PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Samanta Micheli Cunha Percursos, enfrentamentos e apoios na convivência com o câncer de mama. MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2013 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL Samanta Micheli Cunha Percursos, enfrentamentos e apoios na convivência com o câncer de mama. MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Social, sob a orientação da Profa. Dra. Mary Jane Paris Spink. SÃO PAULO 2013 BANCA EXAMINADORA ________________________ ________________________ _________________________ Para minha mãe, Maria do Carmo, mulher desbravadora que me ensinou com amor o que é mais importante na vida. Para minhas filhas, Beatriz e Luiza, minhas maiores alegrias, que me surpreendem e encantam todos os dias. Para as tias Nícia e Maria (in memoriam), que encheram minha vida de doçura e afeto. Para Helena Cipriani e Dinorah dos Santos (in memoriam), para Fernanda Fonseca e todas as mulheres que conviveram, convivem e vão conviver com o câncer de mama. AGRADECIMENTOS À minha orientadora, Profa. Dra. Mary Jane P. Spink, por ter me acolhido no Núcleo de Práticas Discursivas e Produção de Sentidos, pela valiosa e inestimável orientação. Por tornar a pesquisa mais interessante e desafiadora; Às Profas. Dras. Bader Burihan Sawaia e Jacqueline Isaac M. Brigagao pelas pertinentes e enriquecedoras sugestões no exame de qualificação. À Bader, por compartilhar suas inquietações e assim enriquecer a pesquisa. À Jaque, em especial, por ser minha referência desde a época de graduação; À Profas. Dras. Maria Cristina Vicentin, Maria do Carmo Guedes e ao Prof. Dr. Salvador Antonio M. Sandoval, que foram fundamentais para a minha formação acadêmica; À Profa. Dra. Maria Lúcia Rodrigues, por ter me recebido na disciplina que ministra no Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e assim ter me dado a oportunidade de fazer interlocuções interessantes com as colegas do serviço social; Ao Fernando Malta Cardoso, meu grande companheiro de vida, minha fonte de inspiração. Por todo incentivo, apoio, paciência e amor; À minha querida irmã Silvia Antonia de Morais, pela força e determinação que nos fazem persistir nos nossos sonhos. Por ter me dado as bases para eu me tornar o que sou hoje; À Profa. Dra. Tânia Regina Botelho Pupo, que tanto me ensinou sobre esse tema instigante que é saúde, sobre a delicadeza e grandeza da vida, sobre fé. Obrigada por tornar possível a realização dessa pesquisa em Jundiaí; Aos colegas de Núcleo. À Fernanda Calderaro por pacientemente tornar familiar o que era ainda desconhecido, à Jullyane Brasilino pelo incentivo, ao Pedro pela torcida, por suas ideias e indicações de leitura, ao Fabrício por todo o auxílio. O apoio de vocês lá no início foi fundamental. À Vera Menegon pelas pontuações oportunas e à Vanda Lúcia Nascimento pela seriedade e profissionalismo que mantêm a qualidade do trabalho. À Eliete de Souza por ser tão acolhedora e por seu brilho contagiante. À Camila Quina Pereira, pelo seu estímulo, pelas preciosas dicas e por ser sempre doce. À Mariana Prioli Cordeiro, por ser tão aplicada nos estudos e compartilhar conosco o seu conhecimento, fruto de sua dedicação. Ao Mário Martins, que me ajudou nos momentos finais da dissertação. Não apenas pelo seu talento acadêmico que se destaca e enriquece todas as discussões, mas por sua amizade que se estende à minha família. Agradeço pela oportunidade de ter encontrado colegas tão especiais e queridos nessa jornada: Cláudia Pedrosa, Roberth Tavanti, Jussara Spolaor, Bruna Barreto, Morgana Moura, Thiago Freitas, Simone Conejo, George Moraes, Ricardo Pimentel e Lúcia Lima; Agradeço aos demais colegas com quem trilhei o caminho do mestrado: Naiara Matos, Renata Leatriz, Taynã Bonifácio, Geisa Gomes, Lilian Clementoni, Raquel Franchito, Suzimar W. De Morais, Joel Borella, Alciene Ferreira e Ivonete Gardini; À Claudia Malinverni, pela revisão impecável e cuidadosa. Pelo incentivo e por tornar o processo mais leve e alegre; À Julia Francisca G. Simões Moita, que me fez retomar o gosto pelas reflexões teóricas, principalmente os estudos feministas; À equipe do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, em especial Dr. Marcos Kisil e Tatiana Akabane van Eyll. À equipe do Instituto Avon: Lírio Cipriani, Angela Fioravante, Rita Dardes e Olga Corch Simantob; A Paulo de Tarso Magalhães Gomes, que me ajudou a plantar sementes que brotam até hoje. Por exercer um papel na minha formação que é imensurável; A todos os profissionais do Ambulatório de Saúde da Mulher de Jundiaí; Às mulheres que participaram da pesquisa; À Marlene, que com seu trabalho e competência facilita os processos administrativos; Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, pelo incentivo financeiro que viabilizou a pesquisa. SOBRE OS DESENHOS Os desenhos que abrem cada um dos capítulos da dissertação são da artista plástica carioca Fernanda Fonseca, uma amiga querida e talentosa que descobriu um câncer de mama em 2011 – por uma dessas coincidências, no mesmo ano em que comecei a pesquisa. Durante os quase dois anos de tratamento, Fernanda usou de seu talento e da sua sensibilidade para elaborar o sofrimento, transformando em arte o processo que vivenciou. Ela e todas as mulheres que integram essa pesquisa nos mostram que há também beleza nas adversidades da vida. Encontramos nos desenhos elementos comuns às falas das mulheres que entrevistamos: a simbologia das marcas deixadas no corpo pelo tratamento; descobrir outras estéticas na fase de perda dos cabelos; enxergar sutilezas no cotidiano, a despeito da dor que se sente. Para conhecer o seu trabalho: http://maiscanela.wordpress.com/. CUNHA, S. M. Percursos, enfrentamentos e apoios na convivência com o câncer de mama. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2013. RESUMO Em decorrência da alta mortalidade de mulheres por câncer de mama no país, ocasionada pelo diagnóstico tardio, a doença vem sendo, progressivamente, foco das políticas e programas governamentais da saúde da mulher. Visamos com essa pesquisa compreender os principais desafios que as mulheres atendidas no SUS encontram no percurso que fazem entre os serviços de saúde, com ênfase nas estratégias de enfrentamento, nos apoios e na maneira como convivem com a doença. Ao questionar os fundamentos ontológicos da verdade e entender que a realidade é múltipla, o câncer de mama não é compreendido como um ente uno rodeado por diferentes olhares. Tendo como pressupostos epistemológicos as noções de multiplicidade, performance (enactment), materialidades e socialidades postuladas por Mol (2008) e Law e Mol (1995), propomos o prisma da complexidade: o câncer é múltiplo e performado por diversas práticas. Fazemos também um diálogo com algumas noções da Teoria AtorRede, dentre elas o princípio da simetria entre humanos e não humanos na rede heterogênea em que o câncer é performado. As reflexões sobre campo-tema e pesquisa no cotidiano serviram de base teórico-metodológica, no período em que permanecemos no serviço de mastologia do Ambulatório de Saúde da Mulher de Jundiaí-SP. Para atingir os nossos objetivos, utilizamos diversos instrumentos de pesquisa e fontes de informação, como observações e conversas registradas em diário de campo, documentos do ASM, sites governamentais, entrevistas com profissionais do serviço e com mulheres que passavam por diferentes fases de diagnóstico e tratamento. A partir da narrativa dessas mulheres, elaboramos mapas dialógicos com as categorias temáticas: diagnóstico, cirurgia, tratamento, enfrentamentos e apoios, relação com os profissionais de saúde e percursos. Verificamos as implicações do rastreamento constante e o limiar entre a saúde e a doença nos casos “suspeitos”, bem como as materialidades e socialidades presentes em cada estágio do câncer de mama e as diversas práticas que o performam. Buscamos compreender as similaridades e particularidades no enfrentamento da doença e vimos que a convivência com ela é permeada por dificuldades, tensionamentos, negociações e conflitos entre os profissionais e as mulheres, mas também é atravessada por protagonismo, vínculo, acolhimento e solidariedade. Palavras-chave: Câncer de mama; Sistema Único de Saúde; Psicologia social, Materialidades e socialidades; Multiplicidade. CUNHA, S. M. Paths, coping and support in living with breast cancer. Dissertation (Master in Social Psychology). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2013. ABSTRACT Due to the high mortality rate for woman breast cancer in the country, caused by late diagnosis, this disease has progressively become the focus of government policies and programmes on women's health. In this research we aim to understand the key challenges women served on SUS need to deal in their flows between services, with emphasis on coping strategies and the way they live with the disease. Questioning the ontological foundations of truth and understanding that reality is multiple, breast cancer is not understood as a singular object surrounded by different perspectives. We ground on epistemological assumptions and notions of multiplicity, performance (enactment), materialities and socialities postulated by Mol (2008) and Law and Mol (1995) to propose the prism of complexity: the cancer is multiple and performed by various practices. We also make a dialogue with some notions of Actor-Network Theory, among them, the principle of symmetry between humans and non humans on the heterogeneous network where cancer is enacted. The concepts of field-theme and research in daily live were our theoretical and methodological basis, in the period in which we were researching in the service of the Health Clinic of Mastology Woman of Jundiaí-SP. To achieve our goals, we used a variety of search tools and sources of information, observations and conversations recorded in a logbook, documents of the ASM, government sites, interviews with professionals working in the service and with women who passed through different stages of diagnosis and treatment. According to the narratives of these women, we produced dialogical maps with thematic categories: diagnosis, surgery, treatment, clashes and supports, relationship with health professionals and tracks. We note the implications of constant surveillance and we also trace the threshold between health and disease in "suspicious" cases, as well as the materialities and socialities present in each stage of breast cancer and the various practices they perform. We seek to understand the similarities and points of interest involved in coping with the disease and we have seen that the coexistence with it is pervaded by difficulties, stresses, negotiations and disputes between professionals and women, but it is also crossed by active roles, bond, nourishment and solidarity. Keywords: Breast cancer; Unified Health System; Social Psychology, Materialities and Socialities; Multiplicity. LISTA DE FIGURAS TABELA 1 – Taxa de incidência e mortalidade por câncer de mama...........................24 TABELA 2 – População-alvo das ações de detecção precoce do câncer de mama da CRG Jundiaí: mulheres (zona urbana e rural) por idade............................................60 TABELA 3 – Cobertura do exame de mamografia, de acordo com o município em 2009...........................................................................................................................63 TABELA 4 - Pacto pela Saúde – 2010/2011, dados preliminares. Eixo Prioritário II – Controle do câncer de útero e de mama. Indicador 4: razão entre mamografias realizadas nas mulheres de 50 a 69 anos e população feminina nesta faixa etária, em determinado local e no...................................................................................................65 TABELA 5 - Óbitos por câncer de mama notificados, de janeiro a dezembro de 2010...........................................................................................................................67 QUADRO 1 - Programas e politicas para o controle de câncer de mama.....................49 QUADRO 2 – Recomendações para detecção precoce por faixa etária e grupos de risco............................................................................................................................53 FIGURA 1 - Detecção precoce do câncer de mama no Brasil.....................................52 FIGURA 2 - Fluxo de atendimentos de mastologia na CGR.......................................62 MAPA 1 – Distribuição dos Departamentos Regionais de Saúde do Estado de São Paulo.................................................................................................59 LISTA DE SIGLAS ASM – Ambulatório de Saúde da Mulher de Jundiaí BIRADS – Breast Imaging-Reporting and Data System Datasus – Banco de Dados do Sistema Único de Saúde Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social – IDIS Femama – Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama Fosp – Fundação Oncocentro de São Paulo Inamps – Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social INCA – Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva MS – Ministério da Saúde Seade – Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados Sismama – Sistema de Informação do Câncer de Mama Sispacto – Aplicativo do Pacto pela Saúde SUS – Sistema Único de Saúde TAR – Teoria Ator Rede SUMÁRIO CAPÍTULO 1: INTRODUÇÃO..................................................................14 1.1 PRESSUPOSTOS ONTOLÓGICOS E EPISTEMOLÓGICOS.........16 1.2 O CÂNCER DE MAMA COMO FOCO DE PESQUISA..................20 CAPÍTULO 2: DELINEANDO OS PASSOS DA PESQUISA – OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS.....................................................................................27 2.1 SOBRE OS OBJETIVOS....................................................................27 2.1.1 Objetivo Principal......................................................................27 2.1.2 Objetivos Específicos................................................................27 2.2 A ESCOLHA DO AMBULATÓRIO DE SAÚDE DA MULHER DE JUNDIAÍ – SP....................................................................................27 2.3 SOBRE OS PROCEDIMENTOS DE PESQUISA............................28 2.3.1 As Conversas, Observações, Documentos e Registros............28 2.3.2 As Entrevistas com as Mulheres.............................................36 2.4 ASPECTOS ÉTICOS.......................................................................39 CAPÍTULO 3: O CÂNCER DE MAMA COMO FOCO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE.........................................................................41 3.1 DE DOENÇA MALDITA ÀS ATUAIS POLÍTICAS DE CONTROLE DO CÂNCER DE MAMA..............................................41 3.1.1 A Participação da Sociedade Civil na Luta Contra o Câncer de Mama..........................................................................................46 3.1.2 As Diretrizes para o Controle do Câncer de Mama...............48 3.2 O EXAME CLÍNICO E A MAMOGRAFIA COMO PRINCIPAL ESTRATÉGIA DE CONTROLE DO CÂNCER DE MAMA NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE......................................53 3.2.1 Rastreamento Mamográfico: Políticas Públicas versus Especialistas....................................................................................54 CAPÍTULO 4: CONTEXTUALIZANDO O AMBULATÓRIO DE SAÚDE DA MULHER.............................................................................57 4.1 O MUNICÍPIO DE JUNDIAÍ COMO POLO REGIONAL DO COLEGIADO GESTOR REGIONAL JUNDIAÍ.................................58 4.1.1 O ASM na Rede De Serviços para a Detecção Precoce e Controle do Câncer de Mama nos Nove Municípios que Compõem a CGR Jundiaí...............................................................60 4.1.2 Fluxo de Atendimento da Mastologia na Região...................61 4.1.3 Os Principais Desafios na Rede de Serviços..........................61 4.2. CARACTERIZAÇÃO DO AMBULATÓRIO DE SAÚDE DA MULHER..............................................................................................68 4.2.1. O Fluxo do Atendimento no ASM em Jundiaí......................68 4.2.2. Os Principais Desafios e Possibilidades do ASM.................69 4.2.2.1 O Espaço Físico.......................................................70 4.2.2.2 O Acolhimento.........................................................71 4.2.2.3 Necessidade de Reuniões Periódicas.......................74 4.2.3 Investimento nos Recursos Tecnológicos e nos Canais de Comunicação com os Usuários.......................................................75 CAPÍTULO 5: AS MULHERES ENTREVISTADAS..........................78 5.1 OS PERCURSOS NA REDE DE SERVIÇOS................................78 5.1.1 Vânia: Nódulo Benigno..........................................................78 5.1.2 Lúcia: um Diagnóstico Recente de Câncer de Mama............80 5.1.3 Mirza: a Fase Intermediária do Tratamento...........................83 5.1.4 Mariana: a Fase Final do Tratamento....................................85 CAPÍTULO 6: A CONVIVÊNCIA COM O CÂNCER DE MAMA....89 6.1 SOB A ÉGIDE DO CONTROLE: ENFRENTANDO OS DILEMAS DO RASTREAMENTO CONSTANTE..............................89 6.1.1 Os Nódulos Benignos: Tornando-se um “Caso Suspeito”......92 6.2 AS DIFERENTES FASES DA CONVIVÊNCIA COM OS NÓDULOS “MALIGNOS”.....................................................................97 6.2.1 Do Diagnóstico e Cirurgias às Radioterapias/Quimioterapias e Pós-Tratamento..............................................................................97 6.2.1.1 Os Efeitos do Tratamento...........................................104 6.3 ENFRENTAMENTOS E APOIOS..................................................106 CAPÍTULO 7: CONSIDERAÇÕES (NEM SEMPRE) FINAIS...........114 8 REFERÊNCIAS.....................................................................................120 APÊNDICES.................................................................................................126 APÊNDICES A- Termo de Consentimento Informado e Esclarecido..........126 APÊNDICES B - Exemplo de mapa dialógico.............................................127 ANEXOS.......................................................................................................141 ANEXO A - Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa..................................141 ANEXO B - Autorização para uso de imagem..............................................142 15 CAPÍTULO 1: INTRODUÇÃO Não daria conta de discorrer sobre todas as escolhas e todos os caminhos que percorri nesta pesquisa, porque eles foram muitos. E a memória, por mais que recorramos a registros, pode falhar ou embaçar algumas passagens. Mas sempre partimos de alguns pontos disparadores e, para situar o leitor, vou elencar alguns dos principais percursos pessoais que me levaram a escolher esse tema. Durante dois anos, de 2005 a 2007, fui coordenadora de projetos em uma organização não governamental que presta consultoria para institutos, fundações, empresas e famílias que aportam recursos para a área social – o Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS). Com histórico de formação em psicologia e experiência anterior na área da saúde, especificamente com HIV/aids, acompanhei mais de 45 projetos voltados para detecção precoce do câncer de mama, desenvolvidos em diversas regiões do país, com apoio financeiro e técnico do Instituto Avon, que, no Brasil, atua nessa causa desde sua criação, em 2003. O meu papel principal era acompanhar a implementação dos projetos da extinta “Campanha um beijo pela vida”, que passavam por diferentes fases dentro de um ciclo: - Identificação e prospecção junto a organizações de referência na prevenção e atendimento ao câncer de mama no Sistema Único de Saúde, em todo país; - Arrecadação de recursos por meio da venda de produtos identificados com um selo da campanha no folheto da Avon; - Abertura de edital para a inscrição de projetos enviados pelas organizações de referência previamente identificadas; - Seleção dos projetos que estavam dentro dos critérios estabelecidos pelo Comitê Técnico do Instituto Avon e IDIS (formado por médicos, especialistas em saúde pública, administradores, assistentes sociais e psicólogos, entre outros); - Oficina de elaboração de projetos voltada para os coordenadores das propostas selecionadas, organizada e conduzida pelo Comitê Técnico e por especialistas do terceiro setor; - Seleção final dos projetos; - Acompanhamento e monitoramento das atividades dos projetos apoiados, a serem desenvolvidas no período de 18 meses; - Início da campanha seguinte, ao final desse período. 16 Fazendo parte da equipe do IDIS, entre minhas funções principais estavam acompanhar o desenvolvimento dos projetos: verificar se as atividades estavam alinhadas com os objetivos previstos; acompanhar indicadores; verificar as dificuldades; e prestar apoio técnico para que as organizações encontrassem alternativas para os imprevistos, além de identificar boas práticas para reunir os aprendizados acumulados. Por meio de reuniões mensais com o Comitê Técnico, um relatório sobre cada projeto era colocado em pauta. O apoio técnico específico para cada um deles era desenvolvido em conjunto com profissionais de áreas diversas, resultando em uma atividade multidisciplinar. Assim, procurava-se contemplar os diversos olhares e saberes – do gestor da área da saúde, das organizações parceiras, do cuidador, do técnico, do médico, do profissional que atuava na ponta executando as atividades, das mulheres – para que os projetos ganhassem em qualidade, eficiência e eficácia. Esse olhar em rede, somado à riqueza de acompanhar diferentes realidades brasileiras – os projetos eram implementados por atores locais de diversas regiões do país –, me permitiu conhecer melhor como funciona essa complexa rede de pessoas e organizações, entrelaçada por outras sub-redes locais e regionais, que têm como política reguladora o SUS. Foi uma rica vivência na qual pude compreender a magnitude do câncer de mama no contexto do Sistema Único de Saúde, contemplando as particularidades e os desafios que cada região tem de encarar para enfrentar o problema da doença, que cada vez mais ganha espaço nas políticas públicas. O trabalho com um tema que é estreitamente ligado à saúde, ao corpo e à vida das mulheres também foi motivado pela minha própria condição de mulher, de filha, sobrinha, mãe de duas meninas e, principalmente, de irmã – quando eu era criança acompanhei a angústia de minha segunda irmã, que retirou um nódulo mamário aos 16 anos. Desde cedo aprendemos que o corpo deve ser alvo de atenção e cuidado em saúde. Da primeira menarca até o final da vida reprodutiva recebemos avisos imperativos do que devemos fazer com a saúde ginecológica, quando e como. Ainda muito novas escutamos que a menstruação marca um período fundamental, aquele em que podemos gerar outra vida. E, no qual, também estamos sujeitas a adoecer. Daí a importância de passarmos por exames periódicos. Estamos tão habituadas com os discursos e práticas médicas voltados para nós, mulheres, que acabamos por incorporar muitos 17 deles sem pestanejar. Levamos sustos e temos medo quando enfrentamos alguma intercorrência (inevitável ao longo da vida) e nos submetemos a exames e procedimentos para investigar se está tudo bem conosco. Também presenciei muitas mulheres do meu convívio, próximo ou mais distante, adoecerem de câncer de mama. E vivo receosa com a possibilidade de um dia também vir a adoecer, da mesma maneira que muitas mulheres, enredadas que estamos por questões comuns que nos afligem. Mas a principal questão que me traz angústia era e continua sendo: por que algumas mulheres se veem curadas e tantas outras morrem por câncer de mama no Brasil? Estava claro que há, para além dos casos particulares, uma importante questão ligada ao descumprimento de um dos princípios que norteiam o SUS: falta equidade em saúde. Quem tem rápido acesso aos serviços eficientes de saúde engrossa as estatísticas de mais de 90% de cura. Já as que dependem de um sistema moroso e ineficiente têm as chances significativamente reduzidas. Em razão desse cenário, mesmo quando deixei de trabalhar com o tema diretamente, a partir de meados de 2007, me sentia instigada a estudá-lo mais a fundo. Por sua tradição de pesquisas no campo da saúde, em 2010 me aproximei do Núcleo de Práticas Discursivas e Produção de Sentidos (NPDPS) – na graduação em psicologia tive oportunidade de ser aluna de uma pesquisadora do Núcleo. 1.1 PRESSUPOSTOS ONTOLÓGICOS E EPISTEMOLÓGICOS No Núcleo somos constantemente provocados a abordar nossos temas e práticas de pesquisa a partir de uma posição crítica em psicologia social. Tendo como bases epistemológicas e ontológicas as vertentes pós-construcionistas, responsáveis por nossa ótica não fundacional e desnaturalizante, partimos das reflexões de Annemarie Mol (2008) sobre ontologia política para discutir o caráter múltiplo da realidade. Entre as questões que a autora levanta, a principal delas é como o real e o político estão imbricados um no outro. A combinação dos termos “ontologia” e “política” forma um termo composto. Fazendo referência a Michel Foucault, ontologia, que na filosofia diz respeito ao que pertence ao real, refere-se às ‘condições de possibilidade’ (termo foucaultiano) com que vivemos. Essas condições de possibilidade não são dadas a priori. São, antes, modeladas pelas práticas. 18 Tradicionalmente, Mol afirma, a realidade para a ciência possui características intrínsecas passíveis de serem descobertas por meio de métodos científicos adequados. No entanto, nas últimas duas décadas, essas ideias estão sendo fortemente rebatidas. A autora propõe que seja retirado o caráter estável, generalizável e determinado da realidade e, em seu lugar, se estabeleça o contrário: “a realidade é localizada histórica, cultural e materialmente” (Mol, 2008, p. 64). E pensar a realidade sob essa ótica implica falar em realidades, no plural. Mol enfatiza que não se trata de simples pluralismo ou perspectivismo, quando vários olhares miram um objeto único e dão suas diferentes versões sobre ele. A autora dá um passo adiante quando diz que realidades são múltiplas. Falar da realidade a partir de seu caráter múltiplo nos traz o desafio de buscar outras metáforas. Sobre isso ela coloca: Não as de perspectiva e construção, mas sim as de intervenção e performance. Estas sugerem uma realidade que é feita e performada [enacted], e não tanto observada. Em lugar de ser vista por uma diversidade de olhos, mantendo-se intocada no centro, a realidade é manipulada por meio de vários instrumentos, no curso de uma série de diferentes práticas. Aqui é cortada a bisturi; ali está a ser bombardeada com ultrassons; acolá será colocada numa balança e pesada. Mas, enquanto parte de actividades tão diferentes, o objeto em causa varia de um estádio para o outro. Aqui é um objecto carnudo, ali é um objecto espesso e opaco, além é um objecto pesado. Nas histórias de performance, a carnalidade, a opacidade e o peso não são atributos de um objecto único com uma essência escondida. Tão pouco é função dos instrumentos pô-los à mostra como se fossem vários aspectos de uma realidade única. Em vez de atributos ou aspectos, são diferentes versões do objecto, versões que os instrumentos ajudam a performar [enact]. São objectos diferentes, embora relacionados entre si. São formas múltiplas da realidade – da realidade em si (MOL, 2008, p. 66) A autora dá o exemplo da anemia para ilustrar o seu argumento. Ela pode ser identificada no consultório com medidas de verificação simples de sintomas: olhos empalidecidos, exame do aspecto geral da pele, as queixas verbalizadas pelo paciente (tontura, fraqueza, cansaço). Essa é a performance da anemia na clínica, verificada pela presença de sintomas visíveis. Em outro momento, ela é performada no laboratório, onde o sangue é retirado da veia, condicionado em tubos, levados ao técnico que irá verificar as taxas de hemoglobina dessa amostra, relacionandoas com um valor esperado para o grupo ao qual aquele indivíduo pertence (homem, mulher, criança, grávida). Essa é a anemia performada pela estatística. Na prática, porém, pode haver a ausência de sintomas físicos e a taxa de hemoglobina dar alterada no exame. A autora continua: A realidade da anemia assume várias formas. Não são perspectivas de diferentes pessoas, pois no curso do trabalho uma mesma pessoa pode passar de uma performance para outra. Também não são construções do passado, alternativas, das quais só uma sobreviveu – emergiram em momentos distintos da história, mas nenhuma delas 19 desapareceu. Portanto, há diferentes versões, diferentes performances, diferentes realidades que coexistem no presente. (MOL, 2008, p. 68) As diferentes realidades, versões e performances coexistem. Elas interferem umas nas outras e muitas vezes entram em conflito e tensionamento. Cada versão sobre o fenômeno vai produzir um efeito na realidade, que tem esse caráter múltiplo justamente por abarcar todas essas versões. Enfatizamos: não são versões que descrevem de maneira diferente uma realidade única. São diversas versões que produzem variados efeitos e performam realidades. A Teoria Ator-Rede, um dos principais movimentos que romperam radicalmente com a concepção tradicional de realidade, se caracteriza por um conjunto de princípios metodológicos, epistemológicos e trabalhos de campo que há mais de duas décadas subverteram o pensamento social. A TAR se caracteriza por realizar um minucioso e persistente trabalho de demolição das dicotomias que tradicionalmente integram as análises de cunho sociológico e psicossocial: natureza e sociedade, macro e micro, humanos e não humanos (TIRADO: DOMÈNECH, 2005). De acordo com esses autores, uma das noções com a qual a TAR trabalha é a simetria generalizada. Tanto sociedade quanto natureza não são considerados entes que possuem essência. Ambas são construções de redes heterogênas. Há uma dissolução da barreira entre natureza e sociedade, humanos e não humanos. No entanto, os autores afirmam que o pressuposto da simetria generalizada só pode ser compreendido se relacionado com outro princípio da TAR: a noção redes heterogêneas formada por humanos e não humanos. E nessa rede, para quem a analisa sob a perspectiva da TAR, uma entidade nunca prevalece sobre a outras. A relação entre humanos não será considerada, a priori, mais relevante do que as relações estabelecidas entre humanos e não humanos. As pessoas, os objetos, os eventos e as estruturas são produtos – ou efeitos – de um emaranhado formado por materiais heterogêneos, justapostos, unidos e configurados por relações que são capazes de estabelecer entre si. Essa lógica semiótica prioriza a parte, o detalhe, a especificidade do objeto, em contraposição ao objeto acabado, evidente e manifesto. Os efeitos que esses materiais heterogêneos produzem na rede igualmente heterogênea são efeitos provisórios, transitórios e inacabados. No enquadre da TAR, que rompe com a dicotomia entre material e social, as materialidades e socialidades são relacionais e produzidas conjuntamente: As análises da teoria ator-rede resultam fundamentalmente da perspectiva semiótica, onde os elementos e entidades que integram tais análises não existem por eles mesmos. 20 Eles estão constituídos nas redes das quais fazem parte. Objetos, atores, processos – todos são efeitos semióticos: ‘nós’ de uma rede que não são mais do que conjuntos de relações; ou conjuntos de relações entre relações. Dentro dessa lógica, dá-se um passo adiante: os materiais estão constituídos interativamente; fora dessas interações não têm existência, não têm realidade (LOW; MOL, 1995, p. 277. Tradução nossa). Diante dessas perspectivas, que rompem com a tendência de simplificar a realidade, devemos evitar explicar os fenômenos de maneira simplificadora e olhá-los sob o prisma da complexidade. Essa postura também tem implicações sobre o conhecimento, que tal qual a realidade, também é múltiplo. Podemos, a partir das ideias de Mol, refletir sobre os fenômenos fazendo algumas perguntas: porque as coisas são como são? Elas poderiam ser de outra maneira? Homens e mulheres, por exemplo, ocupam determinados lugares na sociedade. Mas uma mudança na ideia do que os caracterizou como “X” e “Y” no curso da história poderia mudar completamente o rumo dessas noções. A construção do conhecimento, assim, passa de uma reflexão sobre as possibilidades daquilo que poderia ter sido e não foi – ou nas palavras de Mol (2008), “os perdedores perderam”1 – para abordagens nas quais devemos pensar em outras possibilidades existentes, ou seja, abordagens que nos permitem fazer políticas ontológicas. Aqui abrimos um parêntese para reforçar que, circunscrita em um Núcleo que reconhece o lugar primordial da linguagem em uso no cotidiano, evidentemente as práticas discursivas se entrelaçam com essas noções. Partindo do pressuposto de que os sentidos que damos às coisas e ao mundo são coconstruídos no ‘aqui e agora’ da interação entre duas ou mais pessoas, damos também aos sentidos o caráter da multiplicidade. Mais que isso: entendemos que as práticas discursivas provocam efeitos e performam a realidade. Para entendermos como os sentidos circulam na sociedade, é necessário considerar três instâncias: a do tempo vivido (experiências da pessoa no curso da sua história pessoal, onde ocorre o aprendizado das linguagens sociais), a do tempo curto (interações sociais face a face, é o momento concreto da vida social) e a do tempo longo (conhecimentos que advém de diferentes áreas do saber e que antecedem a vida da pessoa, mas que nela se fazem presentes por meio de instituições, modelos, normas, códigos, etc.). Essa concepção de linguagem como prática social, a partir da perspectiva bakhtiniana (BAKHTIN, 1994), caracteriza a linguagem em uso pela 1 Mol fala que as histórias construtivistas versam sobre “coisas que poderiam ser”, mas que desapareceram em algum momento da história por contingências várias. Dando exemplo de artefatos bem difundidos, poderíamos ter tido outro tipo de bicicleta, teclados ou sistema de vídeo. O mesmo se passa com os fatos. Poderíamos ter outro sistema de ensino, outra noção de infância, por exemplo. Sugere, assim, que construções de realidade alternativas seriam possíveis. 21 polissemia e pela contradição. Assim entendido, não existe um sentido puro, a priori, que seria base ou matriz de todos os outros sentidos relacionados a ele (embora saibamos que os discursos são perpassados também por repertórios do tempo longo da história). Indo além, a linguagem não é apenas troca entre dois ou mais interlocutores, é também ação e produz consequências e efeitos no mundo. Para compreendê-la é necessário não apenas uma análise do seu conteúdo (pois cairíamos um uma armadilha conteudista), mas também do contexto de sua produção – quem fala, para quem, quando, em quais condições, de que modo, com quais intenções, com quais efeitos, etc. 1.2 O CÂNCER DE MAMA COMO FOCO DE PESQUISA O câncer de mama é uma importante questão de saúde pública atualmente e envolve diferentes setores da sociedade, tendo como fio condutor as versões clínicas e epidemiológicas preconizadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), órgão auxiliar do Ministério da Saúde, responsável por formular diretrizes para prevenção, detecção e controle do câncer no país. Cabe ressaltar aqui o nosso pressuposto de que, para além das diretrizes e discursos oficiais, circulam outras versões que coexistem e se influenciam, às vezes entrando em conflito, às vezes convergindo. Descobertas clínicas irão influenciar políticas públicas, que por sua vez irão influenciar e definir intervenções clínicas. Essas descobertas são amplamente divulgadas para a população por meio de campanhas de conscientização do governo e também pelos meios de comunicação, em um processo contínuo de negociação e tensão entre os atores envolvidos. Essas informações são traduzidas para o público leigo nos jornais, rádios, revistas e televisão, entre outros, alimentando o imaginário social sobre o que é o câncer de mama e como preveni-lo. Todas essas versões coexistentes vão resultar em práticas discursivas sobre o que é saúde e o que é câncer de mama. A exemplo dos estudos de Mol em The body multiple ontology in medical practice (2005), na presente pesquisa entendemos o câncer de mama a partir de sua multiplicidade e não como uma doença singular. Resultado de trabalho etnográfico em um hospital holandês, o livro da autora olhou para o diagnóstico e tratamento da aterosclerose no dia a dia da instituição. Suas reflexões são passíveis de generalização para outras doenças, como o câncer de mama. 22 No caso da arterosclerose, a definição médica poderia se resumir a uma doença crônicodegenerativa na qual ocorre a obstrução gradual das artérias (assim como o câncer poderia se resumir ao crescimento desordenado das células). Porém, Mol propõe que na prática essa doença pode ser muitas outras coisas. Em um dado momento e lugar, o médico cirurgião olha o vaso sanguíneo dilatado na perna do paciente; em outro, o patologista examina um fragmento do tecido retirado na cirurgia. Assim, a aterosclerose vista através de um microscópio é diferente da aterosclerose vista a olho nu. Essa multiplicidade de práticas, no entanto, não implica fragmentação da doença, nem pluralismo simples. Ao contrário, haverá tantas “ateroscleroses” quantos procedimentos e técnicas existirem (por isso é múltipla) e vice-versa, incluindo transporte de formulários e arquivos, realização de imagens, conferências para discussão de casos e conversas entre médico e paciente, etc. – cada uma delas performando uma forma da doença. Articulando essa noção com o tema desta pesquisa, o modo como o câncer de mama é organizado não pode ser entendido como mera prática: cada modo de organização e ordenamento produzem diferentes “cânceres de mama”. Indo além, essas performances possuem efeitos na realidade, performam de diferentes maneiras as múltiplas realidades e nelas intervêm. Estamos falando de ontologias políticas: cada qual produzirá efeitos diversos na rede ou rizoma ao qual foi agregado. Organizar o mundo em nossos sistemas classificatórios, por exemplo, é performar e produzir esse próprio mundo, é performar versões desse mundo. “Em vez de atributos ou aspectos, são diferentes versões do objecto, versões que os instrumentos ajudam a performar [enact]. São objectos diferentes, embora relacionados entre si. São formas múltiplas da realidade – da realidade em si” (MOL, 2008, p. 66). O câncer de mama é também performado por meio de dados estatísticos e epidemiológicos; por conjunturas políticas e econômicas – locais, regionais e internacionais; pela pressão de movimentos sociais e grupos ideológicos, interesses de classe, entre outros. Mesmo reconhecendo que se tratam de versões múltiplas, considerando que o campo de pesquisa está imbricado com os serviços de saúde, optamos por priorizar a versão fornecida pelas principais agências que mapeiam o câncer, o que embasa as políticas de controle e orienta os estudos clínicos, embora o que é consenso sobre câncer de mama em um dado momento possa virar dissenso em outro. 23 A OMS estima que no mundo ocorram cerca de 1.050.000 casos de câncer de mama por ano. É o tipo de câncer que mais incide sobre a população feminina, e em 2008 representava 23% do total de casos no mundo. Nas mulheres, é a causa mais frequente de morte por câncer. As causas do câncer de mama não são totalmente conhecidas, mas sabe-se que a doença é multifatorial e depende de uma complexa combinação de fatores. A idade é o principal fator de risco, que aumenta a partir dos 35 anos em alguns grupos. As mulheres que têm entre 50 e 70 anos são as mais propensas, por isso as políticas de rastreamento, baseadas nas recomendações da Organização Mundial de Saúde, são prioritariamente focadas nessa faixa etária. Existe também a predisposição genética, que não é tão significativa, pois representa de 5% a 10% dos casos, mas serve como alerta. Apesar de raras, mutações genéticas nos genes BRCA1 e BRCA2 estão associadas a alto risco (AMENDOLA; VIEIRA, 2005). Os fatores que predispõem as mulheres ao câncer de mama são classificados entre os inevitáveis e os que podem ser evitados por meio da mudança ou incorporação de hábitos e comportamentos, possibilitando assim a intervenção direta dos programas de prevenção. Na primeira classificação temos as seguintes características: sexo feminino, idade maior que 55 anos, predisposição genética, antecedência pessoal e familiar, alta densidade mamária, menarca precoce ou menopausa tardia. Já os fatores de risco que podem ser evitados, minimizando em tese as chances de câncer, são: migração, exposição à radiação ionizante, nuliparidade ou primeira gestação depois dos 30 anos, uso de terapia de reposição hormonal, não amamentar, consumo de álcool, fumo, abuso de gordura animal e obesidade. A presença de fatores de risco isolados ou combinados em uma pessoa não indica probabilidade de que ela vá desenvolver a doença, mas que existe uma predisposição maior. Portanto, essa pessoa torna-se público alvo das políticas públicas de saúde para prevenção e controle. A incidência do câncer de mama é maior nas nações desenvolvidas, mas o Brasil e demais países em desenvolvimento também vêm apresentando um aumento na sua incidência, principalmente pelo envelhecimento da população (a idade é o principal fator de risco), crescimento demográfico e mudanças nos hábitos de vida. O aumento das notificações oficiais de câncer de mama também é atribuído ao maior acesso da população aos meios diagnósticos, decorrente das mudanças econômicas, políticas e sociais ocorridas nas últimas décadas. Seguindo uma tendência mundial, no Brasil também o 24 câncer de mama é o tipo mais comum entre as mulheres, como alerta o Instituto Nacional de Câncer (INCA, 2011). No Brasil, o câncer de mama é a primeira causa de morte por neoplasia nas mulheres, com exceção da região Norte, onde ele ocupa o segundo lugar (INCA, 2009). Conforme a Estimativa 2012 – Incidência de câncer no Brasil (INCA, 2011), para o ano de 2012 estavam previstos 52.680 novos casos de câncer de mama no país (risco estimado de 52 casos a cada 100 mil mulheres). De acordo com o órgão, essa incidência é maior na região Sudeste, com probabilidade estimada de 65 casos para cada 100 mil mulheres. Nas outras regiões, desconsiderando-se o câncer de pele, é o mais frequente nas mulheres das regiões Sul (64/100.000), Centro-Oeste (38/100.000), Nordeste (30/100.000) e Norte (17/100.000) – esta última a única onde o câncer de colo de útero ocupa a primeira posição. Há dados que indicam um aumento na taxa de mortalidade (padronizada por idade/100.000 mulheres) de 5,77 em 1979, para 9,74 em 2000 (INCA, 2004). Em 2009 foram registrados 11,3 óbitos/100.000 mulheres, sendo essa a média anual de mortes por câncer de mama nesse grupo (INCA, 2009). Ainda de acordo com o órgão (2004), na contramão dos países que investiram em políticas de rastreamento para detecção e tratamento precoces e assim inverteram a proporção incidência versus mortalidade, no Brasil o aumento dos casos nas últimas décadas vem acompanhado do aumento do índice de mortalidade por câncer de mama. Essa disparidade na taxa de mortalidade dos países pode ser verificada na tabela abaixo, extraída do site do INCA, que mostra as taxas de incidência e mortalidade por 100.00 mulheres em países selecionados (2008). 25 Tabela 1 – Taxa de incidência e mortalidade por câncer de mama. Incidência Mortalidade Região/País Taxa Taxa Taxa Bruta Taxa Bruta Padronizada Padronizada Finlândia 151,1 86,6 31,3 14,7 Reino Unido 146,2 87,9 38,3 18,6 Espanha 97,6 61,0 26,6 12,8 Estados Unidos 115,5 76,0 25,6 14,7 Canadá 136,9 83,2 30,2 15,6 Austrália 126,5 84,8 25,6 14,7 Japão 70,3 42,7 18,1 9,2 Paraguai 39,6 51,4 13,2 17,1 Bolívia 18,4 24,0 5,8 7,6 Zâmbia 11,2 20,5 6,3 12,2 Brasil * 43,7 42,3 12,9 12,3 Brasil (dados oficiais) ** 52,5 12,3 11,3 Fonte: GloboCan. IARC (WHO), 2008. *Os dados do Globocan são diferentes dos dados das fontes nacionais por diferenças metodológicas no cálculo das taxas. **Referem-se à estimativa de incidência para 2012/2013 (INCA, 2011) e à taxa de mortalidade do ano de 2009 (Sistema de Informação sobre Mortalidade/Ministério da Saúde). No Brasil as causas para essa alta mortalidade são múltiplas e complexas, sendo as mais flagrantes: “buracos” na rede (quando, por exemplo, o profissional identifica um nódulo suspeito, mas o serviço que deveria fazer a biópsia tem uma fila de espera grande); falha no atendimento do profissional de saúde da atenção primária, onde comumente o exame físico 2 não é realizado como rotina; demora no encaminhamento entre um serviço e outro – da UBS até o hospital de média e alta complexidade (referência e contrarreferência); hegemonia do modelo hospitalocêntrico que dificulta o acolhimento humanizado aos usuários; sucateamento, falta de aparelhos e entraves burocráticos para a manutenção dos equipamentos necessários para o diagnóstico e tratamento (mamógrafos, ultrassom, agulhas para punção, máquinas de radioterapia). Além desses problemas, há também a má qualidade geral dos exames por imagem, o que levou o governo federal a criar, em 2012, o Programa Nacional de Qualidade em Mamografia (2012). Esses desafios são ainda maiores se levarmos em conta a dimensão geográfica e as especificidades de cada região do país, com o agravante de que há uma 2 Nesse exame, os seios, axilas e proximidades devem ser apalpados para a verificação de nódulos suspeitos. 26 distribuição desigual de serviços especializados entre as regiões em razão dos centros de diagnóstico e tratamento estarem concentrados no Sudeste. Dos problemas citados acima, um dos que mais levam ao diagnóstico tardio é o demorado encaminhamento da mulher com suspeita de câncer – feito pela unidade básica de saúde (UBS) ao Centro de Referência de Média e Alta Complexidade – para confirmação diagnóstica e tratamento3. Esses encaminhamentos e/ou atendimentos demorados entre os serviços de saúde é um dos motivos para a alta mortalidade das mulheres com câncer de mama, pois a doença muitas vezes é de rápida progressão. Quando finalmente é feita a intervenção, o câncer pode estar em estágio avançado. Consequentemente, além da menor chance de sobrevida, há também outros agravos à saúde, como necessidade de retirada total ou parcial da mama, acarretando sofrimento e fortes impactos físicos, econômicos e psicológicos à mulher. Um estudo do IBGE (2010), feito com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), relaciona baixa escolaridade e pobreza com dificuldade de acesso aos exames preventivos para o câncer de mama, o que evidencia ainda mais a inequidade em saúde. Nesse trajeto tortuoso, mulheres se veem com a vida radicalmente alterada após o impacto de uma doença difícil de enfrentar, que é agravada por todas essas dificuldades. Muitos casos que resultam em sequelas irreversíveis ou morte poderiam ter outro desfecho. Diante do exposto, consideramos o tema relevante e esperamos contribuir para o debate na perspectiva da psicologia social. No capítulo a seguir, fazemos uma descrição dos passos metodológicos. No Capítulo 3, versamos sobre como o câncer de mama se inseriu como foco das políticas públicas de saúde no Brasil, apresentando um breve resgate histórico. Já no Capítulo 4, descrevemos o Ambulatório de Saúde da Mulher de Jundiaí-SP, importante referência para os municípios que compõem a regional de saúde. Procuramos, no Capítulo 5, compreender os caminhos percorridos entre os serviços de saúde e analisamos, no capítulo 6, a partir da perspectiva de mulheres atendidas no serviço de mastologia do ASM, como se dá a convivência com o câncer de mama, tendo em vista seu caráter múltiplo e as diferentes práticas que o performam. Encerramos com as considerações finais. 3 Pesquisa realizada na Casa de Saúde Santa Marcelina, hospital de maior referência na zona leste de São Paulo, aponta que a demora entre o atendimento na Unidade Básica de Saúde e o Centro de Referencia chega a seis meses, potencializando a evolução do câncer de mama (Munhoz, 2009) 28 CAPÍTULO 2: DELINEANDO OS PASSOS DA PESQUISA – OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS 2.1 SOBRE OS OBJETIVOS 2.1.1 Objetivo Principal Compreender os principais enfrentamentos e apoios na trajetória de mulheres que convivem com o câncer de mama. 2.1.2 Objetivos Específicos • Entender a organização do serviço de mastologia do Ambulatório de Saúde da Mulher; • Traçar as trajetórias percorridas por mulheres com suspeita ou confirmação de câncer de mama em busca de atendimento nos serviços de saúde; • Entender as estratégias de enfrentamento da doença, com ênfase nos apoios recebidos e nas maneiras como convivem com a doença. 2.2 A ESCOLHA DO AMBULATÓRIO DE SAÚDE DA MULHER DE JUNDIAÍ-SP Foram três as motivações principais para realização desta pesquisa no Ambulatório de Saúde da Mulher de Jundiaí (ASM). A primeira deveu-se ao fato do ASM ser um importante centro de referência de saúde da mulher para Jundiaí e mais oito municípios da região (Cabreúva, Campo Limpo Paulista, Itatiba, Itupeva, Jarinu, Louveira, Morungaba e Várzea Paulista). A segunda e terceira, de caráter mais prático, foram, respectivamente, a sua proximidade com a cidade de São Paulo, onde moro (minhas viagens duravam cerca de uma hora) e a facilidade de entrada na organização por ter trabalhado anteriormente com Tânia Regina G. Botelho Pupo, que, à época em que propusemos a pesquisa para a agência de fomento que a financiou, era secretária 29 de Saúde de Jundiaí. Como já nos conhecíamos 4, pude apresentar pessoalmente este projeto. Nessa reunião também obtive informações sobre a situação do câncer de mama na região, o que me ajudou a definir com mais precisão quais seriam as principais questões da pesquisa. Logo depois dessa aproximação, acompanhei duas conferências municipais de saúde que antecederam a XIV Conferência Nacional de Saúde 5. Essa foi uma importante etapa no processo e me permitiu verificar a importância do controle social, bem como as diversas questões sobre saúde discutidas por vários segmentos da comunidade: população em geral, lideranças comunitárias, representantes de movimentos sociais, profissionais de saúde, universidades, pesquisadores e gestores, entre outros. Essas etapas iniciais, acrescidas de informações obtidas na pesquisa bibliográfica e documental, assim como nas conversas e observações feitas na própria unidade de saúde, foram fundamentais para definir os procedimentos de pesquisa. 2.3 SOBRE OS PROCEDIMENTOS DE PESQUISA 2.3.1 As Conversas, Observações, Documentos e Registros Os procedimentos utilizados nessa pesquisa incluíram diversas fontes de informação, como documentos, sites, observações, conversas, entrevistas, reuniões e participação em eventos. Tomando por base a noção de “campo-tema” de Peter Spink (2003), entendemos pesquisa como um processo construído à medida que se faz o pesquisar. Esse processo não é rígido, estático, plano ou linear. Não possui um único ponto de partida e outro de chegada, nem parte da definição prévia e precisa de objetivos e controle dos métodos de investigação e análise – pressupostos que tradicionalmente embasam trabalhos que têm por base metodologias mais tradicionais. Ao contrário, a pesquisa tende a se dar a partir da identificação de um ponto de partida, por meio do qual “iria se caminhando sem saber direito como e onde” (SPINK, P., 2003, p. 20). 4 Tânia R. G. Botelho Pupo era a gerente de projetos a quem eu me reportava diretamente quando trabalhei no IDIS, entre os anos de 2005 e 2007. 5 Pré-Conferência Municipal de Saúde de Jundiaí, realizada em 02/06/11, e IX Conferência Municipal de Saúde de Jundiaí, em 02/07/11. 30 Nessa proposta os caminhos da pesquisa não são únicos, mas múltiplos, assim como os seus horizontes. Usando a analogia de Cordeiro (2004), vamos tateando com um mapa em mãos que rascunham de onde partimos e aonde temos de chegar, embora, ao longo do trajeto, acrescentemos atalhos, encontremos trilhas desconhecidas a serem desbravadas, mudando continuamente o percurso. Isso não quer dizer que em alguns momentos não seja necessário delimitar o caminho que temos de fazer para chegar a um determinado lugar. Planejamos, sim, o nosso roteiro de viagem, mas precisamos estar dispostos a mudá-lo e, não raro, encontramos lugares e paisagens que nunca imaginamos. Podemos dizer que pesquisa é um processo contínuo de abertura e fechamento. Para não ficarmos muito limitados e presos, precisamos abrir os horizontes (o tema, os objetivos, as hipóteses). Contudo, também é necessário fechá-los para não nos perdermos no caminho. É essa processualidade que dá movimento à pesquisa (CORDEIRO, 2004). O termo “campo” não se refere a um lugar específico, cindido, distante e que possui uma realidade independente, no máximo ligada ao que está no seu entorno. O campo está no Ambulatório de Saúde da Mulher de Jundiaí, mas está também nos encontros cotidianos, nas conversas que temos na lanchonete enquanto tomamos um cafezinho, no papo com a atendente do restaurante onde almoçamos, com a pessoa que sentou ao nosso lado no ônibus na viagem até Jundiaí e contou sobre sua mãe idosa e doente. Está nos encontros dos pesquisadores do Núcleo, na notícia que acabamos de ouvir no rádio pela manhã. É na vida das pessoas que o tema emerge, ora de maneira central, ora de maneira periférica, mas nunca em vão. Nós também fazemos parte do campo. Assim como as materialidades que o constituem e que são parte das nossas conversas: o gravador, a caneta, o caderno do diário de campo, o Termo de Consentimento Informado e Esclarecido em pesquisa, o folder afixado na parede, a notícia que vimos no jornal local e foi pauta do diálogo com a funcionária que faz a limpeza do ambulatório. Além da participação em eventos, como as conferências de saúde, foram feitas diversas visitas semanais ao AMS Jundiaí, configurando-se assim como uma pesquisa no cotidiano. A observação no cotidiano e não observar o cotidiano é o fio condutor dessa metodologia de observação, de caráter psicossocial, um movimento de reação à hegemonia da psicologia social norte-americana, que buscava separar e distanciar o pesquisador do objeto de pesquisa, nos anos 1970 e 1980. 31 O resgate da observação no cotidiano encontrou subsídios na antropologia, a partir de pesquisas de tipo etnográfico, e vai ao encontro da perspectiva construcionista sobre a construção do conhecimento. Nessa abordagem não há separação entre o sujeito e o objeto da pesquisa nem a ilusão de que é possível um pesquisador ser neutro. Quem observa no cotidiano é partícipe das ações nos espaços mais ou menos públicos, faz parte da comunidade, se coloca e é colocado pelos demais no fluxo, o que permite a todos uma compreensão compartilhada da interação social (SPINK, 2007). Nas palavras da autora: (...) consideramos que, ao pesquisar no cotidiano, nos posicionamos como membros da comunidade – e, como tal, capazes de interpretar as ações que se desenrolam nos espaços e lugares em que se dará a pesquisa – porque somos parte desta comunidade e compartilhamos normas e expectativas que nos permitem pressupor uma compreensão compartilhada (SPINK, 2007, p. 13). Em dezembro de 2011 obtive a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em fevereiro de 2012 iniciei as visitas ao Ambulatório de Saúde da Mulher de Jundiaí. Essas visitas eram semanais e duraram seis meses, sendo realizadas todas as sextas-feiras, das 9 às 15h30. Durante dois meses elas ocorreram também às segundas-feiras. Foi um período muito rico e intenso, em que procurei compreender as diversas materialidades e socialidades presentes no serviço. Também foi um aprendizado contínuo sobre o meu lugar de pesquisadora, de como eu era posicionada e me posicionava, do estabelecimento de vínculos com as pessoas que fazem parte do cotidiano do ASM, de conquistas e também de frustrações – processo fundamental para a formação do pesquisador na construção da pesquisa. O trajeto de ônibus entre São Paulo e Jundiaí durava entre 40 minutos e 1 hora, no máximo. O silêncio, a ausência de poluição, o verde da paisagem e o azul do céu, mais vivos, traziam paz e possibilidade de contemplação, fazendo fluir os pensamentos. Nesse percurso, aproveitava para ler um livro ou um artigo, rascunhar ideias. Eram momentos inspiradores que proporcionavam a reflexão sobre a pesquisa, a escrita; quando eu organizava as informações. Sair de uma cidade cinzenta e chegar a um lugar arborizado, com outra tonalidade de azul no céu, com pessoas que pareciam viver e se relacionar de outra maneira com o tempo e o espaço, funcionava como um bálsamo. Eram marcantes a simpatia do motorista de táxi; a gentileza de um passageiro que ajudou um cadeirante a subir no ônibus (com apoio dos outros 32 passageiros e do cobrador); as pessoas de sorriso fácil e conversadeiras. As pessoas gostam e procuram conversar em Jundiaí. Isso era ótimo e facilitava minha circulação nos diferentes espaços da cidade. Em São Paulo ficamos emudecidos a maior parte do tempo e, mesmo sendo paulistana e acostumada a isso, em pouco tempo me vi conversadeira também, assim como o povo da cidade. Jundiaí tornou-se um lugar familiar, de onde eu voltava toda semana trazendo uma sensação parecida com aquela de voltar da terra da gente. Meu primeiro contato no ASM foi com a diretora médica do serviço, para quem apresentei a minha pesquisa, defini o dia e o horário em que frequentaria o serviço e obtive informações sobre o histórico e funcionamento da organização: o fluxo de atendimento, a população atendida e os principais desafios enfrentados pelo serviço na rede de assistência à saúde do município, entre outros aspectos. Também tive acesso a documentos do ASM sobre o perfil populacional, a cobertura de exames, o funcionamento da referência e contrarreferência locais. Ao final da reunião, a diretora me apresentou à coordenadora do ASM e enfermeira-chefe do serviço de mastologia. Em uma segunda etapa, conversei com a coordenadora para apresentar mais detalhadamente a pesquisa, bem como verificar o perfil da população atendida e compreender como ela estava inserida nas redes municipal e estadual de saúde. No início, quando comecei as visitas, percebia alguns olhares curiosos e outros desconfiados. Na correria da organização, com tantas pessoas que entram e saem do serviço, estava ali a minha presença inusitada. Mesmo após ter sido apresentada pela coordenadora aos profissionais de saúde, senti por um bom tempo o estranhamento que minha presença causava. Isso gerava em mim certo desconforto; um receio de que não fosse conseguir “quebrar o gelo”. Fui buscando criar minimamente uma rotina de trabalho, dividindo as conversas com as mulheres no período da manhã e com os profissionais à tarde, embora esperasse sempre o melhor momento para abordá-los (nos intervalos dos atendimentos e pausas para o café, por exemplo). O vai e vem frenético dos funcionários da área da saúde, onde há inúmeras intercorrências, inibe a abordagem. Há um descompasso entre o tempo dos entrevistados e o da pesquisadora, que ainda está se ambientando à rotina do lugar. Essa relação do pesquisador com o lugar e as pessoas vai sendo construída no decorrer desse processo. Sato e Souza afirmam que: 33 Ela é criada a partir das possibilidades dentro da rotina, da divisão dos tempos e dos espaços do local, dando-se no seu interstício e, portando, induzida pelo relacionamento com as pessoas, pelo funcionamento, pelas regras e rotinas do local, pela nossa curiosidade e objetivos. Nela também ficamos sabendo quando é possível conversar, em quais locais nos postarmos, quando devemos nos distanciar para não atrapalhar o andamento das atividades e, também, não provocarmos situações de risco (SATO; SOUZA, 2001, p. 38). De forma paulatina e nas horas oportunas, no cafezinho, na pausa após o almoço, no corredor, eu puxava conversa e aproveitava as brechas para falar sobre mim e conhecer as pessoas com quem eu conversava. Assim, comecei cada vez mais a fazer parte da rotina da instituição. Na parte da manhã, passava horas conversando com as mulheres que aguardavam a consulta, na sala de espera e também na área externa, onde estavam dispostos alguns bancos. No primeiro mês, almoçava sozinha nos restaurantes e lanchonetes próximos ao ASM. Depois, a convite de algumas profissionais, passei a frequentar o restaurante do hospital onde a unidade está localizada. Nesse momento, conversávamos tanto amenidades quanto sobre questões do ambulatório. Para isso, foi necessário a coordenadora providenciar para mim o vale-almoço, vendido exclusivamente para os funcionários e estudantes que possuem vínculo com o hospital. Adentrar em um espaço reservado à comunidade do ASM gerou certa desconfiança em algumas pessoas com quem compartilhava a mesa no refeitório, que dirigiam a mim poucas palavras. Mas também experimentei muita receptividade por parte de outras, principalmente das assistentes sociais, que aproveitavam esses encontros para falar dos filhos, dos passeios turísticos disponíveis na cidade e também das atividades que exerciam, dos principais gargalos na rede de atendimento, da sensação de impotência em algumas situações de trabalho. Falavam com entusiasmo das mudanças que queriam propor e das possibilidades do serviço social. Depois de circular nos espaços comuns, passei cerca de quatro meses usando parte do tempo para fazer observação na sala da pós-consulta, local onde duas atendentes marcam exames de acordo com a guia emitida pelo médico durante a consulta, realizada minutos antes. Ali, sob a perspectiva de quem recebe o usuário, pude observar desde o tempo decorrido entre um exame e outro até situações mais difíceis, como a de uma mulher que chegou devastada porque o seu feto morrera semanas antes da data prevista para o parto. Nesse espaço também pude verificar os efeitos das materialidades que pontuam a relação entre os profissionais e os usuários e entre esses e o serviço. Um senhor chegou para agendar uma 34 mamografia e um ultrassom. Fiquei surpresa porque nunca imaginei encontrar ali um homem, uma vez que na literatura consultada soube que casos de câncer de mama em homens são extremamente raros. A simples suspeita me causou surpresa. Ao inserir os dados do paciente a atendente constatou que o sistema do ASM não permite cadastrar pessoas do sexo masculino. Constrangida, brincou dizendo que o “sistema é burro”, já que homens também possuem mama. Com um misto de irritação e vergonha, o usuário disse que o computador não aceitou porque “preferia mulheres”. Naquele momento, o computador e o sistema ganharam a conotação de “burros” e “mulherengos”. Tomando como exemplo os princípios da TAR, que propõe a dissolução da barreira entre natureza e sociedade, sujeito e objeto, natural e tecnológico, macro e micro, humanos e não humanos, esse episódio ilustra a noção de que os agentes humanos e não humanos ocupam uma posição fluida e variável na rede: A semiótica propõe a simetria entre os agentes humanos e não humanos. Consideram-se agentes qualquer entidade que gere um efeito na rede ou tenha algum valor de significação. Esses agentes continuamente aparecem, desaparecem, movem-se, mudam de lugar uns com outros, estabelecendo entre si um jogo novo de relações (TIRADO; DOMÈNECH, 2005, p. 11; tradução nossa). Esse caso permite também entrever que os serviços não estão preparados para acolher demandas que fogem ao usual. Ainda que a incidência de câncer de mama masculino seja baixa, ela existe. Isso reflete ainda como nas ações de saúde, fortemente voltadas para as mulheres, há uma lacuna muito grande a ser superada nas questões de saúde do homem. O fato de um homem ter sido encaminhado para o Ambulatório de Saúde da Mulher nos desperta para outra questão importante: a inexistência de um centro de referência para o público masculino, a despeito de ser essa uma das metas do Pacto pela Saúde 6. Muitas vezes minha presença também despertou desconfiança e curiosidade. Como o espaço da pós-consulta era reduzido, procurava ficar em um canto para não atrapalhar o movimento das atendentes que precisavam pegar medicamentos, pastas, atender ao telefone etc. Sem saber quem eu era e o que fazia na naquela área restrita aos funcionários, um médico do 6 O Pacto pela Saúde é um conjunto de reformas institucionais pactuado entre as três esferas de gestão (União, estados e municípios) do SUS e tem como objetivo promover inovações nos processos de gestão. Sua implementação se dá por meio da adesão de municípios, estados e União ao Termo de Compromisso de Gestão, renovado anualmente. 35 serviço perguntou de maneira descontraída: “Quem é o dois de paus?” (expressão para se referir a alguém que está parado, aparentemente sem função). Achei graça, e todos rimos. Após esse episódio, refleti sobre o meu papel e sobre o lugar da pesquisa no cotidiano da organização. Nessa relação em que constantemente situamos e somos situados como pesquisadores, as pessoas também têm suas próprias ideias sobre o que é pesquisa e o que faz um pesquisador (SATO; SOUZA, 2001). O que faz uma pessoa que porta um caderno e uma caneta, que faz perguntas que ninguém faz no dia a dia, que escuta e olha o entra e sai, enquanto todos estão ocupados em suas tarefas de rotina? Esses posicionamentos se alternavam. Em outra situação, uma farmacêutica disse que o meu trabalho seria de extrema relevância para a região. Já a assistente social, certa vez, me puxou para um canto para pedir conselhos sobre como lidar com algumas questões que a deixavam insatisfeita – segundo ela, “eu via o ambulatório de um lugar que ninguém conseguia ver.” Ou seja, eu ocupava uma posição de especialista. Todas as minhas inquietações, angústias, dúvidas, conversas, observações, escutas, impressões – tanto no ambulatório quanto fora dele – foram registradas em um caderno que chamei de “diário de campo”. Assim que me via sozinha, após o almoço e no ônibus de volta para São Paulo, fazia minhas anotações. Isso por que percebi que fazer essas anotações enquanto conversava, principalmente com os profissionais, acabava gerando desconfianças e receios. Somente nos momentos muito impactantes, para não correr o risco de a memória falhar, saía discretamente e escrevia em um lugar reservado. Nas conversas informais com as mulheres, que muitas vezes falavam de datas e lugares onde realizavam exames, pedia licença para fazer anotações no diário. Para sistematizar as diversas informações que registrei nesse caderno, digitava regularmente em um arquivo do Word, que resultou em 29 páginas. Posteriormente, sistematizei essas anotações em um quadro com o resumo das questões relacionadas à organização dos serviços e principais queixas e pontos favoráveis na perspectiva das mulheres e dos profissionais. Tendo em vista as materialidades que compõem a rede, solicitei à coordenadora do serviço o prontuário de algumas mulheres. Para que a minha demanda fosse atendida seria necessário que uma pessoa que cuida dos arquivos dispusesse de tempo para separá-los. Assim, somente um mês após essa solicitação tive acesso aos prontuários. Quando os recebi, ofereceram uma sala vazia para que eu pudesse olhar calmamente os papéis. 36 Fui tomada por um misto de sensações. Estava animada por poder finalmente ler os prontuários, mas, mesmo tendo recebido autorização para tanto, também fiquei angustiada por acessar dados clínicos das mulheres, informações sigilosas e pessoais. Os manuseei como um arqueólogo que toca em artefatos frágeis e importantes. Fiquei sensibilizada, por exemplo, ao ver, pela data de nascimento (1990), que uma delas era bem jovem. Após ver os prontuários e fazer anotações do que considerava relevante, pude verificar a arbitrariedade dos registros e dados de referência e contrarreferência que informam o histórico clínico e a trajetória das mulheres entre os serviços (de onde foi encaminhada, para qual organização, quando, quais as recomendações). Vários estão incompletos, com espaços deixados em branco, muitas vezes indecifráveis em razão da caligrafia sofrível. Isso sem dúvida tem impactos nos serviços e na sistematização dos dados epidemiológicos do município. Apesar de ser uma fonte de dados importante, não pudemos utilizar os prontuários exatamente pela impossibilidade de sistematizar as informações fragmentadas, ilegíveis ou ausentes. Para fazer a caracterização do Ambulatório de Saúde da Mulher e compreender as políticas de assistência ao câncer de mama nas esferas locais, regionais e federais, bem como as políticas, os programas, as estratégias e os indicadores oficiais sobre a doença disponíveis para o público em geral, acessei, entre os meses de abril e junho de 2012, diversos documentos e sites: - Documento de Consenso para Controle do Câncer de Mama do INCA; - Programa Nacional de Controle do Câncer de Mama do INCA; - Datasus (banco de dados informatizado do SUS); - Sismama; - Sispacto (onde estão os registros das prioridades, objetivos, metas e indicadores dos pactos pela saúde firmados entre as três esferas de governo); - Indicadores de saúde do Estado de São Paulo registrados na Fundação Seade; - Manual do usuário do SUS, disponível no site da Secretaria de Saúde de Jundiaí. As reuniões e conversas com os profissionais também foram fundamentais para a caracterização do ASM e compreensão da rede de serviços. No entanto, elas não foram foco da análise realizada nesta pesquisa. 37 2.3.2 As Entrevistas com as Mulheres Após o período de conversas e observações da rotina do ASM, iniciei a fase das entrevistas formais. Partindo do pressuposto de que entrevistas também são práticas discursivas (PINHEIRO, 2004), de que os sentidos são coconstruídos na interação entre pessoas e constantemente negociados em determinados contextos e locais, buscava dar voz às mulheres que frequentavam o serviço no momento da pesquisa. As entrevistas foram realizadas no ambulatório, no espaço coletivo, onde havia algumas cadeiras. Frequentemente, conversávamos antes e depois da consulta. Algumas vezes as pacientes me procuravam para conversar assim que saíam da consulta; noutras, eu as procurava para ver se estava tudo bem. Em média, as entrevistas duraram entre 40 e 50 minutos; nos casos em que continuávamos após as consultas, pelo menos mais 10 minutos. Apesar de ter permanecido no ambulatório de fevereiro a agosto de 2012, as entrevistas que apresento aqui foram realizadas com apenas quatro mulheres: uma de Jundiaí, outra de Várzea Paulista e duas de Jarinu. Embora inicialmente pretendesse entrevistar seis usuárias, duas entrevistas não puderam ser realizadas por que nenhuma das mulheres compareceu no dia agendado (pela assistente social do ASM). Não procurei fazer mais entrevistas porque, nessa etapa, eu já havia obtido as informações relacionadas aos demais objetivos com observações e diversas conversas informais. Procurei entrevistar mulheres que estivessem em diferentes fases do diagnóstico/tratamento. A descrição de cada uma dessas entrevistas é apresentada no Capítulo 5. As entrevistas não tiveram um roteiro fechado. Para favorecer a aproximação e deixar as mulheres à vontade, logo depois de me apresentar como pesquisadora procurava estabelecer empatia, deixando-as falar livremente. Quando elas estavam mais soltas, eu fazia o convite formal para que fizessem parte da minha pesquisa; avisava que a entrevista seria gravada e lia o Termo de Consentimento Informado e Esclarecido (APÊNDICE 1). Embora não tivesse um roteiro fechado, havia algumas questões norteadoras, introduzidas em algum momento da conversa: 1) quando e como foi o diagnóstico do nódulo e os eventos relacionados a ele; 2) o tempo entre um procedimento/consulta e outro; 3) o percurso que elas percorreram para chegar a esse ambulatório (serviços); 4) o que foi mais difícil nesse trajeto e o que as ajudou. Solicitei, também, informações biográficas: nome, idade e município de origem. 38 Quanto à análise, após ouvir a gravação, foi realizada a transcrição sequencial e em seguida construídos mapas dialógicos para cada uma das entrevistas (APÊNDICE 1). Fizemos três mapas, já que duas das mulheres participaram de uma mesma conversa: uma que estava prestes a retirar o câncer e outra que já havia concluído o tratamento. As outras duas mulheres foram entrevistadas separadamente. Os mapas “têm duplo sentido: dar subsídios ao processo de interpretação e facilitar a comunicação dos passos subjacentes ao processo interpretativo” (SPINK; LIMA, 2004, p. 107). Além de permitir visualizar o contexto interativo da entrevista, constituem uma rica ferramenta de análise à medida que mostra o jogo de posicionamentos entre o entrevistado e o entrevistador, as narrativas que surgem a partir das perguntas e comentários e os temas que emergem para além deles. Mesmo que a entrevista seja aberta, começamos fazendo uma pergunta ou comentários disparadores: “me conte sobre”, “fale sobre isso”, “qual é a sua percepção sobre tal coisa”. Nesse sentido, minimamente toda entrevista tem um roteiro (alguns mais abertos, outros mais fechados), que vai dar uma forma à interação. No entanto, muitos temas que não estavam incluídos no roteiro emergem de acordo com o que as pessoas consideram mais importante ou sentem necessidade de falar, e isso deve ser considerado na análise (SPINK, 2004). Assim, após a leitura e a transcrição sequencial, definimos as categorias temáticas organizadoras dos conteúdos das entrevistas. Na construção dos mapas dialógicos dessa pesquisa estabelecemos as categorias temáticas descritas a seguir, procurando englobar o que buscávamos saber por meio das perguntas norteadoras descritas anteriormente e os temas que as mulheres trouxeram à tona. Diagnóstico: por diagnóstico entendemos o conjunto de estratégias voltadas para mulheres com sinais ou sintomas da doença, realizadas primordialmente na atenção básica: exame clínico das mamas e mamografia; ultrassom (se necessário). Cirurgia: aqui estamos considerando três tipos de cirurgia: a retirada do nódulo suspeito que será encaminhado para biópsia e, em caso positivo para câncer, cirurgia com margem de segurança para evitar metástase (quando é necessário retirar mais tecido da região de onde o nódulo foi retirado; nesse caso, a mulher passa por mais uma cirurgia), além da cirurgia de esvaziamento da axila. 39 Tratamento: após a confirmação do câncer a mulher passa por uma etapa fundamental para evitar o avanço da doença, com quimioterapia e radioterapia. Enfrentamentos e apoios: durante a longa trajetória que a mulher percorre nessa rede complexa que envolve o câncer, e é composta por diversas materialidades e socialidades, não são poucas as adversidades que ela encontra pelo caminho. Nesse contexto, entendemos enfrentamentos como os diversos sofrimentos (os seus próprios e os das pessoas de seu convívio direto), conflitos, dores, emoções, marcas físicas e o estigma que marca as pessoas que convivem com o câncer. Por outro lado, não faltam suportes vindos de diferentes esferas de sua vida, que vão aliviar o seu sofrimento e auxiliá-la a prosseguir com o tratamento para enfrentar a doença: convivência com outras mulheres que também tiveram câncer, religiosidade, relações familiares e afetivas, suporte institucional, acolhimento por parte dos profissionais de saúde etc. Relação com os profissionais de saúde: a relação que se estabelece entre as mulheres e os profissionais de saúde é parte crucial dessa trajetória na convivência com o câncer, principalmente com os médicos, marcada por contradições, dubiedade, gratidão, dúvidas, ressentimentos e diversos outros afetos. Como pudemos observar na fala das entrevistadas, esses profissionais vão de “deuses” a “doidos”, dependendo de sua conduta e da dinâmica do tratamento. Percursos: entendemos que os caminhos percorridos pelas mulheres não são lineares. A partir das recomendações das políticas oficiais e das estratégias dos serviços de saúde regionais para prevenção e controle do câncer, geralmente as mulheres que têm acesso aos serviços vivem uma trajetória que começa com as consultas de rotina e, em alguns casos, com a descoberta de um nódulo. Mas, a partir daí, os desdobramentos vão depender de diversos fatores: política regional, investimento do município de origem, acolhimento dos serviços da rede e capacidade técnica dos recursos humanos. Esses mapas nos permitiram visualizar que lidar com a doença demanda um grande investimento afetivo/cognitivo das mulheres, muitas das quais desenvolvem algumas estratégias 40 de enfrentamento da doença que lhes auxiliam a prosseguir o tratamento, a lidar com os seus efeitos e com a desestabilização que ocorre na família e mesmo com conhecidos e estranhos, que não compreendem a doença. Elas frequentemente utilizam o espaço do ambulatório para compartilhar suas vivências com as outras mulheres que estão vivendo situações semelhantes. Para além do atendimento nos serviços, as mulheres quiseram falar de suas vidas, da família, de como enfrentaram esse momento com recursos emocionais próprios ou pela religiosidade; dos medos, da morte, das marcas indeléveis que o câncer deixa. Assim, elas encontraram em mim alguém que não só perguntou, mas as ouviu. E nesse processo de interação, esta pesquisadora aprendeu, agradeceu e se emocionou diversas vezes. Todos os nomes utilizados nessa pesquisa são fictícios, tanto das mulheres quanto dos médicos. 2.4 ASPECTOS ÉTICOS A pesquisa passou por análise e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, segundo protocolo legal (ANEXO 1), atendendo as recomendações éticas relativas às pesquisas com seres humanos do Conselho Nacional de Saúde. Aos participantes foi assegurado o caráter sigiloso, o anonimato e a participação voluntária. Somente após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Informado e Esclarecido a participação foi confirmada. Os objetivos e a condução da pesquisa foram e serão expressos sempre de maneira transparente, sendo garantido que todos os aspectos estão entendidos e consentidos. 42 CAPÍTULO 3: O CÂNCER DE MAMA COMO FOCO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE Nosso objetivo nesse capítulo não é fazer uma profunda incursão na história para mostrar as diferentes versões sobre câncer e como ele vem sendo performado desde longa data. Sabemos que existem referências à doença que remontam ao período antes de Cristo – persas, egípcios e indianos já a descreviam (TEIXEIRA; FONSECA, 2007) – e que sua configuração caminha junto com a história da medicina ocidental. Seria pretensão historiar o câncer desde os primórdios e detalhar esse percurso nos tomaria imenso tempo, o que não é foco desta pesquisa. O que nos interessa aqui é mostrar os principais marcos que levaram o câncer a se tornar um problema de saúde pública no Brasil e como nela se insere a noção de risco com a qual trabalhamos. 3.1 DE DOENÇA MALDITA ÀS ATUAIS POLÍTICAS DE CONTROLE DO CÂNCER DE MAMA Durante muito tempo o câncer esteve envolto em uma nuvem negra de preconceitos, mitos, desconhecimentos, medos. “Câncer” era a palavra que ninguém ousava dizer e, durante muito tempo, os sentidos que circularam sobre essa “doença maldita” estavam associados à morte e ao sofrimento. Sant’Anna (1997), percorrendo o histórico da mulher e do câncer, nos conta que, nas primeiras três décadas do século XX, os manuais de saúde e artigos médicos associavam a doença à falta de limpeza, corporal e espiritual. Sob uma abordagem higienista, neles estava a afirmação de que para evitar o câncer eram necessários rígidos hábitos de higiene pessoal e também do ambiente. Acreditava-se que um lugar sujo era propício à proliferação da doença, dando a ela um caráter contagioso. As pessoas com câncer ocupavam o mesmo lugar social dos portadores de sífilis, lepra e tuberculose, sendo isolados do resto da sociedade em hospitais e asilos voltados especificamente para o cuidado desses enfermos. Esses espaços, mantidos por ações de caridade, visavam ainda proporcionar mínimas condições de sobrevida aos doentes. De acordo com a autora, o cuidado era de caráter individual e não coletivo, cabendo aos internados apenas esperar a hora da morte. 43 No Brasil, o interesse dos médicos pelo câncer foi impulsionado pela crise sanitária e pelo processo de crescimento urbano, ocorridos nas últimas décadas do século XIX e começo do século XX. Com viagens e congressos internacionais, os médicos brasileiros voltavam influenciados pelos estudos científicos estrangeiros que, à época, já tinham dados de base epidemiológica. Naquele momento, no entanto, esse interesse estava ligado à necessidade de pertencimento à comunidade médica internacional, uma vez que a expressão epidemiológica no Brasil do câncer era pequena. Apesar da baixa notificação dos casos da doença no país, os médicos brasileiros acreditavam que o aumento da incidência seria questão de tempo e que todos deveriam estar preparados. No II Congresso Médico Latino-Americano, realizado em Buenos Aires em 1904, foi apresentado o primeiro estudo sobre a frequência do câncer no Brasil. Azevedo Sodré relatava a dificuldade na obtenção de dados sobre a doença, pois as estatísticas estavam restritas às principais capitais. Ele também enfatizava que a incidência era baixa em razão de o câncer ser uma doença dos “países frios”. Porém, seguindo a tendência das nações do hemisfério norte, o câncer foi tomando lugar de destaque nos congressos médicos latino-americanos posteriores. No final dos anos 1910, a saúde pública brasileira começou a ganhar outros contornos, resultando na reforma sanitária de 1919 7. Nessa nova concepção de saúde as ações deveriam ser voltadas para os coletivos, sendo o processo de adoecimento originado na relação do indivíduo com o meio. A prevenção de doenças deveria ser incentivada com medidas de higiene e educação sanitária. Tendo como pano de fundo a preocupação do mundo ocidental com o câncer e o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), período em que houve um investimento cada vez maior em pesquisa e, consequentemente, no desenvolvimento de tecnologias, como a radioterapia, a doença tornou-se passível de prevenção, e, consequentemente, objeto da saúde pública. Mesmo com essa tentativa médica de dar visibilidade ao câncer, nessa época ele não era nem sombra do que se tornaria nas décadas seguintes. Outras doenças eram priorizadas por terem maior prevalência e serem consideradas um sinal de atraso econômico e social: malária, sífilis e tuberculose, entre outras. 7 Marcada pela criação do Departamento Nacional de Saúde Pública e da Inspetoria da Lepra, Doenças Venéreas e Câncer, primeira instância de saúde pública direcionada ao câncer. 44 Os dados estatísticos que mostravam aumento da incidência do câncer vinham dos países europeus e dos Estados Unidos. No Brasil, os indicadores da doença mantinham-se inexpressivos. Para justificar a relevância do investimento nesse campo, os médicos brasileiros foram hábeis em argumentar que essa diferença era momentânea e que a baixa frequência, na verdade, era fruto da imprecisão das estatísticas em nosso país. É salutar abrir um parêntese para dizer que, mesmo passado quase um século, ainda hoje esse discurso está presente nos documentos oficiais. O Instituto Nacional do Câncer, por meio da publicação “Parâmetros técnicos para o rastreamento do câncer de mama – Recomendações para gestores estaduais e municipais”, de 2009, apresenta cálculos probabilísticos para guiar o planejamento técnico e financeiro dos gestores estaduais e municipais; porém, reconhece que pode haver diferença nos resultados brasileiros, uma vez que os cálculos foram feitos com base no perfil populacional de países como Canadá, EUA, Reino Unido e Austrália (INCA, 2009). No entanto, propõe que esses parâmetros sirvam a um planejamento inicial, sendo, posteriormente, ajustados aos resultados obtidos com o Sismama, implantado a partir daquele ano. Diversos documentos do órgão mencionam essas discrepâncias estatísticas entre o Brasil e os outros países, justificando que, entre outros motivos, os índices precisam ser melhor controlados e sistematizados. Após a reforma sanitária de 1919, o governo brasileiro criou o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), que tinha uma inspetoria especialmente designada para cuidar desse agravo. Como estratégias, foram propostas: a gratuidade dos exames laboratoriais para diagnóstico e a unificação das notificações de óbito por câncer, com a criação de um formulário padronizado. Campanhas educativas também foram incorporadas às ações do DNPS voltadas para o controle da doença. Como ela ainda era vista como contagiosa, mesmo pela medicina, o incentivo a práticas higienistas integravam as campanhas. Como parte da preocupação do campo médico e se tornando foco da saúde pública, em 1922 foi criado o Instituto do Radium de Belo Horizonte, primeira instituição voltada unicamente para pesquisas radiológicas e tratamento do câncer. Houve, assim, uma complexificação da doença, formando-se uma rede heterogênea de materialidades e socialidades composta por órgãos públicos, personalidades médicas, sociedades, associações, organismos internacionais que criavam tendências e exerciam influência, pesquisas, ensino, disseminação e troca de conhecimento, publicações, tecnologias, protocolos, registros, 45 intercâmbios, criação de organizações filantrópicas, ligas 8 , doações particulares para o investimento em pesquisas e financiamento de centros voltados para a sua detecção e o seu controle. Para dar visibilidade ao câncer e trazer força política que o colocasse no escopo de interesse do governo e outros investidores, havia à época a idealização de que um centro de cancerologia fosse criado na então capital da República, o Rio de Janeiro. Imbuído desse ideal e com a presença de figuras públicas e da imprensa, em 1935 foi realizado o Primeiro Congresso Brasileiro do Câncer, no qual, além de evidenciada a sua importância como questão de saúde, foi apresentado projeto do hospital da Fundação Oswaldo Cruz. Ainda de acordo com Teixeira e Fonseca (2007), Mario Kroeff foi o médico que exerceu influência decisiva para que o câncer fosse transformado em problema de saúde pública, dedicando esforços para a concretização do Serviço Nacional do Câncer, por ele dirigido. Órgão central da política de controle da doença, o serviço tinha por missão organizar as ações, fiscalizar e executar as atividades a ela relacionadas. Nas décadas seguintes, principalmente entre 1940 e 1950, marcadas pelo ideal desenvolvimentista, a abordagem do câncer no país foi cada vez mais voltada à prevenção e ao controle. Os procedimentos diagnósticos e as novas tecnologias passaram a ser incorporados à rotina dos serviços, sofisticando-se cada vez mais os tratamentos, o que deu maior sobrevida e qualidade de vida aos pacientes e ampliou a chance de controle da doença. As campanhas que alertavam a população para a importância do diagnóstico precoce – quanto mais cedo câncer fosse descoberto, melhor – ganharam força. Influenciados pela propaganda norte-americana, que usava imagens e frases de efeito como recurso mobilizador, diversos cartazes brasileiros estampavam o apelo de que era fundamental detectar a doença no seu início. Na década de 1960, com o golpe militar de 1964 9, as ações voltadas para o câncer perderam força. A partir daí, a saúde pública, de maneira geral, passou por um período de 8 “A criação e manutenção de instituições médico-assistenciais e a organização de entidades civis voltadas à resolução de problemas sociais foram as grandes áreas de atuação da atividade filantrópica, na primeira década do século XX; e as ligas foram a expressão mais típica da ação filantrópica desse período” (TEIXEIRA; FONSECA, 2007, p. 36). 9 O Brasil viveu sob um regime político ditatorial ente 31 de março de 1964 e 15 de março de 1985. A ditadura militar foi implantada depois que as Forças Armadas depuseram o presidente João Goulart, que havida sido eleito democraticamente. O regime de exceção terminou quando José Sarney (eleito vice-presidente na chapa de Tancredo Neves, morto antes da posse) assumiu a presidência do país. 46 estagnação, com a implantação de uma política de privatização, contrária à proposta sanitarista que imperara até então. A assistência à saúde era assegurada apenas para trabalhadores vinculados ao Inamps e que recolhiam contribuição previdenciária. Para o restante da população o atendimento era basicamente realizado pelas Santas Casas de Misericórdia. Nesse período, o INCA 10 viveu uma crise de instabilidade política e econômica. Com o surgimento de um vigoroso movimento sanitarista, iniciado nos anos 1970, buscouse uma ruptura com o modelo de saúde então vigente – excludente, dispendioso, assistencialista e meramente curativo. Inicialmente formado por estudantes de medicina coletiva (ELIAS, 1993), agregou em seguida outras iniciativas e representantes da sociedade (sindicatos, partidos políticos de oposição ao governo militar e militância religiosa e estudantil, entre outros), criando o movimento que foi o principal marco das mudanças na saúde brasileira. Conhecido como Movimento de Reforma Sanitária, configurou-se institucionalmente durante a emblemática VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, dois anos antes da convocação da Assembleia Nacional Constituinte. Os princípios e propostas apresentadas pelos sanitaristas na conferência alicerçaram o novo modelo de saúde pública do Brasil, materializado no Sistema Único de Saúde (SUS), implantado pela Constituição de 1988 e regulamentado pelas leis federais 8.080 e 8.142, as chamadas de Leis Orgânicas da Saúde. Outro marco importante dessa conquista foi a desvinculação da saúde da previdência social. Com isso, o Ministério da Saúde passou a ser um órgão federal autônomo e com dotação orçamentária própria. Hoje a doença é considerada crônica, possível de controlar e conviver. A palavra “câncer” está cada vez mais incorporada aos discursos cotidianos das pessoas, em diferentes esferas da vida. O que não quer dizer que deixaram de circular nos repertórios sobre a doença resquícios do tempo longo, fato que pudemos verificar nas entrevistas realizadas para esta pesquisa, conforme análise exposta no capítulo 6. Uma das versões para que o câncer seja mais debatido em diferentes esferas diz respeito à sua incidência, que vem aumentando progressivamente por diversos fatores, conhecidos e desconhecidos, que a transformaram em um importante problema de saúde pública. Assim, acredita-se que uma nova abordagem é necessária para acompanhar essa tendência. Fala-se mais 10 Em 1961, a política de câncer no país foi fortalecida com o novo regimento do Instituto de Câncer (inaugurado em 1957, no Rio de Janeiro), que passou a ser oficialmente conhecido como Instituto Nacional do Câncer. 47 em prevenção e detecção precoce hoje do que em medidas meramente curativas e paliativas – essas mais complexas e custosas. Campanhas de conscientização para um estilo de vida que proteja e previna o câncer entraram em pauta em todas as ações de saúde, baseadas nas “Políticas e ações para a prevenção do câncer no Brasil: alimentação, nutrição e atividade física”, descritas em um documento lançado pelo INCA em 2009. 3.1.1 A Participação da Sociedade Civil na Luta Contra o Câncer de Mama A história das políticas voltadas ao combate do câncer de mama anda junto com a das organizações da sociedade civil que atuam nessa área. Para colocar a doença ou qualquer outro tema na agenda de saúde e controlar as políticas e ações, a pressão dos movimentos sociais teve e tem um papel fundamental. São exemplos as mulheres que conviveram com o câncer de mama e se organizaram em grupos para apoiar outras mulheres que enfrentam a mesma situação. Além disso, principalmente a partir da década de 1990, empresas privadas passaram a investir financeiramente em hospitais e a promover campanhas educativas e de arrecadação de dinheiro. Algumas delas são bastante conhecidas do grande público, em função do forte apelo de marketing. Entre as ações, destacamse a venda de camisetas estampadas com o slogan “O câncer de mama no alvo da moda”, cujos recursos arrecadados são revertidos para o Instituto Brasileiro de Controle do Câncer (IBCC) 11; e a transferência de recursos financeiros obtidos com a venda de cosméticos, a promoção de campanhas educativas e o financiamento para a construção e equipamento de centros de referência em mastologia, realizados pelo Instituto Avon 12. Inicialmente, essas estratégias e campanhas de origem privada tiveram como modelo campanhas internacionais, sobretudo aquelas realizadas nos Estados Unidos, como o movimento internacional “Outubro Rosa”. Adotada no Brasil em 2002, a marca dessa ação é a iluminação em cor rosa de monumentos, prédios, teatros e pontes em todo o país 13. Existem também organizações que fazem lobby e têm como objetivo principal pautar políticas públicas. Caso emblemático é o da Femama 14, organização que esteve diretamente 11 Disponível em: <http://www.ocancerdemamanoalvodamoda.com.br/ibcc.asp> Disponível em: <http://www.institutoavon.org.br/tag/cancer-de-mama/> 13 Disponível em: <http://www.outubrorosa.org.br> 14 Disponível em: <http://www.femama.org.br/novo> 12 48 envolvida na campanha que resultou na lei que institui a mamografia para todas as mulheres acima de 40 anos, independentemente de fatores de risco (BRASIL, 2008). A tendência de parceria intersetorial continuou a crescer nas últimas duas décadas, redundando na instalação, em 2003, da ‘Rede Câncer’ 15, cujo propósito é reunir uma significativa gama de atores sociais envolvidos na problemática da doença, a partir da ideia de que ações ganham maior relevância e força quando realizadas em rede. Criada para ser uma rede de trabalho cooperativo para o controle da doença, integra a Alianza de América Latina y Caribe para Control del Câncer 16 e conta com a participação dos governos federal, estaduais e municipais (por meio de suas Secretarias de Saúde), universidades públicas e particulares, serviços de saúde e centros de pesquisa, além de representantes da sociedade em geral. O objetivo é reunir informações voltadas a diferentes públicos no que tange à promoção e prevenção aos cânceres de mama, útero, infanto-juvenil e familial, bem como à gestão. Essas informações são divulgadas também pelas revistas Rede Câncer e INCA. Para mostrar a diversidade e a capilaridade da rede listamos as organizações que a compõem atualmente: Associação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Combate ao Câncer; Associação Brasileira de Hospitais Universitários e de Ensino; Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas; Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva; Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde; Conselho Nacional de Secretarias de Saúde; Fundação Oncocentro de São Paulo; Fundação do Câncer; INCA; SUS/MS; Instituto Desiderata; Instituto Avon; Instituto Ronald Mcdonald; Sociedade Brasileira de Cancerologia; Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica); Sociedade Brasileira de Enfermagem Oncológica; Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica; Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia (SBPO); Sociedade Brasileira de Radioterapia; Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica; e União Norte e Nordeste de Entidades de Apoio à Criança com Câncer. Com o compartilhamento de conhecimento e recursos, o portal dessa rede é uma ferramenta para a troca de informações e criação de parâmetros para ações, abrangendo quatro campos de atuação: políticas públicas, mobilização social, conhecimento (ensino e pesquisa) e ações e serviços de saúde. 15 Disponível em: <http://www.redecancer.org.br/wps/wcm/connect/redecancer/site/home> Iniciativa do Consejo de Salud Suramericano, órgão permanente composto por ministros da Saúde da Unión de las Naciones Sudamericanas. Foi formalizada em 25 de julho de 2011 por força da Resolução 04/2011 e firmado pelo Consejo de Salud Suramericano na cidade do Rio de Janeiro. 16 49 Frente a essa diversidade de organizações, setores e pessoas envolvidas, o INCA reconheceu e formalizou, no Documento de Consenso para Controle do Câncer de Mama 17, publicado em 2004, que será detalhado mais adiante, a importância do papel que elas exercem na mobilização da sociedade, recomendando as seguintes estratégias (INCA, 2004, p. 20): - Criação de um Grupo Permanente de Trabalho, composto por diversas organizações que reconhecidamente vêm desenvolvendo ações na área de câncer de mama, com a presença das sociedades científicas afins, com o objetivo de colaborar e monitorar a implantação das ações de controle do câncer de mama no país. Esse grupo participará diretamente na proposição e execução de ações de educação comunitária e continuada para os profissionais, visando promover a humanização da assistência, na perspectiva dos direitos humanos. - Realização de seminários regionais, de capacitação de lideranças comunitárias e de conselheiros municipais (saúde, educação e assistência social), enfatizando o controle social, culminando em um Encontro Nacional de Luta no Combate ao Câncer de Mama. - Articulação com os institutos de direitos do consumidor, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil e a Comissão Intersetorial da Saúde da Mulher, com o objetivo de garantir os direitos da mulher no que diz respeito ao diagnóstico precoce e à reconstrução mamária. As mulheres deverão ter acesso à informação, por meio de cartilha informativa sobre seus direitos. - Estimular a criação de grupos de ajuda nos hospitais de referência para as mulheres com câncer de mama. 3.1.2 As Diretrizes para o Controle do Câncer de Mama Com relação ao câncer de mama, relacionamos a seguir as principais políticas, programas e ações estratégicas em que ele se insere 18. 17 Elaborado em conjunto pelo Ministério da Saúde e representantes de outros setores (profissionais, governo, especialistas, representantes de organizações, sociedade civil, entre outros. 18 Dados retirados da seção “Histórico das Ações” do site do Instituto Nacional do Câncer do Ministério da Saúde (INCA/MS). Disponível em: http:<//www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/acoes_programas/site/home/nobrasil/programa_controle_cancer_mama/ historico_acoes>. Acesso em: 12 set. 2012. 50 Quadro 1 - Programas e politicas para o controle de câncer de mama. Ano Nomeações dos programas e políticas 1983 Programa Assistência Integral à Saúde da Mulher 1986 Criação Programa de Oncologia do INCA/MS 1990 Programa passa a ser chamado de “Coordenação de Programas de Controle do Câncer” 1998 Programa Viva Mulher (foco na detecção precoce do câncer do colo do útero e da mama) 2005 Política Nacional de Atenção Oncológica: destaque cânceres de colo e mama; Plano de ação para o controle dos cânceres de colo e de útero Detecção precoce do câncer de mama aparece como prioridade no “Pacto pela Saúde” do governo federal 2006 2009 2011 2012 Encontro Internacional sobre CM, promovido pelo INCA/RJ; Implantação do Sismama (controle sistema de informação) Plano Nacional de Fortalecimento da Rede de Prevenção, diagnóstico e tratamento (investimento de 4,25 bihões de reais até 2014) Programa Nacional de Qualidade em Mamografia Em meados dos anos 1980, concomitantemente e impulsionado pela promulgação do Sistema Único de Saúde, vários movimentos nacionais, estimulados por ideais de alguns estratos da sociedade (dentre eles, os movimentos feminista e reformista) e por pressão de organismos internacionais, ajudaram a mudar a abordagem do câncer de mama. Percebemos essa mudança no Quadro 1, que mostra a criação do Programa Assistência Integral à Saúde da Mulher, em 1983. A palavra integral (também referida como integralidade) está associada a um posicionamento éticopolítico complexo, surgido na esteira desses movimentos que, em linhas gerais, já afirmavam que saúde integral da mulher vai muito além da saúde reprodutiva. Ela passa por direitos reprodutivos, direito de escolha individual sobre o corpo, controle de natalidade de acordo com os seus desejos etc. Entre 1986 e 1990 observa-se uma mudança terminológica significativa: o “Programa”, que continha a palavra oncologia isolada, passa a ser chamado de “controle do câncer”, denotando que este não deve ser tratado de maneira pontual, isolada e paliativa, mas controlado por meio de ações estratégicas baseadas no perfil populacional e em fatores de risco. Aí começa a entrar a noção de risco que embasa essas políticas. Pessoas com características denominadas endógenas (sexo, idade, história pregressa de câncer) e exógenas (hábitos alimentares e culturais, localizadas em determinadas regiões, expostas a poluentes) devem receber uma atenção especial das políticas, direcionadas e endereçadas para elas. 51 Com a inversão da pirâmide nos países em desenvolvimento, quando a população deixa de ser majoritariamente jovem e passa progressivamente pelo processo de envelhecimento, as políticas precisam se voltar para esse público, que tem demandas de outra ordem e sofre de agravos específicos. O governo se vê cada vez mais diante de questões que vão se complexificando. Faz-se necessário o estudo dos riscos nessas populações para que novas respostas sejam dadas para essas novas questões. Vale mencionar que o conceito de risco, no contexto político, tem relação com a emergência da população como problema de governo. Sua formalização como cálculo de probabilidade forneceu importante ferramenta para a governamentalidade (SPINK; MENEGON, 2005). A noção de governamentalidade possibilita endereçar uma complexa fusão de atividades que envolvem não um ente único denominado ‘governo’, mas os saberes e práticas em que estamos todos enredados. E, conhecendo os riscos, uma das principais estratégias para seu o controle é a realização de campanhas. Em 2004, diversos atores envolvidos na temática (governos de todas as esferas, organizações não governamentais, médicos, especialistas, usuários, militantes e gestores, entre outros) reuniram-se para a elaboração de diretrizes técnicas que deveriam ser seguidas pelos Estados, Distrito Federal e municípios, atravessando todas as políticas voltadas para o controle da doença. Denominado Documento de Consenso para Controle do Câncer de Mama19 (INCA, 2004), como o próprio nome indica, demandou um processo de negociação no qual os conflitos inerentes fossem dirimidos para se chegar a uma base comum. Aqui entram as campanhas voltadas para a detecção precoce do câncer de mama, sejam elas educativas ou por meio de programas em que se leva em conta o perfil populacional de cada região (quando se faz um levantamento da população que será alvo de aplicação sistemática de exames como a mamografia, por exemplo). Dessa forma, o câncer de mama vem ganhando cada vez mais atenção do governo brasileiro, que anunciou, em 2011, investimento de R$ 4,5 bilhões em ações voltadas para detecção e tratamento dos cânceres de mama e de útero até 2014 (PORTAL DA SAÚDE, 2011). É preciso mencionar, porém, que temos atualmente uma mulher na presidência, o que deu força e impulsionou investimentos em políticas e programas voltados para esse público. 19 Disponível em: <http://www.inca.gov.br/publicacoes/consensointegra.pdf>. 52 O controle do câncer de mama tornou-se prioritário na Política Nacional de Atenção Oncológica, firmada em 2005, e no Pacto pela Saúde, em 2006 – estabelecido entre a União, Estados e municípios e no qual são elencadas as prioridades para a construção de políticas públicas de saúde. Em junho de 2009 foi implantado nacionalmente o Sistema de Informação do Câncer de Mama com o objetivo principal de gerenciar as ações de detecção precoce deste tipo câncer. Destaca-se ainda a Lei Federal 9.797/99 (BRASIL, 1999), que garante reconstrução mamária em mulheres que passaram por mastectomia (retirada parcial ou total da mama). As estratégias brasileiras para o controle do câncer de mama são baseadas nas recomendações da Organização Mundial de Saúde, que em 2004 publicou um documento com políticas para o controle do câncer em países em desenvolvimento, resultante de uma reunião realizada em Genebra, em 2000. Essas recomendações serviram de base para a elaboração do Documento de Consenso. Embora esse documento seja a principal referência, o INCA publicou diversos outros com recomendações que incorporaram informações atualizadas sobre a magnitude da doença, obtidas principalmente após a implementação do Sismama. As diretrizes do Programa Nacional de Controle do Câncer de Mama, elaborado pelo INCA em 2011, e, portanto, mais recente, são de que a prevenção e o controle da doença se deem pelas seguintes estratégias: incentivo à promoção da saúde, prevenção primária, detecção precoce, tratamento e cuidados paliativos. O incentivo à promoção da saúde para prevenção do câncer vem na esteira das “Políticas e ações para a prevenção do câncer no Brasil: alimentação, nutrição e atividade física” (BRASIL, 2009), visando estimular na população hábitos e comportamentos que potencialmente previnam a doença. A prevenção primária ainda não é totalmente possível, de acordo com o Instituto do Nacional Câncer, porque há grande variação dos fatores de risco, além de características genéticas vinculadas à etimologia desse câncer. Nesse sentido, apesar das recomendações presentes nas políticas, programas e documentos técnicos que consideram a importância da promoção da saúde e a prevenção primária de fatores modificáveis do câncer de mama (eliminação de hábitos como fumo e consumo de gordura e álcool, uso de hormônio etc.), é dada ênfase à prevenção secundária na forma de detecção precoce. Ela abarca duas estratégias: o rastreamento (aplicação sistemática de exames) em um segmento populacional, independente de fatores de risco; e o diagnóstico precoce, composto pelo exame clínico aliado à mamografia nos casos mais específicos, quando há fatores 53 de risco, e na faixa etária que apresenta maior incidência (50 a 69 anos) 20. Nas situações em que há indícios da doença, a recomendação é que o SUS garanta o diagnóstico e o tratamento nos casos positivos. Para as mulheres que possuem risco elevado para câncer de mama, a recomendação geral é que a rotina de rastreamento se inicie aos 35 anos, com exame clínico e mamografia anuais, com acompanhamento médico individual e personalizado. Podemos traduzir essas diretrizes na Figura 1, a seguir. Figura 1 - Detecção precoce do câncer de mama no Brasil. Fonte: Produzido pela autora com base nos dados do INCA - Diagnóstico precoce: realizado em mulheres com sinais ou sintomas da doença. - Rastreamento: realizado em mulheres assintomáticas. Pode ser organizado (realizado em mulheres elegíveis de dada população, convidadas formalmente para os exames de rastreio) ou oportunístico (ofertado às mulheres que oportunamente procuram os serviços de saúde). No Brasil, a mamografia e o exame clínico das mamas (ECM) são os métodos preconizados para o rastreamento na rotina da atenção integral à saúde da mulher. 20 O autoexame das mamas, apesar de popularmente conhecido como estratégia de detecção do câncer e ser uma forma de chamar atenção das mulheres sobre alterações no corpo, não substitui o exame físico feito pelo profissional de saúde (INCA, 2010). 54 Quadro 2 – Recomendações para detecção precoce por faixa etária e grupos de risco. 35 anos ou mais, risco 40 a 49 anos 50 a 69 anos elevado de câncer de mama* Exame clínico de mama anual e mamografia, caso identificada alteração no EMC EMC anual e mamografia a cada dois anos, independentemente de alterações no EMC EMC e mamografia anuais *História familiar de câncer de mama em parente de primeiro grau antes dos 50 anos ou de câncer bilateral ou de ovário em qualquer idade; história familiar de câncer de mama masculino; e diagnóstico histopatológico de lesão mamária proliferativa com atipia ou neoplasia lobular in situ (Documento de Consenso – 2004) 3.2 O EXAME CLÍNICO E A MAMOGRAFIA COMO PRINCIPAL ESTRATÉGIA DE CONTROLE DO CÂNCER DE MAMA NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE A combinação do exame clínico das mamas e rastreamento mamográfico – que consiste na realização de exame radiológico das mamas em mulheres assintomáticas a intervalo regulares – vem sendo a principal estratégia de detecção precoce do câncer de mama em diversos países. Implementado pioneiramente, nas décadas de 1980 e 1990, por Islândia, Suécia, Canadá e Estados Unidos, por exemplo, o rastreamento mamográfico bianual nas mulheres assintomáticas, com idades entre 50 e 69 anos, foi instituído no Brasil somente em 2004, por meio do Documento de Consenso para Controle do Câncer de Mama. Em 2008 foi sancionada a Lei 11.664/2008 para efetivar as ações de prevenção e detecção dos cânceres de colo do útero e de mama no SUS, já previstas no Artigo 2, Inciso 3, da Lei Orgânica de Saúde nº. 8.080. Essa lei torna a mamografia disponível para todas as mulheres acima de 40 anos, independentemente de fatores de risco (BRASIL, 2008). A medida, entretanto, gerou discordância de interpretação da lei entre o Instituto Nacional do Câncer e algumas organizações da sociedade civil que têm como objetivo pautar a agenda nacional de políticas públicas para o câncer de mama (OBSERVATÓRIO BRASIL DA DESIGUALDADE DE GÊNERO [s/d]) 21, entre elas a Femama. De acordo com o INCA, a mamografia deve ser realizada nas mulheres na faixa etária entre 40 e 49 anos apenas se apresentarem indicação médica. Enquanto nas de 50 a 69 anos o exame deve ser realizado a cada 21 “Instituto Nacional do Câncer explica lei da mamografia”. Disponível em: <http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/noticias/instituto-nacional-do-cancer-explica-lei-damamografia/?searchterm=mamografia>. Acesso em: 24 dez. 2012. 55 dois anos, independentemente de fatores predispostos. Observa-se que o posicionamento do INCA é manter as recomendações firmadas no Consenso de 2004. Já as organizações que se contrapõem à posição do órgão entendem que a mamografia anual deve ser garantida indistintamente a todas as mulheres acima de 40 anos. A justificativa do INCA (2009) está embasada em estudos internacionais que trazem evidências científicas de que mamografias realizadas indiscriminadamente podem gerar excesso de diagnóstico (over-diagnnosis) e tratamento (over-treatment), com aumento desnecessário na demanda estimado em até 30% (INCA, 2009). Além de provocar uma sobrecarga nos serviços, tal procedimento geraria risco de câncer induzido pela radiação da mamografia. Para as organizações da sociedade civil, contudo, a lei da mamografia (BRASIL, 2008) deve ser cumprida, garantindo a todas as mulheres o rastreamento mamográfico oportunístico (partindo espontaneamente da população alvo que procura os serviços de saúde). Isso por que, além de ser um direito da mulher, esse é o meio mais eficaz de controle da doença, atualmente. 3.2.1 Rastreamento Mamográfico: Políticas Públicas Versus Especialistas As controvérsias sobre a faixa etária das mulheres que devem ser alvo das ações de rastreamento mamográfico mostram o tensionamento entre as diretrizes adotadas pelo governo, baseadas nas recomendações da OMS (2004) para o controle do câncer de mama em países em desenvolvimento, e o posicionamento de alguns especialistas. A Sociedade Brasileira de Mastologia, entidade de classe que representa esse segmento médico, e a Femama divulgaram em seus sites, por meio de documentos públicos, a posição de que a mamografia deve ser realizada anualmente a partir dos 40 anos, independentemente de sintomas e fatores de risco. No entanto, nos serviços públicos o que prevalece são as recomendações do governo para programas de rastreamento, que é de realizar a mamografia em todas as mulheres acima de 50 anos, a cada dois anos. As de 40 anos e mais devem realizar o exame apenas se apresentarem nódulos suspeitos no exame físico e/ou integrarem grupo de risco. No Brasil existem mais de 4 mil mamógrafos. É consenso entre o governo e os especialistas que esse número seria suficiente para a cobertura mamográfica necessária a um programa de rastreamento eficiente, não fosse a má distribuição dos aparelhos (a maioria se concentra no Sul e Sudeste), os problemas de manutenção e de baixa qualidade dos exames 56 diagnósticos associados à falta de investimento na capacitação dos profissionais que operam as máquinas, emitem laudos etc. Diante desse cenário, o governo federal lançou em 2012 o ‘Programa Nacional de Qualidade em Mamografia’ (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2012), que tem como objetivo principal monitorar a qualidade dos equipamentos e também investir em qualificação dos profissionais. A meta é que tanto aparelhos públicos quanto privados sejam adequados aos critérios estabelecidos pelo programa e recebam certificado de controle, sem o qual não poderão operar. O discurso clínico e político recorrente é que a mamografia é a única materialidade reconhecidamente eficaz na redução da mortalidade por câncer de mama. No entanto, sabemos que essa redução está associada também a diversas outras materialidades e socialidades envolvidas no controle da doença. Isolada, a mamografia não é garantia de que o rastreamento do câncer de mama vá diminuir a mortalidade das mulheres acometidas por essa doença. Deve-se considerar que a alta mortalidade por câncer de mama e o diagnóstico tardio estão vinculados à integração das ações nos níveis micro e macro, que, de acordo com Mattos (2011), passam pela promoção da saúde, prevenção primária do câncer, detecção precoce, diagnóstico e tratamento adequados, reabilitação e cuidados paliativos nos casos em que há sequelas – devendo ser incluída também a reconstrução mamária. No contexto do SUS e de acordo com os seus princípios, é fundamental a informação sobre câncer de mama voltada para as mulheres ser clara e acessível. São igualmente necessários o acompanhamento integrado de equipes multidisciplinares, o acolhimento humanizado, conforme preconiza a Política Nacional de Humanização do SUS (HumanizaSUS) 22, a integração dos serviços de saúde, o investimento em recursos e a capacitação de profissionais, as parcerias intramunicipais e interestaduais e, por fim, o controle e a participação sociais efetivos das políticas e ações. Essas são algumas das características fundamentais para a práxis do princípio ético-político da integralidade no SUS, em que a integração dos serviços se insere como parte do princípio organizativo 23. 22 Criado em 2003 com o objetivo de concretizar os princípios do SUS no cotidiano dos serviços. De acordo com Cecilio (2009), os princípios da universalidade, integralidade e equidade formam um conceito tríplice do Sistema Único de Saúde, até mesmo entrelaçado, expressando claramente o ideário do movimento reformista da saúde. Esses são os três princípios doutrinários essenciais, enquanto a descentralização, a regionalização e a hierarquização correspondem a princípios organizativos do SUS. 23 58 CAPÍTULO 4: CONTEXTUALIZANDO O AMBULATÓRIO DE SAÚDE DA MULHER Neste capítulo faremos uma descrição do funcionamento do Ambulatório de Saúde da Mulher de Jundiaí (ASM): a população atendida, sua estrutura e sua dinâmica. A partir daí, contextualizaremos como o ASM se insere na rede de serviços conveniados ao Sistema Único de Saúde para o diagnóstico precoce do câncer de mama. Abordaremos também o papel da cidade como polo de saúde no Colegiado Gestor Regional de Jundiaí (CGR), composto por mais oito municípios. O CGR Jundiaí, por sua vez, integra o Departamento Regional de Saúde (DRS) de Campinas, junto com outros três colegiados: CRG Campinas, CGR Bragança e CGR Oeste. O DRS de Campinas é um dos 17 Departamentos Regionais de Saúde do Estado de São Paulo, responsáveis pela gestão e implementação das diretrizes da Secretaria Estadual de Saúde. Além de contextualizar o ASM, apresentamos os principais indicadores da região em relação ao câncer de mama, disponíveis nos sistemas de informação dos órgãos oficiais. No entanto, não os tomaremos como absolutos, visto que muitos dados são incoerentes, discrepantes, falhos e subnotificados, apesar da intensificação de esforços para a sistematização das informações em saúde nos últimos anos. Assim, é necessário olhar para além dos indicadores quantitativos e problematizá-los como construção de fatos (SPINK; LISBOA; GUEDES, 2009), isto é, considerar os atores envolvidos; porque se elege alguns indicadores e não outros; o que eles mostram e o que omitem; quais os diversos interesses que estão em jogo. Como enfatizam as autoras (2009): Nos apoiamos em Latour, sobretudo, para discutir o papel da literatura científica na construção de fatos. Latour (2000) nos esclarece que é preciso “algo mais” que referências a pesquisas e autoridades para configurar um tema como problema a ser estudado. Juntar e empilhar fotos, figuras, números, nomes e argumentos aos textos científicos e enlaçá-los uns aos outros constitui uma estratégia de legitimação de conhecimento (p. 354). O câncer de mama vem sendo alvo de políticas públicas, conforme abordamos no Capítulo 3. A elaboração de sistemas de notificação e controle dos dados sobre a doença em nível nacional, como o Sistema de Informação de Câncer de Mama (Sismama), que entrou em vigor em 2009, foi resultado de uma construção coletiva que envolveu governos, entidades médicas, 59 organizações que fazem advocacy nessa área (Femama, por exemplo), organizações da sociedade civil e grupos de mulheres que apoiam outras mulheres com câncer, entre outros. Nesse contexto, Jundiaí, assim como quase todos os municípios paulistas, tem de prestar contas ao governo federal, seguindo as orientações de gerenciamento firmados no Sismama e no Sispacto. 4.1 O MUNICÍPIO DE JUNDIAÍ COMO POLO REGIONAL DO COLEGIADO GESTOR REGIONAL JUNDIAÍ Por meio do Decreto DOE nº 51.433, de 28 de dezembro de 2006, o Estado de São Paulo foi dividido em 17 Departamentos Regionais de Saúde (DRS), responsáveis por coordenar as ações da Secretaria de Saúde Estadual no âmbito regional e promover a articulação intersetorial entre os municípios paulistas. São eles (Artigo 2º): • DRS I – Grande São Paulo • DRS II – Araçatuba • DRS II – Araraquara • DRS IV – Baixada Santista • DRS V – Barretos • DRS VI – Bauru • DRS VII – Campinas • DRS VIII – Franca • DRS IX – Marília • DRS X – Piracicaba • DRS XI – Presidente Prudente • DRS XII – Registro • DRS XIII – Ribeirão Preto • DRS XIV – São João da Boa Vista • DRS XV – São José do Rio Preto • XVI – Sorocaba • DRS XVII – Taubaté 60 Jundiaí integra o Departamento Regional de Saúde VII Campinas, junto com mais 41 municípios. O DRS VII Campinas, por sua vez, é subdividido em quatro Colegiados Gestores Regionais (CGR): CGR-Campinas; CGR Jundiaí; CGR Bragança e CGR Oeste. Mapa 1 – Distribuição dos Departamentos Regionais de Saúde do Estado de São Paulo. Fonte: SES-SP. Disponível saude/regionais-de-saude. em: http://www.saude.sp.gov.b/ses/institucional/departamentos-regionais-de- O CGR Jundiaí é referência para o atendimento de média e alta complexidade na região, abrangendo nove municípios que abrigam uma população de 811.964 habitantes, de acordo com o IBGE (2010): Cabreúva, Campo Limpo Paulista, Itatiba, Itupeva, Jarinu, Jundiaí, Louveira, Morungaba e Várzea Paulista. Do total de habitantes da CGR Jundiaí, 152.571 são mulheres na faixa etária de 40 anos a 70 anos ou mais, conforme podemos verificar no quadro a seguir. 61 Tabela 2 – População-alvo das ações de detecção precoce do câncer de mama da CRG Jundiaí: mulheres (zona urbana e rural) por idade. Município Jundiai 40 a 49 anos 50 a 59 anos 60 a 69 anos 70 anos ou mais Total geral 9 municípios 27.685 22.351 14.373 13.990 Cabreúva 2.714 1.740 1.087 708 Campo Limpo Paulista 5.201 4.162 2.072 1.636 Itatiba 7.472 5.553 3.326 2.900 Itupeva 2.948 1.993 1.078 816 Jarinu 1.502 1.169 737 626 Louveira 2.376 1.517 802 733 733 582 425 266 7.465 5.434 2.586 1.813 58.096 44.501 26.486 23.488 Morungaba Várzea Paulista Total parcial 152.571 Fonte: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010. 4.1.2 O ASM na Rede de Serviços para Detecção Precoce e Controle do Câncer de Mama nos Nove Municípios que Compõem a CGR Jundiaí Por ser um polo regional, Jundiaí atende mais oito municípios que referenciam casos de câncer que devem seguir para o atendimento secundário (mamografia e biópsias) e/ou terciário (cirurgias e quimioterapia/radioterapia). No site da Secretaria de Saúde de Jundiaí está disponível o Manual SUS Jundiaí – Como utilizar, voltado para os usuários. Nele consta o passo a passo de como usar os serviços de saúde, desde a atenção primária até a terciária, em que o Ambulatório de Saúde da Mulher está enquadrado como atendimento médico especializado. Para utilizar o ASM, é necessário que a paciente seja encaminhada por médico de unidade de saúde primária, quando ela necessita de acompanhamento especializado. A unidade básica de saúde deve ligar para o ASM e marcar a consulta. Além do protocolo de encaminhamento preenchido e assinado, no dia da consulta a mulher deve apresentar: os exames anteriores, o RG original, o cartão da unidade básica de saúde e o Cartão SUS. Portanto, aquela situação hipotética em que a mulher chega espontaneamente ao serviço e é atendida não se aplica ao ASM, pois um dos requisitos é seu encaminhamento pela UBS. 62 No atendimento de mastologia é realizado o acompanhamento especializado do caso. Ou seja, lá chegam mulheresencaminhadas das unidades básicas de saúde porque apresentaram alguma alteração no exame mamográfico – realizado majoritariamente em Jundiaí, conforme descreveremos adiante. No ASM as mulheres são atendidas pelo médico mastologista que assumirá o acompanhamento e direcionamento do caso para a investigação diagnóstica, cirurgia e tratamento, a depender do caso. O protocolo do Ambulatório de Saúde da Mulher diz que a paciente deve ser atendida no prazo de 15 dias, contados a partir do encaminhamento pela UBS. Em situações de emergência o atendimento é realizado no próprio dia da intercorrência ou no máximo no seguinte. Quando o médico precisa encaminhar a paciente para exame de tomografia o tempo de espera é de 20 dias. Já para ressonância, um mês. Esses dados foram informados pela gerência do ASM. Alguns exames só são liberados via Diretoria de Avaliação, Controle e Auditoria da Secretaria Municipal de Saúde de Jundiaí. 4.1.3 Fluxo de Atendimento da Mastologia na Região De modo geral, o fluxo recomendado para a detecção precoce do câncer de mama começa na atenção básica, pois cada município é responsável pelo atendimento da sua população na rede primária, por meio das unidades básicas de saúde e das unidades de saúde da família (USF). Quando é necessário um atendimento especializado de maior complexidade (mamografia e quimioterapia, por exemplo) os usuários são encaminhados para os centros de atendimento secundário e terciário. O encaminhamento para esses serviços especializados pode ser municipal ou regional, dependendo do porte e da demanda da cidade de origem. Esse fluxo ideal segue preferencialmente a ordem ilustrada na Figura 2. 63 Figura 2 - Fluxo de atendimentos de mastologia na CGR. Fonte: Informe Sismama. 24 Esse é o fluxo ideal. Na prática, o caminho não é tão linear. A mulher pode procurar o serviço secundário sem passar pela UBS por que descobriu sozinha um “caroço” na mama, ao realizar o autoexame; ou o médico do posto de saúde pode encaminhá-la diretamente para a mastologia por que identificou um nódulo altamente suspeito no exame clínico. Enfim, existe uma série de situações possíveis na concretude dos serviços, a qual não daremos conta de esgotar aqui. Mas de maneira geral os serviços procuram seguir essa ordem. 4.1.4 Os Principais Desafios na Rede de Serviços A investigação diagnóstica precisa ser realizada em clínicas e laboratórios que fazem parte da rede de serviços próprios dos municípios ou que atendam por cota estabelecida em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde de Jundiaí. Nem todos os exames são disponíveis 24 Disponível em: http://www1.inca.gov.br/inca/Arquivos/Sismama.pdf 64 nas cidades de origem ou têm cota em Jundiaí, como, por exemplo, a core biopsy 25 , o que prejudica a integralidade e a integração dos serviços. A cirurgia e o tratamento rádio e quimioterápico são feitos no Hospital São Vicente de Paulo, referência para oncologia. Além de Jundiaí, apenas Itatiba realiza tratamento para câncer de mama na região. Os medicamentos para o tratamento, de alto custo, são disponíveis pelo município de Campinas. As redes primária, secundária e terciária de serviços do Sistema Único de Saúde em de Jundiaí contam com 31 unidades básicas de saúde e 4 unidades Equipe da Saúde da Família (ESF), 3 prontos atendimentos, 3 ambulatórios (dentre eles, o ASM), 1 Núcleo Integrado de Saúde (20 especialidades e exames diagnósticos) e 8 serviços de saúde (saúde mental, controle de zoonoses e saúde do trabalhador, entre outros). Além dessa rede, Jundiaí possui dois hospitais: o já citado São Vivente de Paulo e o Hospital Universitário. Foram firmados convênios com alguns laboratórios da rede privada e entidades sem fins lucrativos ligados a universidades para a realização de exames mamográficos e biópsias, entre outros. Nos municípios do CGR Jundiaí o rastreamento do câncer de mama é feito por demanda espontânea. Além disso, a cobertura mamográfica na região é muito baixa, 20% em média, variando de 12% a 41%, dependendo do município. A recomendação é de que a cobertura seja de 60%, de acordo com o “Programa mais saúde – direito de todos”, do Ministério da Saúde. Os dados informados pela SMS de Jundiaí podem ser observados na tabela a seguir. 25 De acordo com o Documento de Consenso: “A PAG ou core biopsy é também um procedimento ambulatorial, realizado sob anestesia local, que fornece material para diagnóstico histopatológico (por congelação, quando disponível), permitindo inclusive a dosagem de receptores hormonais.” (INCA, 2004, p. 8) 65 Tabela 3 – Cobertura do exame de mamografia, de acordo com o município em 2009. População alvo: Número mulheres de 40 a 69 anos de exames Campo Limpo Paulista 11.137 1.440 12,9 Cabreúva 5.184 732 14,1 Jarinu 3.083 1.280 41,5 Jundiaí 61.773 14.148 22,9 Itatiba 15.671 1.940 12,4 Itupeva 6.010 1.486 24,7 Louveira 4.395 1.002 22,8 Município Morungaba Cobertura (%) 1.529 232 15,2 Várzea Paulista 15.046 3.026 20,1 Total 123.828 25.286 20,7 Fonte: Diretoria do Ambulatório de Saúde da Mulher de Jundiaí-SP Para dados mais recentes, acessamos os indicadores de monitoramento e da avaliação disponíveis para o público no site do “Sispacto – Aplicativo do Pacto pela Saúde” 26, por meio do qual é possível acompanhar as metas e resultados anuais de todos os municípios brasileiros firmados no Pacto pela Saúde, conjunto de reformas institucionais pactuado entre as três esferas de gestão (União, Estados e municípios) do SUS. Um dos pactos que fazem parte desse conjunto é o Pacto pela Vida, que tem como um dos eixos prioritários o controle dos cânceres de útero e de mama. As metas e indicadores dos municípios da CGR Jundiaí encontrados no Sispacto para esse objetivo são descritos na Tabela 4. 26 Disponível em: <http://portalweb04.saude.gov.br/sispacto/>. 66 Tabela 4 - Pacto pela Saúde – 2010/2011, dados preliminares. Eixo Prioritário II – Controle do câncer de útero e de mama. Indicador 4: razão entre mamografias realizadas nas mulheres de 50 a 69 anos e população feminina nesta faixa etária, em determinado local e ano. Município Meta 2010 Resultado Meta 2011 preliminar 2010 Resultado preliminar 2011 Cabreúva 0,12 0,01 0,12 0,10 Campo Limpo Paulista 0,12 0,05 0,12 0,11 Itatiba 0,12 0,17 0,15 0,22 Itupeva 0,12 0,12 0,16 0,25 Jarinu 0,12 0,13 0,18 0,16 Jundiaí 0,22 0,18 0,25 0,16 Louveira 0,12 0,02 0,12 0,14 Morungaba 0,18 0,07 0,20 0,11 Várzea Paulista 0,23 0,21 0,25 0,17 Fonte: Sispacto – Aplicativo do Pacto pela Saúde Cabreúva foi o município que mais se distanciou da meta, enquanto Itatiba e Itupeva a superaram. Mesmo sendo polo regional, Jundiaí ficou abaixo da meta firmada. Os principais problemas identificados pelos municípios para justificar essa baixa cobertura são, segundo informações da Coordenadoria do ASM, são: • ausência de programa organizado; • dificuldade de acesso à mamografia; • baixa procura pelas mulheres para a realização dos exames preventivos; • falta de cultura de prevenção e promoção da saúde; • ausência de protocolo de conduta aos médicos e enfermeiros; • baixa capacitação profissional; • falha no acolhimento da mulher que procura a UBS; • ausência de ferramentas de controle para análise dos dados; • baixa qualidade dos exames. Em Jundiaí existe um mamógrafo público, adquirido, em 2007, com recursos advindos de uma parceria com a Fundação Jayme Rodrigues e uma organização da sociedade civil. A própria fundação é responsável pela manutenção do equipamento. Antes da aquisição desse mamógrafo, a taxa era de aproximadamente 10%. A cobertura mamográfica de Jundiaí, atualmente, é de quase 23% da população alvo. O número de mamografias oferecidas pelo município antes de 2007 era 67 de 400 a 800/mês. Atualmente são realizadas mais de 1.200/mês, mais da metade delas adquirida em serviços privados, em convênios firmados pela SMS. Com uma rede básica que integra 8 unidades básicas de saúde e 1 ambulatório de especialidades (que não conta com mastologia), Campo Limpo não possui serviço de mamografia nem convênio ou cota. As mulheres só realizam esse exame quando o Estado de São Paulo promove mutirões. Jarinu, Cabreúva e Louveira possuem cota SUS em Jundiaí, que realiza entre 35 e 40 exames mamográficos/mês nas mulheres desses três municípios. Itupeva possui um aparelho de mamografia, que está quebrado, por isso, o município compra exames de Jundiaí. A Secretaria de Saúde de Várzea Paulista compra exames de uma clínica privada. Itatiba é o único município que possui serviço próprio de mamografia e conta com ambulatório secundário de saúde da mulher e tratamento químio e radioterápico, o que o torna menos dependente de Jundiaí. Possui cota mensal de 158 exames mamográficos. Outros problemas referem-se aos exames para complementação diagnóstica, como magnificação mamográfica 27, ultrassonografia e core biópsia. As mulheres que precisam realizar esses exames são reencaminhadas para os seus municípios, sendo essa uma das maiores dificuldades, pois muitas cidades possuem uma cota bastante baixa, quase inexistente. A situação é ainda mais grave quando o exame a ser realizado é a core biopsy, ocasião em que a mulher se vê muitas vezes com o pedido médico sem conseguir realizá-lo. Dados da Fundação Seade 28 indicam que no período de janeiro a dezembro de 2010 foram notificados 3.615 óbitos por câncer de mama em território paulista. Desses casos, 316 ocorreram nos municípios que compõem a DRS Campinas (Tabela 4). 27 28 Exame mamográfico mais apurado para detectar e classificar nódulos identificados anteriormente Disponível em: <http://www.seade.gov.br/> 68 Tabela 5 - Óbitos por câncer de mama notificados, de janeiro a dezembro de 2010. Município Número de óbitos Cabreúva 2 Campo Limpo Paulista 3 Itatiba 12 Itupeva 3 Jarinu 2 Jundiaí 47 Louveira 3 Morungaba 2 Várzea Paulista 6 Campinas 93 Total 173 Fonte: Fundação Seade, 2010 Podemos observar um número expressivo de óbitos por câncer de mama em Jundiaí. Dos municípios que integram o DRS Campinas, a cidade fica atrás somente de Campinas, que registrou nesse período 93 mortes. No entanto, é preciso considerar que a população campineira é expressivamente maior: 1.080.113 habitantes versus 370.126 jundiaienses, conforme Censo 2010 do IBGE. A falta de investimentos em programas organizados de rastreamento nessa microrregião é reflexo da ausência de uma política estadual para o assunto (CORREA FILHO et al., 2011). O rastreamento de câncer no Estado de São Paulo é realizado primordialmente de maneira oportunística (demanda espontânea), sendo os municípios responsáveis por conduzí-lo. Assim, a falta de diretrizes estaduais os leva muitas vezes a adotar estratégias inadequadas e improdutivas. Diante de uma grande demanda reprimida de mamografias no Estado, de 2005 a 2009 a Secretaria Estadual de Saúde e a Fundação Oncocentro de São Paulo (Fosp) organizaram mutirões para realização desses exames. Para tanto, foram contratados serviços radiológicos nos 17 Departamentos Regionais de Saúde. Reconhece-se que muitos casos foram detectados nos mutirões descritos acima, mas esses devem ser adotados como ação pontual e emergencial, não como estratégia de longo e médio prazo. A partir de nossas observações na sala de espera do ASM, elencamos três casos que ilustram os gargalos na rede. No primeiro, uma mulher com 44 anos relata que o médico do 69 município de origem dizia que o líquido que saída dos seus seios era leite e prescreveu remédio para “secar”. Desde o início desconfiada do diagnostico, ela procurou outro serviço, onde foi solicitada a mamografia, que acusou BIRADS 4 (altamente suspeito) 29. Foram cinco meses entre esse diagnóstico e a cirurgia. Após dois meses da sua realização, apareceu outro nódulo, dessa vez BIRADS 3. Está na mastologia do ASM para tratar desse segundo evento. No segundo caso, uma mulher de 44 anos disse que o médico da unidade básica do seu município nem chegou a fazer o exame clínico. Solicitou diretamente a mamografia, que foi realizada em dezembro de 2011. Em janeiro do ano seguinte foi realizado um USG, pelo qual se constatou alteração nas duas mamas. A consulta no ASM ocorreu em março de 2012. Nessa consulta, a mastologista a mandou fazer outra mamografia por não confiar no laudo do exame realizado pelo laboratório. A nova mamografia ficou agendada para agosto/2012. Foram, portanto, quase oito meses entre a primeira mamografia que identificou um achado e a segunda, solicitada pela médica do ASM. No terceiro exemplo, uma mulher de 44 anos com nódulos na mama desde muita menina. O primeiro foi descoberto aos 13-14 anos. Em 2009, fez mamografia e não teve nenhum achado clínico. No entanto, começou a sentir dor e, por ocasião da nossa conversa, tinha acabado de descobrir um nódulo, identificado pela mamografia. Por não gostar da médica que a vinha acompanhando no posto, procurou ser atendida por outro profissional e mostrou-se mais satisfeita. Disse ainda que achava o tempo entre os exames demorado. Foram três meses para realizar a mamografia e outros dois para fazer o USG. Também apontou demora para marcar a consulta de retorno. Em 2009, foi solicitado um exame de ultrassom, que o posto nunca agendou. Ela disse, em tom de inconformismo, que acabou jogando fora o papel, pois perdeu a validade. Como já mencionado nos capítulos anteriores, a mamografia, por si só, não pode ser considerada uma estratégia de impacto na detecção precoce do câncer de mama. E esses exemplos ilustram bem isso. Para ser eficiente, é necessário que venha acompanhada de investigação diagnóstica e tratamento de qualidade, em tempo oportuno. Se isso não ocorre, a mulher peregrina com o resultado positivo ou suspeito nas mãos, atormentada pela possibilidade de ter um câncer e não saber se vai ser acolhida pelos serviços como deveria. 29 BIRADS é o sistema de classificação internacional usado para classificar os nódulos mamários em níveis de 0 (resultado incompleto) a 6 (biópsia prévia com malignidade comprovada) (INCA, 2004). 70 4.2 CARACTERIZAÇÃO DO AMBULATÓRIO DE SAÚDE DA MULHER O Ambulatório de Saúde da Mulher está instalado nas dependências do Hospital Universitário da Faculdade de Medicina de Jundiaí (HU), construído no antigo Hospital Santa Rita; ambos os serviços foram inaugurados em 3 de outubro 2003. A construção do novo hospital foi resultado de uma parceria entre a prefeitura e a Faculdade de Medicina. A entidade responsável pela administração do HU é a Fundação Jayme Rodrigues, pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, constituída em 21 de setembro de 2001. O Hospital Universitário é referência na região e atende cerca de 16 cidades vizinhas, de acordo com informações disponíveis no site da Faculdade de Medicina. O complexo hospitalar ocupa 8 mil metros quadrados de uma área total de 15 mil metros quadrados. O hospital funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana; conta com cerca de 420 profissionais e 122 leitos, dos quais 6 para UTI infantil, 13 UTI neonatal, 10 semineonatal e 6 leitos para UTI adulto. Entre seus serviços, além das unidades de terapia intensiva, estão enfermarias, laboratório de enfermagem, pronto-socorro infantil, atendimento de ginecologia e obstetrícia e centro cirúrgico. O ASM ocupa uma pequena área dentro do Hospital Universitário de Jundiaí. Funciona de segunda a sexta-feira, das 8 às 17 horas, realizando atendimento ambulatorial especializado em saúde da mulher nas áreas de violência doméstica, pré-natal de risco, câncer ginecológico e câncer de mama, além de promover ações de planejamento familiar. Conta em seu quadro com 45 profissionais cadastrados. É composto por recepção, arquivo, 5 consultórios médicos, 1 consultório psicológico, 1 consultório de assistência social, 1 sala administrativa (coordenadoria), sala de coleta de exames e curativo, almoxarifado, 1 banheiro para pacientes, 1 banheiro para funcionários e sala de pós-consulta (na qual são marcados exames laboratoriais e/ou próxima consulta, conforme a solicitação do médico que acabou de atender). 4.2.1 O Fluxo do Atendimento no ASM em Jundiaí O fluxo de atendimento segue os seguintes passos: 1. Senha na recepção. 2. Sala de espera (média de três horas de espera). 71 3. Consulta com procedimentos simples, quando necessário (punção, por exemplo). 4. Sala de pós-consulta – onde os exames são agendados, conforme protocolo do médico que acabou de atender, por meio de sistema informatizado com a rede de serviços. Uma médica mastologista é responsável pelo monitoramento dos casos simples, como nódulo benigno, neoplasias etc. As mulheres com câncer são encaminhadas para outro mastologista, responsável somente por esses casos. Aquelas com diagnóstico positivo são atendidas também pela psicóloga e pela fisioterapeuta, dependendo das sequelas deixadas pela cirurgia. Em alguns casos, quando precisam requerer benefícios sociais porque ficam incapacitadas de trabalhar, são encaminhadas para as assistentes sociais, que atendem ainda as mulheres em dificuldade para realizar um exame essencial ao diagnóstico/tratamento. Nessa situação, a profissional acompanha o caso para garantir que a mulher tenha acesso ao que precisa, acionando os dispositivos que garantam o direito das pacientes. 4.2.2 Os Principais Desafios e Possibilidades do ASM Durante o período que realizamos a pesquisa foi possível perceber que há diversos desafios para que os objetivos e metas propostos para o Ambulatório de Saúde da Mulher sejam alcançados. Os(as) profissionais que atuam no serviço demonstram ter uma visão clara de que há muitas dificuldades que precisam ser superadas e muitos “buracos” na rede, como aparece na fala de alguns deles: “O caso mais difícil foi uma mulher de Campo Limpo, que teve muita dificuldade para fazer a biópsia lá... já tava com ferida. A gente lutou pra ela conseguir (...) As mulheres são humilhadas demais pelos médicos do INSS. É muito difícil conseguir benefício” (Assistente social. Fonte: diário de campo, 30/03/2012). A seguir apresentaremos os desafios que apareceram de modo mais explícito nas conversas e nas observações que realizei nesse período. Para compreender esses desafios do ASM, partimos da noção de ambiência na saúde, diretriz da "Política Nacional de Humanização (PNH) 30, que compreende o espaço físico, social, profissional e de relações interpessoais dos 30 A humanização é entendida na PNH como a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde. Os valores que norteiam esta política são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade, a formação de vínculos solidários e a participação coletiva. 72 serviços de saúde voltados para uma atenção em saúde resolutiva e acolhedora. Essa compreensão é norteada por três eixos: 1. O espaço que visa a confortabilidade; 2. O espaço como ferramenta facilitadora do processo de trabalho; 3. A ambiência como espaço de encontros entre os sujeitos. 4.2.2.1 O Espaço Físico Construído nas dependências do Hospital Universitário, percebe-se que houve um reaproveitamento do espaço que a priori não foi planejado para atender as mulheres. O ASM tem um espaço muito reduzido, com infraestrutura insuficiente para atender à demanda. “A gente fica muito ‘apertado’. Não tem um bebedouro para as pacientes” (Recepcionista do pósconsulta. Fonte: diário de campo). Além do espaço físico limitado, o tempo que as mulheres aguardam na sala de espera é longo e ocioso. Na perspectiva da ambiência, esse também deve compor as ações do serviço de saúde e pode fazer parte do atendimento de diversos modos. Poderiam utilizar esse espaço para realizar conversas e atividades relacionadas à promoção de saúde e principais casos atendidos no ASM, como gravidez de risco, câncer de útero e de mama e violência doméstica, entre outros. Em 8 de março de 2012, Dia Internacional da Mulher, havia no mural da sala de espera um poema de Cora Coralina: “Eu sou aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida, removendo pedras e plantando flores”. Esse é um exemplo que mostra que as paredes e murais também podem ser aproveitados nas atividades. Partindo da reflexão de Cecilio (2009), entendemos que a integralidade, sendo objetivo de toda rede, se realiza quando há disponibilidade dos serviços e dos profissionais em criar espaços privilegiados de acolhimento, escuta, fortalecimento dos/das usuários/as e formação de vínculos. 4.2.2.2 O Acolhimento Os profissionais que ficam na pós-consulta relatam que é difícil conciliar as tarefas cotidianas (marcar exames, separar medicamentos para a paciente, atender o telefone) com a 73 necessidade de acolhimento dos casos em que há abalo emocional – por exemplo, quando a paciente grávida descobre que o feto morreu ou atender a mulher que acabou de receber a notícia de que está com câncer. No fluxo do ambulatório esse é o local para o qual as mulheres vão imediatamente após a consulta com os médicos. Ou seja, muitas vezes elas precisam elaborar o que acabaram de ouvir e conversar mais um pouco com os/as profissionais para poder dar sentido a essas novas informações. Esses relatos de quem atua na pós-consulta sobre a necessidade de uma sala e uma pessoa específicas para acolher as mulheres nos fez questionar sobre qual seria a compreensão de cuidado que esses profissionais têm. De acordo com Cecilio (2009), as necessidades de saúde trazidas pelo usuário são diversas e não se restringem a demandas explícitas (dor, por exemplo). Elas podem ser a busca por vínculo afetivo, a resposta por más condições de vida, a necessidade de ter maior autonomia e de ser escutado. Assim, o acolhimento dessas necessidades individuais deve ser feito por cada profissional envolvido e pela equipe como um todo, como a autora afirma: Cada atendimento, de cada profissional, deve estar compromissado com a maior integralidade possível, sempre, mas também ser realizado na perspectiva de que a integralidade pretendida só será alcançada como fruto do trabalho solidário da equipe de saúde, com seus múltiplos saberes e práticas. Maior integralidade possível na abordagem de cada profissional, maior integralidade possível como fruto de um trabalho multiprofissional (CECILIO, 2009, p. 121). A impressão que ficamos é de que uma das razões que dificultam a realização de ações integrais na saúde é a leitura, comum a muitos profissionais, de que o cuidado em saúde é disciplinar, ou seja, cada profissional, dentro da sua disciplina de formação, tem uma tarefa/função. A relação com as materialidades que atravessam as relações e as atividades trazem facilidades e desafios também. As pacientes saem das consultas com protocolos, receitas, pedidos de exames emitidos pelos médicos. Vão para a sala de pós-consulta e têm de enfrentar outras tecnologias, como o computador que integra os serviços e automaticamente faz o agendamento dos exames. Esperar na fila, sentar em frente com a atendente, explicar alguma orientação que ouviram do médico, mas que não estava escrita, ver as datas que o sistema apresenta para o agendamento dos exames, compreender as orientações, enfim. Entender, no percurso entre as salas para onde são encaminhadas, o papel de cada setor, para onde devem ir. A partir das datas que o sistema gera, ver e conciliar agendas (a atendente sempre coloca um calendário à 74 disposição), fazer escolhas dentro do que podem escolher – mais de uma vez, presenciei a atendente dar possibilidade de escolha de dia e horário de exame para as pacientes. É um processo complexo de negociação, tensão e entendimento mútuo entre o paciente e o profissional que a atende. Trago como exemplo uma jovem grávida que ouvia atentamente as instruções para que prosseguisse com o pré-natal. Quando a atendente disse que para continuar fazendo-o no ambulatório ela precisaria passar, junto com o marido, por uma palestra de planejamento familiar no posto de origem (eles condicionam o atendimento a esse evento), a moça, com cautela, disse que no posto eles disseram que era o contrário: a palestra deveria ser dada pelo ambulatório onde ela realiza o pré-natal (no ASM são atendidos casos de gravidez de risco). A atendente mostrou inquietação e explicou que não, que era no posto e que se eles questionassem mais uma vez, que a jovem poderia dar o telefone do ASM. Falou em tom de brincadeira que poderiam falar direto com quem tem “poder” no ambulatório: as enfermeiraschefe. Apesar da tentativa da paciente de mostrar a informação desencontrada de um serviço e outro, no final imperou o discurso de “quem tem mais poder”, e é quem vai dizer como deve ser feito. Por outro lado, os(as) profissionais do ASM e os serviços de saúde foram, de maneira geral, muito elogiados(as) pelas mulheres em minhas conversas. Em diversas ocasiões, presenciei situações que demonstraram o comprometimento dos profissionais com as pacientes e a busca por um atendimento humanizado. Essa informação parece contraditória com o fato que citamos anteriormente – a menção de alguns à necessidade de se ter alguém alocado única e especificamente no acolhimento. Nesse caso, pode ser que os funcionários, racionalmente, não se deem conta de que na prática realizam múltiplas formas de acolhimento, o que implica dizer que ainda estão preso a modelos de explicações de formação disciplinares. O trabalho em saúde é complexo e demanda o esforço e a colaboração de todos os envolvidos nesse cuidado. Mol (2008) afirma que a doença, por mais debilitante, não revoga o direito dos pacientes de participar nos processos de escolha. Esses não devem ser reduzidos à sua condição enferma. Antes de mais nada, o paciente deve ser tratado como um cidadão que, naquele momento, tem necessidades específicas de saúde, mas também tem seus próprios valores, hábitos e estilo de vida. 75 A não ser em casos extremos, a incapacidade permanente ou temporária do corpo não impede a pessoa que enfrenta uma doença de pensar por si, de poder negociar com o profissional de saúde as estratégias terapêuticas. Contudo, Mol nos alerta que esse é um grande desafio, porque a linha entre cuidado e negligência é tênue. Respeitar a autonomia do paciente não quer dizer que os profissionais envolvidos não devam assumir o que é de sua responsabilidade, delegando ao paciente uma escolha solitária dentro do rol de opções de tratamento. O profissional deve estar atento tanto às necessidades verbalizadas pelo paciente quanto ao que pode trazer melhores condições de saúde, dignidade e conforto naquele momento de sofrimento. A autora alerta para um aspecto fundamental na lógica do cuidado: o esforço conjunto e colaborativo de todos os envolvidos nesse processo. Assim, deve-se buscar sintonizar os conhecimentos médicos e as tecnologias existentes com as necessidades das pessoas doentes que, antes de mais nada, têm vidas complexas. 4.2.2.3 Necessidade de Reuniões Periódicas No caso especifico do ASM, apesar da equipe parecer entrosada e sem dificuldades de comunicação, ficou evidente, em uma conversa com a assistente social, que não há uma organização coletiva do trabalho nem espaços formais para troca e elaboração de ações conjuntas pela equipe, que deveriam facilitar o processo de cuidado. Ela afirma: “Nós não fazemos reuniões para discussão dos casos. Antes a gente fazia, mas parou e ninguém avisou o motivo. Isso frustra... por isso funcionário público é desacreditado” (Assistente social. Fonte: diário de campo, 18/05/2012). No caso do ASM as ações integradas são fundamentais, já que o serviço recebe, além dos agravos de saúde que acometem a mulher, situações complexas de violência doméstica, vulnerabilidade econômica e social, violência sexual. Para a assistente social seria muito importante que houvesse uma abordagem interdisciplinar e espaço para dividir as possibilidades de intervenção com uma visão mais ampla e integral dos casos. A falta de comunicação foi um aspecto verbalizado por algumas pessoas como prejudicial para a organização do serviço. A consequência direta é que algumas atividades precisam ser refeitas e os profissionais acabam passando informações trocadas. 76 Como exemplos, temos as situações em que as atendentes recebiam pedido do médico para marcar exames dali a seis meses, mas o sistema não permite essa antecedência. A solução foi pedir à usuária que voltasse, com a guia, um mês antes da data indicada pelo médico, quando então a mamografia poderia ser agendada. Em outra ocasião, a atendente agendou um exame em um laboratório que estava passando por reforma e não atenderia os pacientes no período. Só conseguiu reagendar em outro serviço porque foi alertada por sua colega, que viu o engano a tempo. Ambas falaram que esse evento devia-se à falta de comunicação no serviço. 4.2.3 Investimento nos Recursos Tecnológicos e nos Canais de Comunicação com os Usuários Nesse período de pesquisa ficou evidente que, apesar dos desafios apontados acima, há esforços para melhorar o serviço e ampliar as possibilidades de um cuidado integral a população. Um bom exemplo disso foi a interligação em rede dos sistemas dos diferentes serviços públicos do município, por meio de sistema informatizado desenvolvido pela Companhia Informática de Jundiaí (Cijun), uma materialidade implantada em todas as secretarias. Especificamente na Secretaria de Saúde, o objetivo da iniciativa foi otimizar e facilitar a comunicação e a integração dos serviços de saúde da região, pertencentes ou conveniados ao SUS, de marcação de exames à guarda de histórico dos pacientes. No ASM, a paciente sai da pós-consulta com todos os exames agendados automaticamente por esse sistema. Mas ainda há obstáculos a serem superados, pois nem todas as UBS da microrregião são informatizadas, o que dificulta a comunicação e integração plenas. Uma profissional destacou isso quando perguntei se ela acreditava que esse era um dispositivo que facilitava o trabalho e a integração da rede: “No começo o sistema demorou pra acertar, caía toda hora. Mas depois acerta e ajuda muito a gente. Tem mais de dez anos já. Mas nem todas as UBS têm computador, né? Agora que tá começando a ter” (Atendente de pós-consulta. Fonte: diário de campo, 13/04/2012). Jundiaí é um importante polo e acolhe os munícipes da microrregião. Em função disso, seus desafios aumentam, porque é ele que atende boa parte da demanda da população que não encontra recursos nas cidades que compõem a rede. Conforme destacaram algumas mulheres: 77 “Ah, em Jarinu não tem quase nada, só o postinho.” (Entrevista com Vânia, em 07 de julho de 2012). “É tudo aqui no São Vicente, aqui é muito bom. Em Várzea Paulista tem só um hospital, mas é fraco, trata só um resfriadinho, uma coisinha” (moradora de Várzea Paulista. Fonte: diário de campo, 09/03/2012). Além disso, foi criado também o Setor de Atendimento ao Cidadão, que é um canal direto do poder público com a população através do telefone 156. Esse meio de comunicação permite melhor avaliação dos serviços e escuta das queixas dos usuários, bem como críticas e sugestões. A implementação do serviço indica a abertura para as opiniões dos usuários, compreendidos como atores ativos no processo de cuidado e, principalmente, como cidadãos capazes de contribuir para a melhoria dos serviços a partir das próprias vivências. 79 CAPÍTULO 5: AS MULHERES ENTREVISTADAS 5.1 OS PERCURSOS NA REDE DE SERVIÇOS Por ter como um dos objetivos de pesquisa compreender o percurso que a mulher percorre entre os serviços de saúde, e que esse percurso, por mais que não seja linear, obedece uma ordem cronológica, iremos usar como recurso as linhas narrativas propostas por Spink e Gimenes (2003). Para as autoras, as linhas narrativas “são apropriadas para esquematizar os conteúdos das histórias como ilustrações e/ou posicionamentos identitários no decorrer da entrevista. Sendo essa uma das formas discursivas mais presentes no cotidiano” (p. 283). Em seguida, descreveremos os percursos das mulheres que entrevistamos no ASM Jundiaí, a partir da suas narrativas, com base nas questões norteadoras que compunham o roteiro da entrevista, conforme já citado no Capítulo 2. Algumas datas eram confirmadas com papéis dos exames, outras vieram a partir da memória das mulheres; por isso, algumas são mais precisas e outras são aproximadas. 5.1.2 Vânia: Nódulo Benigno Vânia tem 59 anos e mora em Jarinu. No dia de nossa conversa, realizada em 7 de julho de 2012, cheguei ao AMS e fui direto para os bancos que ficam em frente aos consultórios, perto da sala da mastologista, onde as usuárias costumam esperar a consulta. Identifico-as pelos envelopes que carregam, que têm impresso o nome do centro de diagnóstico onde elas realizam os exames. Fico sabendo que a médica saiu em férias e que nesse dia não teria nenhuma paciente da mastologia. Vejo uma senhora que segura um dos seios com as mãos e tem no colo um envelope que costumo ver com as pacientes da mastologista. Sento-me ao seu lado. Pergunto se ela é paciente da mastologista e se posso me apresentar. Como todas as mulheres com quem conversei, Vânia é muito solícita e receptiva. Após a apresentação inicial, falo brevemente de minha pesquisa e pergunto se ela aceita participar. Assim que confirma que deseja contribuir (todas as mulheres verbalizaram o desejo de participar da pesquisa por acreditarem que contribuiriam de alguma forma com o serviço), leio resumidamente o Termo de Consentimento Informado e Esclarecido, reafirmando que a 80 entrevista será gravada, mas que ela poderá interrompê-la a qualquer momento ou pedir para não gravar algum conteúdo da fala: “Pode gravar tudo e divulgar meu nome, filha.” A entrevista com Vânia gira mais em torno de sua ansiedade por não ter encontrado a médica no ASM – ela havia passado por uma biópsia recente, quando retirou um nódulo benigno. Em nossa conversa, Vânia me posiciona como sua aliada no serviço; alguém que a apoiaria, ouviria, cuidaria dos papéis e exames, enquanto ela se ausentasse por alguns momentos. Fala de sua vida, do seu dia a dia, da família. Fala sobre como sua rotina foi alterada depois que realizou a biópsia, pois a cicatrização difícil não permitia que ela tocasse sua vida como de costume. Seu nódulo foi descoberto em um exame mamográfico de rotina, que ela diz fazer todo ano em Jundiaí. Entre a mamografia, realizada em setembro de 2011, até a retirada do nódulo, em junho de 2012, transcorreram nove meses. Da retirada do nódulo até a biópsia, não chegou a demorar um mês, sendo ambos realizados em junho de 2012. No mesmo dia da cirurgia, em 4 de junho, na parte da manhã ela realizou um agulhamento por estereotaxia, exame que mostra a localização exata do nódulo, tamanho, bem como sua profundidade, guiando o médico no momento da cirurgia. Do exame ela se dirigiu ao Hospital Universitário para retirar o nódulo, no período da tarde. Após a biópsia, Vânia recebia todos os dias uma enfermeira do posto de saúde, que era responsável por realizar a limpeza e o curativo no local onde foi realizado o corte da biópsia. Além disso, ela comparecia toda semana ao Ambulatório de Saúde da Mulher para a mastologista acompanhar de perto o processo de cicatrização, levada por uma ambulância da Secretaria de Saúde de Jarinu. Poucas semanas depois desse acompanhamento, os pontos se romperam. Vânia ficou assustada, pois saía pus e o local ficou com o corte aberto. Imediatamente, ela procurou o médico do posto de saúde. Nessa consulta, ele disse que ela não poderia fazer atividades domésticas pesadas. A quebra na sua rotina a deixou muito ansiosa e nervosa, como me contou na conversa. Com relação ao tempo de descoberta por meio da mamografia e realização da biópsia, chama atenção o tempo entre os procedimentos (nove meses). Esse é um fator extremamente angustiante para a mulher, que convive quase um ano com o peso da dúvida se tem ou não um câncer. Além disso, reforça que existe uma deficiência de exames e procedimentos cirúrgicos para diagnósticos na rede, como podemos verificar na linha abaixo. 81 Serviço de Saúde AFIP-Jundiaí 01/09/11 Clínica Única – Jundiaí e Hospital Universitário de Jundiaí (HU) ASM-Jundiaí Posto de saúde de Jarinu e residência Posto de saúde de Jarinu ASM-Jundiaí 04/06/12 20/06/12 Jun-jul/12 01/07/12 07/07/12 Parte da manhã: realização do agulhamento por estereotaxia Parte da tarde: biópsia Na consulta: resultado da biópsia Curativo é realizado diariamente pela enfermeira na residência e acompanhamento da cicatrização é feito semanalmente pelo médico do posto de saúde Por complicações na cicatrização procura o posto, que a encaminha para o ASM Faz curativo com enfermeiras Eventos Descoberta nódulo suspeito em mamografia de rotina 5.1.2 Lúcia: um Diagnóstico Recente de Câncer de Mama Quando avisto Lúcia no ASM, voltava do almoço. Sua figura me chama a atenção de imediato. Ela está encolhida na cadeira, com a cabeça abaixada, ar preocupado. Reza com um terço nas mãos. Os movimentos são comedidos, o olhar de quem está processando algo muito difícil na vida. Pelos papéis cuidadosamente organizados em uma sacola, os mesmos que as outras mulheres da mastologia costumam carregar, vejo que ela está ali para ser atendida pela médica mastologista. Ao passar por ela, sorrimos uma para a outra. Sigo até a sala das assistentes sociais para conversar enquanto o movimento no ASM está tranquilo. Meia hora depois, saio da sala e encontro o ambulatório cheio. Vejo Lúcia conversando com uma senhora. Seu rosto está expressivo e atento, enquanto ouve Mariana, que conversa em tom de experiência, de maneira acolhedora. Há um lugar vago ao lado delas, onde me sento; percebo que Lúcia está tirando dúvidas sobre o tratamento do câncer. Peço para me apresentar e as duas são receptivas. Digo que a conversa das duas me despertou muito interesse e apresento brevemente minha pesquisa; deixo claros os trâmites do Comitê de Ética. Pergunto se posso gravar a conversa das duas e 82 eventualmente fazer algumas perguntas. Reforço que, se quiserem, posso interromper a gravação a qualquer momento. Aceitam participar. Quando me insiro na conversa, Lúcia está muito receosa com os efeitos do tratamento que ela teria de encarar, principalmente em relação à queda dos cabelos. Está com receio da cirurgia, agendada para dali a um mês, e dos efeitos do tratamento que se seguirá. Lúcia posiciona Mariana no lugar de sobrevivente, alguém que passou pelo calvário do câncer e está ali para contar sua trajetória, as mudanças físicas, psíquicas e os impactos na dinâmica familiar e na relação com as pessoas próximas e conhecidas. É rico e interessante observar a interação entre duas mulheres que vivem momentos diferentes no processo de convivência com o câncer de mama, bem como o jogo de posicionamentos entre nós. Lúcia encontra em Mariana alguém que está ali para contar a história a partir da perspectiva de quem vivenciou o que ela estava prestes a experienciar; para Lúcia, Mariana é um exemplo positivo de superação e resiliência. Mariana conta como foi importante ter força. A tônica de sua fala é “seje forte”, com o seu sotaque e trejeitos nordestinos, o que dava ainda mais ênfase aos seus imperativos. “Você tem que ficar sossegada. Vai ter gente que vai falar ‘ai, coitadinha’. Eu não sou tadinha de ninguém!” Lúcia quer demonstrar força, mas está fragilizada pelo contexto e chora em vários momentos da entrevista. Eu me posiciono como alguém que ouve e intervém muito pontualmente, quando preciso saber de datas ou local de exames. Mas também me vejo posicionada e assumo o lugar de alguém que está ali para acolher, segurar as mãos, solidarizar e ouvir as dificuldades e queixas em relação à conduta de alguns profissionais e instituições, como o INSS. As duas mulheres vão construindo sentidos ao longo das narrativas para as causas e riscos do câncer de mama. Lúcia está passando pelo processo de ter de lidar com o câncer de mama e com o temor que antecede a cirurgia e o tratamento. Com histórico de neoplasia (alterações mamárias com as quais a mulher pode conviver por anos, mas que exige acompanhamento sistemático e frequente), durante 25 anos, desde o nascimento de um de seus filhos, Lucia observou um líquido sair de seus seios, ao qual ela chama de leite: “Meu leite não secou”. Ela tinha um convênio médico anteriormente, mas cancelou e passou a usar o Serviço de Mastologia do ASM. Em dezembro de 2011 ela fez a mamografia, solicitada pela mastologista, e em janeiro de 2012 saiu o resultado (um mês). Da mamografia até a biópsia, realizada em 23 de 83 abril, transcorreram três meses. E levou um mês entre a biópsia e a confirmação diagnóstica, em 23 de maio de 2012. Sua cirurgia para retirar o câncer de mama fora agendada para 8 de agosto de 2012 (três meses). Ela já havia feito os exames pré-cirúrgicos, dentre eles a cintilografia óssea e o raio x (todos na AFIP de Jundiaí), realizados em todas as mulheres como parte da preparação da cirurgia, de acordo com vários profissionais do ASM. No entanto, somente Lúcia fez menção a eles. Acreditamos que seja pelo momento do percurso em que ela estava e porque tinham sido realizados recentemente. No dia de nossa entrevista, estava ali para os resultados ao médico que atende os casos positivos e combinar os procedimentos cirúrgicos, que encararia dali a menos de um mês (a entrevista foi realizada em 12 de julho e a cirurgia estava agendada para 8 de agosto). Foram nove meses entre a descoberta do nódulo e o agendamento do procedimento para removêlo. 84 Serviço de Saúde Particular, posto de saúde e ASM Jundiaí 1987/2011 AFIP ASM Jundiaí Dez/11 Jan/12 Exame mamográfico de controle Resultado da mamografia que confirma a presença de nódulo altamente sugestivo para o câncer de mama AFIP 23/04/1 2 ASM Jundiaí AFIP ASM Jundiaí Hospital São Vicente de Paulo 23/05/12 Jul/12 12/07/12 08/08/12 Consulta com mastologista para discutir a cirurgia e entregar os resultados dos exames que a antecedem Cirurgia (no momento da entrevista, essa era a data agendada) Eventos 25 anos acompanhando o “leite” que não secou Biópsia Revelação do diagnóstico positivo Realiza diversos exames que antecedem a cirurgia para retirar o nódulo maligno (cintilografia óssea, raio x, exames de sangue) 5.1.3 Mirza: a Fase Intermediária do Tratamento Cheguei cedo ao ambulatório, pois havia marcado entrevista com uma mulher indicada pela assistente social, que viria de Campo Limpo. Meia hora depois do horário marcado, estranhei sua demora. A profissional que havia intermediado o encontro ligou para sua residência e ela avisou que não poderia vir ao ASM, pois não tinha com quem deixar os filhos. Diante do imprevisto, fui para a sala de espera buscar alguma voluntária. Eu havia esperado um mês para conseguir essa entrevista e não podia esperar uma próxima oportunidade. Vejo uma jovem senhora com peruca e marcas visíveis de caneta no peito, um dos sinais da radioterapia. Me apresento e pergunto se ela aceita conversar. Mirza, que é moradora de Jarinu e tem 46 anos, fica um pouco ressabiada, mas explico com clareza a pesquisa e ela aceita participar. Conversamos no banco que fica do lado de fora do ASM. Ela está acompanhada da cunhada, que mostra cuidado, preocupação e está presente na maior parte da entrevista, complementando as datas e informações. Mirza diz que a presença da cunhada foi fundamental para que ela enfrentasse todo o percurso: compreender as orientações médicas, uma vez que o nervosismo atrapalha; nos momentos em que se sente muito debilitada e tem a tranquilidade de ter alguém que a ajude, se necessário. 85 A sua questão central é o momento em que recebeu o diagnóstico (“fiquei em choque”) e a dificuldade em lidar com a queda dos cabelos. Muito vaidosa, ela está com uma peruca, que providenciou com recursos próprios, assim que os cabelos começaram a cair. Mas ela diz que preferiu gastar um dinheiro que pesou no seu orçamento do que mostrar a cabeça sem cabelo algum. Mirza descobriu o nódulo em um exame mamográfico, realizado em Bragança Paulista, no dia 19 de abril de 2011. Até 2008, a mamografia era realizada quando o Estado de São Paulo promovia mutirões, sendo Bragança Paulista a cidade que recebia as mulheres referenciadas para mamografia até 2011. Em 2012, Jundiaí assumiu a realização da mamografia. Mirza diz que foi um avanço, pois Jundiaí é mais próxima e elas não se desgastam tanto com a locomoção e ganham tempo. No dia 22 de maio, quase um mês após a realização da mamografia, foi chamada pelo Ambulatório de Jarinu, onde comunicaram que o exame havia acusado microcalcificação na mama. O médico disse que o achado deveria ser investigado para ver se era benigno ou maligno. Ela diz que não se deu conta da gravidade naquele momento. A consulta no ASM foi realizada em 3 de junho, pouco tempo depois do encaminhamento do médico do posto. Foi então que a mastologista disse que teria de fazer uma biópsia, durante a qual o nódulo já seria retirado. A médica já deixou agendado o procedimento no Hospital Universitário, em 25 de julho, pois sairia de férias em alguns dias. Em 23 de agosto, o resultado da biópsia confirmou o câncer. Conta que a revelação do diagnóstico, comunicado pela mastologista, foi muito difícil e sofrida. Disse que foi a parte mais difícil de todo processo. Logo após, ela foi encaminhada para o médico que dá continuidade aos casos positivos no ASM de Jundiaí. Em novembro de 2011 o mastologista realizou a cirurgia para remoção do nódulo. No entanto, o setor de oncologia do Hospital São Vicente de Paulo não aceitou dar prosseguimento ao tratamento químio e radioterápico se não fosse realizada antes uma cirurgia para esvaziar as axilas. Após essa condição, o médico do ASM fez a segunda cirurgia, em novembro de 2011 (três meses após a confirmação da doença). Entre meados de janeiro e começo de julho de 2012, Mirza passou pelo tratamento quimioterápico. Em 17 de julho começou a radioterapia. Estavam previstas 28 sessões, das quais ela realizou 16. O término do tratamento seria em 23 de agosto, mas ela acreditava que haveria 86 atraso, em função da quebra da máquina de radioterapia (a sessão que ela realizaria no dia seguinte à nossa entrevista havia sido desmarcada). Serviço de Saúde Clínica de imagem em Bragança Paulista 19/04/11 Ambulatório de Saúde de Jarinu ASM Jundiaí HU de Jundiaí ASM Jundiaí Hosp. São Vicente de Paulo Hospital São Vicente de Paulo Hospital São Vicente de Paulo Hospital São Vicente de Paulo 22/05/11 03/06/11 25/07/11 17/07/11 Nov/11 16/01/12 04/07/12 17/07/12 Retorno com médico de Jarinu Consulta com mastologista Realiza a biópsia Revelação do diagnóstico positivo Cirurgia para retirar o câncer Início da quimioterapia Final da quimioterapia Início da radioterapia Eventos Realiza mamografia de rotina solicitada por médico do posto de saúde de Jarinu Médica agenda biópsia para julho Refaz a cirurgia no mesmo mês para esvaziar a axila 5.1.4 Mariana: a Fase Final do Tratamento Mariana é de Jundiaí e, na ocasião da entrevista, tinha 52 anos. Como dito anteriormente, a conheci quando ela conversa com Lúcia. Foi uma conversa muito bonita, durante a qual apenas fiz algumas intervenções e perguntas. Ela conta que vinha acompanhando há cinco anos um “carocinho bem pequenininho”, com a médica mastologista. Esse acompanhamento era semestral. Passado um mês de uma das consultas periódicas, Mariana sentiu uma fisgada quando o ônibus em que estava deu um solavanco. Ao chegar em sua casa, notou que o local estava “estufado” (abaulado, de acordo com 87 a literatura médica). Ela atribui esse evento a um aviso de que ela deveria ver do que se tratava o mais rápido possível. Imediatamente ligou para o ASM e marcaram a consulta para o dia seguinte. Foi realizada uma punção que nomeou o caroço de benigno. Mas de acordo com Mariana, a médica resolveu retirar o nódulo mesmo assim. A biópsia acusou que ele era maligno. A cirurgia foi agendada para 3 de janeiro de 2010, quando, segundo Mariana, não foi retirado todo tecido com câncer, pois “precisava esvaziar a axila”. As quimioterapias terminaram em outubro de 2012 e a radioterapia já estava no final quando nos encontramos (agosto de 2012). Mariana é considerada curada. Agora sua saga é conseguir receber o atestado médico do INSS para comprovar sua condição – o documento é fundamental para pleitear o benefício junto à Previdência. Em outra ocasião, a assistente social do ASM já havia comentado que essa é uma queixa recorrente das mulheres que passam pelo órgão previdenciário e enfrentam entraves burocráticos. Serviço de Saúde ASM Jundiaí e posto de saúde 2005/2010 Ambulatório de Saúde de Jarinu Hospital Universitário de Jundiaí Hospital Universitário de Jundiaí Hospital Universitário de Jundiaí Hospital São Vicente de Paulo Hospital São Vicente de Paulo Out/10 Dez/10 03/01/11 11/01/11 Out/12 Julho/12 Marca consulta de urgência no ASM-Jundiaí após apresentar alteração na mama (abaulamento) Biópsia Primeira cirurgia para retirar o nódulo Segunda cirurgia para esvaziar axila Início da quimioterapia Final da radioterapia Eventos Cinco anos acompanhando no ASM Jundiaí o nódulo que foi descoberto em exame clínico do posto Nesse capítulo ilustramos a trajetória que as mulheres que entrevistamos percorreram entre os serviços, a partir do momento em que descobriram a existência de um nódulo. Observamos que o maior desafio nesse percurso é o tempo de espera entre a mamografia e a 88 realização da biópsia que confirma ou não a existência do câncer de mama. O tempo mais longo foi o de Vânia, que esperou nove meses para receber o diagnóstico definitivo. Esse aspecto interfere não apenas na progressão e diminuição das chances de controle da doença, como implica grande desgaste físico e emocional para as mulheres, conforme aprofundaremos no capítulo a seguir. 90 CAPÍTULO 6: A CONVIVÊNCIA COM O CÂNCER DE MAMA Durante a pesquisa, pelas conversas e observações, fomos descobrindo particularidades no enfrentamento do câncer de mama, tanto por parte das mulheres, seus familiares e pessoas próximas, quanto dos profissionais de saúde envolvidos no processo. Havia também muitas similaridades entre elas, uma vez que estão situadas histórica e geograficamente no mesmo espaço, enfrentando desafios semelhantes e, portanto, inseridas em uma rede de repertórios e práticas discursivas que lhes possibilitam compartilhar sentidos e encontrar estratégias para lidar com os diversos conflitos, dores e emoções que a convivência com a doença provoca. Assim, entendemos que é na complexidade das organizações, relações entre profissionais e usuários e nas ações no cotidiano que os tensionamentos, as resistências e a diversidade de práticas, repertórios e sentidos são constituídos. O desafio aqui está em entender essas nuances a partir das diversas fontes, principalmente das falas de quatro mulheres entrevistadas, organizadas tematicamente em mapas dialógicos (expostos no Capítulo 2). A partir de seus depoimentos, podemos ver como as mulheres encontram adversidades, mas também procuram se posicionar de maneira ativa frente ao processo de adoecimento. Como veremos mais adiante, também constatamos que elas têm sua própria versão sobre a doença, sobre como deveria ser a condução clínica do seu caso, dos erros e dos acertos médicos. Nesse sentido, pudemos observar que, se a convivência com o câncer é permeada por tensionamentos, negociações e conflitos, ela também é atravessada por protagonismo, vínculo, acolhimento e solidariedade. 6.1 SOB A ÉGIDE DO CONTROLE: ENFRENTANDO OS DILEMAS DO RASTREAMENTO CONSTANTE Durante a pesquisa, e o longo contato com o tema, notamos que existe uma convivência permanente com o câncer de mama. Ele vira uma sombra em nossas vidas, abordado quase sempre como possibilidade de futuro, sendo desejável a eterna corrida pela prevenção. Todas nós somos bombardeadas por campanhas voltadas para esse fim, sejam elas oficiais ou não. Prevenir toda sorte de doença tornou-se um imperativo moral. Basicamente, o recado é “se não fizer sua 91 parte seguindo a cartilha da prevenção, você não cumpriu o seu papel de cidadão(ã).” Assim, como nos lembra Spink (2010), mais do que um direito, a saúde tornou-se um dever, uma obrigação individual. Para ilustrar, trago o relato de um dos episódios emblemáticos ocorridos no ASM. Após o almoço, fiz uma pausa e descansei em um dos bancos que ficam logo na entrada do ambulatório. Nesse momento pude observar duas senhoras de idade saindo do serviço. Uma delas (aparentemente a mãe) escutava a mais nova: “Ouviu o que o médico disse? Tem que fazer exercício!” A mulher mais velha seguia na frente, aparentando inquietação (registros do diário de campo, 24/02/2012). Esse exemplo evidencia a falta de sensibilidade para a condição daquela senhora. E vale questionarmos os efeitos que esse discurso provoca na sua vida (e por extensão na vida de todas nós, como parte das diretrizes para a prevenção do câncer de mama e outras doenças). A pressão pelo exercício físico como recomendação do médico terá impacto na sua vida diária. A familiar que a acompanhava, certamente, irá lançar mão desse discurso, pois acredita que a saúde daquela mulher está de certa forma condicionada a isso. Do episódio ficam algumas perguntas: existem espaços adequados e propícios naquela região para a prática de exercícios de idosos? Haverá acompanhamento profissional adequado? São oferecidos meios e estímulos para facilitar a regularidade dessa prática? Dizer simplesmente a uma senhora idosa “faça exercício”, sem ouvir, discutir e apresentar alternativas para uma tomada de decisão em comum entre usuária, familiar e médico mostra a dificuldade dos profissionais para realizarem uma atenção integral à saúde e respeitar o usuário, levando em conta os aspectos socioculturais daquela comunidade. Alguns autores têm ressaltado a importância de repensar o cuidado nos serviços de saúde, na perspectiva de que ele deveria se dar “no sentido de uma maior capacidade de escutar e atender às necessidades de saúde, mais do que a adesão pura e simples a qualquer modelo de atenção dado aprioristicamente” (CECILIO, 2009, p. 120). O desgaste que a realização de exames constantes como forma de prevenção ao câncer de mama provoca apareceu em uma conversa informal, na sala de espera, entre um grupo de mulheres. Uma delas desabafou que não aguentava mais tanto exame e que iria parar de “procurar sarna”, porque quanto mais procurava, mais achava. As outras, espantadas e em uníssono, disseram para ela não fazer isso. Outra senhora, que passou por uma cirurgia, contou que um exame dolorido foi feito sem anestesia. Várias vezes na conversa ela fez essa queixa, 92 dizendo que o procedimento doeu muito. Não se questiona aqui a necessidade ou não dos exames, mas as condições em que são realizados: dolorosos, invasivos, cercados de medo, muitas vezes conduzidos de maneira impessoal. A urgência é a prioridade, a maneira como são conduzidos fica em segundo plano. Há também, muitas vezes, impactos em outras esferas importantes da vida da mulher: “Então eu estou acompanhando, nunca parei. Sabe? Os médicos falaram que eu não podia deixar de acompanhar isso. Tanto é que eu nunca pude tomar anticoncepcional, porque o médico disse que no meu caso não podia, porque o leite não secou. Se eu tomasse, acho que já tinha dado (câncer) há muito tempo” (Lúcia, 48 anos, moradora de Jundiaí. Entrevistada em 12 de julho de 2012). Nesse discurso fica evidente que, se por um lado as ações de prevenção e rastreamento possibilitam um maior cuidado em alguns aspectos da saúde da mulher, por outro, podem torná-la refém do próprio sistema de saúde e da racionalidade médica, que passa a pautar diversos aspectos de sua vida. Vale observarmos que na sociedade contemporânea os repertórios dessa racionalidade médica não são homogêneos. Há controvérsias que muitas vezes ocupam o espaço público e são disseminados para a população em geral. Elegi uma matéria veiculada no jornal Folha de S.Paulo, em 1 de maio de 2012 31, para ilustrar como circula noticiário generalista, que é dirigido a um público frequentemente leigo e heterogêneo, a versão dos especialistas que questionam o rastreamento mamográfico em mulheres sadias. Nela são citados dois artigos científicos. Um deles, publicado na revista Annals of Internal Medicine, afirmava que a mamografia a cada dois anos só deve ser realizada em mulheres acima de 40 anos, que apresentem fatores de risco. O outro, realizado na Universidade de Harvard, apontava que 25% das mulheres que recebem diagnóstico para câncer de mama pela mamografia não desenvolveriam a doença, sendo, mesmo assim, submetidas a tratamentos desnecessários. Na mesma matéria, também há o alerta de que a recomendação da mamografia bianual para mulheres acima de 50 anos nos Estados Unidos, Brasil e na maioria dos países europeus também vem sendo questionada por alguns especialistas, que falam em superdiagnóstico. Uma procura rápida na internet mostra que existem matérias sobre esse tipo de estudo desde o início dos anos 2000, em sites brasileiros. 31 RIGHETTI, S. Mamografia aos 40 só é benéfica se houver maior risco de câncer. Folha de S.Paulo¸1 maio 2012. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/1083733-mamografia-aos-40-so-e-benefica-sehouver-maior-risco-de-cancer.shtml>. Acesso em: 5 set. 2012. 93 No entanto, essas ponderações em relação à realização da mamografia não apareceram no discurso das mulheres com quem conversei. Ao contrário, percebi em suas falas uma supervalorização da mamografia anual a partir dos 40 anos. Duas mulheres disseram que o maior desejo é investir em um plano de saúde para terem acesso anual ao exame. Nesses discursos aparecem também o descrédito em relação ao serviço público e a crença de que é com a mamografia que se previne o câncer, porque, de acordo com uma delas, de um ano para outro pode aparecer alguma alteração. Mesmo podendo comprometer o orçamento, o plano de saúde é visto como algo que garante o acesso ao exame com maior frequência. Expostas a esses discursos conflitantes, de médicos e do governo, as pessoas também vão construindo seus repertórios de acordo com o que acreditam ser o mais adequado, tornando-se “especialistas leigas” no assunto. Ao comentar com amigas e amigos o tema de minha pesquisa, ouvi de quatro mulheres o relato de que já haviam recebido o diagnóstico de falso-positivo, ou seja, o resultado do exame acusar câncer de um nódulo suspeito, que, no final das contas, era benigno. Essa é uma das críticas que alguns especialistas fazem ao uso da mamografia na população que não possui fator de risco. Além de serem realizados procedimentos invasivos e onerosos, a vigilância em excesso pode trazer consequências para a vida dessas mulheres, abaladas psicologicamente pela possibilidade do câncer de mama. É a convivência com essa dúvida e seus efeitos na vida das mulheres e nas práticas de saúde que vou abordar a seguir. 6.1.1 Os Nódulos Benignos: Tornando-se um “Caso Suspeito” Naquela manhã, Vânia acordou apreensiva e nervosa. Sua cirurgia, que era como ela se referia à remoção do nódulo, marcada para o período da tarde, dependia do exame de agulhamento por estereotaxia que ela iria realizar pela manhã. Desde que descobriu um nódulo no seio, a médica que a acompanha no serviço de mastologia do ASM, para onde são encaminhados casos como o dela, confere os exames com semblante preocupado. Em todas essas ocasiões, Vânia tenta decifrar a expressão desses profissionais. Eles estão de posse da informação que poderá mudar muitos aspectos de sua vida. O que será que quer dizer aquela testa franzida da médica, no momento em que apalpou o seu seio? 94 Terminado o procedimento, a médica a convida para sentar, enquanto pega os exames que Vânia trouxe consigo. As mãos frias e trêmulas apertam a bolsa contra o corpo. O coração disparado... quase dá para ouvir seu batimento no silêncio da sala. Engole em seco. Aqueles breves segundos entre a abertura do envelope e a tradução que a médica faz dos resultados são torturantes. A sensação de Vânia é de que duram uma eternidade. Tenta não pensar muito, mas o pior sempre vem à sua cabeça. A resposta chega: “Está tudo bem com seus exames, mas vamos continuar monitorando.” Volta para casa com um misto de alívio e apreensão. Ela e o marido, um senhor aposentado, moram em um conjunto habitacional de um bairro humilde de Jarinu. Desde que descobriu o nódulo vive entre exames e consultas, e as tarefas domésticas tornaram-se seu grande refúgio. Precisa ocupar sua cabeça, sentir-se útil e ativa. O corpo tem de continuar funcionando. Não quer se entregar. Seu neto, de quem cuida durante o dia para que sua filha possa trabalhar, é um menino prestativo e tenta ajudá-la nos serviços de casa. Seu marido também. Mas ela não aceita muito, porque as coisas têm de ser do seu jeito. Passou a lavar roupas e a “faxinar” a casa de tal forma e com tanta frequência que começou a desconfiar que algo não ia bem emocionalmente. Foi ao psiquiatra, que receitou medicamentos para controlar a ansiedade. Vânia convivia com esse fantasma do nódulo suspeito até que um dia seus temores se confirmaram. A médica não hesitou quando viu o resultado da última mamografia, que ela realizava anualmente: “Vamos ter que tirar esse caroço”. Agora esse nódulo, que já era um temor, tornou-se mais vivo e presente. Depois desse dia fatídico, uma manhã fria de setembro, Vânia teve de conviver com o martírio da dúvida por um longo período. Seu nódulo foi descoberto em um exame mamográfico de rotina. Da mamografia, realizada em setembro de 2011, até a retirada do nódulo, em junho de 2012, transcorreram nove meses. O resultado da biópsia não demorou um mês, sendo os procedimentos seguintes realizados no próprio mês de junho. No mesmo dia da cirurgia, em 4 de junho, na parte da manhã, ela realizou um agulhamento por estereotaxia, exame que mostra a localização exata e profundidade do nódulo, auxiliando o médico, em uma clínica com a qual Jundiaí mantém convênio. . Depois, ela se seguiu ao hospital para retirar o nódulo no período da tarde. 95 Após um mês do que ela chama de agulhamento e retirada do nódulo eu a encontro na sala de espera, sentada em um dos bancos, curvada para frente e segurando um dos seios. Sua expressão corporal é de alguém que carrega um peso, um fardo, com muito cuidado. O resultado da biópsia do nódulo removido, informado pela médica uma semana antes, havia dado negativo. No lugar de um esperado alívio, Vânia estava muito nervosa e irritada. O seu sofrimento não se limitou ao período em que não sabia se o nódulo suspeito era ou não um câncer. Havia desdobramentos, efeitos dessa cirurgia que impactavam a sua vida e agravavam sua ansiedade. O resultado negativo não minimizou seu sofrimento. Interessante notar também que ela sempre se refere à biópsia, que é um procedimento de média complexidade e exige apenas anestesia local, como cirurgia: “Minha cirurgia tava bonitinha, sabe? Era até para estar boa, já. Mas é por causa do agulhamento…” (Entrevista com Vânia, em 07/07/2012). Em nossa conversa, durante a entrevista, fica evidente que ela convive com o medo constantemente: Vânia: “(...) o médico, quando passei nele, falou que eu não podia carregar peso (...) é que porque eu tenho muito seio, muito pesado. Meus pontos de cima, quando chegou o dia, eu vim tirar normal, sabe? Tirou, mas tem muito músculo e abre a pele, sabe? Fica abertinho o lugar que tirou, dava até para ver os pontos lá de dentro. Saía pus, tudo. O médico falou ‘olha, vai ter que tirar (os pontos)’. A enfermeira tirou.” Eu: “Por isso a senhora sempre está segurando o seio…” Vânia: “Ai, eu fico assim, eu fico com medo. Mas ela (médica mastologista) falou que eu fiz muito bem porque não força.” Fiquei intrigada com a reação quase indiferente de Vânia quanto ao resultado negativo, que ela menciona somente uma vez em toda entrevista, pouco antes do seu término. Sua fala está marcada pelo receio e medo de que não tratem o corte ainda aberto com o devido cuidado e atenção. E de que ela deve tomar muito cuidado com os seus movimentos, porque qualquer descuido pode prejudicar a cicatrização. Essa é a tônica da entrevista: Vânia: “Venho uma vez por semana aqui para ver como está a cicatrização. Mas hoje ela (a médica) não está, né? Eu não sabia que ela ia sair de férias.” Por diversas vezes, Vânia demonstra descontentamento com o fato da médica do ASM ter se ausentado justamente no período em que seu seio estava em processo de cicatrização. Soa como uma espécie de cobrança de contas, após todo o martírio pelo qual teve que passar. 96 Vânia: “Será que vão me chamar?” Eu: “Já devem estar pra chamar. A médica não está hoje, mas a enfermeira pode ajudar a senhora... porque é para ver a cicatriz.” Vânia: “Eu não sei, tem que ver isso aqui, ver como está. Tem que trocar a pomada. Vão ter que chamar outro médico para ver (demonstra preocupação e receio).” Eu: “Me falaram que semana que vem vai ter um mastologista, parece que quarta-feira. A senhora pode perguntar.” Vânia (impaciente): “Eu não posso esperar até semana que vem. Até essa semana eu não podia esperar. Mas ela saiu de férias...” Eu: “Me falaram que hoje não teria paciente. Tente ficar calma, a enfermeira pode ajudar a ver qual é a pomada que a senhora tem que usar no lugar dessa. A médica falou que ia sair de férias?” Vânia: “Me falaram que ela ia vir hoje, sexta-feira. Então erraram.” Eu: “Quem falou que a senhora tem que trocar de pomada?” Vânia: “A enfermeira que faz o curativo. A que eu estou usando, em gel, é para cicatrizar de dentro para fora. Agora tem que trocar por uma que cicatrize por fora, está quase fechando.” Fica claro no trecho transcrito que eu não compreendia a causa de tanta irritação em alguém que tinha, afinal de contas, um nódulo benigno. Foi necessário escutar a entrevista algumas vezes, pensar no meu lugar de pesquisadora e contribuições de colegas para compreender os efeitos que procedimentos invasivos realizados em demasia provocam. Para Vânia, a impressão é de que a vigilância deve ser constante, mesmo depois de ter recebido o diagnóstico negativo para câncer. E esse monitoramento deve ser realizado necessariamente por um médico especialista, como ela afirma: Eu: “Será que no posto de saúde de Jarinu a senhora não acha um médico que possa indicar essa pomada?” Vânia: “Não, eles não podem trocar a pomada assim, sem ordem da minha médica daqui. Porque aí, se der problema, eles são responsáveis.” Essa fala de Vânia expressa a visão fragmentada de que o especialista ocupa lugar privilegiado no saber médico e o descrédito de que os serviços de saúde da atenção primária são capazes de dar conta de seu caso. Essa visão tem uma repercussão direta na relação que os usuários estabelecem com os serviços, quando buscam acolhimento para suas necessidades prioritariamente nos serviços secundários e não na atenção básica. Vânia acredita que um 97 procedimento que é aparentemente simples – fazer o curativo e acompanhar a cicatrização – não pode ser feito pela enfermeira da unidade básica de saúde que vai até a sua casa. Seu caso deve ser acompanhado somente pela médica mastologista. Um nódulo mamário não é maligno/positivo ou benigno/negativo apenas. Ele também é suspeito. Interessante notar como esses adjetivos são usados para referir-se ao câncer não apenas pelo senso comum e pelas mulheres, mas também no meio acadêmico, institucional, clínico, médico e até nos documentos oficiais. Maligno e suspeito são termos empregados para designar nódulos de forma recorrente. Sabemos que o câncer, no tempo longo da história, é associado a algo extremamente ruim – e os adjetivos já dizem por si. Mas chama a atenção como, apesar de todos os esforços para desmistificar essa visão, ela ainda permanece fortemente nos repertórios, inclusive dos que apregoam que devemos mudar a abordagem (médicos e governo, por exemplo). E o uso que se faz dos repertórios têm efeitos variados: nas mulheres, nos serviços, nas políticas, nos profissionais de saúde. Se somos potencialmente propensas a desenvolver câncer de mama, conforme abordado no tópico anterior, quando o corpo manifesta qualquer sinal que está presente nos critérios clínicos que enquadram a doença, ronda a sentença sobre a vida (ou os seios) das mulheres que o câncer é só uma questão de tempo, que está sempre ali, à espreita, como um suspeito incansável que espera a distração da vítima. É nesse contexto que o termo “suspeito” ganha força. O peso ao qual Vânia se refere desde o início da nossa conversa vai muito além da mama, que é densa e pesada. Ela carrega a marca da remoção do nódulo em seu corpo, difícil de cicatrizar e que expõe o tecido em forma de ferida aberta, além da ansiedade agravada pelo período em que teve de conviver com a possibilidade de ter um câncer. Vânia, ao sentir que entrou para a categoria “caso suspeito”, fala de seu sofrimento, que a coloca em um lugar diferenciado que não pode ser atendido apenas no “postinho” e que vai mudar sua relação com o corpo e com o sistema de saúde. Partindo da discussão de Mol (2005) sobre a arterosclerose, a alternância de status que o nódulo vai ganhando na trajetória das mulheres entre postos de saúde, clínicas, ambulatórios, hospitais e laboratórios – de suspeito a benigno ou maligno, ou de falso-positivo para negativo, só para citar alguns exemplos – mostra como o corpo e a doença são múltiplos e encarnados por diversos discursos, eventos, práticas, socialidades e materialidades. 98 O câncer de mama descrito na biópsia do material histopatológico difere daquele que é relatado pela paciente, que, por sua vez, será diferente do câncer sentido pelas mãos do médico do posto ao tocar o caroço sob a pele e daquele visto a olhos nus pela mastologista na hora da cirurgia. No entanto, isso não significa que exista um câncer de mama construído por cada um desses atores, a partir de suas perspectivas. Mas existem diferentes cânceres de mama, a depender do enacment (encenação, em tradução livre) e das diversas práticas que o performam naquele momento e lugar. Ao colocar as práticas em primeiro plano, Mol propõe que a análise deixe de ser centrada na doença, não sendo, desse ponto, vista como um fenômeno puro e ensimesmado que precise ser descoberto em sua essência, como tradicionalmente é feito em uma postura objetivista. Também não se trata de uma análise perspectivista, na qual existe um objeto único e o que muda são os diferentes olhares sobre ele. O que se busca compreender é como os objetos – múltiplos – são manipulados em práticas diversas e de como essas estão relacionadas e coordenadas. E que efeitos a categoria “caso suspeito” produzem nas práticas dos profissionais e na convivência das mulheres com a doença? Sem dúvida, é um processo marcado por tensão e negociação, em que está em jogo o sofrimento do paciente. 6.2 AS DIFERENTES FASES DA CONVIVÊNCIA COM OS NÓDULOS “MALIGNOS” 6.2.1 Do Diagnóstico e Cirurgias às Radioterapias/Quimioterapias e PósTratamento Mariana estava no ônibus voltando do trabalho. Depois de um dia árduo costurando roupas, ainda tinha de enfrentar a condução lotada, em pé, apoiando-se como podia. Foi quando o motorista freou bruscamente. Com o solavanco, ela sentiu uma forte fisgada em seu seio. O mesmo em que, cinco anos antes, havia sido localizado um nódulo, fato que a fazia frequentar a unidade básica do bairro onde mora e o serviço de mastologia do ASM, todo semestre. Ao chegar em casa, Mariana foi diretamente verificar no espelho. Viu um abaulamento no lugar em que sentira a fisgada. Até então apenas um nódulo que deveria ser controlado, ela se viu imediatamente com a possibilidade de ter câncer. 99 Mariana: “Eu fui fazer o exame de prevenção, que é todo ano. Aí o doutor José, de lá (posto de saúde), mexeu na mama e disse que eu tive um carocinho bem pequenininho. Aí mandou pra doutora Veridiana, né?” Eu: “Quanto tempo demorou de lá até aqui?” Mariana: “Não demorou muito, porque ele pegou na mão (exame clínico) e tinha que mandar aqui pra fazer a mamografia logo. Eu vim de manhã aqui na consulta com a doutora Veridiana. Ela mandou fazer a mamografia, eu fiz. Ela olhou e disse que tinha que ficar acompanhando. Ela acompanhou cinco anos. Desse tamanhinho (mostra com o indicador e o polegar).” Eu: “De quanto em quanto tempo ela acompanhou você nesse período?” Mariana: “De 6 em 6 meses.” Eu: “Que ela acompanhou o carocinho... Aí teve algum exame que apareceu...” Mariana: “Era para eu vir de 6 em 6 meses. Deu um mês que eu passei aqui e eu senti. Eu estava segurando no ônibus, lá em cima. Quando o ônibus deu um arranco, eu fui e voltei e senti rasgar. Quando passei a mão em casa (no seio), sentia que tava rasgando ainda, tava estufado.” Eu: “Nossa, com o tranco do ônibus!” Mariana: “Sim, porque era para mostrar que eu tinha que correr. Mas Deus é maravilhoso. Aí eu liguei aqui ‘pra menina’ e elas falaram ‘você vem amanhã’. Aí eu vim, a doutora Veridiana falou ‘vai fazer os exames num pé e volta no outro!’ Rapidinho ela marcou a cirurgia para tirar o caroço. Fez a punção antes, né? Deu benigno, não deu câncer. Aí foi e tirou o caroço. Quando tirou o caroço, saiu na biópsia que era câncer maligno. Aí foi uma correria.” Após a confirmação diagnóstica, de “suspeito” o nódulo ganhou o status de “maligno” no discurso de Mariana (e como falado anteriormente, adjetivo também amplamente usado nos discursos clínico e governamental). A questão aqui passa a ser quais são as práticas e efeitos envolvidos nos casos em que se deve “correr contra o tempo” para definir a existência ou não do câncer; e, caso as diversas práticas diagnósticas envolvidas consolidem a presença da doença, extirpar o “mal” do corpo com técnicas cirúrgicas e outras estratégias de tratamento. Conforme Schraiber (2010), na lógica da medicina ocidental moderna, historicamente mais voltada para o processo de adoecimento do que para a promoção da saúde e prevenção, o diagnóstico é significativo para a comprovação de que os conhecimentos científicos dos profissionais de saúde, especialmente o médico, foram corretamente empregados, a partir de sua bagagem técnica e teórica, que deve estar apoiada no solo das ciências ao qual a medicina moderna está fincada. 100 A fiel aplicação desses conhecimentos “encontra-se no achado diagnóstico da doença, sendo esta a construção que representa nas ciências o adoecer e o doente” (SCHRAIBER, 2010, p. 118). O diagnóstico é o marco decisivo. Com ele, busca-se identificar a doença de maneira oportuna e correta. É primordialmente essa descoberta que comprova a cientificidade da prática médica, dando a ela segurança e garantindo em seguida a correta intervenção: Essa segurança é repassada, então, quanto à obtenção do produto esperado na intervenção, controlando, também, até certo ponto, as incertezas que rondam e sempre rondaram a prática médica, sobretudo por contraste com a medicina anterior à da modernidade. Médicos e pacientes assim afastam seus medos de intervenção: o médico, de errar – e note-se que certa garantia de acerto está dada ao se encontrar o diagnóstico, daí seu grande significado na prática científica – e o paciente, de morrer ou piorar sua condição vital (SCHRAIBER, 2010, p. 118). Essas incertezas pairam tanto sobre as mulheres quanto sobre os profissionais, durante todo o processo. Mariana falou diversas vezes que a reação exacerbada da médica ao descobrir o seu diagnóstico a assustou. Para ela, e para tantos outros que culturalmente depositam confiança irrestrita no saber no médico, havia uma contradição, pois quem supostamente deveria estar no controle e saber o que fazer passava ainda mais insegurança e descontrole. Na busca do diagnóstico e pressão pelo acerto e rapidez, mesmo quando depende não só de sua intervenção, mas de uma rede – que muitas vezes pode ser falha – e da própria evolução da doença, os profissionais de saúde se veem diante de incertezas diversas, como não poderia deixar de ser nesse processo complexo de adoecimento, que envolve muitas contingências e imprevistos. Observamos isso no caso dessa médica que, de acordo com Mariana, apavorou-se com o diagnóstico positivo: “Ela fica desesperada. Diz ‘você está com câncer, câncer! Não estou dizendo que você vai morrer, mas…’ Eu digo ‘estou com câncer mesmo, doutora?’ (a médica) ‘Um câncer não, um cancerzão.” (Entrevista, em 12 de julho de 2012). Mirza também fala da reação de espanto da médica quando viu o diagnóstico positivo, o que mostra que esse momento é difícil inclusive para o profissional que tem de dar esse tipo notícia com alguma frequência no cotidiano dos serviços: “Nossa, eu não esperava que ia dar, né? Nem a médica mesma esperava. Então eu tava contente. Aí ela veio assim, rindo, conversando, aí ela viu, lendo assim, ela viu embaixo, aí ela falou ‘infelizmente’” (Entrevista, em 09 de agosto de 2012 ). 101 Com exceção de Vânia, que ressaltou o complicado processo de cicatrização da biópsia, a revelação do diagnóstico e suas circunstâncias (como foi dado, por quem, as emoções que suscitou) foi um tema que emergiu na maioria das entrevistas. No diálogo entre Mariana, 52 anos, e Lúcia, 48, ambas moradoras de Jundiaí, e na entrevista com Mirza, 46, de Jarinu, isso fica evidente: Mariana: “Eu tremia tanto! (...) Só na mão de Jesus.” Lúcia: “Você chorou?” Mariana: “Não, não chorei não.” (Entrevistadas em 12 de julho de 2012). Mirza: “Nossa, eu fiquei desesperada. Quando deu câncer, então, eu quase desmaiei” (Entrevistada em 9 de agosto de 2012). Tanto para os profissionais envolvidos quanto para as mulheres, o diagnóstico é um momento determinante e envolve tomada rápida de decisões, sendo cercado de dúvidas, negociações, sofrimento e urgências. A médica quer garantir que a paciente realize os exames “em um pé e volte no outro”. A mulher, por outro lado, sente que faltou sensibilidade por parte da profissional. Esse câncer enacionado 32 pela médica requer ações clínicas rápidas, mas também sensibilidade e apoio emocional por parte da atendente da pós-consulta: Lúcia: “Sabe quem me agradou? Uma gordinha aqui.” Eu: “Ah, acho que eu sei quem é, a L.” Lúcia: “L. o nome dela! Um amor. Aí ela veio, aí eu fui lá para fazer os papéis dos exames, ela falou assim pra mim: ‘Vem cá, me dá um abraço.’ Aí eu chorei um pouquinho, fiquei emocionada. Não que eu me descabelei.” Percebemos ainda outro aspecto fundamental nessa fala, quando a urgência do diagnóstico para descobrir a existência do câncer de maneira precoce também pode prejudicar as ações de cuidado em saúde, sob a perspectiva do princípio da integralidade. Como afirma Mattos (2009): A atitude de um médico que, diante de um paciente, busca prudentemente reconhecer, para além das demandas explícitas relacionadas a uma experiência 32 Para Mol (2005), os objetos são enacionados (referindo-se aos enacments) ou “encenados” nas múltiplas práticas que performam a doença. 102 de sofrimento, as necessidades de ações de saúde como as relacionadas ao diagnóstico precoce ou à redução de fatores de risco, ilustra um sentido da integralidade profundamente ligado aos ideais da medicina integral. Sentido que pode ser facilmente estendido para além das técnicas de prevenção. A abertura dos médicos para outras necessidades que não as diretamente ligadas à doença presente ou que pode vir a se apresentar – como a simples necessidade de conversa – também ilustra a integralidade (p. 54). Mol (2005) dá o nome de adição às várias arteroscleroses que são somadas para dar lugar a uma arterosclerose composta, passível de intervenção e consenso sobre o que fazer e como. Assim, a autora propõe que para delinear o tratamento é preciso: estabelecer a presença da doença, ou seja, diagnosticá-la (é câncer, não é, em estágio inicial ou avançado); localizar e quantificar a doença e definir a necessidade ou não de tratamento invasivo. A mulher não fica à margem do que acontece com o seu corpo e das intervenções clínicas. Ela também é parte ativa nessa rede formada por tecnologias, laboratórios, profissionais de saúde, máquinas, cartilhas e aparelhos que performam o câncer: Mariana: “(...) é assim, ói, eu tirei um nódulo de 8 centímetros, desse tamanho assim (mostra o seio e o tamanho do nódulo com os dedos indicador e polegar).” Eu: “Era grande, né?” Mariana: “(...) O carocinho era miudinho, depois, de repente, ele cresceu.” Lúcia: “O caroço, acho que o caroço tava láaaa no fundo.” Vânia: “O agulhamento, eu fiz na Clínica Única e a cirurgia, aqui no HU, no mesmo dia.” Eu: “Como é esse agulhamento?” Vânia: “É uma peça com agulha e tem um aparelho que parece raio x.” Eu: “A agulha vai muito fundo?” Vânia: “Não, não é agulha, parece um arame bem fininho.” Eu: “É dolorido?” Vânia: “Não, colocam anestesia.” Por diversas vezes, nas entrevistas e conversas informais, as mulheres demonstraram propriedade para falar onde o câncer estava localizado, o estágio (BIRADS), como eram os procedimentos realizados, que intervenção achavam correta ou equivocada e o que faziam nessas situações. Mol (2008) afirma que, ainda que a escolha do paciente não perpasse as práticas de 103 saúde, pois comumente é colocado em um lugar passivo e visto como incapaz de fazer escolhas em certos momentos, ele é sim ativo na maior parte do percurso da convivência com a doença. Vânia marcou consulta no ASM porque acredita que um dos motivos para a demora na cicatrização da biópsia era a necessidade de troca da pomada que estava usando: “A enfermeira que faz o curativo. A que eu estou usando, em gel, é para cicatrizar de dentro para fora. Agora tem que trocar por uma que cicatrize por fora, está quase fechando.” Já Mariana credita a uma das médicas o desgaste de ter de se submeter novamente a uma cirurgia. Relata que na primeira intervenção a médica, equivocadamente, não havia esvaziado as axilas, fato que fez o setor de oncologia onde são realizadas as quimioterapias e radioterapias mandar refazer a cirurgia, sem a qual não prosseguiria o tratamento complementar: “(....) E a segunda cirurgia, que foi pra esvaziar as axilas, que a doutora Veridiana não esvaziou, que foi ele, o doutor Márcio, que fez o conserto, tudo direitinho (....)”. Na sala de espera uma mulher relatou que o médico do posto de saúde prescrevera um medicamento para “secar o leite”, fato que causou estranheza e a fez pensar em descaso. Procurou outro profissional para descobrir o que era a secreção que saía de seu seio há muito tempo. Foi então que finalmente fez um ultrassom e descobriu que tinha um nódulo. Ela falou ainda do BI-RADS das mamografias que realizou, um termo clínico bem específico, demostrando um conhecimento pouco usual para quem não é da área (Registros do diário de campo, em 9 de março de 2012). Esses exemplos ilustram como as práticas que performam o câncer de mama são atravessadas, no cotidiano, pelas tensões e negociações entre médicos e pacientes; pela interseção da expectativa das mulheres sobre o que será feito com o seu corpo e as soluções terapêuticas eleitas pelos profissionais; pelo conhecimento clínico e saber dos pacientes, além das várias vozes que se fazem presentes – inclusive a da mulher – sobre o que é o câncer, como controlá-lo e tratá-lo. Mol coloca diagnóstico e tratamento como dois momentos diferentes, embora complementares. Após o diagnóstico, que é o momento de consolidação da existência da doença (em suas características: profundidade, quantidade de nódulos, tamanho, classificação) e a cirurgia para sua retirada (quando o nódulo é visto a olho nu pelo cirurgião), começa a fase de tratamento. Importante ressaltar que nas práticas relacionadas ao câncer de mama a cirurgia também pode entrar na categoria tratamento, uma vez que a remoção do nódulo diminui as chances de metástase. Assim, tratamento é tudo o que acontece para eliminar a doença, tanto de maneira invasiva (cirurgia) quanto de forma complementar (quimioterapia e radioterapia). Não se 104 trata mais descrevê-la, porque isso foi feito no processo de diagnóstico, na etapa anterior. No tratamento o objetivo também é intervir na condição do paciente, que deve passar de enfermo para são, reduzindo os efeitos indesejáveis da doença (sintomas) e do tratamento em si. Percebemos os efeitos desses dois momentos nas falas das mulheres. O diagnóstico é marcado pelo forte impacto emocional acarretado pela notícia, pelo medo da morte e desdobramentos da doença em várias dimensões de sua vida, como podemos ver em um dos trechos descritos acima, quando uma das mulheres achou que ia desmaiar quando recebeu da médica o diagnóstico positivo: “(...) dá medo, né? Não sei porque a gente tem tanto medo” (Mirza). Quando sabem que estão com câncer, a carga vem também na forma como esse diagnóstico é comunicado pelo médico. Sem cuidado com o sofrimento que esse tipo de notícia pode acarretar, sem espaço para dúvidas, sem espaço para o envolvimento do paciente no processo das tomadas de decisão de escolhas terapêuticas, como aponta Mol (2008), isso denota o lugar de passividade em que o paciente é colocado muitas vezes: “Se você tiver o cérebro mole, você endoida com ela. Ela (a médica) diz na sua cara rasgada, filha…” (Mariana. Entrevista, em 12 de julho de 2012) O receio da mutilação pela mastectomia foi um ponto abordado de maneira espontânea pelas mulheres em alguns poucos momentos. Quando Lúcia nos conta sobre a discussão com o médico sobre a cirurgia conservadora, por exemplo. No diálogo entre Lúcia e Mariana, podemos verificar que o receio da cirurgia drástica vem da primeira, que ainda iria passar pelo procedimento. Mariana, que já havia se submetido ao processo e estava na fase final de tratamento, diz que retirar ou não as mamas é uma questão secundária para ela. O importante é eliminar a doença: Lúcia: “Ele perguntou pra mim, mês passado, se eu quero preservar ou quero tirar. Aí eu falei ‘olha, doutor’, eu falei, ‘se você quer saber, eu prefiro preservar’.” Lúcia para Mariana: “Você não precisou tirar, né?” Mariana: “Não, fiz só o quadrante (cirurgia onde ¼ do seio é retirado). Mas se fosse preciso…” Já o tratamento demanda lidar com as marcas e efeitos colaterais no corpo, decorrentes das cirurgias e técnicas complementares, como a quimioterapia e radioterapia. 105 6.2.1.1 Os Efeitos do Tratamento Mariana chega muito cedo para as sessões de quimioterapia. De cabeça baixa, apoiada em uma das mãos, estica o outro braço para a enfermeira aplicar a quimioterapia. O líquido é misturado ao soro que fica pendurado ao seu lado. Um dos medicamentos quimioterápicos é branco e o outro, vermelho. Ela sabe qual será aplicada apenas pelo cheiro. A vermelha provoca severas náuseas, que duram dias. Algumas pessoas, que também estão na sala para receber o medicamento, sentem a indisposição ali mesmo e vomitam no recipiente ao lado, próprio para esse fim. Mariana não sente enjoo na hora, mas no dia seguinte. Passa dias sem conseguir se alimentar direito, o que a preocupa por que seu corpo está muito debilitado e a alimentação é fundamental para conseguir enfrentar o tratamento. A nutricionista do setor de oncologia do Hospital São Vicente de Paulo cuida para que os pacientes saibam o que é mais apropriado comer nesse período, e dá atenção especial a quem sente muitas náuseas. Suco de couve, peixe branco, carboidratos, muito líquido, evitar cítricos. Essas são algumas das recomendações. Mariana se esforça, mas alguns dias são muito difíceis. O cheiro do medicamento que ela havia recebido no dia anterior está entranhado em suas narinas. Parece que estava em todo lugar. A mera visão de líquidos vermelhos, como suco de melancia, levava à lembrança da “vermelha”, como todos – enfermeiros e pacientes – chamam o líquido intravenoso. Recorda-se das suas gravidezes, quando tudo a enjoava. A grande diferença é que desta vez que não virá um bebê. O futuro é algo incerto e o remédio não vai alimentar um suposto filho, mas “matar” o que está em seu corpo. A vermelha é muito difícil e traz inconvenientes para Mariana. Mas o que mais assustou Mirza, que ao contrário de Mariana não ficou marcada pelo enjoo, foi o impacto que sentiu com a “branca”. A enfermeira manuseia cuidadosamente as ampolas, pois a dosagem deve ser rigorosamente seguida conforme recomendações. Insere na bolsa de soro e perfura a veia de Mirza com a agulha. Ela olha para a “branca” descendo pelo dispositivo de plástico que leva o medicamento misturado ao soro para a agulha. Assim que o líquido ultrapassa o orifício da agulha e entra em seu corpo, Mirza sente que uma navalha perfura seu braço. A dor se estende a todos os seus ossos. Poucos segundos depois Mirza desmaia. 106 O que sobressaiu na fala das mulheres foi a relação com as materialidades presentes no tratamento complementar e os seus efeitos. A máquina de radioterapia, a caneta que marca os seios para o profissional dirigir corretamente a radiação, os cheiros e cores dos medicamentos: Mariana: “(...) a vermelha é vermelha de verdade, a bolsa. É que nem soro, você vai ficar lá duas horas e meia até injetar tudo em você (...) Eu pensava que ia ficar com anemia. Mas isso era quando eu tomava da vermelha. Só de ver a vermelha… eu lembro e me sinto mal. Me dá arrepio. A branca me deu dor nos ossos. (...) Logo quando eu fiz a radio, olha como eu fiquei, meninas…Olha a marcação da radio (mostra riscos simétricos azulados na região do colo).” Eu: “Eles fazem com caneta?” Mariana: “Papelzinho, risco de caneta e cola essa papel (uma película fina e transparente por onde dá para ver a pele) (...). A radioterapia, você entra dentro de um aparelho como se fosse fazer uma ressonância. Aí você fica. Agora, a químio é que é soro.” Mirza: “Eu senti pouco de enjoo com a vermelha, mas quando passou pra branca eu quase morri. Caiu na veia teve que parar. Dor de cabeça, dor no peito, nas costas. Eu comecei a tossir muito, as enfermeira (sic) veio, viu que eu tava passando mal e desligou, chamou a médica.” E também as materialidades e práticas de cuidado que visam minimizar esses efeitos, como a administração de medicamentos para cortar o enjoo: Mariana: “(...) Aí, você vai enjoar. Você vai ficar que nem uma mulher grávida, daquelas beeem enjoada. Só que daí, antes de botar tudo pra fora, eles te dão uma receita bem grande com um remédio que corta, viu? Quando eu começava a enjoar, eu colocava um remédio chamado, é...” Eu: “Vonau, né?” Mariana: “Isso! Vonau, bem miudinho assim. Eu cortava e passava, aí eu já melhorava. Mas eu ficava quatro dias certinho sem comer. Emagreci, mas tudo pra que queimasse tudo.” A forma como as mulheres encaram o tratamento, que se torna muitas vezes agressivo e debilitante para o corpo, também passa pela aceitação e resiliência. Os fortes efeitos justificam-se porque só assim o câncer cede: Mariana: “Pois é, aí tinha vários miudinho (nódulo). Mas esses vários miudinho (sic), com a químio e com a rádio, mata, acabou (...) Aí a químio vai judiar de você, vai juuudiar. Vai chegar uma hora, assim, de você dizer assim ‘ô, meu Deus, será que eu vou escapar dessa?’ (...) Mas você escaaaapa (muda o tom de voz). Viu? Sabe por quê? Porque é forte demaaais. Porque se não for, não mata.” As falas de Mariana e de outra mulher nos corredores do ASM (“Deus está deixando as mulheres tudo sem teta”) nos mostram como a noção de que o câncer é um ente com “vida 107 própria” ou é mandando como castigo divino permanece fortemente no imaginário social. Sontag, ao falar das metáforas do câncer, ilustra bem esses repertórios: O câncer é degeneração, os tecidos do corpo se tornam algo duro. Alice James, ao escrever seu diário um ano antes de morrer de câncer em 1892, refere-se a “essa horrível massa de granito em meu peito”. Mas esse caroço está vivo, um feto com vontade própria. Novalis, numa anotação redigida por volta de 1798 para o seu projeto de enciclopédia, define o câncer, junto com a gangrena, como “parasitas em seu ponto máximo de desenvolvimento – eles crescem, são engendrados, engendram, têm sua estrutura, segregam, comem”. O câncer é uma gravidez demoníaca (SONTAG, 2007, p. 19). Observamos ainda como a doença continua sendo inominável quando duas das quatro mulheres entrevistadas não pronunciaram a palavra “câncer” em nenhum momento da conversa. 6.3 ENFRENTAMENTOS E APOIOS Na complexa convivência com o câncer de mama, as mulheres enfrentam muitos desafios que a doença traz para várias dimensões de sua vida: corporal, afetiva, pessoal, social, familiar. Por enfrentamento, estamos entendendo os recursos encontrados por elas para lidar com as exigências específicas que a convivência com o câncer impõe (SANT’ANNA, 1997). Além dos enfrentamentos que já citamos – dificuldade para conseguir benefício junto ao INSS, ausência de cuidado por parte do médico no momento de fazer a revelação diagnóstica, efeitos colaterais do tratamento, só para citar alguns exemplos –, também aparecerem na fala das mulheres alguns desafios relacionados à imagem corporal. Historicamente vinculados à feminilidade e vaidade, os cabelos são extremamente valorizados pela maioria delas. O receio de ficar careca como consequência do tratamento quimio-radioterápico e aparecer assim em público, evidenciando no corpo a presença de uma doença que estigmatiza, foi uma questão constantemente abordada pelas três mulheres que receberam o diagnóstico positivo para o câncer de mama: Mariana: “Antes de cair (o cabelo), eu já sabia que ia cair, já me falaram. Então eu passei em um lugar antes, peguei uma peruca ‘da hora’, coloquei. Olha eu careca. Meninas, olha eu careca (...) Agora olha eu de peruca (mostra fotos no celular).” Lúcia: “Ai, eu não quero não.” Mariana: “(...) Ele era por aqui, cacheadão. Mas agora eu não quero mais cabelo comprido, quero como está agora, curto (...) você fica com dificuldade no braço, para pentear o cabelo, então é melhor curto.” 108 Mirza: “Ele (o médico) falou que ia cair o cabelo. Nossa, eu fiquei desesperada.” Eu: “Você está usando uma peruca, algum serviço te deu?” Mirza: “Não, eu tive que comprar. Eu comprei, paguei caro, porque eu não queria ficar careca. Não é fácil saber que seu cabelo vai cair, que você tem que fazer cirurgia. Por mais que a medicina seja avançada, né?” Também a partir dessas falas, chama atenção a falta de grupos de apoio nos serviços, tanto na oncologia quanto no ASM. Normalmente organizados pela sociedade civil, esses grupos auxiliam a mulher oferecendo, além do apoio emocional, perucas e sutiãs com enchimentos, específicos para quem perdeu parte ou toda a mama na cirurgia. Assim, a iniciativa garante um dos sentidos da integralidade, que se refere à qualidade de vida e bem-estar das mulheres na fase de reabilitação. Na ausência desses grupos, as mulheres acabam onerando o próprio orçamento, quando conseguem. Na conversa com Lúcia e Mariana, vemos como elas precisam de um espaço para troca de experiência com outras pessoas e ouvir o relato de quem conseguiu sobreviver à doença: Mariana: “Lá (Hospital São Vicente) tratam a gente muito bem. Certo? Mui-to bem (ela enfatiza o “muito” separando as sílabas).” Lúcia: “Olha, eu conheço, todas as pessoas, você é a terceira ou quarta pessoa que eu converso, isso é um pressentimento que eu busco, que passaram por isso aqui e tá vivo.” A reação das pessoas à imagem corporal que se configura com os efeitos do tratamento também aparece como uma preocupação importante. Na fala de Mariana, há o receio de essa nova imagem torná-la estranha para as pessoas que ama, principalmente seu neto e marido: “Eu falava assim, meu neto vai crescer e vai dizer ‘nossa, minha avó é tão esquisita, ela tira o cabelo pra dormir!’ (...) Eu mostro isso aqui pro meu marido (marca da radioterapia) e pergunto como está meu peito e ele diz ‘nossa, está cheio de sujeira!’. Aí eu dou risada.” Muitas mulheres temem perder o parceiro após o câncer de mama. São muitos os que não conseguem ou têm dificuldade de lidar com a doença, enfrentá-la junto com a mulher. Percebemos o receio de que as mudanças no corpo e no comportamento interfiram no casamento, uma questão que torna o processo ainda mais doloroso e difícil, como verificamos na conversa entre Lúcia, Mariana e eu: 109 Lúcia: “Em casa eu estou tendo um problema assim…meu marido, ele não se descabelou nem chorou, mas ele mudou. Ele ficou quieto, ele se afastou de mim.” Mariana: “Não é, é porque ele tá sofrendo por dentro.” Lúcia: “Isso!” Mariana: “Precisa ser durão, né? Você precisa ser forte, ele tá aguardando. Ele tá aguardando para não deixar você lááá no espaço…” Eu: “É como se nada tivesse acontecendo, evitam tocar no assunto porque não sabem lidar com isso.” Lúcia: “Isso! Ele tá com medo de me perder.” Mariana: “Lá em casa eu pegava meu marido, lá de cima na escada, me olhaaaando, sabe?” Lúcia: “E a maneira dele reagir comigo. Ele não chora, ele não briga, nada. Mas ele tá afastado, vai dormir cedo…” As mulheres mostram também que vivenciam o receio de se sentirem e se mostrarem impotentes ou fracas para enfrentar o câncer como um sinal de falha e fracasso. Se no tempo longo da história o câncer devia ser encarado com resignação e conformismo com os desígnios da doença (SANT’ANNA, 1997), hoje há cada vez mais o imperativo de vencer as adversidades com resiliência, como diz Mariana: Lúcia: “Você precisou de alguém para cuidar de você?” Mariana: “Não precisei de ninguém, eu fiquei forte (...) E uma coisa eu vou falar, escute o que eu vou te falar. Você vai precisar, a partir da cirurgia, das quimis, (sic) das rádio (sic), paz e tranquilidade, que é para ter ajuda no seu tratamento, viu, minha nega? É tudo que nós precisamos, pra que nós possa se ajudar a nós mesma (sic): paz e tranquilidade. Não deixe ninguém tirar sua paz e nem sua tranquilidade.” A família é o principal ponto de apoio afetivo, principalmente os netos, no caso das que já são avós e que acabam assumindo os cuidados da criança na maior parte do tempo, na ausência da mãe que trabalha fora. Muitas mostraram com orgulho as fotos que carregam na carteira e contam como a convivência com eles as ajudam, dando leveza no enfrentamento cotidiano da doença. É o caso do neto de Mariana, que achava possível sua mãe também retirar e colocar o cabelo: Mariana: “Eu vou mostrar um negócio pra vocês aqui (abre a carteira e tira a foto).” Eu: “Esse é seu netinho?” Mariana: “É, a minha coisa gostosa da vó.” Eu: “Você não tem netos ainda, né, Lúcia?” 110 Lúcia: “Não, não.” Mariana: “Ele falava assim de noite, ‘vovó’, aí falava pra mãe dele ‘mamãe’, e apontava pra ela tirar o cabelo também.” Em uma conversa emocionante que tive na sala de espera, registrada no diário de campo, uma mulher que teve bebê aos 50 anos disse contar com a ajuda da filha de 25 anos para cuidar integralmente do seu filho, de 1 ano e 10 meses, pois descobriu o câncer logo após o parto, quando precisou realizar uma mastectomia. Além da família, a religiosidade é outro aspecto preponderante em todo o processo de tratamento. Muitas relatam a fé e citam as instituições religiosas que frequentam como os principais elementos de cura e esperança. Mariana: “Eu estou no Cerco de Jericó, depois você me dá o seu nome.” Lúcia: “Ai, eu não estou indo, mas eu fico pensando na imagem, faço uma oração.” Mariana: “Assista na internet, que é a mesma coisa.” Eu: “O que é isso? Cerco de Jericó?” Lúcia: “É uma celebração, onde a gente ora.” Mariana: “Oração de libertação. Tem Jesus ali na hora. Quer dizer, tem Jesus em todas as horas, mas ali…” Eu: “Eu vi que você é religiosa, né?” Lúcia: “Sou, sou muito.” Eu: “Cheguei e vi você com o terço…” Lúcia: “Isso, eu sou muito religiosa mesmo.” Mariana: “Isso vai dar certo com Jesus Cristo. Então você não vai pastar não, porque quem tem Deus não pasta. E Jesus vai estar contigo na hora da cirurgia, depois, nas químio. Você vai passar por essa, ó, tranquila, minha amiga, pode ter certeza. A minha menina fala assim, que se fosse ela…” Lúcia: “Ai, é difícil não ficar, né?” (Chora. Mariana e eu pegamos nas mãos de Lúcia) Mariana: “Não fica assim não, viu? Jesus vai estar com você (...)” O vínculo que as mulheres estabelecem com os profissionais de saúde, como pudemos notar, é cercado de afetos diversos. Gratidão, comprometimento, acolhimento, envolvimento mútuo no processo de tratamento e cuidado acompanham frustrações, decepções, dúvidas e 111 ruídos na comunicação. Nessa justaposição de afetos ambíguos, os médicos vão de “deuses” a “loucos”: Mariana: “A doutora Veridiana é uma boa médica…” Lúcia (interrompe): “Excelente mastologista…” Mariana: “Mas ela lhe mata na hora…” (no momento de dar o diagnóstico) Lúcia: “Olha, tá gravando, hein?” (rindo) Eu: “Mas é como eu falei, se vocês quiserem interrompo a gravação. A identidade também não será divulgada.” Mariana: “Se você tiver o cérebro mole, você endoida com ela. Ela diz na sua cara rasgada, filha…” Lúcia (abaixando o tom da voz): “Quando eu vim com ela, na primeira consulta, eu vi uma mulher sair chorando, porque ela falou pra mulher preparar o caixão dela, porque ela ia morrer!” Mariana: “Pra mim também ela falou” (risada). Lúcia: “Eu falei, ‘Doutora, quanto tempo a senhora vai me dar? Porque eu estou com vontade de ir embora.’ E também, como eu sou chata, eu insisti. Faz dois anos que eu passo com ela, né? Aí comigo, depois, logo que eu entrava na sala assim, ela dava a mão, no final ela tava até me abraçando.” Mariana: “Ela é doida (...) ela fica abilolada.” No decorrer da conversa, havia o contraponto da postura do médico mastologista, que é colocado em outro patamar extremo: Lúcia: “Eu falo assim, que todas as pessoas com quem eu falo, não tem do que reclamar” (dos serviços e atendimento). Mariana: “Não, eu não tenho. É como se fosse… é, é, melhor do que particular, se você quer saber. Muito bom. Os médicos são muito atencioso.” Lucia: “Esse médico, o doutor Márcio…” Mariana (interrompe): “Esse doutor Márcio, ele é um deus.” Lúcia: “Um abraço, né? Ele abraça.” Mariana: “Noooooossaaa...” Lúcia: (risadas) Mariana: “Quando terminou aqui (o tratamento), que ele viu o antes e o depois, que ele viu, que ele olhou, que ele disse que não ia precisar tirar a minha mama inteira mais, ele falou pra mim, ficou falando, falando. Eu falei ‘olha, doutor, graças a Deus’, e ele falou ‘Graças a Deus mesmo’. E ficou ali, 112 né? Aí falou pra mim… aí, quando terminou tudo, ele falou pra mim ‘Agora eu quero um abraço’. Viu? Me deu um abraço…” Em seguida, Mariana questiona a conduta clínica da médica mastologista, dizendo que o serviço de oncologia a mandou refazer a cirurgia: Mariana: “Ele é maravilhoso. As mão dele é ungida, em nome de Jesus. Eu tenho cer-te-za! As mãos dele têm a unção de Deus. Porque a minha cirurgia que eu fiz com a Veridiana ficou hor-rí-vel!!!” Lúcia: “Ai, a minha também.” Mariana: “Ele que consertou! Os médico que foram fazer as rádio falaram que tinha que fazer de novo a cirurgia…” Eu: “Como é o jeito que ele faz?” Mariana: “Iiiiiih, ele sabe, meu amor!!” Mirza fala do desafio dos profissionais quando têm de comunicar o diagnóstico de maneira clara e com prudência, levando em consideração que no momento da notícia a mulher pode ter dificuldade de compreender as informações e, ao mesmo, procurar a coparticipação no processo de tomada de decisões: “Aí ele falou que tinha que investigar para ver se era maligno ou benigno. Aí ele falou um monte de coisa, só que na hora, eu não sei, eu não fiquei com medo, não pensei na gravidade, então não levei a sério.” As mulheres falam da busca em ressignificar a doença e dar um sentido novo à vida depois do evento do câncer, quando se descortinam novas possibilidades: Mariana: “Sabe o que eu fiz com os lenço, a peruca, meus chapéu (sic)? Coloquei tudo numa caixa. Levei tudo na oncologia e doei.” Lúcia: “Se Deus quiser, quando eu passar por esse período, vou aprender a dirigir. Sempre foi meu sonho.” Em suma, procuramos neste capítulo verificar, a partir das narrativas das mulheres, as implicações de estar no limiar entre a saúde e a doença nos casos suspeitos, bem como as materialidades e socialidades presentes em cada estágio da convivência com o câncer de mama, na perspectiva de que as narrativas das mulheres também performam as práticas que envolvem a doença nos serviços. Buscamos, ainda compreender quais são as estratégias de enfrentamento em um período desgastante na vida das mulheres e os apoios recebidos. 114 Capítulo 7: CONSIDERAÇÕES (NEM SEMPRE) FINAIS A pesquisa sob a perspectiva das práticas discursivas tem por foco as interações dialógicas entre pesquisador e as pessoas com as quais ele interage. No entanto, esse tipo de abordagem envolve também a noção de contexto: tanto das estruturas sociais geradoras do habitas (tempo vivido), quanto da exploração das ideias do tempo longo. Assim, para consecução de nossos objetivos fizemos um resgaste das políticas de saúde para o controle do câncer no Brasil, que, como vimos, são influenciadas mais pelo discurso clínico do que pela medicina social. Em uma época em que não se falava da doença em nenhuma instância, os médicos da elite foram os principais responsáveis por colocar o câncer em pauta, tornando-o uma questão de saúde pública. Atualmente, vemos o reflexo da tensão entre esse discurso clínico e as políticas de saúde coletiva, executadas pelo Instituto Nacional do Câncer, explicitado no impasse quanto à definição da população alvo para o rastreamento mamográfico, por exemplo. Também fizemos um resgate das condições históricas e políticas que tornaram os cânceres de mama e de útero um importante agravo de saúde da mulher. Fruto de diversos movimentos sociais e ideológicos, esse esforço coletivo culminou no Programa de Saúde Integral da Mulher e possibilitou um olhar mais ampliado para a saúde atravessada pela noção de integralidade. Incorporada aos princípios do SUS, essa a política é, atualmente, nossa maior conquista em saúde. A partir das observações e entrevistas realizadas em um Ambulatório de Saúde da Mulher (ASM), situado em Jundiaí-SP – que é importante referência para mais oito municípios da região – e da análise do percurso de mulheres que esperam a confirmação ou já receberam diagnóstico positivo para câncer, vimos as deficiências da rede de serviços responsáveis por esse diagnóstico, principalmente no munícipio de Campo Limpo Paulista. De acordo com os gestores ouvidos nesta pesquisa, para diminuir as inequidades em saúde na região é necessária a coparticipação dos municípios na elaboração de um programa voltado para o controle da doença, a organização da rede por meio da implementação de um protocolo específico para câncer de mama e investimento em capacitação profissional e serviços de diagnóstico precoce. Acreditamos que estratégias firmadas em conjunto entre os municípios que compõem a rede, com a efetiva participação e controle social, fortaleceriam as ações e reafirmariam as diretrizes de descentralização, regionalização e hierarquização preconizadas no SUS. 115 Por meio da fala de quatro mulheres entrevistadas, pudemos perceber que a convivência com o câncer é permeada por tabus, medos e sombras que ainda mistificam a doença, resquícios do seu curso no tempo longo da história. No entanto, esse não é o único desafio que as mulheres encontram no seu percurso terapêutico. O sofrimento vem também da maneira desrespeitosa que são tratadas por alguns profissionais de saúde; do penoso caminho burocrático para conseguir o laudo médico junto ao INSS e, assim, receber o benefício a que têm direito; do estigma que a doença acarreta e, consequentemente, no afastamento das pessoas que amam. Percebemos que a criação de espaços para troca de vivências entre essas mulheres pode ser um recurso para diminuir a angústia e o sofrimento envolvidos no processo de adoecimento, bem como fortalecêlas para esses enfrentamentos. Porém, nem só de espinhos esse percurso é feito. Também há apoios diversos e interações dialógicas que produzem outros sentidos, permitindo ressignificar a doença. A família, a religião, o acolhimento dos profissionais de saúde e de amigos e pessoas próximas são fundamentais para a superação no período difícil do pós-diagnóstico. Nos momentos finais da escrita dessa dissertação, fiquei extremamente consternada com a notícia de que uma pessoa muito importante para minha escolha temática perdeu sua mulher, depois de muitos anos de idas e vindas tratando um câncer de mama. Recebi com alegria, no mesmo período, a notícia de que Lúcia, uma de minhas entrevistadas, havia superado a doença após enfrentar sete meses de um tratamento que envolveu uma cirurgia, quatro sessões de quimioterapia e 33 de radioterapia. Quando a encontrei no ASM, Lúcia vivia a angústia de quem acabou de descobrir que iria conviver com o câncer de mama por um período incerto: o receio dos desdobramentos do tratamento e de não saber qual seria o seu desfecho. O câncer nos mobiliza de uma maneira peculiar. Mesmo hoje, em que há um discurso cada vez maior no sentido de mudar os repertórios que estigmatizam a doença, considerada crônica, é inevitável pensar na morte quando nos referimos a ela. Embora tantas outras doenças representem risco de morte, o câncer tem uma especificidade, em função dos repertórios históricos, que o coloca como uma das mais temidas, a que nos faz encarar a finitude da vida de maneira mais concreta. Usualmente, em nosso cotidiano, usamos expressões – ou metáforas, de acordo com Sontag (2007) – como “perdemos a batalha contra o câncer” ou “vencemos esse mal” – que denotam como a doença também é performada pelos repertórios que a associam a um mal 116 sorrateiro e silencioso. Não apenas em nossas expressões rotineiras, mas igualmente nas práticas dos profissionais, que, na fala de uma de nossas entrevistadas, se desesperam quando têm de dar a notícia para a mulher, e nos documentos oficiais nos quais constam palavras como “maligno/malignidade” para referir-se a nódulos classificados como positivos para o câncer. Em diversos momentos da pesquisa, enredada que estou por esses repertórios que circulam fortemente em nosso cotidiano, eu mesma tive de ficar atenta para não reproduzir essas terminologias e expressões, armadilhas do determinismo. Pensamos que além das inequidades em saúde e das questões de ordem política e estrutural que dificultam o diagnóstico precoce – fazendo a mulher viver a angústia de peregrinar entre os serviços e receber diagnósticos equivocados – desmistificar o câncer também representa um desafio importante para todas as instâncias do cuidado em saúde. Outro ponto que evidenciamos em nossa pesquisa refere-se às implicações na vida das mulheres que são alvo do rastreamento constante e sistemático, aos efeitos do câncer de mama performado pela estatística. Nikolas Rose (2011) 33 nos alerta: vivemos sob a sombra do futuro, no limiar entre a saúde e a doença. Evidentemente, ao atentarmos para isso, não defendemos o fim das campanhas e medidas de prevenção. Todas as demandas de saúde das mulheres são legítimas, e foi preciso percorrer um longo caminho para que o seu foco fosse retirado da saúde materno-infantil. Se hoje podemos falar de saúde da mulher de maneira ampla é graças a esse esforço histórico e coletivo. Portanto, devemos sim considerar os avanços, tendo, contudo, um posicionamento crítico frente ao que é dado e estabelecido. Essa conduta pode evitar que caiamos na mera reprodução de discursos, sem reflexão, como se eles fossem receita certa de saúde e qualidade de vida, ou a única opção possível e não resultado de contingências e forças históricas, isto é, das condições de possibilidade. Vimos ainda as materialidades e socialidades envolvidas na complexa rede de atores humanos e não humanos e os seus efeitos nas diversas práticas que performam o câncer de mama, tornando-o uma doença múltipla. Em um dado momento o nódulo é “suspeito”, em outro torna-se “maligno”, em outro desaparece. Esses cânceres de mama são coexistentes, o que não quer dizer que simplesmente estão lado a lado, pois não surgem sob a forma de pluralismo. Eles guardam relação entre si, interferem uns nos outros, ora se sobrepondo, ora assumindo o lugar do outro, 33 Na conferência internacional “Biopolitics and neuropolitics: governing conduct in the age of the brain”, proferida no TUCA/PUC-SP, em agosto, 2011, Rose versou sobre o governo de nossas vidas no futuro. Esse governo intervém no presente para agir no futuro. 117 ora incluindo um ao outro. Sob esse prisma, buscamos dar voz às mulheres que integram a pesquisa, evidenciando as materialidades e sociabilidades que tornam o percurso mais oneroso e desgastante. Sob a égide da complexidade, propomos considerar essas múltiplas versões sobre câncer de mama. Versões coexistentes, que interferem umas nas outras e, não raro, entram em conflito e tensionamento. Cada versão sobre o fenômeno vai produzir um efeito na realidade que, como dissemos, tem esse caráter múltiplo justamente por abarcar todas essas versões. Enfatizamos: não são versões que descrevem de maneira diferente uma realidade única. São versões que produzem efeitos e performam realidades. Realidades múltiplas. Ainda em relação ao modo como o câncer de mama é performado, mas deslocado o foco para os serviços de saúde, o que temos evidentemente não são as macrocampanhas de prevenção de um lado e de outro, pessoas que são apenas “marionetes” nos serviços. Em última instância, é no cotidiano e na interação com os profissionais de saúde que as mulheres mudam sua relação com o próprio seio, com seu corpo, sua saúde, suas atitudes e seus valores. É no cotidiano que elas negociam, produzem sentidos e trazem suas versões que, por sua vez, vão integrar essa rede complexa e heterogênea. Em suma, que aprendem a conviver com a doença. Essa dissertação se apresenta como mais uma das versões possíveis sobre o câncer de mama. E pretende, como efeito ético-político, contribuir para que se pense a reconfiguração das práticas de cuidado nos serviços que acolhem mulheres que convivem com a doença. Pensamos, inspirados em Annemarie Mol (2008), que a convivência com o câncer de mama pode e deve ser facilitada por boas práticas de cuidado. Não práticas perfeitas e ideias, pois não é somente o corpo que é falível e imprevisível. Tudo o que está associado às ações e tecnologias que integram o cuidado também o são: equipamentos, conclusão de laudos de exame, condutas médicas, protocolos, relação médico e paciente. Mas é possível a busca pela qualidade de vida dessas mulheres por meio de um cuidado que se sintonize com as suas necessidades; um cuidado que deve ser crescente, aberto e contínuo; que se dê na interação entre a pessoa que convive com a doença e os profissionais com ela envolvidos. O cuidado sob a perspectiva da colaboração e das ações conjuntas, da busca mútuas por boas formas de viver e conviver com a doença. As mulheres que entrevistamos são muito mais do que pessoas que têm câncer. Elas são mães, avós, companheiras, costureiras, domésticas e arrimo de família; sonham em aprender a dirigir; buscam a igreja para comungar sua fé. Lidam com as dificuldades do dia a dia, no seu 118 cotidiano de donas de casa ou de trabalhadoras informais. Falam com orgulho da festa do morango, típica da região onde moram. Elas são isso e muito mais; elas têm vidas complexas. E o câncer de mama que enfrentam é uma possibilidade do corpo errático e imprevisível, do corpo que pulsa vida, mas que também adoece. A DOENÇA É A ZONA NOTURNA DA VIDA, uma cidadania mais onerosa. Todos que nascem têm uma dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes. Apesar de todos preferirmos só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde nos vemos obrigados, pelo menos por um período, a nos identificarmos como cidadãos desse lugar. (SONTAG, 2007, p. 11) 120 8 REFERÊNCIAS AMENDOLA, L. C. B.; VIEIRA, R. A contribuição dos genes BRCA na predisposição hereditária ao câncer de mama. Revista Brasileira de Cancerologia, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 325-330, 2005. BAKHTIN, M. The problem of speech genres. In: EMERSON, C.; HOLQUIST, M. (Ed.). Speech genres and other late essays. Austin, Texas: University of Texas Press, 1994. p. 60-102. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: 1988. BRASIL. Lei nº 9.797, de 06 de maio de 1999. Dispõe sobre a obrigatoriedade da cirurgia plástica reparadora da mama pela rede de unidade integrada do Sistema Único de Saúde – SUS nos casos de mutilação decorrentes de tratamento de câncer. Diário Oficial da União, Brasília, 7 maio 1999. BRASIL. 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Sua identidade será mantida em sigilo, sobretudo na divulgação ou publicação dos resultados. Sua participação nessa pesquisa é voluntária e você poderá desistir de participar a qualquer momento, sem que isso lhe traga qualquer prejuízo. Não existe nenhum risco significativo em participar deste estudo. Contudo, algumas questões podem lhe trazer certo desconforto ou incomodo em virtude dos temas a serem abordados. Caso haja necessidade, você poderá entrar em contato com a pesquisadora pelos telefones: (11) xxxxxxxx – celular e (11) xxxx-xxxx – residência Declaro que fui informado sobre os objetivos desta pesquisa e concordo em participar. Nome: _______________________________ RG: CPF Assinatura _______________________________ Local e data Dados da Pesquisadora Nome: Samanta Micheli Cunha Assinatura _______________________________ Local e data Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social/ Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/ Tel. (11) 3670-8520 /e -mail: [email protected] 127 Apêndice B – Exemplo de mapa dialógico Linh as Diagnósti co Cirurgia 1 Tratament o Enfrentam entos e Apoios na convivênc ia com a doença Relação com os profission ais de saúde Percursos V.: Nossa, a Dra. Aida (mastologist a) é muito boazinha… Eu: Todas costumam falar muito bem dela. Ela é boa, né? Falam que é cuidadosa, que ela sabe o nome das pacientes e que tem cuidado. 2-4 V.: Minha cirurgia (biópsia para diagnóstico) tava bonitinha, sabe? Era até para estar boa, já. Mas é por causa do agulhament o… 5-6 Eu: O médico de Jarinu ou daqui? V.: Não, daqui. De lá mandou pra cá. Mandou para o pronto Outros 128 7 O médico falou assim, que era por causa do agulhament o e que porque eu tenho muito seio, muito pesado. Meus pontos de cima, quando chegou o dia, eu vim tirar normal, sabe? Tirou, mas tem muito músculo e abre a pele, sabe? Fica abertinho o lugar que tirou, dava até para ver os pontos lá de dentro. Saía pus, tudo. O médico falou “olha, vai ter que tirar (os pontos)”. A enfermeira tirou. V.: Depois passei com a minha médica, daqui. Venho uma vez por semana aqui para ver como está a cicatrização. Mas hoje ela não está, né? Eu não sabia que ela ia sair de férias. A gente vem 129 aqui toda semana, mas a enfermeira de lá (Jarinu) que faz o curativo. Eu: A enfermeira do posto? V.: É do postinho, mas ela vai lá na minha casa fazer o curativo. Eu venho (no ASM) uma vez por semana para ver a cicatriz, como está, se tá reagindo bem, como tá. Eu: Tem que ficar quietinha, tomar cuidado para cicatrizar e fechar bem. Chamam a médica (mastologist a do ASM), ela até me deu os parabéns porque está direitinho… (a cicatrização) ...)Até a médica brincou. Ela é nordestina, né? Não, é nortista! Muito brincalhona ela. Aí ela falou assim: “tá muito 130 bem sua cirurgia, tá ótima, tá de parabéns. Continue segurando o peito!” Não aguentei! (risadas) V.: Eu só faço lá em casa é lavar roupa, é o que eu mais faço. Porque como eu tenho problema de ansiedade, ai, nossa senhora. Eu tomo até remédio controlado pra isso, faço consulta com psiquiatra. Eu: A senhora tem que fazer alguma atividade para aliviar … V.: Não, não é isso. Lavar roupa pra mim, só eu. Se outro lavar minha roupa, não serve. Meu marido é aposentado e fica em casa, faz comida, lava uma louça. Meu neto lava uma loucinha. Eu só lavo roupa mesmo. De 131 resto fico deitada. Quando fico em pé, fico assim segurando (segura os seios fazendo um suporte com as mãos)... Eu: Porque a senhora sempre está segurando o seio… V.: Ai, eu fico assim, eu fico com medo. Mas ela falou que eu fiz muito bem porque não força. Eu: Deveria ter um sutiã especial para esses casos, né? V.: Então, tinha uma menina, onde eu tava comendo um lanche aqui perto, falou pra mim que no centro tem uma casa cirúrgica onde eu poderia encontrar alguma coisa para firmar. Eu: Como quando a gente quebra um braço e coloca um suporte. Mas deve ter algo. 132 Procure ver senão L36. a senhora não aguenta, fica com o braço cansado. V.: Tem hora que dói. Eu: Quanto tempo a senhora demora para chegar de Jarinu até aqui? V.: De ônibus? Quando venho de ônibus costuma dar uma hora, uma hora e pouquinha de viagem. Eu: É uma viagem boa, né? V.: Mas de ônibus eu não venho não, não dá. Eu: Como a senhora vem? V.: Venho de ambulância. Traz o pessoal de lá, sabe? Vem um monte de gente de lá. Me deixam aqui. Eu: Nossa, assim é bem melhor, né? Se a senhora tivesse que vir de ônibus com o seio assim, não daria. 133 Eu: Lá em Jarinu? V.: Não, aqui em Jundiaí. Eu: Na AFIP (local onde a maioria costuma fazer os exames)? V.: Não, não foi na AFIP, foi em outro lugar. Perto da onde era o INPS, onde é mesmo? Eu: ICON? V.: Ah, é ICON! V.: Isso aqui é a clínica Única, onde eu fiz o agulhament o (mostra o envelope que está dentro de uma pasta organizada). Esse envelope é da AFIP, ó. Ah, você estava certa, foi na AFIP que eu fiz. Eu: Onde a senhora fez essa biópsia? V.: Aqui mesmo, no Hospital Universitári o (onde fica o ASM). O agulhament o eu fiz na clínica 134 Única e a cirurgia aqui no HU, no mesmo dia. Eu: Que serviços tem em Jarinu? V.: Quase nada, é o postinho. Eu: Tem que vir para cá fazer a maioria das consultas especializad as, né? V.: Sim. Precisava ter hospital em Jarinu. Vem tudo pro Hospital São Vicente. (....) Quando eu fui operar, eu não tive medo de nada. Eu: Na hora em que precisamos, a gente tem força, né? V.: Ah, mas eu falei “Deus vai me dar força. Quando chegar lá nem vou sentir medo”. Eu: A ambulância está aguardando a senhora? V.: Não, eles me deixaram e levaram os outros. Não tem hora 135 marcada para me buscar, eu tenho que ficar ali fora aguardando. Quando a senhora descobriu o nódulo? V.: Não, eu não sabia de nada! Eu fiz assim, um exame de rotina, né? Todo ano que eu faço. Eu: Que é a mamografia ? V.: É, é a mamografia, que eu faço todo ano. Quando foi? Essa foi a primeira mamografia onde achou o nódulo, né? Foi 01 de setembro de 2011 a mamografia. A senhora fez o agulhament o em junho/12. V.: Foi! Fiz o agulhament o em junho, no dia em que operei. Vim pela manhã, bem cedo e à tarde operei. Eu: Vamos ver...da mamografia, feita em setembro de 2011, até a 136 cirurgia em junho, foram 9 meses. Quando a senhora passou com a Dra. Aida a primeira vez? V.: Não, eu já vim aqui uma vez por causa de um nódulo inflamado. Ela passou um remédio e desinflamou . Quando apareceu esse nódulo na mamografia de rotina eu voltei aqui, então foi a segunda vez. Semana passada (última semana de junho/2012) eu peguei o resultado porque ela quis ver. Não deu nada na biópsia. Eu: Como é esse agulhament o? L91. V.: É uma peça com agulha e tem um aparelho que parece raiox. 137 Eu: A agulha vai muito fundo? V.: Não, não é agulha, parece um arame bem fininho. Eu: É dolorido? V.: Não, colocam anestesia. Tem que trocar a pomada. Vão ter que chamar outro médico para ver. Será que vão me chamar? (impaciente com ausência da mastologista e com a demora da consulta). (...) Tem que trocar a pomada. Vão ter que chamar outro médico para ver. Eu: Me falaram que semana que vem vai ter um mastologista , parece que quarta-feira. A senhora pode perguntar. V.: Eu não posso esperar até semana que vem. Até 138 essa semana eu não podia esperar. Mas ela saiu de férias. Eu: Me falaram que hoje não teria paciente. (...) A médica falou que ia sair de férias? V.: Me falaram que ela ia vir hoje. Então erraram. Eu: Quem falou que a senhora tem que trocar de pomada? V.: A enfermeira que faz o curativo. A que eu estou usando, em gel, é para cicatrizar de dentro para fora. Agora tem que trocar por uma que cicatrize por fora, está quase fechando. Eu: Será que no posto de saúde de Jarinu a senhora não acha um médico que possa indicar essa pomada? V.: Não, eles não podem 139 trocar a pomada assim sem ordem da minha médica daqui. Porque aí se der problema, eles são responsáveis . Eu.: Mas se no posto tiver médico, ele pode indicar, é uma situação que não pode esperar. Fique tranquila que um jeito se dá. Eu acredito que a enfermeira daqui já consegue resolver isso. V.: É, eles podem me encaminhar para um médico do postinho, vamos ver. “Tsc”, é fogo, preciso disso pra agora. (é chamada para a consulta) V.: Elas (enfermeiras ) são uma gracinha, assim como a médica. 140 ANEXOS 141 142 ANEXO B - Autorização para uso de imagem