Uma clínica que se estende: novos desafios aos analistas
Simone Moschen Rickes
Assistimos nos últimos anos, quem sabe nas últimas duas décadas, a um movimento
interessante de avanço da prática analítica em espaços não antes por ela ocupados: unidades
de saúde, abrigos, hospitais, empresas, O.N.Gs ... Penso que a possibilidade desta extensão
do campo analítico tem uma relação estreita com a crítica operada pelo ensino de Lacan à
standarização da “técnica”, com a sua denúncia reiterada da burocratização formalista de
que havia sido objeto a configuração do setting analítico. Depois de Lacan, não mais
teríamos com o desenho do “contrato terapêutico” uma relação de veneração impedidora de
qualquer possibilidade de pensar. Seríamos, ao contrário, convocados, a cada passo, a
perguntarmo-nos sobre as posições transferenciais que jogam na articulação possível do
laço analista / analisante.
A crítica lacaniana à “burrocratização” da análise não se colocou de forma pontual,
como uma rebeldia voltada a pôr em questão um aspecto isolado do campo analítico, mas
esteve articulada e sustentada no desenho que sua releitura de Freud permitiu dar ao
inconsciente, resgatando deste aquilo que havia de mais transgressor. A proposição de
Lacan desalojará qualquer tentativa de tomar o inconsciente como depósito de memórias
perdidas que poderiam ser, por meio de um trabalho de escrutínio da história, recuperadas e
postas diante da consciência do analisando provocando, com isso, o debelamento dos
sintomas. “[... o] inconsciente não é ambigüidade de condutas, futuro saber que já se sabe
por não se saber, mas lacuna, corte, ruptura que se inscreve em uma certa falta” (Lacan,
1964, p.142/146)
Com Lacan, o verbo mais afeito a uma abordagem do inconsciente não será, de
modo algum, recuperar, mas sim produzir. O inconsciente recuperará – aí sim caberia esta
designação – o estatuto de produção, perdido por conta de leituras extremamente
instrumentais da obra freudiana. Conforme Lacôte (2000), “Lacan radicaliza a posição do
inconsciente, não somente o inconsciente trabalha, mas esse trabalho consiste no
inconsciente inventar a si próprio, acima do buraco constituído pela impossibilidade de
relações sexuais” (p.51).
A proposição de um inconsciente que se produz em análise implica analista e
analisante de uma forma inextrincável na medida em que ambos compartilham a assinatura
desta produção. Assim como o inconsciente lacaniano não se configurará num baú de
achados e perdidos plenamente resgatáveis, o analista que calca sua prática num
inconsciente como produção não poderá se situar, no trabalho de análise, em uma posição
de escuta que, desde fora, interviria sobre o desenrolar de um discurso que ele assistiria
como um telespectador a um filme. Ele, analista, é parte do roteiro. Sua presença implica os
rumos que a aventura analítica irá tomar e, com isso, sua posição nunca será de uma
exterioridade cômoda. O analista “é suposto saber aquilo a que nenhum poderia escapar,
uma vez que a formule - pura e simplesmente, a significação. (...) A transferência é um
fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista” (Lacan, 1964,
p.239/219).
A inelutável inclusão do analista na clínica que conduz, colocada em ordem de
primeira grandeza nas tramas que envolvem o tecido teórico lacaniano, foi, por este autor,
recuperada a partir de um gesto de leitura frente às letras freudiana. Nelas encontramos
passagens como: ”A extraordinária plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza
dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica; e ocasionam que
um curso de ação que, via de regra, é justificado possa, às vezes, mostrar-se ineficaz,
enquanto outro que habitualmente é errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim
desejado” (1913, p.164 – grifo nosso). E, na seqüência, “...estou asseverando que essa é a
única técnica apropriada a minha individualidade; não me arrisco a negar que um médico
constituído de modo inteiramente diferente possa ver-se levado a adotar atitude diferente
em relação a seus pacientes e à tarefa que se lhe apresenta” (1912, p.149 – grifo nosso).
Esta pequena retomada de dois pontos de extremo valor, a saber, a noção de
inconsciente como invenção e a intransponível inclusão do analista na psicanálise que
conduz, pontos que apresentam-se um como efeito do outro, pode ter um certo valor ao
refletirmos sobre este auspicioso avanço da psicanálise para além dos consultórios
particulares. Avanço que delineia um horizonte de longa vida para esta prática e que, ao
mesmo tempo, permite desenhar novas interrogações que começam ser a ela dirigidas.
Gostaria de constituir alguns apontamentos a partir de um mal-estar que, com freqüência,
faz-se presente no discurso daqueles que sustentam a possibilidade de uma clínica analítica
em instituições que não são propriamente analíticas, como os serviços públicos de saúde ou
as clínicas mantidas por centros de estudo como as Universidades.
Com freqüência nos encontramos, nestes locais, com uma composição de difícil
articulação: estamos diante de uma lógica que ordena o cotidiano do serviço e que,
freqüentemente, não está alinhavada por um questionamento, a cada nova situação
recolocado, acerca da transferência. Encontramos-nos frente a um ordenamento
administrativo-organizacional que regula o recebimento dos pacientes, o fluxo das
demandas, o início do trabalho e também seu desfecho, seja esse pela interrupção do
percurso por conta de um prazo encerrado ou ainda pela precipitação de um
encaminhamento a outro membro da equipe que é decido pelas “regras” da instituição.
Vou tomar especificamente este último elemento para sobre ele refletir, sem,
contudo, propor um funcionamento que penso devesse ser adotado nestas ocasiões. Nada
seria mais anti-analítico que estabelecer a priori as regras de um funcionamento. Quanto às
regras, a psicanálise só reconhece duas: para o analisante, a associação livre, para o
analista, a abstinência. À parte isso, penso que o impasse se coloca justamente quando as
regras decidem, seja por um encaminhamento ou mesmo pela continuidade de um trabalho.
E por que seria problemático que as regras decidissem alguma coisa? Afinal não vivemos
em uma barbárie e necessitamos de algum ordenador para organizar as relações no interior
das instituições que construímos.
Que precisamos de ordenadores, Freud já nos dizia, ao situar a interdição do incesto
como produtora das condições de possibilidade de uma estruturação neurótica.
Constituímo-nos a partir do que nos é interditado. O problemático não se situa no lugar em
que algo se encontra como proibido. O problemático encontra-se no laço que o analista
poderá fazer a este interdito. Se ele situa-se frente à regra deixando-a decidir por ele, ou
seja, numa posição de exclusão frente aos efeitos que ela produz em si, em sua clínica e nos
analisantes que acolhe, ele, analista, desincumbe-se de se fazer suporte da transferência,
enunciando, com isso, a possibilidade de que haja um Outro do Outro. Ao deslocar-se do
lugar de suporte da transferência, colocando em seu lugar o ordenamento administrativoorganizacional do local onde inscreve sua prática, ele propõe como horizonte para o
endereçamento operado pelo analisante um saber sem sujeito, qual seja, a normatização de
sua instituição de trabalho. Ao empreender tal manobra, corre-se o risco de fundar uma
relação perversa em que ele, analista, e seu paciente restam como objetos de um
ordenamento em relação ao qual não conseguem enlaçar-se como sujeitos, ou seja, a partir
de seu ponto de ignorância. Sabemos o quanto a elisão do lugar da ignorância em uma
relação estabelece uma situação que força na direção de uma suspensão do pensamento: as
regras são chamadas a decidir pelos sujeitos.
Com isso queremos atentar para o fato de que quanto ao encaminhamento se trata de
que cada analista – ou aprendiz de – tome a palavra em nome próprio para enunciar o
desfecho do qual se fará suporte naquele percurso de escuta.
Sabemos que as análises são processos aos quais não podemos adjetivar de breves,
muito embora não se trate de que possam ser longos, mas sim suficientes. Para
operacionalizar esta forma de atravessar o tempo, tão avessa aos nossos tempos, as
instituições que acolhem uma prática psicanalítica de profissionais em formação, como as
clínicas-escola, têm, freqüentemente, adotado o dispositivo do encaminhamento dos
analisantes, de uma analista ao próximo, como uma prática cotidiana e corriqueira. Não
raro encontramos, nestes locais, sujeitos que estão em atendimento há vários anos e que
foram escutados por três, quatro, até cinco profissionais. À parte o dispositivo do
encaminhamento ser interessante em muitas situações, ele pode, toda vez que se colocar
como uma solução que economiza a reflexão sobre a transferência em jogo na situação
clínica em questão, ter efeitos pouco analíticos.
Podemos tomar pelo menos dois desdobramentos pouco interessantes da
“instituição” encaminhamento. Primeiro, vislumbramos aquilo que pode se jogar como
proposta transferencial no início do trabalho: o analisante, ao ser acolhido por um analista
em formação, vê desenhado como horizonte para aquele percurso um encaminhamento que
se estabelece, de início, como destino, e não como uma possibilidade em cuja construção
ele se sinta implicado. Aquela escuta será transitória, lugar de passagem para outra escuta.
Esta passagem está decidida a priori por uma possibilidade que se torna regra e que, nesta
medida, economiza que aquele que escuta tenha que assumir a responsabilidade por uma
decisão. É no desdobramento do que esta economia pode significar que podemos situar um
segundo ponto, pois, na medida em que o dispositivo decide, o analista pode encontrar nele,
dispositivo, os meios para recuar diante do encontro com a castração que suas condições de
escuta realizam: há algo na direção desta cura que, pelas condições nas quais ela se
desdobra, não poderá ser percorrido, não pelo menos no tempo em que analista e analisante
dispuseram.
Desta feita, penso que, muitas vezes, quando um trabalho esbarra nas condições que
impedem seu prosseguimento, quais sejam, no desligamento do analista em formação da
instituição em que atua, pode ser interessante que algo de uma demanda de continuidade
precise se enunciar do lado do paciente. Isto implica que aquele que escuta não a ofereça
rápido demais, não a ofereça como forma de minimizar os efeitos que seu desligamento
pode ter para si, seja de encontro com a castração, seja de responsabilização por uma
escolha. Quero dizer, com isso, que pode ser interessante que o analisante precise fazer o
trabalho psíquico de reafirmar sua demanda, de recolocar o endereçamento que possibilitou
aquele encontro de trabalho.
Assim, que haja regras, ordenadores, dispositivos – como o de encaminhamento até aí não estamos propriamente diante de um impasse. O impasse se coloca toda vez que
estes ordenadores economizam o pensamento, economizam a reflexão dos sujeitos que sob
eles se situam. Penso que foi justamente contra isso que Lacan pode se rebelar quando
denunciou a standarização da prática analítica. Com sua denúncia ele empreendeu um
movimento de reposicionamento do analista no que concerne a sua responsabilidade pela
direção do tratamento. Não são as regras que podem ou devem decidir por ele. Ele precisar
tomar a palavra em nome-próprio e dela se fazer cargo, mesmo que sua palavra, como
acontece aos humanos, seja completamente constrangida pelas condições onde ela emerge.
* Psicanalista membro da APPOA, Doutora em Educação.
FREUD, S. [1912] Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Ed Standart
Brasileira da Obras Completas de Sigmund Freud. 2ed.Rio de Janeiro : Imago,
1974. p.149-159.
___. [1913] Sobre o início do tratamento. In: Ed Standart Brasileira da Obras Completas de
Sigmund Freud. 2ed. Rio de Janeiro : Imago, 1974. p.164LACAN, Jacques. [1964] Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2ed. Rio de
Janeiro : Jorge Zahar, 1985.
LACÔTE, Christiane. O que pode dizer a psicanálise sobre o trabalho do artista. In:
JERUSLINSKY, A., MERLO, A. M., GIONGO A. L. e outros. O valor simbólico
do trabalho e o sujeito contemporâneo. Porto Alegre : Artes e Ofícios, 2000.
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