ESPECIAL 20 GAZETA DO SUL • SÁBADO E DOMINGO 26 E 27 DE FEVEREIRO DE 2011 [email protected] O que está acontecendo no mundo? AHMED ALL/AP POLÍTICA > REVOLTAS POPULARES PODEM SER O INÍCIO DE PROFUNDAS TRANSFORMAÇÕES NO CENÁRIO INTERNACIONAL Entrevista MOZART LINHARES DA SILVA DOUTOR EM HISTÓRIA RODRIGO/AG. ASSMANN Pedro Garcia [email protected] De uma hora para outra, imagens chocantes de multidões em marcha e protesto, tomando ruas e praças e gritando palavras de ordem, ganharam as telas do mundo inteiro. Milhões de pessoas acompanharam, nas últimas semanas, os desdobramentos de poderosas mobilizações antigovernamentais em capitais e cidades importantes de uma região secularmente instável. De todos os cantos, vozes alertam para os sinais de transformação. Apesar do fenomenal fluxo de informações sobre a crise no mundo árabe ainda não ter permitido fôlego para reflexões mais aprofundadas, o consenso está estabelecido: trata-se de um momento histórico. O vigor que demonstraram os civis, em manifestações que duraram semanas, acabou por derrubar nada menos que dois ditadores (Ben Ali, na Tunísia, e Hosni Mubarak, no Egito), e colocar contra a parede vários outros governos autoritários que perduram por anos ou décadas. É o caso da Líbia, Argélia, Bahrein, Iêmen, Iraque e Irã. Em comum, as populações desses países têm a insatisfação. “Tratam-se de estados não democráticos, em que o aparato estatal foi, durante muitos anos, utilizado não como instrumento de desenvolvimento e satisfação das necessidades básicas do povo, mas sim para o enriquecimento pessoal de seus governantes”, explica a professora de Relações Internacionais da Unisc, Mariana Corbellini. Os resultados dessas políticas são altas taxas de desemprego, corrupção sistemática e violenta opressão. De acordo com Mariana, “trata-se do início de um processo do qual não há volta”, e que culminará em uma “nova configuração da balança do poder na região”. Dentre as consequências estão as possíveis transições a longo prazo para regimes democráticos e a perda cada vez mais acentuada da influência dos Estados Unidos sobre a região. “Isso acontece à medida que a Arábia Saudita, aliada histórica, se vê em crise e o Irã ganha espaço ao firmar-se como aliado muçulmano”, entende. “O cenário pode ser muito mais favorável ao Irã e à causa muçulmana.” Mas a instalação plena e imediata da democracia é descartada. Embora importantes, as mudanças verificadas até o momento não foram substanciais. “Tanto na Tunísia quanto no Egito, os governos transitórios representam, de certa forma, uma continuidade de regime, e a oposição ainda deverá manter-se nas ruas demandando mudanças mais profundas”, aponta a professora. “Nos demais países, ditadores ainda encontram meios de permanecer no poder, oferecendo quantias em dinheiro às famílias para que não saiam revoltosas às ruas, por exemplo.” O efeito cascata das manifestações, fazendo com que o exemplo de um país inspirasse outros, estimulou governos do sudeste asiático a apressarem-se em impor bloqueios e censuras como forma de evitar que se disseminassem por seus territórios. Em países de regimes ainda mais fechados, como a China, a tendência é que as forças oposicionistas encontrem obstáculos maiores. “Ao contrário do que aconteceu nos países árabes, em que as instituições do Estado são débeis, protestantes chineses deverão encontrar maiores dificuldades em driblar o forte aparato estatal”, lembra Maria- JANAÍNA ZILIO/AG. ASSMANN EGITO foi palco de manifestações que tiveram como resultado a queda do governo autoritário de Hosni Mubarak MARIANA: não há mais retorno na, acrescentando que as altas taxas de crescimento na China resultam em desenvolvimento, colocando o país em contexto distinto. INTERNET Analistas concordam que o sucesso das tentativas de mobilização de civis nos países do mundo árabe se deve não apenas ao descontentamento generalizado em relação às políticas praticadas, mas também ao poder que descobriram em ferramentas como a internet. “No momento em que vivemos, cada vez mais o indivíduo e a sociedade encontram meios de se fazerem ouvidos”, observa. Segundo a professora, a internet interferiu na formação das revoltas tanto como fonte de informações sobre direitos e liberdades a uma parcela significativa das populações, em especial as novas gerações – criando uma sociedade mais informada e questionadora –, quanto como ponte de conexão entre forças mobilizadoras, que tornaram visíveis os protestos para todo o planeta. “Essa tendência deverá tornar a sociedade civil cada vez mais participativa em questões internacionais, antes tidas como assuntos exclusivos aos governos dos estados”, entende. As revoltas nos países do mundo árabe encontram origem em uma série de acontecimentos históricos que colocaram o Oriente Médio sob controle da geopolítica ocidental, principalmente em função do apoio estadunidense a ditaduras seculares. De acordo com o pesquisador do Departamento de História da Unisc, Mozart Linhares da Silva, a situação na região representa um problema geopolítico desde as invasões napoleônicas, no século 18, passando pela disputa dos territórios pelas antigas potências europeias; a intervenção dos Estados Unidos, motivada pela exploração petrolífera, e os movimentos de resistência oriundos da Guerra Fria, em países como Afeganistão e Irã.“Os conflitos entre o Estado de Israel e Egito amplificaram as intervenções norte-americanas”, explica. “O que assistimos hoje é o esgotamento dessa política.” GS - Todas essas revoltas representam uma transformação histórica e definitiva na geopolítica da região, ou pode se tratar apenas de uma crise passageira? MOZART - Não é passageira. Ao contrário, aponta para mudanças profundas, mas não lineares. Não se pode ver o mundo árabe como homogêneo. Nem mesmo as lutas internas são unificadas a partir de uma ideologia comum. O Egito se revoltou contra o secularismo de um tirano apoiado pelos EUA e ampliou a força dos fundamentalismos Islâmicos, nomeadamente a Irmandade Islâmica. Já no Irã, a luta é justamente contra um governo teocrático e fundamentalista. Ou seja, o contrário. Resta observar com atenção a situação de Israel frente à nova construção política no Egito, que pode abrir novas frentes de apoio à Palestina através do Sinai e complicar ainda mais a situação. Fazendo as contas, o que se observa é a repercussão da decadência dos EUA como potência mundial que reverbera na sua política internacional na região. GS - Até agora, os protestos já resultaram na queda de dois ditadores. É possível que isso se estenda a regimes ainda mais fechados, como Irã e China? MOZART - O efeito cascata das revoltas é evidente e já chama atenção a postura preventiva de governos ditatoriais que procuram esvaziar os movimentos populares por meio de políticas de assistência, como o caso do rei Abdullah da Arábia Saudita. Já temos agitações populares em países como Argélia, Jordânia e Marrocos, ou seja, é preciso esperar um pouco mais para termos noção de como as forças políticas irão se recompor na região. O caso do Irã é mais complicado, já que há dois anos a reeleição do ditador Mahmoud Ahmadinejad já era contestada por parte da população. As manifestações que se desdobram no mundo árabe ampliaram as ondas de protestos e o alvo agora é também o líder religioso Seyed Ali Khamenei. A repressão violenta do regime iraniano vem num crescente desde essa época. É preciso esperar para ver como será a reação de agora em diante. A China não faz parte desse contexto em conflito. GS - Nos países onde houve destituição de governos, quais as perspectivas? É crível a transição para regimes democráticos? MOZART - Grande parte desse movimento contestatório está pautada justamente na democracia. Resta saber como as forças políticas, sobretudo os fundamentalismos, irão utilizar a democracia como forma de arregimentar o poder. Soa irônico falar em democracia no Oriente Médio mas, de fato, as revoltas populares encontram no discurso democrático uma estrutura de apoio importante e incontestável. Não acredito em regimes democráticos estruturados no Oriente Médio, mas sim num uso do discurso democrático como reordenamento da arena política. GS - E o que muda na relação entre ocidente e oriente, visto que sabidamente alguns desses ditadores são aliados históricos dos Estados Unidos? MOZART - Muda muita coisa. É preciso estar atento à nova geopolítica que vai se delinear daqui pra frente para avaliar como as forças políticas do ocidente irão se comportar frente aos novos arranjos do poder na região. É fato que o discurso norte-americano já mudou e não tem como contestar formas democráticas de reivindicação. Afinal de contas, esse foi o discurso que pautou a própria invasão do Iraque e grande parte das intervenções orquestradas pelos EUA no mundo.