Coluna do Augusto COLUNA O rifle da discórdia O licenciamento de software versus seus inúmeros usos. U m rifle que custa US$17.000, foi apresentado em um evento internacional da indústria eletrônica no início deste ano e acabou gerando várias controvérsias. Uma delas nos interessa especialmente, pois trata de uma questão relacionada a uma característica essencial das licenças livres e das licenças open source. A arma em questão foi projetada pela empresa texana TrackingPoint, que a chama de PGF, sigla em inglês para “arma de fogo guiada com precisão”. Além dos componentes usuais de um rifle de caça, ela inclui um sistema que captura e analisa imagens de video por meio da mira da arma, e permite ao caçador/usuário identificar e marcar seu alvo, e a partir daí, o sistema se encarrega de acompanhá-lo e, levando em conta as condições da arma, distância, inclinação, temperatura, vento etc., e passa a mostrar com precisão onde a bala irá acertar, só liberando o gatilho para o disparo quando detecta que o alvo será atingido. Para completar, o sistema registra tudo em video e permite acompanhar remotamente ao vivo em dispositivos móveis, ou mesmo postar depois em redes sociais e sites de compartilhamento. As controvérsias não tardaram a surgir, especialmente vindo dos campos contrários à prática da caça ou às armas de fogo. São questões que merecem discussão, mas a que traz o assunto a esta página é outra: o sistema de mira em questão é executado sobre uma distribuição Linux instalada no rifle. Este detalhe, unido aos focos de controvérsia mencionados acima, levou a outra controvérsia, defendida por integrantes de ambos os grupos: por que a licença do Linux permite que ele seja usado em armamentos e/ou para a caça de animais? Isso não poderia ser “corrigido”? Linux Magazine #99 | Fevereiro de 2013 Trata-se de uma pergunta frequente, entretanto, e muitas vezes associada a outras visões de mundo: por que a licença permite o uso em aplicativos que violam a privacidade de terceiros? Ou por governos totalitários? Ou em atividades anti-ecológicas? As respostas são frequentes também, vindas de pessoas como Richard Stallman ou mesmo o autor do kernel em questão, Linus Torvalds, que usa exemplos bem claros para ilustrar a questão: a licença em questão (a GPL) trata da disponibilidade do software e do código-fonte correspondente, e não de qual o uso será feito dele – para isso, se houver algum mecanismo de controle a empregar, será outro. No resumo torvaldiano, se alguém usar o Linux na implementação de tubarões mecânicos com lasers e disponibilizar o código-fonte, a licença terá sido cumprida, e é assim mesmo que ela funciona. A definição de licença livre (da FSF) exige que o usuário tenha “a liberdade de executar o programa, para qualquer propósito” (e estas três últimas palavras são importantes), e a definição de open source (da OSI) exige que as licenças não façam restrição quanto ao campo de aplicação ou de uso do software. Assim, vale a reflexão: o software é um instrumento com muitos usos possíveis, e o mesmo kernel que aciona um equipamento médico pode fazer funcionar uma mirade arma, se este kernel for livre e open source. A discussão sobre se estes usos são corretos ou não, é válida, mas transcende a questão do licenciamento, exatamente como deveria ser. n Augusto César Campos é administrador de TI e, desde 1996, mantém o site BR-linux.org, que cobre a cena do Software Livre no Brasil e no mundo. 7