A fotografia e a imagética contemporânea O documento e a estética constituem sem dúvida o mapa genético da fotografia. Entre o registo e os efeitos de composição, a fotografia tem desenvolvido um percurso deslumbrante de relação com o real, devolvendo-nos sobretudo a memória da sua visualidade em perspectivas parciais e subjectivas que promovem a nossa própria humanidade. Ao longo dos tempos, um profundo desejo de apropriação técnica sobre o real aguçou o engenho do homem na vontade de registar, mas também de recriar, o que os olhos podem ver. Depois do desenho e da pintura, a fotografia representou, já em meados do século XIX, a mais assombrosa etapa de conquista sobre a suspensão espaçotemporal. Daí para cá, a fotografia serviu de base a outras etapas tecnológicas, em especial o cinema, sem deixar de reiterar o seu mais brilhante e persistente contributo, a ideia de que no silêncio de uma fotografia subsiste um pedaço de realidade. Mas a fotografia, ainda que omnipresente, convive hoje com uma cinemática sistémica, da televisão ao 3D, que nos prende os sentidos e a disponibilidade. Estática por natureza epistemológica, a imagem fotográfica não apenas convive com a torrencial proliferação das imagens em movimento (analógicas, digitais e interactivas), como procura ainda o seu lugar próprio, a preservação ou sobrevivência da sua essência, isto é, uma estética da imagem fixa que mantenha o ser humano capaz de parar para contemplar o que não se move. O mais curioso é que este instinto de sobrevivência parece similar, pelo menos em parte, ao que à pintura se apresentou em meados do século XIX, quando a fotografia veio perturbar, pela sua reformulação técnica de captação do real, o sistema de envolvimento sensorial e estético que o “quadro” pictórico havia desenvolvido, de modo convincente, durante centenas de anos. Ainda assim, a fotografia não deixou de estabelecer, ao longo da sua evolução, uma estreita relação com a própria tradição pictórica, por exemplo, ao nível da indicialidade, do registo, da mimesis ou dos modos de enquadramento da realidade observada, dando assim continuidade à ideia de “quadro”. Porém, no início do novo milénio, se o “quadro” se prolonga no digital, ampliando as faculdades, o aparato e a complexidade das imagens em movimento, está simultaneamente, desse modo, a operar um acentuado efeito disruptivo ao nível da imagem fotográfica, porque é impossível não reconhecer que a fotografia se afastou do paradigma do instantâneo e se aproximou, talvez por reflexo de sobrevivência, do próprio formalismo pictórico, da sua escala e da sua relação com a realidade, talvez para que o inanimado possa ainda produzir uma sensação válida: a observação silenciosa que nos mantém ligados a um efeito contemplativo pouco condizente, afinal, com a mobilidade frenética dos nossos dias. Quando passeamos o olhar pelas imagens da 11ª Bienal de Fotografia reconhecemos a magia específica da sua esperança de comunicação, mas também que é possível fazer viver a essência humana no enquadramento ou no “quadro” de uma fotografia, especialmente no modo como contrasta, em muitos casos, com a intensa circulação imagética da nossa contemporaneidade. O desejo de fazer fotografia mantém-se actuante e este salão comprova o valor e o entusiasmo daqueles para quem o exercício da fotografia não é apenas um impulso, mas uma necessidade vital e permanente. David Santos Presidente do Júri da 11ª Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira