3º lugar: Aconchego - Assim - Joana Elisa Röwer Aconghego Assim Me formei em meio ao aconchego. É difícil ouvir isto de alguém que está se graduando. É mesmo difícil sentir isso no dia da formatura, que, geralmente, é carregada de entusiasmo, alegria, excitação, euforia, mas também de dúvidas, inseguranças, indeterminações... Parece até contraditório, mas é essa sensação que me acompanhou naquela noite de verão de 2003. Aliás, é com essa sensação que inicio a escrita das minhas lembranças sobre o que vi, o que vivi e o que senti no tempo e nos espaços que permaneci na Universidade Federal de Santa Maria. Se aconchegar perpassa os significados de chegar e de estar próximo, este termo também traz a representação do conforto da própria casa. E, sem exageros de linguagem, o que vi e o que vivi nesta instituição me permitem dizer que me sinto em casa. Além do mais, nestes 14 anos de UFSM, em muitos locais já residi, seja em Santa Maria ou na região. E as circularidades da vida me levaram sempre a um mesmo lugar: este aqui. Na primeira vez, atravessei o arco e cheguei em silêncio, como aqueles que andam sem a consciência do que sabem e que não querem deixar transparecer o seu vazio. Vi olhos arregalados como os meus. Na posição de uma espera incerta. Quando criança havia pensado em ser “picolezeira”, construtora de prédios, frentista, dançarina como a do filme “Flashdance”, freira, veterinária, uma dona de casa dedicada e mãe de filhos lindos, aeromoça, uma sereia. Não me lembro de ter pensado em ser professora, muito menos socióloga! Quisera as minhas escolhas, iniciar minha formação profissional em um curso que estava iniciando. 1998 - ingressei na primeira turma de Ciências Sociais da UFSM. Salas emprestadas; biblioteca restrita; transporte coletivo parco para um curso noturno; sem “Xerox” que funcionasse à noite; sem bar; sem “trote”; sem muitas festas... O que via era a dedicação. Professores empolgados, empenhados, com a seriedade que lhes cabia. Exemplares no domínio da sua ciência e na problematização dos conteúdos da sociologia, antropologia e ciência política. O que via eram jovens comprometidos, muitos trabalhadores, que tentavam absorver aquele mundo de teorias e compreensões sobre a realidade, através de capítulos e livros. Tentando, talvez, compreenderem-se... 1 O que vivi foi um tempo de descoberta, autotransformação, crises que o conhecimento produz. Mas descobri também que “crise” significa decisão. E a decisão foi rumar para a educação. Na Pedagogia encontrei um objetivo: educar. Além de palavra bonita, não era somente um meio de compreender o mundo, mas era um modo de fazer sentido para os outros e assim para mim mesma. O maior encantamento veio na aula de História da Educação, não tanto pelo conteúdo, mas por perceber que compreender o mundo e pensar-se nele não é somente uma questão de ler livros e entender teorias, é escuta e sensibilidade. Decidi que era ali que ficaria e que era isso que faria para o resto da minha vida, mas não só, pois aprendi que educar passa pela compreensão do humano, pelo sentir-se humano, pela vida. Ouvi de uma professora de Antropologia e deste professor de História que para estar nas áreas de humanas é imprescindível gostar de pessoas. Assim, gostando de gente, segui o pressuposto de que se quisesse compreender o mundo e eu no mundo era necessário me emprenhar deste mundo. E as vivências que se seguiram excederam a formação técnica que uma profissão exige. Extrapolaram os marcos desta instituição. Vi sonhos e utopias em projetos de pesquisa. Vi a solidariedade em projetos de extensão. Vi mãos solidárias, construtoras de realidades. Vivi a solidariedade e precisei dela. Em tempos que meus caminhos não foram de flores e que decepcionei, colegas e professores me deram as mãos e souberam me esperar. Chorei. Aconcheguei-me e reagi permanecendo. Vi, vivi e senti abraços sem distinção. Vi, vivi e senti amores. De olhos fechados, beijos nos corredores. Sexo nos banheiros e arredores. Paredes feitas de segredos. Apegos compartilhados e apegos extenuados. Ouvi sussurros e histerias desnecessárias. Lealdade e competição. Vi a vida levar afetos para outros lugares, “outras” vidas. Vi a morte levar almas e deixar a saudade – a sensação de caminhos interrompidos. Vi a transformação. Prédios sendo erguidos, cursos sendo criados. Expansão. Novas políticas de educação, novas formas de ingresso, diferentes modalidades de ensino. Reestruturação. Vi acadêmicos tornando-se professores desta instituição. Galgando seus espaços, construindo perspectivas, realizando sonhos. Vi jovens tornando-se adultos, tornando-se pais e mães. Também cresci, também me tornei mãe. Tornei-me uma professora de sociologia. E, hoje, quando vejo outras pessoas atravessando pela “primeira vez” o arco, me pergunto o que irão ver, vivenciar, sentir? Talvez outras coisas, talvez coisas “iguais”. 2 Sei que a minha estadia na UFSM não significa tudo o que pode ser visto, vivido e sentido aqui. Nem minhas palavras comportam tudo o que vi, vivi e senti. Tudo o que vejo, vivo e sinto. Após tantas transformações, a sensação de aconchego que construí em mim, pois sabia que permaneceria, ainda me acompanha. Os mesmos olhos arregalados, mas não mais o mesmo silêncio. Mas, depois da graduação, especialização, mestrado e, neste momento, doutoramento, está chegando a hora de partir. Há medo da despedida, mas também desejo de outros descobrimentos. De todos esses tempos não restaram fotos minhas nos quadros que enfeitam as paredes. Deixarei o vivido. Levarei o vivido. Emaranhado em mim, expresso por mim aonde quer que eu vá. Apenas quero continuar aprendendo e praticando a lição que a UFSM me ensinou: enroscar-me ao mundo me enroscando aos outros. FIM. 3