AS ALUNAS QUE FOMOS, AS PROFESSORAS QUE NOS TORNAMOS:
CONVERSAS SOBRE AS TRAMAS DE NOSSA FORMAÇÃO
Andréa Serpa
Universidade Federal Fluminense
[email protected]
A opção teórico-epstemológica de pesquisar com o cotidiano, e não sobre ele, nos
obriga a enfrentar muitas encruzilhadas, algumas armadilhas e certos desafios. Negarmos a
“coisificação” que transforma os sujeitos em objetos e a arrogância que transforma o
pesquisador em soberano defensor do estatuto da verdade produzida por uma realidade única
e inexorável, nos exige buscar outros caminhos. Caminhos que não nos oferecem certezas ou
segurança, mas que nos permitem aprender com o inesperado, aprender com a palavra do
outro, com as experiências dos outros. Ao compartilhamos nossas trajetórias, experiências e
reflexões com os outros sujeitos com quem vamos produzindo a pesquisa estes se tornam
também narradores, parceiros na pronúncia do mundo. Neste sentido a pesquisa com o
cotidiano apresenta-se também como uma opção política dos que não analisam ou interpretam
a palavra alheia, mas investigam os muitos sentidos, os muitos significados que ao refletirmos
juntos sobre nossas palavras, podemos encontrar. Na polifonia das palavras, no compartilhar
das narrativas, vamos encontrando os muitos sentidos do mundo, as dobras da realidade, onde
podemos nos reinventar, nos reescrever como sujeitos.
Partilhar as experiências, assim como as narrativas e as reflexões produzidas
coletivamente pressupõem assumir uma escrita sobre a qual, ao registrarmos, podemos ter
certa autoria, mas não o controle. Significa produzir um texto onde as vozes não sejam apenas
um ponto de apoio, as escoras, onde vou erguer o prédio de minha sabedoria, sob as quais vou
erguer minhas argumentações e verdade, mas exatamente o contrário, são vozes que nos
desequilibram, nos convidam para o embate e para o debate. E o desequilibrio, o conflito
entre as muitas vozes, não são o aniquilamento ou rejeição ao outro e ao seu direito de narrarse. Ao contrário. Dividir nossas experiências, compreendendo que nossas trajetórias
produzem diferentes e legítimos saberes, vão nos permitindo olhar para nossas próprias
trajetórias de muitos outros lugares. Vão nos permitindo aprender umas com as outras.
Este texto é tecido como uma das muitas dobras, uma das muitas possibilidades que a
pesquisa com o Cotidiano foi me permitindo em uma escola pública do Municipio do Rio de
Janeiro. Minha proposta inicial para a formação do grupo de pesquisa foi: diante de tantas
preocupações e questões comuns, reunirmo-nos para debatê-las em busca de uma maior
compreensão sobre nossas práticas, sobre nossos fazeres, sobre nossos sucessos e fracassos.
As professoras que compuseram inicialmente o grupo são professoras que de alguma se
oferecem a conversa, que expressam continuamente o desejo de querer refletir coletivamente
sobre as questões de nosso fazer pedagógico, professoras que compartilharam – em 2008 – o
desafio de assumir a “classe” de alfabetização.
Neste encontro, esta negociação entre diferentes lógicas e desejos, percepções e
medos, levaram-me a buscar aprofundar minhas reflexões sobre a conversa como noção
(conceito ou princípio) potencial para desenvolver uma pesquisa com o cotidiano.
A conversa como metodologia de reflexãoaçãoreflexão vem sendo utilizada por
alguns grupos que buscam nesta prática criar um lugar de encontro onde os sujeitos possam
reinventar a si e a suas realidades através da palavra compartilhada.
As rodas de conversa, metodologia bastante utilizada nos processos de
leitura e intervenção comunitária, consistem em um método de participação
coletiva de debates acerca de uma temática, através da criação de espaços
de diálogo, nos quais os sujeitos podem se expressar e, sobretudo, escutar os
outros e a si mesmos. Tem como principal objetivo motivar a construção da
autonomia dos sujeitos por meio da problematização, da socialização de
saberes e da reflexão voltada para a ação. Envolve, portanto, um conjunto
de trocas de experiências, conversas, discussão e divulgação de
conhecimentos
entre
os
envolvidos
nesta
metodologia.
(http://www.agb.org.br/XENPEG/artigos/Poster)
Nossa roda de conversas, começa com a negociação de alguns pontos previamente
negociados – principalmente avaliação – mas nossas idéias fugiam de nós nos levando para
aqueles lugares onde nossos sentimentos nos mantinham ancoradas: a dor de nosso trabalho
não reconhecido, a insegurança diante do olhar (e do julgamento/avaliação) dos outros; nossos
saberes não valorizados; os saberes de nossos alunos que não valorizávamos, ou aqueles que
mesmo quando valorizávamos não sabíamos como expressar; a alegria do sucesso; a
necessidade de nos dizermos, de nos mostrarmos, de nos pensarmos. A necessidade de nos
tornarmos senhoras de nossa palavra, de nos enunciarmos e anunciarmos, de nos tornarmos
sujeitos na pronúncia do mundo, do nosso mundo.
Não porque nossa narrativa fosse melhor ou mais importante do que seriam as
narrativas dos alunos, das mães, dos funcionários e funcionárias da escola. Mas porque ela
nos permitia resignificar nossas práticas docentes, nossas crenças pedagógicas. Rodas de
conversas diferentes, com sujeitos diferentes, abrem diferentes possibilidades de compreensão
sobre a realidade de um mesmo espaço. Acredito assim, que o mesmo potencial pedagógico
que encontramos em nosso círculo de conversas de professoras, encontraremos ampliando
esta roda para todos os sujeitos da comunidade escolar.
Sentadas em semi-círculo, enquanto conversávamos sobre nossas experiências, as
linhas que separam os diferentes espaçostempos onde nossas trajetórias foram se constituindo
e produzindo saberes sobre “a” escola e sobre a “nossa” escola, vão se diluindo, se cruzando e
se complementando. Nas memórias compartilhadas, sobre nossos tempos de escola, sobre as
escolas que frequentamos e sobre as escolas que produzimos, nos aproximamos e nos
afastamos, ora falamos de uma escola que nos é próxima, conhecida, familiar, ora tecemos
nossas críticas, pontuamos como estrangeiras, as suas contradições e incongruências. Ao nos
movermos para diferentes espaçostempos nossas identidades deslizam para outras escolas,
para outro tempo, onde habitávamos este lugar – institucional – não apenas como professoras,
mas também, como alunas.
Ao compartilharmos estas experiências, selecionadas por nossas memórias,
percebemos que não mais poderíamos tecer as generalizações, que tantas vezes fazemos,
sobre as práticas pedagógicas – assim como o julgamento moral de sua perversidade ou
virtude – de forma tão linear ou simplória, pois os sentidos que estas práticas adquiriram para
nós, eram absolutamente diversos. Memórias de práticas similares – presentes em vários
cotidianos escolares – adquiriram sentidos diversos e produziram lembranças e relações
diversas com “a” escola. Nossas memórias nos falavam de “escolas”.
Ao convidar para o diálogo professoras que dividem – de certa forma – o mesmo
espaçotempo onde suas práticas acontecem, que dividem muitas vezes, os mesmos alunos em
diferentes momentos, é partir dessa familiariedade: conhecemos as famílias dos alunos, somos
submetidas as mesmas políticas públicas, compartilhamos as mesmas dificuldades em relação
aos tempos e espaços escolares, os limites da infraestrutura, dos recursos humanos e
materiais. Nos conhecemos e nos respeitamos, e isso permite que os conflitos, as convicções
político-pedagógicas que são desafiadas a todo momento, não se tornem destrutivos, egoístas
ou vaidosos. Nos reconhecermos como parceiras de uma mesma história, reconhecer nossos
limites e nossas possibilidades, nossos sucessos e fracassos, com confiança de que juntas
podemos mais, foi fundamental para a construção do diálogo, pois como nos ensinou Freire:
A auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Homens que não têm
humildade ou a perdem, não podem aproximar-se do povo. Não podem ser
seus companheiros de pronúncia do mundo. Se alguém não é capaz de
sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito
que caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de
encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens
que, em comunhão, buscam saber mais. (Freire: 2005, p.93)
A importância deste movimento, de investigar nossos saberes produzidos pela
familiaridade, pela proximidade com a escola, assim como investigar nossas memórias sobre
nossas experiências com a escola, nos possibilitam tecer numa mesma narrativa as duas
formas de experiência apontadas por Benjamim.
Para Benjamim1 a experiência é a fonte onde os narradores bebem. Experiências que
vão se constituindo tanto no conhecimento adquirido ao longo de anos de permanência em
certo lugar, como naquelas adquiridas no caminhar pelo mundo. Podemos refletir então que,
se nossa narratividade encontra, por um lado, um terreno fértil nas experiências que a
proximidade, que a familiaridade e o conhecimento histórico sobre certo lugar nos permite,
brota também, por outro, nas experiências adquiridas no caminho, no vagar – e vagabundiar –
pelo mundo. Olhar do nativo e do estrangeiro. Olhar antigo, olhar amigo, olhar do novo, olhar
de novo. Olhar os minúsculos fios que tecem a trama, assim como a paisagem tecida que só
com a distancia podemos perceber.
Narrar é a possibilidade de compartilhar essas experiências. Acreditar na possibilidade
de que essas experiências entre nossos olhares nativos e estrangeiros – e penso que, de certa
forma, sempre possuímos ambos – possam ser dividas e multiplicadas.
As experiências que constituem os sujeitos ao serem narradas permitem que estes
sujeitos interajam criando representações de si mesmos e do mundo. O diálogo surge como o
lugar onde é possível tecer o encontro entre as diferentes experiências e narrativas, assim
como, refletir sobre estas, nos diferentes espaçostempos em que se encontram e se desafiam.
O confronto entre as diferentes experiências que nos constituem e a partilha de diferentes
narrativas faz do encontro entre os sujeitos, mais do que uma rica metodologia de pesquisa,
uma prática potencialmente educativa, uma prática onde juntos formam-se e transformam-se
uns aos outros.
Uma experiência deixa marcas. Uma experiência muda nossos rumos, nossos sonhos,
nossas vidas. Uma experiência também surge como uma porta que se abre e nos apresenta
novas possibilidades de caminhos. Nossas experiências são a essência de nossas narrativas.
Podemos contar ou descrever uma vivencia, um fato, um acontecimento. Mas quando
narramos uma experiência, convidamos outros seres humanos a compartilharem conosco de
nossa humanidade. Narrar uma experiência é abrir-se ao encontro. E talvez, seja exatamente
1
Texto O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
este encontro que percamos na troca diária e desesperada de milhares de informações, tantas
vezes inúteis.
As experiências a quais nos referimos, portanto, são aquelas que não são esquecidas,
não são embotadas pelo tempo, ao contrário, são aquelas que quanto mais narramos, quanto
mais revisitamos, mais se expandem em nós, mais nos produzem como sujeitos. São aquelas
que quanto mais compartilhamos, mais significados encontramos, mais cresce em nosso peito
e mais fundo nos marca a alma.
Se nossa razão – este conceito produzido históricamente pela modernidade – é capaz
de adquirir e processar informações, estas por si só, não serão suficientes para produzir uma
transformação dos sujeitos em sua relação com o mundo. E é exatamente neste ponto que a
experiência faz toda a diferença. Na experiência conhecer, viver, sentir, perceber, tornam-se
elementos indissociáveis na produção do saber. Conhecer não basta. É preciso sentir. É
preciso ser afetado pela vida do outro, pela narrativa do outro, pela experiência do outro. É
preciso tornar-se senhor de sua própria palavra, narrá-la e resignificá-la a cada narrativa.
Acredito, portanto, que a produção de saberes acontece, na partilha das experiências,
na dialogicidade do ato de ensinaraprender, e que “tentar” racionalizar o conhecimento,
apagando as marcas de nossa subjetividade, de nossos sonhos e desejos, de nossos medos e
crenças, produz – entre muitos outros, é verdade – um certo tipo de conhecimento pelo qual
todos nós, de uma forma ou outra, passamos: um conhecimento que passa por nós, nos
atravessa, sem em nós inscrever marcas mais profundas, sem em nós encontrar sentidos. Um
conhecimento que muitas vezes nos permite marcar as respostas que os outros estabeleceram
como as “certas”, mas não a nos comprometermos com elas. Conhecer (e diferir, reconhecer,
relacionar, etc.) é fundamental para saber. Mas só conhecer não basta, é preciso produzir
saberes, e este, assim como entendo, acontece na relação dialógica com o outro. Os saberes,
não podem ser simplesmente transferidos – como as informações – precisam necessariamente,
serem produzidos no encontro com os outros.
Neste sentido, na produção de nossas conversas, fui percebendo o quanto as
professoras que comigo partilhavam suas experiências, traziam inscritas nos seus corpos, nas
suas mémorias, nas suas espectativas e nas suas práticas docentes, suas histórias como alunas
de outras escolas. Propuz então, que nos aprofundassemos nestas memórias. As discussões
que tínhamos, as escolas que defendiamos e as que fazíamos deixavam transparecer os ecos
de um passado que precisava ser trazido para o nosso tempo presente e examinado com
calma, pois era um passado que nos revelava, que dizia coisas sobre as alunas que fomos e
sobre as professoras que nos tornamos.
Esta proposta nos fez pensar no lugar que nós, professoras e professores, ocupamos.
Somos um dos poucos ou talvez os únicos profissionais, que na verdade escolhem uma
profissão sobre a qual já possuem muitos saberes, saberes construidos ao longo de anos de
convivência. Passamos quase todo nosso tempo vivido convivendo com professores e
professoras, dentro do espaço escolar. Espaço que tantos desejam deixar o quanto antes para,
enfim, começar a vida. Nós nunca o deixamos. Passamos a vida inteira dentro da escola. E
dentro dela nos movemos de lugar, ganhando novas experiências e perspectivas, sem no
entanto que as antigas experiências e perspectivas tenham nos desabitado. Podemos ter ido
algumas vezes ao hospital, ou ter acompanhado uma obra em casa, mas a menos que
tenhamos tido a experiência de ser aprendizes na infância, a profissão docente é aquela sobre
a qual a maioria de nós – crianças que frequentaram a escola – possuem maior conhecimento.
Temos em nossas memórias alguns lugares comuns sobre a escola: o recreio, as provas, os
questionários para estudar para as provas, a recuperação, os “testes surpresa” porque a turma
fez bagunça demais, os desfiles de sete de setembro, as festas juninas, os campeonatos
esportivos, as cópias, plantar feijão no algodão etc.
Algumas dessas memórias
compartilhadas por sujeitos de uma ou mais gerações, às vezes com raiva, às vezes com
carinho, às vezes com saudade, muitas vezes nos fazem crer que este lugar – a escola – é
sempre o mesmo, não importa a data, a localização, a classe social. No entanto, quando
aprofundamos nossas memórias sobre as escolas por onde passamos, percebemos o quanto
estes lugares podem ser diferentes, e o quanto até mesmo práticas parecidas, podem, por
detalhes muito sutis, fazer diferença na relação que cada sujeito estabelece com a escola.
A professora Aline, narra emocionada sua história com escola, o que esta instituição
respresentou em sua vida, e o quanto os valores relacionados a esta instituição, vão
configurando suas práticas, suas crenças, sua formação como pessoa e como professora.
Eu acredito na escola pública. Porque eu sou fruto da escola pública. Quero
dizer que eu acredito muito nela. Isso aí eu falo aonde eu vou, eu falo para
todo mundo, eu acredito ainda muito nela. (...) E aí sempre fui uma aluna
assim, sempre muito esforçada, fazia todas as tarefas, queria sempre sentar
na frente, sempre me dei bem com todos os colegas, sempre fui assim nem
muito fechada nem muito expansiva, mas eu falava muito.(...) E minha mãe
sempre confiou muito em mim, então isso é uma coisa muito bacana, e eu
espero poder confiar na Natalia 2 igual minha mãe confiou um dia em mim.
Minha mãe nunca precisou verificar se aquilo que eu falava era verdade
sabe?! Então assim, muito legal.(...)Eu me acho muito exigente. Eu sou uma
pessoa muito exigente pelo que eu exigia de mim. Família pobre, minha
2
Natalia é uma sobrinha que a professora cria desde muito pequena.
mãe servente da escola, eu sempre com aquele medo, com aquele receio.
Então eu sempre fui uma pessoa, muito exigente primeiro comigo. E isso eu
não sei se é uma falha ou uma coisa positiva que eu cobro dos meus alunos.
Eu sou muito exigente com a maneira do cara sentar, com a maneira do cara
se portar, com a maneira do cara falar. Eu acho que isso vai ser muito bom
para vida dele. Mas será que isso vai ser muito bom para vida dele? Às
vezes eu também me questiono em relação a isso, mas eu não consigo
mudar isso Andréa.(...)E por isso que eu tomo como bom para vida dele
também, e é por isso que eu falo que eu acredito que eu acredito na escola
pública que eu sou fruto da escola pública e eu me considero um bom fruto
dessa escola. Está entendendo?! Eu acho que se hoje eu encontrar com meus
professores eles vão gostar de olhar pra mim e ver a pessoa que eu me
tornei e que eles ajudaram que eu me tornar-se o que eu sou hoje. E minha
família também. Minha mãe que hoje não está mais entre nós, mas que eu
acredito também tenha muito orgulho disso.(profa.Aline)
A relação que a professora Aline vai construindo com a escola pública começa ainda
na primeira infância. Em sua narrativa Aline fala de si, mas ao mesmo tempo, falam milhares
de Alines, professoras ou não, que com orgulho e carinho lembram da escola que as formou.
Nesta relação, vai aprensentando não apenas o lugar da aluna, ou qualquer aluna, mas da
aluna, filha da servente, que não deseja constranger a mãe. A relação que a Aline aluna
assume com a escola é uma relação de medo, de receio de falhar de alguma forma. Então vai
se constituindo uma pessoa cautelosa e exigente. A relação que Aline professora assume com
a escola, é uma relação de gratidão, de compromisso de construir para os alunos uma memória
também de orgulho e carinho. Aline para, questiona-se sobre o currículo que defende, sobre o
que é importante ensinar ou não? Mas mantém firme a crença de que é sua responsabilidade
torná-los “um bom fruto”. A professora preocupa-se com a qualidade dessa escola, mas ao
mesmo tempo coloca em dúvida se a escola que foi de qualidade para ela, em outro tempo,
pode ser a mesma escola de qualidade para o alunado hoje.
Aline não se preocupa se o projeto de escola que às vezes defende é colonialista ou
hegemônico. Se o projeto que defende pressupõe uma seleção onde apenas algumas Alines
conseguem vencer e acabam por se tornar a excessão que justifica a regra. Contudo isso não
impede que assuma em seu fazer, em sua busca constante por qualidade para essa escola, um
compromisso de classe. Aline deseja que seus alunos cruzem a fronteira que ela mesma
cruzou, e mesmo insegura sobre quais pontes deve construir, compreende que é seu trabalho –
de certa forma sua dívida – na escola pública. Não olha para eles como coitados, mas como
possibilidades. Ambivalências, contradições, dúvidas, este é o material humano, tantas vezes
ignorado que nos formam, que nos configuram e que portanto, atravessam nossa práticas
pedagógicas.
Nossas memórias, assim como as de Aline vão sendo escritas por experiências que não
seguem um padrão harmonico e constante. Por isso inscrevem em nós discursos, práticas
sobre os quais nem sempre possuimos uma clara consciência. Lembrar e compartilhar, faz
com que essas memórias sejam resignificadas, faz com que tenhamos mais consciencia dos
sujeitos que somos, das escolhas que fazemos, das professoras que nos tornamos.
A professora Rosangela, narra uma outra experiência, também na escola pública:
Eu também estudei em uma escola Municipal, mas eu não fui bem
alfabetizada. Eu tive assim, até o Normal, até o período do Normal eu tinha
assim, erros ortográficos, que até hoje de vez em quando eu fico, eu
pergunto a Aline não tem erro aqui não? Porque eu tenho realmente essa
insegurança, porque eu fui muito mal alfabetizada e isso me assusta muito.
Quando eu fiz Normal eu tinha uma professora de linguística, acho que era
de linguística e ela até começou a fazer um trabalho comigo e ela dizia
assim pra mim: “Caramba, você lê, você presta atenção, faz todos os
exercícios” e ainda assim eu não fixo, eu não guardava aquilo. Se você me
perguntar de novo, se sair naturalmente eu escrevo numa boa, se eu parar
para pensar eu tenho dúvida, isso não é normal. Então eu acho que foi parte
da minha alfabetização, que teve alguma falha aí. Eu não sei, não consigo
diagnosticar qual foi, mas eu acho que teve alguma falha aí. Eu fui uma
menina assim tímida, extremamente tímida, sempre muito na minha, ficava
quietinha lá no meu canto e tinha essa insegurança muito grande desde
criança. Eu me via assim, muito burra! O tempo inteiro muito burra!
(profa.Rosangela)
A escola que Aline defende, Rosangela denuncia: não me alfabetizou direito! Apesar
da experiência negativa, essa menina tímida, volta para esse lugar que tanto mal fez a sua
autoestima. Volta e olha de seu cantinho com muito cuidado para cada aluno. Observa o que
se passa entre as pessoas. Talvez por não ocupar um lugar luminoso, não ser o centro das
atenções, desenvolveu um olhar atento, interessado, comprometido e meio cumplice com
essas tantas crianças esquecidas nos cantinhos das salas. A insegurança, que não a impediu de
caminhar, cursar a faculdade ou passar no concurso, persiste latente. A experiêcia do fracasso
escolar, ou essa memória, inscreve-se em nós de forma que, mesmo muitos sucessos depois,
as marcas permanecem, as vezes sutis na superficie, mas profundamente inscritas em nós.
A história dessas mulheres, únicas, singulares, mas ao mesmo tempo tão parecidas
com tantas outras, vão resignificando para mim, a forma como cada uma foi se constituindo
professora. Aline preocupada com resultados satisfatórios, com índices, provas e boletins.
Preocupada como seus alunos andam, comem, falam, vestem-se e penteiam-se. Preocupada
em conquistar para estes sujeitos um outro lugar econômico e social. Rosangela preocupada
em obter um sucesso na alfebetização dos alunos para que sua história de “fracasso” escolar,
não se reproduza. Rosangela não acredita que seja justo comparar os alunos para avaliá-los.
Aline não acredita ser possível avaliá-los sem compará-los. Ambas debatem suas crenças.
Juntas vamos percebendo o quanto nossas convicções pedagógicas foram construidas, muitas
vezes, longe das escolas Normais. Foram formadas nas nossas diferentes experiências como
alunas. Como a que Aline narra e nos oferece muitas pistas sobre algumas escolhas
pedagógicas que faz:
Eu queria falar da minha professora de História, professora Leni, que
morava lá em Niterói, pegava o 268, a gente ficava tudo na esquina
esperando dona Leni na sétima e na oitava série. E uma vez ela
desconsiderou uma questão minha de História porque eu respondi com as
minhas palavras, e eu não podia ter respondido, porque ela me disse que ela
me deu o questionário e era para ter respondido igualzinho estava no
questionário. (...) Mas graças a Deus eu consigo me desvencilhar disso e
não exijo do meu aluno isso. Isso é uma das coisas que eu consegui bem
trabalhar dentro de mim e não sou desse lado que o aluno tem que
reproduzir do jeito que eu quero, a resposta sempre fechada, porque a gente
sabe que tem outras possibilidades, mas a parte daquela rigidez, daquela
postura, infelizmente eu não consegui me desvencilhar. Fiquei passada com
aquilo, porque eu estudei tanto cara, e ela me deu nove? Ai ela me
justificou, não estava igual ao questionário, era para eu ter respondido igual:
“Aline eu não dei o questionário?”. Eram vinte questões, aí ela pegou dez
questões e deu na prova: “Eu não dei o questionário? – Deu dona Leni –
Mas você não respondeu igual! – Pode deixar dona Leni da próxima vez eu
vou fazer o dever de casa direitinho, vai ser igualzinho com todos os pontos
e vírgulas!”
E de fato Aline preocupa-se com cada ponto e vírgula do que lhe mandam fazer.
Examina os descritores, fica atenta as determinações e deseja apresentar tudo corretamente
como se buscasse acertar o questionário de dona Leni. Conscidência ou não, formou-se em
História como a professora que a marcou. Consciente ou não, carrega essa imagem onde não
adianta desafiar o poder instituido, para superar as barreiras que são postas – e sabe que para
crianças pobres são muitas – é preciso responder com as palavras certas, é preciso atender as
espectativas que aqueles que tem o poder de julgar. Isso marca sua história e atravessa suas
práticas, pois é fundada em suas experiências. No entanto isso é apenas uma das muitas partes
da professora contestadora, crítica, que defende seus alunos contra tudo que acha injusto na
escola. A criança que foi ainda habita o adulto que se tornou, no entanto essas marcas
revelam-se de diferentes maneiras em suas práticas.
A professora Cristiane, sempre alegre, falante e exuberante, nos faz rir quando fala de
sua timidez na escola, e reflete o quanto isso a marca como profissional:
O que pegou pra mim é o seguinte: o olhar diferente para aquele que não
aprende, a preocupação com aquele que se sente diminuído. No meu olhar
eu vejo isso. Está voltado para aquele que se acha incapaz. “Por que você se
acha incapaz? Não você não é incapaz!”. Eu fico irritada com isso. Então
uma das coisas que eu faço de imediato com qualquer turma é motivação:
“Eu acredito em você! Você vai saber! Você vai aprender sim!”. Justamente
pela minha experiência.
Para além da formação acadêmica de recebemos, além das capacitações que
participamos, além dos textos que lemos, fomos refletindo, como “justamente pelas nossas
experiências” fazemos certas opções pedagógicas. Então vamos buscando compreender nosso
fazer neste complexo que é tecido a partir de nossas experiências como alunas e nossas
memórias sobre a escola, nas teorias que aprendemos, nas experiências como professoras.
Lugares que se desafiam, que se interrogam, que se resignificam.
No movimento da pesquisa, fomos nos dando conta, do quanto investigar nossas
experiências passadas e presentes, pensando nelas a partir de outros lugares, percebendo-as a
partir das leituras dos outros, nos permitia refletir sobre nossas práticas, crenças e
possibilidades. Em outras palavras, o quanto compartilhar nossas memórias, o quanto a
produção de nossas narrativas, nos permitia um espaço de formação rico e significativo.
Ao vaculharmos nossas memórias sobre a escola, encontramo-nos com várias escolas.
Histórias de sucesso, histórias de fracasso, lugar de alegrias, de mágoas, de aprendizado.
Nossas memórias são sempre uma seleção afetiva que fazemos em um acontecimento. Uma
versão que produzimos, uma interpretação de nossos sentidos ao que foi vivido. E como nos
aponta Bhabha “Relembrar nunca é um ato tranquilo de introspecção ou retrospecção. É um
doloroso re-lembrar, uma reagregação do passado desmembrado para compreender o
trauma do presente.” (Bhabha:1998, p.101. Por isso (re)lembrar, lembrar outra vez, nunca é o
mesmo lembrar. O lembrar produz um movimento que nos torna outro, e ao nos tornarmos
outros, encontramos outros sentidos em nossas lembranças, produzindo assim um movimento
dialético. Quando compartilhadas estas memórias ganham ainda a possibilidade de
interpretações e resignificações a partir dos outros sujeitos o que nos possibilita um
aprendizado infinito sobre nossas lembranças.
Conhecer nossa história, é nos conhecermos, a história é sempre reveladora.
Compartilhar nossa história é reescrevê-la. Aprendizados que nos dotam de mais consciência
de como nos tornamos as professoras que somos, como nossa formação é constituida não
apenas por nossa educação formal ou acadêmica, mas pelas experiências que trazemos
inscritas em nós.
Referências Bibliográficas
BHABHA, Homi K. O local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG,2005.
CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano. Rio de Janeiro: Ed.Vozes, 2004.
CHARLOT, Bernard. Relação com o Saber, Formação dos Professores e Globalização:
Questões para a educação hoje. Porto Alegre: ArteMed, 2005
CHARLOT, Bernard. Da Relação com o Saber. Elementos para uma teoria. Porto
Alegre:ArtMed,2000.
COSTA, Maria Vorraber. (org.) Caminhos Investigativos II: Outros modos de pensar e fazer
pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005
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