UTOPIA E RESISTÊNCIA: O LAPIDAR E O RECICLAR DO
QUE ESTÁ À MARGEM
Victor Wiskow Krüger1
Mário Francis Petry Londero2
Pra que sonhar com o paraíso,
Se até o poeta fecha o livro,
Sente o perfume de uma flor no lixo
E fuxica...
(CAZUZA, “Ritual”)
O filme “Febre do rato3” pode soar um tanto estranho em suas formas,
em seus conteúdos, quase um absurdo atrás do outro que mais deformam
mundos do que produzem sentidos num primeiro olhar apressado. Dentro de
uma lógica cotidianizada da vida, do tempo linear cronificado, fica difícil se
deixar embalar pela poética quase advinda do lixo que a película oferece.
De fato, não se vê cidadãos vivenciando tais cenas em muitos lugares
do Brasil e do mundo, ao menos, no que diz respeito à sociedade do
brilhantismo (BIRMAN, 2005) pesadamente maquiada que esconde de si
mesma as problemáticas e as potências de outros mundos que rondam e
tencionam o que está por demais regulamentado. O social desejado de manter
seu status quo regulado resiste em aceitar a possibilidade de existência do
cenário assistido no longa-metragem, anestesiada pelo fluxo dos modos de
vida impostos pelos mecanismos do Biopoder (FOUCAULT, 2010). Está-se
automatizado por uma discursividade formatada, que abocanha o amanhã,
deixando sem expectativas em relação ao por vir.
A comunidade do poeta vivia interligada a partir das poesias, dos
festejos, dos afetos e das utopias que a faziam um povo diferente, uma
pequena sociedade quase esquizo, quase nômade, que coloca em variação a
cotidianidade instalada no social. Essa vivencia nômade não tem pretensões
1
Acadêmico do curso de graduação em Psicologia, do Centro Universitário UNIVATES em
Lajeado, Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]
2
Psicólogo, Mestre em Psicologia Social e Institucional – UFRGS. Docente do curso Psicologia
do Centro Universitário UNIVATES em Lajeado, Rio Grande do Sul.
de linearizar as relações com símbolos de uma conduta única a se chamar de
correta. Bem pelo contrário... É uma vida em sua singularidade, vivida em
constante experimento, na qual se prefere a expectativa da vivência da
primeira vez do que da segunda, que reconhece a emoção de conhecer o
desconhecido no intuito de se fazer vulnerável ao que está por acontecer em
um amanhã não programado.
Sousa (2008), ao comentar sobre o amanhã não programado, afirma o
quanto é importante o movimento do ato criativo, que deforma mundos postos
para o nascimento de outros possíveis. Esse vilarejo às margens do rio e da
sociedade provoca um mal estar devido ao seu conteúdo incomodativo. Seus
acontecimentos, suas imagens forçam as vistas morais do telespectador.
Intenção clara do autor, Cláudio Assis, ao expor personagens nus, sexo ao ar
livre com “velhas” e “novas”, relações homoafetivas, consumo de drogas, um
desprezo a todas as leis morais que regulamentam a vida e que a deixam sem
a possibilidade de outras intensidades. Relatos de uma suposta desordem,
como mutilações do tecido social endurecido e sem perspectiva de inovações,
que provoca deslocamentos e amplia a potência da vida a partir dos encontros
afetivos que ali são registrados e que questionam o que Pelbart (2013)
comenta como a “sobrevida” que a sociedade de Biopoder remete. Para além
de sobreviver, de ser guiado pelos mecanismos de controle do poder, o
humano deseja, quer sair da mesmice indicada como sobrevivência que
anestesia a vida e que não se arrisca a caminhos outros.
O filme aponta para os medos que assombram o social a partir da saída
do familiar, no momento em que coloca o estranho como fonte de reflexão,
aquilo que extrapola o script do cotidiano. Na perspectiva do êxito, não sobra
espaço para o que possa comprometer o que está previamente ordenado, o
que aproxima da burocratização do amanhã (SOUSA, 2008). Planeja-se a
construção do futuro de maneira a não olhar para os lados, não é possível o
dispersar, posto que isso implica no risco de se perder tempo, no qual o futuro
chega tarde demais. O social em sua dinâmica produtiva/capitalista/familiar
impõe um traçado de vida limitado e limitante para a potência de desejo do
humano. Eis o mal estar freudiano (FREUD, 1996)!
Aquela pergunta ouvida logo na infância: Você vai ser o quê quando
crescer? faz transpirar preocupação no passar do tempo, quando não se
encaixa nas determinações apresentadas para a profissão, o que mantém a
ideia de ser útil, para e conforme os ideais da civilização. O cotidiano poetizado
pelos personagens do filme servia, segundo Gutfreind (2014, p.20), [...] “para
suportar um mundo sem sentido que o sujeito não sabe para que serve, muito
menos o que pretende fazer nele. O mundo o pressiona. Há de se cravar um
nome nos sujeitos, uma função, uma etiqueta, de preferencia única.”
Na catástrofe do mesmo em que se vive, parece impossível desenhar
um amanhã na forma e no tempo da singularidade de um sujeito.
Aparentemente, há escolhas, entretanto, independente de qual se faz, o
destino está pré-escrito pelos ideais capitalistas: consumir imagens/fluxos
adequando a subjetividade a um preço muito alto. Ao se olhar às margens
dessa sociedade, contemplamos uma imagem menos fluída pelos ideais
capitalísticos. Algo que coloca tensão, que força a olhar para uma diferença.
Percebe-se um sentimento de rejeição, desfavorecimento e uma contraposição
aos modelos sociopolíticos e econômicos. Apesar disso, implícitos nesse
lamaçal molhado pelos respingos que saltam das grandes navegações, emerge
a esperança e o poder constituinte que tenciona o poder constituído como
comenta Negri (2002). O vilarejo do poeta à margem da sociedade de Recife,
com seus sonhadores intensivos que insistem em produzir atos criativos para
viverem o além do sobreviver, desajustam os sentidos postos e padronizados
do social que dão a impressão de que ninguém sobreviveria sem eles.
Para finalizar e tentar forçar uma reflexão sobre a clínica, a partir do
filme, pode-se realizar a leitura do quanto o fazer ‘psi’ se coloca num lugar de
contraponto, de instalação de paradas nesse tempo cotidianizado por demais e
que aprisiona o sujeito. Pensar a construção do amanhã fora das formas
constituídas soa como um ato criativo na clínica, que, junto à vida resiste ao
desvio em relação às instituições que tentam cerceá-la, colocando-a em limites
pouco potentes para os encontros com a singularidade.
Segundo Negri (2002, p. 26):
[...] o poder constituinte se define emergindo do turbilhão do vazio, do
abismo da ausência de definições, como uma necessidade totalmente
aberta. É por isto que a potência constitutiva não se esgota nunca no
poder, nem a multidão tende a se tornar totalidade, mas conjunto de
singularidades, multiplicidade aberta.
É um insistir em viver para além das margens impostas por uma
sociedade de Biopoder. Uma constante lapidagem do novo que tenciona o que
se encontra instituído e com cara de acabado, de fim da linha para o desejo, é
o que proporciona a película. O vilarejo do poeta afirma a vida enquanto
agenciadora da diferença, produtora, mesmo que seja do que é considerado
lixo pelo social, de reciclagem dos sentidos.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Capitalismo parasitário e outros temas contemporâneos.
Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas da
subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (19751976). Tradução Maria Ermantina Galvão. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2010.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: ______. Obras psicológicas
completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, v. XXI. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
GUTFREIND, C. A infância através do espelho: a criança no adulto, a
literatura na psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2014.
NEGRI, A. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da
modernidade. Tradução Adriano Pilatti. Rio Janeiro: DP&A, 2002.
PELBART, P. P. VIDA CAPITAL - Ensaios de biopolítica. São Paulo:
Iluminuras, 2003.
PELBART, P. P. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São
Paulo: N-1 Edições, 2013.
SOUSA, E. L. A. A burocratização do amanhã: utopia e ato criativo. Porto
Alegre (UFRGS), v. 24, p. 41-51, 2008.
NOTAS
A FEBRE do Rato. Filme. Direção: Cláudio Assis. Brasil, 2012.
Download

Artigo em PDF