21/07/11 11:14 O chapéu O senhor Valéry era distraído. Não confundia a mulher com um chapéu, como sucedia com algumas pessoas, mas confundia o chapéu com o seu cabelo. A ideia que o senhor Valéry tinha é que andava sempre de chapéu, mas não era verdade. Julgando tratar-se do chapéu, o senhor Valéry, ao passar por uma senhora, tinha por costume levantar ligeiramente os cabelos à frente da testa, por cortesia. As senhoras sorriam muito, para dentro, com a distração, mas agradeciam a gentileza. Com o medo do ridículo o senhor Valéry passou a precaver-se e antes de sair de casa enterrava o seu chapéu de coco até o fundo da cabeça para ter a certeza de que o levava. O senhor Valéry até fez o desenho do seu chapéu e da cabeça de costas 15 Senhor_Valery_ok_V04.indd 15 21/07/11 11:14 e também de frente O senhor Valéry enterrava tanto o chapéu sobre a cabeça que agora era com grande dificuldade que o conseguia tirar. Quando uma senhora passava pelo senhor Valéry na rua, ele tentava com as duas mãos levantar um pouco o chapéu, mas não conseguia. As senhoras prosseguiam o seu caminho, e pelo canto do olho viam o senhor Valéry suando, com a cara vermelha de impaciência, e com uma das mãos de cada lado puxando para cima o chapéu como se faz às rolhas das garrafas difíceis. Como não podiam esperar pelo fim da ação do senhor Valéry, que certas vezes durava longos minutos, as senhoras afastavam-se antes de assistir ao desenlace da situação. O senhor Valéry passava, assim, certas vezes, por malcriado, o que era injusto. 16 Senhor_Valery_ok_V04.indd 16 21/07/11 11:14 Os dois lados O senhor Valéry era perfeccionista. Só tocava nas coisas que estavam à sua esquerda com a mão esquerda, e nas coisas que estavam à sua direita com a mão direita. Ele dizia: – O Mundo tem dois lados: o direito e o esquerdo, tal como o corpo; e o erro surge quando alguém toca o lado direito do Mundo com o lado esquerdo do corpo, ou vice-versa. Seguindo escrupulosamente esta teoria, o senhor Valéry explicava: – Eu dividi a minha casa em duas, com uma linha. E desenhava 17 Senhor_Valery_ok_V04.indd 17 21/07/11 11:14 – Defini um lado direito e um lado esquerdo – Assim, para os objetos do lado direito reservo a minha mão direita, e vice-versa. Nesse momento, perante uma dúvida colocada por um amigo, o senhor Valéry explicou: – Aos objetos muito pesados coloco-os exatamente com o seu centro na linha. 18 Senhor_Valery_ok_V04.indd 18 21/07/11 11:14 E desenhou – Assim – explicava o senhor Valéry – posso carregá-los utilizando a mão esquerda e a mão direita, desde que tenha o cuidado de os transportar com o seu centro exatamente sobre a linha divisória. – Para os objetos leves – continuou o senhor Valéry – não necessito de tantas preocupações: mudo-lhes a posição apenas com uma das mãos. A mão certa, claro. – Mas como manter esse rigor em todas as situações? – perguntou-lhe o mesmo amigo: – Quando o senhor Valéry está de costas, por exemplo, como sabe qual a parte direita e a esquerda da casa? 19 Senhor_Valery_ok_V04.indd 19 21/07/11 11:14 O senhor Valéry mostrou-se quase ofendido com a pergunta, pois não gostava de ser posto em questão, e respondeu, bruscamente: – Eu nunca viro as costas às coisas. (Isso era o que o senhor Valéry dizia, mas na verdade, para nunca se enganar, havia pintado todo o lado direito da casa, incluindo os seus objetos, de vermelho, e todo o lado esquerdo de azul. Assim se percebia melhor a verdadeira razão de o senhor Valéry ter pintado a sua mão direita de vermelho e a esquerda de azul. Não tinha sido um ato estético, como ele dizia. Era bem mais do que isso.) 20 Senhor_Valery_ok_V04.indd 20 21/07/11 11:14