6. Investigação e Monitoramento Geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos Ex-Diretor do IPT; Representante da ABGE e da SBG 1º TÓPICO: O papel das investigações geológicas Ainda que em todas as fases de um empreendimento deva existir sempre um sadio e eficiente espírito de equipe, uma ação colaborativa e complementativa entre as diversas modalidades profissionais atuantes, é fundamental que nunca se perca de vista a responsabilidade maior que uma modalidade deve exercer em cada atividade e em cada fase. Nas investigações geológico-geotécnicas que antecedem o Projeto e o Plano de Obra e se prolongam no período de obra e na operação do empreendimento, essa responsabilidade maior é da Geologia de Engenharia. E para tanto é preciso que fique muito claro a todos que a missão da Geologia de Engenharia não se reduz a entregar ao projetista um arrazoado sobre a geologia local, a posição do NA, um punhado de perfis e seções geológicas e outro punhado de resultados de ensaios com os índices de comportamento geotécnico dos diversos materiais presentes. O trabalho da Geologia de Engenharia transcende essa limitada visão meramente descritiva e parametrizadora, ainda infelizmente bastante comum no entendimento de geólogos executantes e engenheiros demandantes. A abordagem da GE é essencialmente fenomenológica. Todos os dados e informações anteriormente mencionados são muito importantes, mas o produto final e essencial das investigações geológico-geotécnicas na fase anterior ao Projeto e ao Plano de Obra é um Quadro Fenomenológico onde todos esses parâmetros não estejam soltos ou isolados, mas sim associados e vinculados a esperados comportamentos do maciço e dos materiais afetados pelas futuras solicitações da obra. Ou seja, a missão essencial da GE é oferecer ao projetista o quadro completo dos fenômenos geológico-geotécnicos que podem potencialmente ser esperados da interação entre as solicitações típicas da obra que será implantada e as características geológicas (materiais e processos) dos terrenos que serão por ela afetados. Assim, todo o esforço investigatório deve ser orientado, desde o primeiro momento, a aferir, confirmar e descartar hipóteses fenomenológicas, de forma, ao final, ter concluso seu quadro fenomenológico real. Ou seja, não faz desde há muito mais sentido uma campanha investigatória cega, geometricamente sistemática ou coisas do gênero. Esse império do padronizado e do repetitivo não é o império da inteligência, da competência e da eficiência. A esse quadro fenomenológico a GE junta suas sugestões de cuidados e providências que projeto e obra deverão adotar para ter esses fenômenos sob seu total controle. A partir desse ponto a GE entrega o bastão de comando (e responsabilidade maior) para a Engenharia Geotécnica, passando agora a assumir o papel de apoio e complementação. Lembrando sempre que a frente de obra é o lócus privilegiado para a confrontação das hipóteses levantadas com o real, para as investigações complementares que se mostrem necessárias e para o monitoramento dos parâmetros geotécnicos envolvidos nos fenômenos identificados como possíveis. Deve-se então, por corolário, afirmar que não faz sentido um sistema de monitoramento geral e universal. Um sistema de monitoramento, seja ele visual ou instrumental, é sempre específico, voltado a permitir o acompanhamento ininterrupto, durante e após a obra, da eventual evolução de um determinado fenômeno potencialmente esperado. Assim, em uma mesma obra poderemos e deveremos ter diversos sistemas de monitoramento, cada qual especificamente associado a uma hipótese fenomenológica. Donde, mais uma vez, se depreende a enorme importância do Quadro Fenomenológico elaborado pela Geologia de Engenharia. Esse quadro deve ser tido como completo e final para uma determinada combinação geologia/solicitações de obra, mas se por algum motivo for alterado, por exemplo, o método construtivo, há que ser rever e atualizar o quadro, pois a geologia continua a mesma, mas alterar-se-iam as solicitações, e portanto o resultado dessa nova interação poderá ser fenomenologicamente diferente. Será de total responsabilidade da Geologia de Engenharia qualquer fenômeno geotécnico que venha a acontecer e que não tenha sido previsto em seu Quadro Fenomenológico. Como será de total responsabilidade do projetista ou dos elaboradores do Plano de Obra qualquer problema que ocorra por não terem levado em conta algum fenômeno potencial incluído no referido Quadro. 2º TÓPICO: Sobre imprevistos geológicos ou pluviométricos O que ocorre de êxito ou fracasso em uma obra de engenharia está intimamente associado à ação humana. Não é correto que se debite comodamente a fatores da Natureza, ou a deuses e demônios, responsabilidades que são intrinsecamente humanas. Esse verdadeiro cacoete de se lançar a responsabilidade por algum problema mais sério a imprevistos geológicos ou pluviométricos é, em sua essência, inclusive desprestigioso com os profissionais que atuam na Engenharia brasileira. Frente à insistente repetição dessas fáceis e comuns explicações, questiona naturalmente a sociedade: “mas, afinal, para que servem então engenheiros, geólogos e arquitetos se uma obra é assim tão vulnerável a esses tais imprevistos geológicos ou pluviométricos? Onde raio eles estavam que não perceberam isso?”. Referimo-nos aqui tanto a acidentes como a situações de não conformidade técnica, não caracterizadas como acidentes, mas, na prática, tão ou mais graves técnica e economicamente que esses próprios. Obviamente há casos, a cada dia mais raros, onde possam surgir fatos geotécnicos novos, especialmente quanto a comportamentos ainda desconhecidos ou pouco conhecidos de certas feições ou materiais geológicos. Lembremos a importância de Jupiá para o avanço de nosso entendimento sobre a alterabilidade de basaltos. E assim foi Moxotó com a reatividade álcaliagregados, a Adutora do Guandu com minerais expansivos, os taludes viários de corte do SulSudeste com o empastilhamento de siltitos e argilitos sedimentares rijos, etc. No entanto, com a experiência acumulada no conhecimento geológico-geotécnico proporcionado pela implantação de seguidos e diferenciados empreendimentos, no Brasil e no mundo, e especialmente em regiões geológica e geotecnicamente já bastante conhecidas e mais intensamente afetadas por empreendimentos, essa possibilidade tende exatamente a zero. Por fim, não poderemos erroneamente caracterizar como um imprevisto geológico uma feição geológica que poderia e deveria ter sido detectada preliminarmente ou no andamento da própria obra e não o foi por alguma deficiência de procedimentos e investigações. O idêntico raciocínio geral se aplica às condições pluviometrias e hidrológicas. OBSERVAÇÃO DE CARÁTER GERAL: É imprescindível e imperioso que os profissionais que atuam no universo da Engenharia percam os temores e a inibição de considerar e discutir publicamente, com serenidade e responsabilidade, aspectos não diretamente técnicos, mas que determinam as condições básicas do ambiente em que se dá seu exercício profissional, ou valorizando a qualidade, a ética profissional, a segurança e a boa técnica, ou inibindo e desprestigiando esses nossos caros paradigmas. Considerarei a seguir dois desses aspectos, partindo de uma consistente desconfiança, consistente especialmente por ser compartilhada por inúmeros colegas, de que, em termos gerais e médios, ao longo das últimas décadas está a ocorrer uma queda de qualidade dos serviços de investigação e monitoramento, e talvez em toda a engenharia. Essa queda se explicaria em sua maior parte por fatores não diretamente técnicos, mas sim fatores estruturais e conjunturais. 3º TÓPICO: O novo cenário tecnológico da Engenharia brasileira Nas duas últimas décadas procedeu-se uma radical mudança na estrutura empresarial e tecnológica responsável pelo suporte técnico às mais diversas ações da Engenharia brasileira. Na verdade, ainda não nos demos conta da dimensão dessas mudanças e de suas sensíveis conseqüências para nosso exercício profissional. Essas mudanças definem um novo cenário para a Engenharia brasileira, que tem como principais características: • empobrecimento tecnológico e recolhimento do Estado como agente estratégico da Engenharia brasileira, perdendo sua capacidade de interlocução tecnológica e de indução da qualidade; • fim das equipes técnicas permanentes da administração pública (empresas públicas e órgãos da administração direta) e das empresas privadas de consultoria e projetos, ou seja, fim das células vivas de discussão, atualização e desenvolvimento tecnológico tão marcadamente atuantes nas décadas de 60, 70 e até meados dos anos 80 do séc. XX; • enfraquecimento das instituições públicas de serviços e pesquisas tecnológicas; • ocaso de uma geração de profissionais formados no período áureo das décadas de 60 e 70 do século XX. Os fenômenos sócio-político-econômicos que determinaram essas características deste novo cenário da Engenharia brasileira podem assim ser resumidos: • processo já antigo de esvaziamento técnico dos órgãos da Administração Pública Direta que no passado constituíram-se em verdadeiras escolas brasileiras de engenharia (DNER, DERs, DNOS, DNOCS, DAEE, etc.). Esse esvaziamento foi resultado natural de uma política de baixos salários, da falta de uma cultura de reconhecimento de méritos, do progressivo loteamento político de cargos públicos, da promiscuidade entre autoridades públicas e interesses privados, de um corrosivo ambiente de generalizada corrupção; • a partir da década de 80, o penoso período de recessão econômica com uma radical redução de investimentos em infra-estrutura pública e o recrudescimento do obtuso princípio do menor preço nas licitações públicas, que fizeram como principal vítima na Engenharia as excelentes empresas privadas de consultoria e projetos, que não tiveram outra alternativa senão encerrar suas atividades ou desmobilizar suas equipes técnicas permanentes e derivar seus focos mercadológicos de atuação; • a partir da década de 90, o extenso programa de privatização de empresas públicas e um recolhimento conceitual do papel do Estado na Engenharia, tendo como conseqüências mais diretas o fim, agora na área pública, de suas equipes técnicas permanentes e a debilitação de sua massa crítica e sua “intelligentsia” tecnológica. Em conclusão, não temos mais a estrutura empresarial e tecnológica de décadas atrás e, mais preocupante, ainda não surgiu, e nem foi estrategicamente pensada, uma nova estrutura empresarial e tecnológica substituta. Estamos hoje em uma delicada e perigosa situação de limbo tecnológico. 4º TÓPICO: O Estado e o exercício da Engenharia brasileira A promiscuidade conceitual entre Estado e Governo. Tem sido extremamente perniciosa `a sociedade brasileira, e à Engenharia em particular, a histórica promiscuidade conceitual que ocorre no Brasil entre Governo e Estado, entendidos aqui o Governo como a expressão da vontade política da população para, renovada e periodicamente, definir e conduzir as grandes estratégias públicas inerentes ao desenvolvimento e ao bem estar da sociedade, e o Estado como o aparelhamento técnico-administrativo de caráter permanente envolvido na gestão e execução das mais diversas atividades públicas, nos campos da Saúde, do Saneamento, da Educação, dos Transportes, da Habitação, das Telecomunicações, da Energia/Mineração, do Meio Ambiente, etc. Incrivelmente, conservando hábitos que vêm lá dos tempos coloniais, cada novo governo eleito tem todo os órgãos permanentes de Estado e seus cargos à sua disposição para a acomodação das composições políticas que lhe dão sustentação. Loteiam-se e mudam-se assim todas as direções e comandos, seja na administração pública direta seja na indireta, como se houvesse país ou economia ou política de boa técnica que suportasse, a alteração a cada 4 anos de sua Política Energética, da programação de Obras e Serviços de Infra-estrutura, das prioridades na Educação ou na Saúde, das estratégias de Saneamento e Abastecimento, etc. Com a agravante da vinculação político-partidária ou familiar via de regra não coincidir com a necessária competência para o exercício profissional dessas funções executivas de estado. A Engenharia e as eleições. Nesse mesmo ambiente do Estado brasileiro, as grandes empreiteiras que tradicionalmente vêm executando nossas obras públicas, e que hoje participam também como concessionárias de serviços públicos de gestão privatizada, têm, ao lado dos grandes grupos financeiros e de algumas poucas empresas do setor industrial, sido responsáveis por perto de 80% do financiamento bruto das principais campanhas eleitorais, de todos os partidos políticos, dos poderes legislativo e executivo, em seus diversos níveis. Decorrentemente, essas empresas financiam as campanhas dos candidatos que, quando eleitos, comandarão, legislativa e executivamente, o país, estados e municípios, aos quais prestarão serviços como contratadas. Tudo isso se faz na observância rigorosa do permitido pela lei, e não há aqui qualquer sugestão de inerência de alguma improbidade, mas o fato é que nessas circunstâncias ficam inevitavelmente criadas condições de indiscutível constrangimento para a gestão pública de situações onde venham se estabelecer eventuais ou potenciais conflitos de interesses entre contratantes e contratados, como no caso de complexas querelas contratuais ou situações de eventual comprometimento da boa técnica e da segurança acordadas. Dado que nessas circunstâncias seria natural e imperioso que o Estado, desde o primeiro momento, estivesse resolutamente à frente da exigência de total esclarecimento de fatos ocorridos, da ampla transparência nas investigações para tanto devidas e, finalmente, da exigência da responsabilização judicial dos responsáveis. Se essa seqüência natural de procedimentos possa não ocorrer em sua plenitude, perde a Engenharia brasileira, perdem os profissionais da Engenharia, pois que as lições não serão apreendidas e são abertas as condições de recorrência dos mesmos ou maiores problemas. É cristalinamente uma questão de inteligência e de bom senso, e por isso é nossa expectativa que o próprio setor privado envolvido, os Tribunais Eleitorais, o Ministério Público e os poderes legislativo e executivo cuidem para que não mais seja permitido que empresas que financiem campanhas eleitorais venham, como contratadas, servir aos governos dessas eleições originados. A Engenharia e a sociedade brasileira patrioticamente agradecerão. CONCLUSÃO: A Engenharia brasileira está com problemas. Mas está em um desvio de rota e não à beira de um abismo. Há muita massa crítica técnica, conhecimento e experiência acumulada que tornarão a decisão de corrigi-los não só plenamente possível como extremamente facilitada. A única condição que se impõe está na vontade e na ousadia em tomá-la e na união dos agentes públicos e privados por ela responsáveis. Geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos Ex-Diretor do IPT; Representante da ABGE e da SBG