Assunto Especial - Doutrina
Responsabilidade Civil do Estado - Atos Legislativos
A Responsabilidade do Estado por Atividade Legislativa
GINA COPOLA
Advogada Militante em Direito Administrativo, Pós-Graduada em Direito
Administrativo pela UNIFMU. Autora dos Livros Elementos de Direito Ambiental (Rio
de Janeiro, 2003), Desestatização e Terceirização (São Paulo, 2006), A Lei dos
Crimes Ambientais Comentada Artigo por Artigo (Minas Gerais, 2008, e 2ª ed. em
2012) e A Improbidade Administrativa no Direito Brasileiro (Minas Gerais, 2011).
Autora de diversos artigos sobre temas de Direito Administrativo e Ambiental, todos
publicados em periódicos especializados.
SUMÁRIO: Breve introdução; 1 O artigo 37, § 6º, da Constituição Federal; 2 A
função legislativa; 3 A teoria que repele a responsabilidade do Estado por
atividade legislativa; 4 A teoria que aceita a responsabilidade do Estado por
atividade legislativa; 5 A tímida jurisprudência sobre o tema; Breve
conclusão ao tema.
BREVE INTRODUÇÃO
Trataremos aqui de mais um tema controvertido e que tem se
destacado nos últimos tempos, que é o relativo à responsabilidade do
Estado por atividade legislativa, sendo que existe uma corrente que
defende a irresponsabilidade do Estado por atividade legislativa com
alicerce no argumento de que a lei é geral, impessoal e abstrata, e, por
esse motivo, não pode gerar responsabilidade estatal.
Outra corrente, porém, e à qual nos filiamos desde já, defende a
responsabilidade do Estado por atividade legislativa, desde que a
reparação seja decorrente de lei nova, e em situação anormal,
específica e grave. Tal corrente elabora uma distinção entre a lei
constitucional e a lei inconstitucional, conforme veremos abaixo.
Passemos à análise do tema, com arrimo na doutrina e na
jurisprudência existente.
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RSDA Nº 81 - Setembro /2012 - ASSUNTO ESPECIAL - DOUTRINA
1 O ARTIGO 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, § 6º, previu a
responsabilidade objetiva do Estado, ao rezar:
Art. 37. [...]
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito
privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos
que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros,
assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de
dolo ou culpa.
E o art. 43 do novo Código Civil, instituído pela Lei Federal nº
10.406, de 10 de janeiro de 2002, repete o dispositivo constitucional até sem motivo, porque uma lei não precisa repetir o que manda a
Constituição Federal.
As pessoas jurídicas de direito público, assim como as pessoas
jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista,
entidades de cooperação governamental, permissionárias e
concessionárias de serviços públicos - têm responsabilidade objetiva
por danos causados a terceiros, ou seja, respondem por esses danos
independentemente de terem agido com culpa ou dolo. Isso é o que
significa a expressão responsabilidade objetiva, vale dizer,
demonstradas apenas a autoria e a materialidade, então a
responsabilidade da pessoa jurídica surge incontroversa e indiscutível
desde logo.
Denota-se, portanto, que o art. 37, § 6º, da Magna Carta
confere vasta amplitude à responsabilidade do Estado, ao abarcar,
também, em seu raio de incidência, as pessoas jurídicas de direito
privado prestadoras de serviço público. Estão excluídas, portanto, do
raio de atuação do dispositivo apenas as pessoas jurídicas de direito
privado que executem ou explorem atividade econômica, que não
configure nenhuma prestação de serviço público.
O vocábulo "agentes" foi acertadamente empregado pelo
indigitado dispositivo constitucional, para denotar o sentido genérico e
lato de "atuador" público, para, com isso, abranger todos os que
realizam alguma espécie ou forma de serviço público.
Conforme já disséramos anteriormente 1, resta necessário, para
a efetivação da responsabilidade objetiva do Estado, que se verifique o
nexo de causalidade entre o dano ocorrido e a atuação do Estado, ou
o serviço público exercido em sentido lato. De tal sorte, em regra, não
existe qualquer necessidade de prova de culpa do Estado, ou dos
agentes públicos, nem tampouco de falta do serviço público.
Nesse sentido já decidiu o eg. Supremo Tribunal Federal,
Recurso Extraordinário nº 109.615-2/RJ, 1ª Turma, Relator Ministro
Celso de Mello, julgado em 28.05.2002 e publicado in DJ, Seção I, de
02.08.1996, p. 25785.
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Quanto ao quantum da indenização que deve ser paga pelo
Estado à vítima, ensina Alexandre de Moraes 2 que deve abranger
o que a vítima efetivamente perdeu, o que despendeu, o que
deixou de ganhar em consequência direta e imediata do ato lesivo do
Poder Público, ou seja, deverá ser indenizada por danos emergentes
e nos lucros cessantes, bem como honorários advocatícios, correção
monetária e juros de mora, se houver atraso no pagamento. Além
disso, nos termos do art. 5º, V, da Constituição Federal, será possível
a indenização por danos morais.
E, por fim, consta do art. 37, § 6º, da Constituição Federal que o
Estado tem o direito de regresso contra o responsável pelo dano,
porém, nesse caso, apenas se demonstrar culpa ou dolo na ação
daquele agente. E por regresso significa ressarcimento, indenização,
retorno, seja por meio administrativo, em acordo após processo de
apuração do quantum debeatur, seja por meio de ação judicial, se
impossível aquele acordo no âmbito da Administração.
2 A FUNÇÃO LEGISLATIVA
A função legislativa típica é a de elaborar a lei, e focaliza
apenas situa-ções consideradas em abstrato, impessoais e genéricas,
com inovação da ordem jurídica. A lei não pode ser criada para caso
específico, ou concreto, ou determinado.
Ao indicar as distinções entre as funções administrativa e
legislativa, Júlio César dos Santos Esteves 3, ao citar Pedro Estevam
Serrano, ensina que:
Ao distinguir função legislativa e administrativa, Pedro
Estevam Serrano indica, em síntese, os seguintes traços de
singularidade da primeira: a) poder de inovação primária da ordem
jurídica; b) superioridade hierárquica das normas que constituem seu
produto; e c) possibilidade de criação autônoma de fins. Tais
características corresponderiam, segundo o autor, aos critérios de
distinção funcional, hierárquica e teleológica.
Denota-se, portanto, que a função legislativa típica é a que
produz inovação na ordem jurídica, atingindo toda a coletividade de
forma impessoal.
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3 A TEORIA QUE REPELE A RESPONSABILIDADE DO ESTADO
POR ATIVIDADE LEGISLATIVA
A teoria que repele a responsabilidade do Estado por atividade
legislativa funda-se nos seguintes argumentos:
a) Primeiro argumento: a lei constitui norma geral, abstrata e
impes-soal, e, por esse motivo, o Estado não pode ser
responsabilizado em situações individuais ou individualizadas.
Ocorre, todavia, que existem situações em que a lei afeta o
cidadão individualmente, causando-lhe prejuízos de forma especial,
anormal e grave, ou, ainda, em afronta ao direito adquirido e ao ato
jurídico perfeito. Em tais situações, surge o inquestionável e
necessário direito à indenização.
b) Segundo argumento: a lei é ato de soberania, devendo ser
cumprida pelos cidadãos de forma coercitiva.
Conforme reza o art. 1º da Constituição Federal, a República
Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito,
tem como um de seus fundamentos a soberania. O art. 2º, também da
CF/1988, a seu turno, reza que são Poderes independentes e
harmônicos entre si o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.
É forçoso concluir, assim, que as três funções - executiva,
legislativa e judiciária - têm como fundamento a soberania, com
observância dos ditames constitucionais. E especificamente quanto à
função legislativa, deve editar leis de acordo com a Lei Maior, e em
respeito ao Estado Democrático de Direito, ou, de outra forma, surge,
sim, a responsabilidade do Estado.
c) Terceiro argumento: a lei preserva direitos anteriores, porque
a lei nova não viola direitos já existentes, e apenas preserva os já
adquiridos.
Sobre o tema, Júlio César dos Santos Esteves 4 cita Maria
Emília Mendes Alcântara, nos seguintes termos:
A lei nova não tem por consequência a violação de nenhum
direito preexistente, visto que a partir de sua emanação eventuais
direitos anteriores passam a não ter existência ou existirem dentro
dos contornos traçados pela nova lei.
Ocorre que, quando a edição de lei nova prejudicar direito ou
interesse individualizado, causando-lhe grande prejuízo patrimonial de
forma especial, anormal, grave e irreparável, tal situação deve ser
indenizada pelo Estado.
d) Quarto e derradeiro argumento: a imunidade parlamentar que é a inviolabilidade dos parlamentares por suas opiniões, palavras
e votos no exercício do mandato - serve de obstáculo à
responsabilidade estatal. Segundo os que defendem tal posição, a
responsabilidade estatal seria uma afronta à atividade legislativa.
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Ocorre que tal inviolabilidade não pode servir de escudo para
que o legislador edite leis em afronta aos direitos dos cidadãos,
causando-lhe prejuízos de ordem patrimonial.
Ademais, os parlamentares foram eleitos para editar leis de
acordo com a Constituição, e em obediência ao direito adquirido, e,
portanto, as leis inconstitucionais e que causam lesão patrimonial
grave e anormal aos cidadãos podem perfeitamente gerar o direito à
indenização.
Restam, portanto, espancados um a um os argumentos da
corrente que defende a irresponsabilidade do Estado por ato
legislativo.
4 A TEORIA QUE ACEITA A RESPONSABILIDADE DO ESTADO
POR ATIVIDADE LEGISLATIVA
Quanto à lei constitucional danosa, não vislumbramos a
responsabilidade do Estado, uma vez que, se a lei é editada
estritamente de acordo com os ditames constitucionais aplicáveis, não
pode haver responsabilidade civil a seus criadores.
Nesse exato diapasão, trazemos à colação lição de José dos
Santos Carvalho Filho 5, para quem:
Apesar da divergência existente entre os autores nacionais,
entendemos que o ato legislativo não pode mesmo causar a
responsabilidade civil do Estado, se a lei é produzida em estrita
conformidade com os mandamentos constitucionais. Com a devida
vênia dos que pensam em contrário, não vemos como uma lei,
regularmente disciplinadora de certa matéria, cause prejuízo ao
indivíduo, sabido que os direitos adquiridos já incorporados a seu
patrimônio jurídico são insuscetíveis de serem molestados pela lei
nova, ex vi do art. 5º, XXXVI, da CF. Acresce, ainda, que a lei veicula
regras gerais, abstratas e impessoais, não atingindo, como é óbvio,
direitos individuais.
Quanto à lei inconstitucional danosa, a responsabilidade do
Estado surge com a declaração de inconstitucionalidade da lei, a
efetiva ocorrência do dano e a necessária comprovação do nexo
causal entre a norma questionada e o dano efetivamente sofrido por
particular.
A lei deve causar prejuízo grave, anormal e especial, e,
portanto, não é qualquer prejuízo causado por lei inconstitucional que
pode ensejar a reparação por parte do Estado.
O prejuízo deve ser grave e, portanto, não pode ser para
qualquer prejuízo, e que é suportado por período curto de tempo. O
prejuízo deve apresentar grande relevância e gravidade.
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O prejuízo precisa ser anormal, ou seja, um prejuízo não usual,
que foge à normalidade, ao casual.
E, ainda, o prejuízo deve ser especial, que é o suportado por
apenas uma pessoa, ou um grupo determinado de pessoas.
Cite-se ensinamento de José Cretella Júnior citado por Júlio
César dos Santos Esteves 6:
Onde vigora o direito público federal, tal como no Brasil, desde
que as leis inconstitucionais não são aplicadas pelo Poder Judiciário
e podem causar danos aos particulares, os danos causados por tais
atos legislativos são ressarcíveis. A pessoa prejudicada por lei
inconstitucional tem manifestamente o direito de pedir a reparação
pelo dano sofrido.
E, ainda no mesmo diapasão, cite-se Edimur Ferreira de Faria
também citado pelo Professor Júlio César dos Santos Esteves 7:
No Direito pátrio, os tribunais vêm admitindo a
responsabilidade do Estado nos casos de lesões causadas por leis
posteriormente
declaradas
inconstitucionais,
em
virtude,
principalmente, do princípio dos efeitos ex tunc da decisão judicial
que declara a inconstitucionalidade da lei.
E Júlio César dos Santos Esteves 8 colaciona, ainda, lição da
Professora Odete Medauar, que merece ser aqui transcrita:
Pode-se cogitar, ainda, da responsabilidade do Estado por ato
legislativo típico, causador de dano a uma categoria de pessoas ou
número exíguo de pessoas, porque, no tocante ao dano, deixou de ter
o caráter de ato geral e impessoal. No direito francês já se decidiram
alguns casos nessa linha.
Para alguns respeitáveis doutrinadores, porém, tal distinção
entre lei constitucional e lei inconstitucional é desnecessária, porque o
que justifica a responsabilidade estatal é a ocorrência do dano, e não a
inconstitucionalidade da lei.
Nesse sentido, é a lição de Maria Emília Mendes Alcântara
citada por Júlio César dos Santos Esteves 9, em sua monografia na
qual discorre longamente sobre o tema ora focado:
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Registrando que a questão da responsabilidade estatal por ato
legislativo é tradicionalmente investigada mediante dois critérios
distintos - o primeiro, que põe em foco as leis inconstitucionais, e o
segundo, que considera atos legislativos conformados com a ordem
constitucional -, a autora, admitindo certa ousadia, conclui que, para
fins de indenização por danos decorrentes de lei, descabe indagar da
constitucionalidade, bastando provar a lesão e o nexo desta com a
atuação do Poder Legislativo.
Conclui, assim, que a declaração de inconstitucionalidade da
lei não constitui pressuposto da responsabilização pública, "visto que
não é a licitude ou não desse ato que irá fundamentar o pedido, mas
sim a ocorrência do dano em decorrência de ato estatal".
Outra situação existente é a da responsabilidade do Estado por
omissão legislativa, que decorre do dano causado pela não edição de
norma que regulamente dispositivo da Constituição, conforme previsto
na Carta.
O Estado pode também ser responsabilizado no caso de edição
de leis de efeitos concretos que causem danos, sendo que tais leis (de
efeitos concretos) não possuem o caráter genérico e abstrato próprio
de uma norma jurídica, e se assemelham a ato administrativo, porque
formalmente são leis, mas o conteúdo de tais normas é de ato
administrativo.
Quanto à lei de efeitos concretos, ensina José dos Santos
Carvalho Filho 10 que:
Lei de efeitos concretos são aquelas que se apresentam como
leis sob o aspecto formal, mas que, materialmente, constituem meros
atos administrativos. Para que surjam, seguem todo o processo
legislativo adotado para as leis em geral. Não irradiam, todavia,
efeitos gerais, abstratos e impessoais como as verdadeiras leis, mas,
ao contrário, atingem a esfera jurídica de indivíduos determinados,
razão por que pode dizer-se que são concretos os seus efeitos.
Em relação a tais leis, já se pacificaram doutrina e
jurisprudência no sentido de que podem ser impugnadas por meio
das ações em geral, inclusive o mandado de segurança, sendo
interessado aquele cuja órbita jurídica seja hostilizada pelos seus
efeitos.
Com esse perfil, não é difícil concluir que, se uma lei de
efeitos concretos provoca danos ao indivíduo, fica configurada a
responsabilidade civil da pessoa jurídica federativa de onde emanou
a lei, assegurando-se ao lesado o direito à reparação dos prejuízos.
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Ainda com relação às leis de efeitos concretos, ensina Maria
Sylvia Zanella Di Pietro 11:
Com relação às leis de efeitos concretos, que atingem
pessoas determinadas, incide a responsabilidade do Estado, porque,
como elas fogem às características da generalidade e abstração
inerentes aos atos normativos, acabam por acarretar ônus não
suportado pelos demais membros da coletividade. A lei de efeito
concreto, embora promulgada pelo Legislativo, com obediência ao
processo de elaboração das leis, constitui, quanto ao conteúdo,
verdadeiro ato administrativo, gerando, portanto, os mesmos efeitos
que este quando cause prejuízo ao administrado, independentemente
de considerações sobre a sua constitucionalidade ou não.
5 A TÍMIDA JURISPRUDÊNCIA SOBRE O TEMA
A jurisprudência brasileira sobre o tema é ainda bem tímida,
mas pode ser aqui citada uma conhecida veneranda decisão do eg.
Supremo Tribunal Federal, em Recurso Extraordinário nº 158.962/PB,
Relator Ministro Celso Mello, julgado em 04.12.1992, com trânsito em
julgado em 10.02.1993, com o seguinte excerto:
Ato legislativo. Inconstitucionalidade. Responsabilidade civil
do Estado. Cabe responsabilidade civil pelo desempenho
inconstitucional da função de legislador.
BREVE CONCLUSÃO AO TEMA
O tema ora em foco é de grande controvérsia e sobre o qual a
doutrina tem se debruçado com muita propriedade, e a jurisprudência,
a seu turno, revela-se, ainda, extremamente tímida, com nosso
conhecimento de apenas um julgado proferido pelo eg. Supremo
Tribunal Federal, que reconhece a responsabilidade do Estado por
atividade legislativa.
O Estado deve responder por danos específicos, graves,
especiais e anormais causados por lei inconstitucional, sem que isto
represente qualquer afronta à soberania das leis ou à imunidade
parlamentar, conforme acima demonstrado.
É nosso entendimento.
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