1 O Afogamento E la acordou. Piscou na escuridão total. Abriu bem a boca e respirou pelo nariz. Piscou de novo. Sentiu uma lágrima escorrer, sentiu‑a dissolver o sal de outras lágrimas. Mas a saliva havia parado de descer pela garganta; a boca estava seca e rachada. O objeto estranho fazia pressão dentro de sua boca, forçando as bochechas como se fosse explodir sua cabeça. Mas o que era aquilo? O que era? Seu primeiro pensamento ao acordar foi de querer voltar. Voltar para a profundeza escura e quente que a havia envolvido. Ainda estava sob o efeito da injeção que ele tinha aplicado, porém ela sabia que as dores logo chegariam, sabia pelas batidas lentas e surdas que marcavam a pulsação, e pela passagem espasmódica do sangue pelo cérebro. E ele, onde estava? Logo atrás dela? Prendeu a respiração para captar os ruídos. Não ouviu nada, mas notava uma presença. Como um leopardo. Alguém lhe contara que o leopardo era tão silencioso que podia esgueirar‑se para pertinho da presa no escuro, e podia ajustar o fôlego para respirar no mesmo ritmo que você. Podia prender a respiração quando você prendia a sua. Ela tinha certeza de que podia sentir o calor do corpo dele. O que ele estava esperando? Ela voltou a respirar. No mesmo instante sentiu o hálito de alguém na nuca. Ela se virou, golpeou, mas acertou apenas o ar. Ela se encolheu, tentou se encolher, se esconder. Em vão. Quanto tempo havia ficado desacordada? O efeito da droga estava quase no fim. A sensação durou apenas uma fração de segundo. Mas foi o suficiente para dar‑lhe o presságio, a promessa. A promessa do que estava por vir. *** 7 O_Leopardo.indd 7 13/10/2014 07:16:19 O objeto estranho que havia sido colocado na mesa diante dela tinha o tamanho de uma bola de bilhar e era feito de metal brilhante, com pequenos furos e figuras e símbolos. De um dos furos despontava um fio vermelho com um laço na ponta, que num instante a fez pensar na árvore de Natal que iriam decorar na casa dos seus pais no dia 23 de dezembro, dali a sete dias. Com bolas brilhantes, duendes natalinos, corações, luzes e bandeiras da Noruega. Dali a oito dias, eles cantariam músicas tradicionais natalinas, e ela veria os olhos dos sobrinhos e das sobrinhas brilhando na hora de abrir os presentes. Havia tantas coisas que ela devia ter feito de outra forma. Tantos dias que ela devia ter aproveitado melhor, com mais honestidade, devia tê‑los preenchido com alegria, fôlego e amor. Tantos lugares por onde havia apenas passado, tantos lugares para onde planejava ir. Os homens que havia conhecido, o homem que ainda não havia conhecido. O feto que havia tirado aos 17 anos, os filhos que ainda não tinha. Tantos dias desperdiçados em troca dos dias que achava que teria. Então, ela não pensou mais em nada além da faca brandida diante de si. E a voz macia que ordenou que inserisse a bola na boca. Ela fez o que lhe havia sido mandado; claro que fez. Com o coração martelando, abriu a boca o máximo que pôde e empurrou a bola para dentro, deixando o fio para fora. O metal tinha um gosto amargo e salgado, como lágrima. Então, sua cabeça foi forçada para trás, e o aço queimou a pele quando a lâmina da faca encostou em seu pescoço. O teto e o cômodo eram iluminados por um lampião encostado à parede num canto. Cimento frio e cinzento. Além do lampião, havia ali uma mesa de plástico de camping branca, duas cadeiras, duas garrafas de cerveja vazias, duas pessoas. Ele e ela. Ela sentiu o cheiro da luva de couro quando um dedo puxou de leve o laço do fio vermelho que pendia da boca. E no mesmo instante, sua cabeça pareceu explodir. A bola se expandiu, pressionando o interior da sua boca. Mas, por mais que estendesse a mandíbula, a pressão era constante. Ele a havia examinado com uma expressão interessada e concentrada, como um dentista que verifica se o aparelho ortodôntico está ajustado corretamente. Um leve sorriso indicou satisfação. Passando a língua, ela descobriu que havia pinos saindo da bola, e eram estes que pressionavam o céu da boca, a carne macia da parte interna, os dentes, a goela. Ela tentou dizer alguma coisa. Ele escutou com paciência os sons desarticulados que saíam da sua boca. Quando ela desistiu, ele fez que sim com a cabeça e pegou uma seringa. A gota na ponta da agulha cintilou à luz do lampião. Ele sussurrou no ouvido dela: 8 O_Leopardo.indd 8 13/10/2014 07:16:19 — Não mexa no fio. Então aplicou a injeção no pescoço. Ela apagou em questão de segundos. Ela ouviu sua própria respiração apavorada e piscou na escuridão total. Tinha que fazer alguma coisa. Colocou as mãos no assento da cadeira, que estava pegajoso por causa do próprio suor, e se levantou. Ninguém a impediu. Deu alguns passos curtos até esbarrar em uma parede. Foi tateando até sentir uma superfície lisa e fria. A porta de metal. Ela tentou levantar o trinco. Não se mexia. Trancada. Claro que estava trancada. O que havia pensado que podia acontecer? Ouvia risos, ou o som tinha vindo de dentro da sua cabeça? Onde ele estava? Por que estava brincando com ela dessa maneira? Faça algo. Pense. Mas para pensar precisava primeiro se livrar da bola de metal antes que a dor a enlouquecesse. Enfiou o polegar e o indicador nos dois cantos da boca. Sentiu os pinos. Tentou em vão forçar os dedos por baixo de um deles. Teve um acesso de tosse, acompanhado de pânico por não conseguir respirar. Percebeu que os pinos fizeram a carne ao redor da traqueia inchar, e que logo corria o risco de sufocar. Então chutou a porta de metal, tentou gritar, mas a bola sufocou o som. Ela desistiu. Encostou‑se à parede. Prestou atenção. Eram os passos cautelosos dele que ouvia? Estava ele se movendo ao redor, brincando de cabra‑cega com ela? Ou era apenas seu próprio sangue pulsando nas orelhas? Ela se encheu de coragem e forçou a boca para fechá‑la. Os pinos mal se mexeram antes de empurrarem a boca para voltar a ficar aberta. Agora, a bola parecia estar pulsando, como se houvesse se transformado em um coração de aço, em uma parte dela. Faça algo. Pense. Molas. Os pinos tinham molas de pressão. Os pinos foram armados quando ele puxou o fio. — Não mexa no fio — tinha dito ele. Por que não? O que aconteceria? Ela deslizou pela parede até ficar sentada. Um frio úmido subia do piso de cimento. Queria gritar de novo, mas não tinha forças. Calada. Silêncio. Todas as palavras que devia ter dito às pessoas que amava, em vez daquelas que haviam preenchido o silêncio junto a pessoas por quem ela não sentia nada. 9 O_Leopardo.indd 9 13/10/2014 07:16:19 Não havia saída. Só ela mesma e essa dor enlouquecedora, a cabeça prestes a explodir. — Não mexa no fio. Se ela o puxasse, talvez os pinos se desarmassem, entrando de novo na bola, e ficaria livre das dores. Os pensamentos percorriam os mesmos caminhos circulares. Há quanto tempo já estava ali? Duas horas? Oito horas? Vinte minutos? Se fosse tão simples, só puxar o fio, por que já não havia puxado? Por causa da advertência de uma pessoa obviamente doente? Ou fazia parte do jogo, convencê‑la a resistir a tentação de aliviar essa dor totalmente desnecessária? Ou o jogo se tratava de desafiar a advertência e puxar o fio para que… para que algo terrível acontecesse. O que aconteceria, então? O que era essa bola? Sim, era um jogo, um jogo medonho. Que ela tinha que jogar. A dor era insuportável, a garganta estava inchada; logo ela sufocaria. Tentou gritar outra vez, mas saiu apenas um soluço, e piscou e piscou sem que saísse uma só lágrima. Seus dedos encontraram o fio pendendo dos lábios. Puxou com cuidado até ficar retesado. Estava arrependida de tudo que não tinha feito, claro. Mas se uma vida de renúncias a tivesse colocado em qualquer outro lugar além daquele onde se encontrava, ela a teria escolhido. Só queria viver. Qualquer vida que fosse. Simples assim. Ela puxou o fio. Agulhas dispararam das pontas dos pinos. Tinham sete centímetros de comprimento. Quatro furaram as bochechas em ambos os lados, três penetraram os seios nasais, dois subiram pela narina e dois saíram pelo queixo. Uma agulha furou a traqueia e outra o olho direito. Várias agulhas penetraram a parte posterior do céu da boca e alcançaram o cérebro. Mas não foi esse o motivo imediato da sua morte. Como a bola de metal a impediu de se movimentar, ela não conseguiu cuspir o sangue que escorria das feridas para dentro da boca. Em vez disso, ele desceu pela traqueia até os pulmões, fazendo com que ela não absorvesse oxigênio, o que, por sua vez, levou à parada cardíaca, e o que o patologista chamou no seu relatório de hipoxia cerebral; isto é, falta de oxigênio no cérebro. Em outras palavras: Borgny Stem‑Myhre se afogou. 10 O_Leopardo.indd 10 13/10/2014 07:16:19