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Publicado na RT 897/61
¬O CONFLITO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS ¬
E OS ATOS DO CIDADÃO QUE ATENTEM ¬
CONTRA A SUA PRÓPRIA SAÚDE
¬ÁLVARO BRITO ARANTES
¬Advogado.
ÁREA DO DIREITO: Constitucional
RESUMO: A partir de uma breve análise de situações de conflito entre direitos fundamentais
de um mesmo cidadão, este artigo avalia os óbices ao pleno exercício da liberdade do
indivíduo de escolher pelo direito que deve prevalecer. Sempre com base no respeito ao
princípio da dignidade da pessoa humana, faz-se uma análise crítica sobre o binômio
liberdade-responsabilidade. O direito à liberdade de escolha do cidadão deve ser respeitado
sempre que seus atos não violem disposição legal nem direito de terceiros. Na ausência
dessas hipóteses, a ingerência estatal na vida privada do indivíduo deve ser combatida, pois
cabe somente a ele decidir como agir, devendo assumir a responsabilidade por suas escolhas.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais - Dignidade humana - Liberdade - Direito de escolha Responsabilidade pessoal.
ABSTRACT: Departing from a brief analysis of certain situations in which there arises a conflict
in and between fundamental rights belonging to one and the same person, this article
evaluates the hurdles preventing the full exercise of an individual's right of free
determination and choice. Grounded on the foundation stone of the principle of human
dignity, a critical analysis is made of the binomial free will-responsibility theory. The
individuals' free will shall always be respected in cases in which their acts do not violate the
Law nor third parties' rights. In any other situation, the interference of the State in people's
domestic lives should not be tolerated, because it is up to the individuals to decide how to
behave and act, thereby assuming the responsibility for the consequences of their choices
and actions.
KEYWORDS: Fundamental rights - Human dignity - Free will - Personal responsibility.
¬Sumário: 1. Introdução - 2. A relativização dos direitos fundamentais - 3. O
conflito entre direitos fundamentais - 4. A prevalência do princípio da dignidade
da pessoa humana - 5. O respeito ao livre arbítrio humano e a vedação da
ingerência injustificada do Estado sobre a vida privada do cidadão - 6. Os atos dos
cidadãos prejudiciais à própria saúde - 7. Conclusão - 8. Bibliografia.
1. ¬INTRODUÇÃO
Diante da complexidade das relações jurídicas a que nos submetemos atualmente,
inevitavelmente, alguma delas ensejará o conflito entre direitos fundamentais de um cidadão
e de outro. Outras situações suscitam o conflito entre direitos fundamentais de um mesmo
titular.
A partir de uma análise perfunctória dos direitos fundamentais previstos na Constituição
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Federal, verificar-se-á que esses direitos não são absolutos, podendo sofrer restrição nas
mencionadas situações de conflito.
Na hipótese de colisão de direitos fundamentais de pessoas distintas, incumbe ao Estado
intervir para delimitar o exercício desses direitos, de maneira a solucionar satisfatoriamente
o caso. Já nas situações que ensejem o conflito de direitos fundamentais de um mesmo
titular, incumbe somente a esse cidadão a escolha de qual direito deve prevalecer, e
qualquer tentativa do Estado de lhe tolher esse direito de escolha configura grave violação ao
princípio da dignidade da pessoa humana.
O objetivo do presente artigo consiste em despertar o senso crítico do leitor de que o
cidadão pode exercer plenamente sua autonomia da vontade, ficando privado, apenas, da
prática de atos vedados expressamente por lei, ou que interfiram prejudicialmente na esfera
de direito de terceiros. Ressalvados esses dois óbices ao exercício pleno da liberdade, ao
cidadão é lícita a prática de quaisquer atos, inclusive os que possam atentar contra sua
própria saúde.
2. ¬A RELATIVIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Algumas características são indissociáveis dos direitos fundamentais previstos na
Constituição Federal. Dentre elas, a doutrina destaca a inviolabilidade, a irrenunciabilidade,
a imprescritibilidade e a universalidade. Com relação à indisponibilidade, que não pode ser
confundida com a irrenunciabilidade, ainda não há um consenso.
Parte dos doutrinadores confere aos direitos fundamentais também a característica da
indisponibilidade, asseverando que ao cidadão é vedada a prática de qualquer ato que
disponha desses direitos. No sentido contrário, alguns acadêmicos entendem que não há
previsão de indisponibilidade dos direitos fundamentais na Constituição Federal, sendo livre o
cidadão para se desprender de determinados direitos.
Em parecer elaborado sobre o direito de recusa de um paciente hospitalar a receber
transfusão de sangue por razões religiosas, Celso Ribeiro Bastos opinou favoravelmente à
segunda corrente doutrinária acima mencionada, e assim assinalou:
“Insista-se, neste ponto, que a Constituição acaba por assegurar, tecnicamente falando,
a inviolabilidade do direito à vida, assim como o faz quanto à liberdade, intimidade, vida
privada, e outros tantos valores albergados constitucionalmente. Não se trata, propriamente
de indisponibilidade destes direitos. (...) Por inviolabilidade deve compreender-se a proteção
de certos valores constitucionais contra terceiros. Já a indisponibilidade alcança a própria
pessoa envolvida, que se vê constrangida já que não se lhe reconhece qualquer
discricionariedade em desprender-se de determinados direitos. No caso presente, não se fala
em indisponibilidade, mas sim de inviolabilidade. O que a Constituição assegura, pois, é a
'inviolabilidade do direito á vida' (art. 5.º, caput).”1¬
Virgílio Afonso da Silva parece compartilhar desse ponto de vista:
“(...) direitos fundamentais podem ser, em um grande número de casos e nas condições a
serem expostas no capítulo seguinte, objeto de disposição pela livre vontade de seus
titulares.”2¬
Sem adentrar ao mérito da discussão sobre serem os direitos fundamentais, per se,
disponíveis ou não, até porque não é esse o objetivo deste artigo, o importante é constatar
que, em situações específicas, que serão exemplificadas nos capítulos seguintes, o cidadão
poderá, sim, dispor de um direito fundamental que lhe é conferido pela Constituição.
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Importante frisar, também, que, ainda que pairem sobre os direitos fundamentais todos
os atributos acima mencionados, isso não os torna direitos absolutos, oponíveis contra tudo e
contra todos em todas as situações.3¬
O STF já decidiu essa questão, em acórdão da lavra do Min. Celso de Mello, que
asseverou expressamente que “os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto”.4¬
No mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet5¬ salienta que “em princípio, inexiste direito
absoluto, no sentido de uma total imunidade a qualquer espécie de restrição”.
Os direitos fundamentais, assim como todos os direitos, podem ser relativizados em
situações específicas. A título de ilustração, vale mencionar que até mesmo o direito à vida
pode ser violado licitamente em situações extremas, como no caso de estado de necessidade
ou de legítima defesa.6¬
A conclusão a que se chega é que, haja vista a complexidade das relações jurídicas
existentes atualmente, em algumas situações específicas os direitos fundamentais poderão e
deverão ser relativizados, principalmente nos casos em que houver conflito entre eles.
3. ¬O CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS
A Constituição Federal de 1988 albergou uma vasta gama de direitos fundamentais
conferidos ao cidadão, que podem ser divididos em três categorias: individuais, políticos e
sociais. O objetivo é que essas três categorias de direitos completem-se de forma tal que
propiciem a realização plena da dignidade da pessoa humana.
Em que pese o almejado objetivo, é inegável que algumas situações do nosso cotidiano
suscitam o conflito entre essas espécies de direitos fundamentais, e até mesmo de direitos da
mesma categoria. Essas hipóteses de conflito ensejam uma análise aprofundada sobre cada
caso específico para que se possa solucionar satisfatoriamente a questão.
Não se podem preestabelecer critérios de resolução de conflitos quando se trata de
direitos fundamentais. Os critérios tradicionais de solução de antinomias - hierárquico,
temporal e especialização - são insuficientes para solucionar a colisão de direitos
fundamentais, tendo em vista o princípio da unidade da Constituição. Confira-se a lição de
Luís Roberto Barroso a respeito do tema:
“A colisão de princípios constitucionais ou de direitos fundamentais não se resolve
mediante o emprego dos critérios tradicionais de solução de conflitos de normas, como o
hierárquico, o temporal e o da especialização. Em tais hipóteses, o intérprete constitucional
precisará socorrer-se da técnica da ponderação de normas, valores ou interesses, por via da
qual deverá fazer concessões recíprocas entre as pretensões em disputa, preservando o
máximo possível do conteúdo de cada uma. Em situações extremas, precisará escolher qual
direito irá prevalecer e qual será circunstancialmente sacrificado, devendo fundamentar
racionalmente a adequação constitucional de sua decisão.”7¬
Faz-se imprescindível, portanto, a análise prévia e detida do caso específico, pois só
assim é que se poderá avaliar qual direito fundamental deverá sofrer restrição e qual a
medida dessa restrição. Como salienta o Ministro Gilmar Mendes, “[é] importante perceber
que a prevalência de um direito sobre o outro se determina em função das peculiaridades do
caso concreto. Não existe um critério de solução de conflitos válido em termos abstratos.”8¬
É importante mencionar que existem duas hipóteses diversas de conflitos entre direitos
fundamentais. A primeira se dá na colisão de direitos fundamentais de pessoas distintas. A
título de exemplo, pode-se mencionar a intenção de um repórter em publicar notícia com
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fatos e fotos da vida particular de um artista (liberdade de expressão x direito à
privacidade e à imagem).
Nesse caso, cabe ao Estado solucionar o problema, agindo como intérprete da
Constituição, utilizando-se da técnica de ponderação das normas e dos valores em jogo.
Somente nessa hipótese é lícito ao Estado intervir e solucionar o conflito de direitos
fundamentais, determinando qual sofrerá restrição e qual prevalecerá.
A segunda hipótese, pertinente ao escopo deste artigo, ocorre no conflito entre direitos
fundamentais de um mesmo cidadão, sem que se resvale na esfera de direitos de terceiros. A
título de exemplo, tem-se o caso dos cidadãos que se recusam a receber transfusão de
sangue por motivos religiosos (liberdade de credo x direito à saúde).
Nesse caso, cabe exclusivamente ao cidadão solucionar o conflito de direitos
fundamentais, pois somente ele poderá fazer uma devida análise dos valores que lhe são mais
preciosos, decidindo o que acha melhor para si. Não é lícito ao Estado intervir nessa situação.
4. ¬A PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
É cediço que, devido ao princípio da unidade da Constituição, todos os direitos
fundamentais possuem o mesmo grau de importância.9¬ Por esse motivo é que tratamos no
capítulo anterior sobre o especial método de resolução de conflitos entre esses direitos.
Contudo, é importante destacar que acima desses direitos encontra-se o princípio
máximo previsto na Constituição Federal, que é o da dignidade da pessoa humana.
Referido princípio é um inescusável mandamento constitucional, constituindo um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1.º, III, da CF/1988. Por isso,
engloba todos os demais princípios e direitos constitucionais.
A supremacia do princípio da dignidade humana afasta qualquer possibilidade de conflito
entre ele e algum outro princípio ou direito constitucional, haja vista que se sobrepõe aos
demais, devendo prevalecer em todas as situações. Com efeito, a aplicação de qualquer
princípio constitucional ou o exercício dos direitos fundamentais deve ser feito de forma
harmônica com o princípio da dignidade da pessoa humana, que constitui o princípio
norteador dos demais. A supremacia do mencionado princípio é absoluta.
Confira-se, nesse sentido, a lição do constitucionalista português, José Carlos Vieira
Andrade:
“Realmente, o princípio da dignidade da pessoa humana está na base de todos os direitos
constitucionalmente consagrados, quer dos direitos e liberdades tradicionais, quer dos
direitos de participação política, quer dos direitos dos trabalhadores e direitos a prestações
sociais.”10¬
A doutrina brasileira também corrobora a tese. Confira-se:
“(...) a dignidade da pessoa humana, porque sobreposta a todos os bens, valores ou
princípios constitucionais, em nenhuma hipótese é suscetível de confrontar-se com eles, mas
tão somente consigo mesma, naqueles casos-limite em que dois ou mais indivíduos ontologicamente dotados de igual dignidade - entrem em conflitos capazes de causar lesões
mútuas a esse valor supremo.”11¬
“É no valor da dignidade humana que a ordem jurídica encontra o seu próprio sentido,
sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa.
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Consagra-se, assim, a dignidade humana como verdadeiro superprincípio a orientar o
Direito Internacional e Interno.
(...)
A dignidade humana simboliza, deste modo, um verdadeiro superprincípio constitucional,
a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global,
dotando-lhe especial racionalidade, unidade e sentido.”12¬
“Poderíamos até dizer que a eminência da dignidade da pessoal humana é tal que é
dotada ao mesmo tempo de natureza de valor supremo, princípio constitucional fundamental
e geral que inspiram a ordem jurídica. Mas a verdade é que a Constituição lhe dá mais do que
isso, quando a põe com fundamento da República Federativa do Brasil constituída em Estado
Democrático de Direito. Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num
valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito. Portanto,
não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social,
econômica e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida
nacional.”13¬
“Nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição
que o princípio da dignidade da pessoa humana. (...) A densidade jurídica do princípio da
dignidade humana no sistema constitucional há de ser, portanto, máxima, e se houver
reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio
não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham
consubstanciados.”14¬
Como já mencionado, os direitos fundamentais, em situações excepcionais, são passíveis
de sofrer restrição, ou até mesmo de serem violados licitamente. A dignidade humana,
jamais.
Nas situações de conflito entre direitos fundamentais, deve-se observar, caso a caso,
qual direito pode ser sacrificado sem que se coloque em risco a dignidade humana.
Para que se alcance plenamente esse valor supremo, resguardando-o de potenciais
violações, não basta a simples garantia do exercício dos direitos fundamentais tal qual
expresso literalmente na Constituição. É preciso mais do que isso.
O Estado não pode se limitar, por exemplo, a garantir de maneira simplória o direito à
vida do cidadão, mas tem de garantir, também, que viva com condições mínimas de
dignidade. Nesse contexto é que a liberdade torna-se um bem assaz precioso.
Enquanto o Estado Democrático de Direito fundamenta-se no princípio da dignidade da
pessoa humana, este, por sua vez, fundamenta-se originariamente em dois valores
fundamentais à democracia: liberdade e igualdade. Confira-se:
“Liberdade e igualdade formam dois elementos essenciais do conceito de dignidade da
pessoa humana, que o constituinte erigiu à condição de fundamento do Estado Democrático
de Direito e vértice do sistema dos direitos fundamentais.”15¬
Certificam-se, portanto, duas premissas básicas: (a) o Estado Democrático de Direito tem
como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana; (b) esse princípio depende da
observância aos direitos à liberdade e à igualdade.
O direito fundamental à liberdade deve ser amplamente respeitado, porque dificilmente
poderá sofrer restrição sem que seja violada a dignidade humana.16¬
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Para a efetiva proteção desse princípio maior, o direito à liberdade deve ser observado
em todas as suas vertentes e acepções.17¬ Dentre essas acepções, situa-se o livre arbítrio ou
autonomia da vontade.
O livre arbítrio é o poder de escolha e decisão sobre os atos da vida. É o poder de
autogoverno do indivíduo que age e toma decisões conscientes de acordo com suas próprias
concepções, conduzindo sua vida da maneira que lhe convém, e assumindo a
responsabilidade por seus atos.
Essa esfera do direito à liberdade é inviolável. Retirar a autonomia da vontade do
cidadão é o mesmo que lhe podar sua dignidade. O respeito ao livre arbítrio humano é
condição sine qua non para que se observe a dignidade da pessoa humana. Autonomia e
dignidade são valores indissociáveis.
Vale conferir o que Daniel Sarmento e Emerson Garcia dissertam sobre o tema:
“Mas o valor da autonomia privada não é apenas instrumental para a Democracia, pois
ela está indissociavelmente relacionada à dignidade da pessoa humana. Na verdade, negar ao
homem o poder de decidir de que modo vai conduzir sua vida privada é frustrar sua
possibilidade de realização existencial.”18¬
“O reconhecimento da dignidade da pessoa humana pressupõe que se respeite a esfera
de autodeterminação de cada mulher ou homem, que devem ter o poder de tomar decisões
fundamentais sobre suas próprias vidas e de se comportarem de acordo com elas, sem
interferências do Estado ou de terceiros. A matriz desta ideia é a concepção de que cada
pessoa humana é um agente moral dotado de razão, capaz de decidir o que é bom ou ruim
para si, de traçar planos de vida e de fazer escolhas existenciais, e que deve ter, em
princípio, liberdade para guiar-se de acordo com sua vontade.”19¬
“A dignidade da pessoa humana, no entanto, deve ser concebida como um instrumento
de proteção e aperfeiçoamento do indivíduo e da coletividade, não devendo legitimar a
imposição de restrições dos aspectos mais basilares de sua liberdade. Sua larga
indeterminação semântica exige prudência e responsabilidade argumentativa por parte dos
poderes constituídos, evitando posturas absolutistas que, ao fim, terminarão por rechaçar
outros vetores axiológicos igualmente relevantes à dignidade, como é o caso da liberdade.”20¬
Conclui-se, portanto, que o princípio da dignidade humana jamais pode ser licitamente
sacrificado, e, para que se respeite esse mandamento constitucional, é imprescindível que se
preserve o livre arbítrio humano e se observe plenamente o direito à liberdade.
5. ¬O RESPEITO AO LIVRE ARBÍTRIO HUMANO E A VEDAÇÃO DA INGERÊNCIA INJUSTIFICADA DO ESTADO SOBRE
A VIDA PRIVADA DO CIDADÃO
A observância da autonomia da vontade não significa dizer que o cidadão é
irrestritamente livre para agir conforme desejar. O brocardo “a liberdade de um termina
onde começa a liberdade do outro” é válido nesse caso.
O livre arbítrio dos cidadãos, encampado no direito fundamental à liberdade individual,
não é absoluto. Esse direito encontra dois - e apenas dois - óbices ao seu exercício pleno. Há
limitação a esse direito quando a lei assim prevê, ou em situações que atinjam a esfera de
direito alheio. Confira-se a lição de Daniel Sarmento sobre a questão:
“Esta autonomia significa o poder do sujeito de 'autogoverno de sua esfera jurídica',
tendo como matriz a concepção de ser humano como agente moral, dotado de razão, capaz
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de decidir o que é bom ou ruim para si, e que deve ter liberdade para guiar-se de acordo
com estas escolhas, desde que elas não perturbem o direito de terceiros nem violem outros
valores relevantes da comunidade.”21¬
O cerne desta ideia é previsto expressamente em Constituições de outros países22¬
democráticos, e já havia sido previsto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
que em seu art. 4.º assim disciplina:
“Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem:
assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que
asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas
podem ser determinados pela lei.”
No Brasil também vige essa teoria, e a prática de ato que não interfira na esfera de
direito de terceiros, tampouco encontre vedação prevista em lei, é permitida ao cidadão,
sendo vedada qualquer ingerência do Estado nesse ponto.
Assim, tem-se que o direito à liberdade confere ao cidadão o direito de praticar
quaisquer atos não vedados por lei, bem como o direito de exigir a abstenção do Estado de
intervir em situações que não interfiram sobre direito de terceiros. Confira-se a sábia lição
de Canotilho acerca do assunto:
“Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma
dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência
negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na
esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer
positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes
públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).”23¬
Fica claro, portanto, que não é lícito ao Estado intervir na prática de atos do cidadão que
digam respeito apenas a seus próprios direitos. O cidadão pode praticar atos que atentem
contra a sua própria saúde, vida, ou outro direito fundamental, não cabendo ao Estado
impedir ou julgá-lo por isso.
É insustentável ao Estado Democrático de Direito supor-se o contrário, concedendo a
chancela ao Estado para intervir na vida privada do cidadão, contra a sua vontade, mesmo
que os atos por ele praticados sejam lícitos e não digam respeito a mais ninguém.
Ao cidadão não pode ser imposta a total observância dos seus próprios direitos
fundamentais sob pena de se criar o que Paulo Bonavides24¬ intitula de “deverização” desses
direitos. Quando inexistentes os dois mencionados óbices ao pleno exercício da autonomia da
vontade, o Estado não pode intervir para garantir a obediência a um direito fundamental
contra a vontade de seu titular.
Não pode haver tutela absoluta do Estado sobre os direitos fundamentais do cidadão sob
pena de se violarem esses mesmos direitos, e também contrariar os princípios constitucionais
mais basilares. Nas sábias palavras do constitucionalista alemão Reinhold Zippelius,25¬
“contraria a natureza humana tanto ser totalmente assistido como ser universalmente
tutelado”.
A ilustrar o assunto, tem-se uma decisão proferida pelo TJRS que, em ação indenizatória
proposta por fumante contra fabricante de cigarro, asseverou que o “homem precisa ser
protegido de si mesmo”.26¬
Tal assertiva é incompatível com a dignidade da pessoa humana, e retoma ideais
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paternalistas de um Estado totalitário já derrocado,27¬ que tratava as pessoas como um
instrumento da vontade estatal, em detrimento dos direitos e garantias individuais.
Os regimes nazista e fascista, por exemplo, tiveram como característica mais marcante
exatamente a anulação da liberdade individual em prol de um ideal coletivo de “pureza”,
“grandiosidade”, e o “dever de ser saudável”.28¬ Por esse motivo é que na Alemanha era
intensa a campanha do governo contra as bebidas e o tabaco,29¬ e a propaganda nazista
associava diretamente o álcool e o cigarro aos inimigos do regime.
O totalitarismo alemão encarava a liberdade individual, e tudo que a expressasse, como
uma afronta ao Estado. O regime totalitário da Itália fascista não foi diferente, e os homens
não tinham mais direito do que o Estado lhes concedia.30¬ O lema era: tudo no Estado, nada
para além do Estado, nada contra o Estado.31¬
O tempo e os acontecimentos, felizmente, encarregaram-se de dissolver esses regimes
políticos marcados pela intolerância à liberdade individual e pelo intento estatal de dirigir a
vida privada dos cidadãos. Se é sabido que o Estado puramente liberal foi superado por um
Estado que se ocupa de garantir certos direitos sociais, também é notório que algumas
importantes conquistas do liberalismo, notadamente o repúdio ao paternalismo/dirigismo
estatal, tornaram-se um dos pilares da democracia e não podem ser sacrificadas.
Precisa, nesse ponto, a advertência de Luís Roberto Barroso. Confira-se:
“O sacrifício de determinadas liberdades públicas, em nome de outros valores - ainda
que socialmente relevantes - constitui precedente e revive o trauma do abuso estatal e do
autoritarismo, desvios recorrentes na trajetória institucional brasileira.”32¬
Emmanuel Kant já identificava que o paternalismo estatal era incompatível com o regime
democrático. Em obra dedicada à visão do pensador alemão sobre o Direito e o Estado,
Norberto Bobbio observa que o estado paternalista é aquele no qual “os súditos são
considerados como eternos menores, ou seja, não como cidadãos ativos, mas como súditos
passivos”.
Pior do que isso, Kant afirmava que o Estado paternalista é um Estado que só pode
desembocar no despotismo.33¬ Isso porque no cerne do paternalismo reside a ideia de que o
Estado é o responsável pela felicidade das pessoas, e, portanto, cabe somente a ele eleger
qual o critério a ser adotado para alcançar esse objetivo. Daí a precisa advertência de
Norberto Bobbio:
“A pretensão de que o Estado possa deixar felizes os próprios súditos está fundamentada
no erro de que possa existir um critério geral para definir a felicidade do gênero humano.
Mas uma vez que esse critério único não existe, a pretensão do Estado segundo o
eudemonismo é absurda.”34¬
Não se pode admitir sejam reavivadas ideias que retomem teorias do Estado tutor,
incumbido de decidir o que é bom ou ruim para os cidadãos. Em sociedades livres, as
decisões íntimas dos indivíduos, que não impliquem prejuízo a terceiros, são - e devem
permanecer sendo - imunes ao controle estatal.
Não se pode aceitar que o Estado se coloque no lugar do cidadão, guiando sua vida e
suprimindo seu direito de fazer escolhas sob a pretensa escusa de assim agir para protegê-lo.
Cabe somente ao próprio indivíduo decidir que estilo de vida levar e decidir o que é ou não
bom para si. Ele é o responsável pelas próprias escolhas, e não o Estado.
Ao Estado deve ficar reservado o papel de impedir que o exercício da liberdade individual
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prejudique terceiros. Nas situações que envolvam apenas o direito de um único
indivíduo, o Estado deve abster-se de qualquer ingerência, respeitando-se o livre arbítrio.
Nesse sentido, são válidas as lições de Daniel Sarmento:
“Significa, sim, que não cabe ao Estado avaliar se as liberdades existenciais estão ou não
sendo exercidas no sentido que ele considerar mais apropriado, já que tal concepção
esvaziaria o poder da pessoa humana de se autogovernar; de fazer escolhas existenciais e de
viver de acordo com elas, desde que não lese direitos de terceiros.”35¬
“Deve caber sempre às pessoas a eleição dos seus objetivos e planos de vida, que têm de
ser respeitados, desde que não violem direitos de terceiros. O papel do Estado é o de auxiliar
na criação das condições necessárias para que cada um realize livremente as suas escolhas e
possa agir de acordo com elas, e não o de orientar as vidas individuais para alguma direção
que se repute mais adequada aos 'valores sociais', ou mais conforme aos interesses gerais da
coletividade.”36¬
“Livres devem ser os homens e as mulheres, para realizarem seus projetos de vida; e não
o Estado ou a coletividade política, que não podem impor paternalisticamente aos não
conformistas a adesão a um ideal, por mais nobres que sejam as razões invocadas.”37¬
6. ¬OS ATOS DOS CIDADÃOS PREJUDICIAIS À PRÓPRIA SAÚDE
A autonomia da vontade do indivíduo deve ser respeitada mesmo quando possa atentar
contra outro direito fundamental seu, como, por exemplo, o direito à saúde ou à vida. O
cotidiano da sociedade é farto em exemplos desse tipo.
A prática de artes marciais, desde que realizada em eventos autorizados, é lícita no
Brasil. Em uma luta de boxe, por exemplo, invariavelmente, ao menos um dos pugilistas terá
sua integridade física prejudicada, e até a própria vida é exposta a risco. Contudo, mesmo
diante do iminente perigo, não cabe ao Estado impedir ou sancionar o indivíduo por essa
assunção voluntária de risco.
Impedir um pugilista de praticar o esporte a que se dedica sob o pretexto de lhe proteger
a integridade física configuraria uma afronta à sua integridade moral,38¬ na medida em que
lhe restringiria a autonomia da vontade.
Outro exemplo é dos cidadãos que consomem produtos lícitos, porém prejudiciais à
saúde, tais como cigarros, bebidas alcoólicas e alimentos gordurosos. Os consumidores desses
produtos lícitos, de risco inerente, assumem a responsabilidade pelas consequências do
consumo, não cabendo ao Estado qualquer ingerência a respeito.
Acerca especificamente dos cigarros, Ronald Dworkin opinou expressamente pelo
respeito à autonomia da vontade dos que optam por consumir esse produto de notória
nocividade. Confira-se:
“Há um consenso geral de que os cidadãos adultos dotados de competência normal têm
direito à autonomia, isto é, direito a tomar, por si próprios, decisões importantes para a
definição de suas vidas. Os adultos competentes são livre para fazer maus investimentos,
desde que os outros não os enganem nem lhes soneguem informações, e os fumantes podem
fumar em recintos privados, ainda que a propaganda de cigarros deva adverti-los sobre os
riscos de seu hábito.”39¬
Em obra dedicada às consequências jurídicas da comercialização e consumo de cigarros,
Teresa Ancona Lopez defende o pleno exercício do livre arbítrio, mesmo considerando
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atitudes que coloquem em risco a saúde do indivíduo. Confira-se:
“Em suma, não podemos nos ajoelhar diante do 'Grande Irmão' e fazer desaparecer o
poder de escolher conscientemente o que nos dá prazer na vida, mesmo que esse prazer
possa pôr em risco nossa saúde. É no uso de nosso livre-arbítrio que nos afirmamos como
cidadãos. Aqui cabe a sempre lúcida lição de Hannah Arendt: 'quem quer que queira educar
adultos na realidade pretende agir como guardião e impedi-los de atividade política'.”40¬
Outro exemplo que ilustra o tema consiste na recusa de pacientes em receberem
determinados tipos de tratamento médico por motivos religiosos.
Desde que o paciente esteja advertido sobre os riscos de sua recusa, e assuma a
responsabilidade pela conduta, ele não pode ser constrangido a se submeter a um tratamento
médico contra a sua vontade, mesmo nas situações que impliquem iminente risco de vida.
Em parecer proferido sobre o assunto, Celso Ribeiro Bastos concluiu pela ilegalidade de
se obrigar um paciente seguidor da religião Testemunhas de Jeová a ser submetido à
transfusão de sangue contra a sua vontade. Confira-se:
“Ninguém pode ser constrangido a consultar um médico ou a submeter-se a um
tratamento terapêutico específico contra sua vontade livre e conscientemente manifestada.
Fazendo uma certa analogia, equivaleria a estabelecer a exigência de que o cidadão com
problemas visuais mínimos fosse obrigado a procurar o oftalmologista, ou obrigado a adquirir
as lentes indicadas pelo médico, sem opção pela recusa em usá-las, ou, ainda, que todos os
envolvidos em problemas econômicos, por mínimos que fossem, estivessem constrangidos a
procurar um economista e a seguir suas orientações.”41¬
Da mesma maneira, deve ser respeitado o direito dos cidadãos acometidos por doença
incurável de não buscar por auxílio médico e viverem seus últimos dias no conforto do lar.
Ninguém pode obrigá-los a receber tratamento caso eles não queiram assim proceder.42¬
Nesse sentido, irretocável um recente acórdão do TJRS, que garantiu a uma paciente o
direito de se recusar a receber transfusão de sangue por motivos religiosos. O acórdão
rejeitou a ideia paternalista e totalitária de o Estado, através do Poder Judiciário, poder
intervir nas escolhas da vida privada do cidadão visando a lhe proteger de si mesmo. Confirase:
“(...) as piores experiências totalitárias foram justificadas por 'valores' de Estado que
arrombaram a tranca das liberdades de consciência, de crença, de pensamento, de escolha
do cidadão a respeito do seu próprio destino, da eleição do significado de sua vida, sempre
sob alguma justificativa para 'salvá-los de si mesmos', ante um valor maior que os seus. (...)
Não pode o Estado intervir nessa relação íntima da pessoa consigo mesma, nas suas opções
filosóficas, especialmente na crença religiosa, constitucionalmente protegida como direito
fundamental do cidadão, mesmo que importe risco para a própria pessoa que a professa (e
para ninguém mais), sob pena de apresentar, o Estado, sua face totalitária ao ingressar
cogentemente no âmbito da essência da individualidade do ser humano, onde não deve
estar.”43¬
Esses exemplos demonstram o dever de se respeitarem as decisões de foro íntimo dos
cidadãos. Havendo um inevitável conflito entre direitos fundamentais do próprio indivíduo
(liberdade vs. saúde), cabe somente a ele escolher qual direito deve prevalecer.
Ao Estado cabe apenas informar ou ordenar que o cidadão seja informado sobre os riscos
de sua conduta, não lhe sendo permitido julgar o acerto da escolha, tampouco determinar a
conduta a ser realizada. Nesse diapasão, perfeito o ensinamento do pensador britânico John
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Stuart Mill:
“O único propósito para que o poder possa legitimamente exercer-se em uma
comunidade civilizada, sobre um indivíduo e contra a sua vontade, é o de prevenir danos a
outros. Seu próprio bem, seja físico ou moral, não constitui suficiente justificação. Não se
pode obrigar alguém a suportar algo em virtude de que seria melhor para si, porque ele seria
mais feliz ou porque, pela opinião dos outros, o atuar desta maneira seria mais inteligente e
mais justo.”44¬
Aos cidadãos cabe escolher livremente que estilo de vida levar e assumir os riscos de suas
opções. Da mesma maneira que não é lícito ao Estado exercer o direito de escolha em nome
do cidadão, não é lícito a este transferir ao Estado ou a terceiros a responsabilidade pelos
próprios atos, pois, como bem ressalta Calmon de Passos, “ou respondemos por nossos atos
ou a convivência social se inviabilizará radicalmente”.45¬
7. ¬CONCLUSÃO
Partindo das premissas de que a dignidade da pessoa humana é o princípio que norteia o
exercício de todos os direitos fundamentais, constituindo um dos fundamentos do Estado
Democrático de Direito, e que o livre arbítrio humano é indissociável desse princípio, a
conclusão a que se chega é que é preciso respeitar a liberdade individual do ser humano
decidir sobre o que quer para si.
Situações que suscitem conflito de direitos fundamentais de um mesmo cidadão
resolvem-se no plano da autonomia da vontade. O respeito ao livre arbítrio humano deve
imperar mesmo quando o cidadão o exerça em prejuízo da própria saúde, optando por
praticar atos perigosos ou por consumir produtos nocivos.
Ressalte-se, por oportuno, que o intuito do presente artigo não é o de incentivar as
pessoas a se comportarem de maneira lesiva à própria saúde, tampouco o de fazer apologia
aos que já assim se comportam.
O objetivo é o de despertar o pensamento crítico de que todos são, sim, livres para agir
de acordo com suas vontades, independentemente do fato de certas atitudes serem
prejudiciais à própria saúde. Os limites ao exercício dessa liberdade encontram-se apenas nas
vedações prescritas em lei, ou nos atos que interfiram na esfera de direito alheio. Nas demais
situações, a plena liberdade de escolha deve ser respeitada.
A exposição a risco à saúde e à vida não autoriza o Estado a intervir na vida íntima do
cidadão, e escolher em seu lugar quais produtos consumir ou quais atividades praticar. Se
lícita a conduta, deve prevalecer o binômio liberdade-responsabilidade do cidadão, em
detrimento da imposição estatal de um padrão geral de bem-estar individual.
Ao Estado não cabe “proteger o indivíduo de si próprio”, julgando-o pela assunção
voluntária de riscos lícitos, como no caso do consumo de cigarros e/ou ¬
de alimentos gordurosos, da ingestão de bebidas alcoólicas, da prática de esportes de
combate etc.
Privar o cidadão do seu direito de escolha, se essa for prejudicial à saúde, retoma ideias
de um Estado autoritário e paternalista, que “toma conta dos súditos como se fossem eternos
menores de idade e cuida da sua felicidade”.46¬
Aceitar essa pretensão equivale a dar guarida a ideias totalitárias já severamente
rechaçadas pela Constituição Federal de 1988, justamente por serem incompatíveis com o
regime democrático.
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Não se pode admitir que, sob o pretexto de se conferir uma proteção mais ampla ao
direito à saúde dos cidadãos, transforme-se esse direito fundamental em um dever
inescusável, que limite o direito à liberdade individual. Também não se pode aceitar que
pessoas que se supõem mais esclarecidas, a pretexto de proteger a população, passem a
tomar decisões no lugar dela.
O cidadão pode escolher o que quer para si, e assume a responsabilidade por suas
escolhas. Qualquer tentativa de se negar essa afirmação constitui flagrante afronta às
garantias fundamentais e uma grave ameaça ao Estado Democrático de Direito.
A restrição ao livre arbítrio ainda estimula a deseducação e a irresponsabilidade.
Deseducação porque, ao se subtrair do cidadão a possibilidade de decidir sobre os seus atos,
retira-se dele, de maneira gradativa, o discernimento necessário para saber o que é certo e o
que não é.47¬ Esse cidadão tornar-se-á dependente de alguém que o guie, que lhe diga o que
pode e o que não pode ser feito. Com o tempo, tornar-se-á o que Aristóteles define como
“cidadão com alma de escravo”:
“Ele simplesmente vive e não organiza seus passos para estar de acordo com este
objetivo. Não calcula os efeitos de seus atos, toma decisões sem se preocupar intimamente
se a decisão foi certa ou errada, isto é, se a decisão o aproxima de sua razão vital ou a
afasta, ignorando a própria consciência.
Quando a consciência individual se encontra enferma, o indivíduo passa a não se sentir
responsável por si mesmo, pois entende que não foi ele quem tomou a decisão. Sentindo-se
incapaz de responsabilizar-se implora ao Estado que o mantenha seguro, que cuide dele, que
o guie, que lhe diga o que pode e o que não pode fazer, que regule sua vida, que puna o
culpado.
(...)
Uma consciência individual que não apreende o que é essencial a sua própria saúde e a
sua existência, não pode invocar ou pretender responsabilizar outrem pelas consequências de
fatos cuja causa lhe cabia evitar.”48¬
Confira-se, a respeito, a lição de Tercio Sampaio Ferraz Junior:
“Liberdade, nesses termos, opõe-se à tutela estatal. Ninguém, a não ser o próprio
homem, é senhor de sua consciência, do seu pensar, do seu agir, estando aí o cerne da
responsabilidade. Cabe ao Estado propiciar as condições desse exercício, mas jamais
substituir o ser humano na definição das escolhas e da correspondente ação. Também não
pode o Estado, nesse sentido, degradar o ser humano à condição de incapaz de discernir, por
si só, entre o bem e o mal. Cabe ao Estado dar-lhes os meios legais para exercer o juízo sobre
as coisas, mas não pôr-se em seu lugar, para dizer o que a sua consciência distingue e aprova
ou desaprova. (...) Se o Estado tutela a consciência e a deliberação individuais, a condição
humana é degradada pelo dirigismo próprio dos regimes totalitários. O Estado que exerce tal
forma de tutela destitui o cidadão da possibilidade de responsabilizar-se pelos seus atos,
destitui-o da capacidade de julgar quando supostamente o protege. O Estado tutor reduz o
cidadão à condição dos que 'não sabem o que fazem', adultos infantilizados, sujeitos às
imposições e às manobras do poder.”49¬
O estímulo à irresponsabilidade se dará porque, ao se admitir que os cidadãos precisam
ser tutelados sobre decisões de sua vida privada, a consequência será a transferência da
responsabilidade dessa decisão a quem os tutelou.
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Enfim, sob qualquer prisma que se analise a questão, ficam evidentes os prejuízos de se
admitir a possibilidade de ingerência indevida do Estado na vida íntima do cidadão. Válidas,
nesse contexto, as sábias palavras do ex-presidente norte americano Abraham Lincoln, de
que “não se ajudarão as pessoas a longo prazo, fazendo por elas o que elas deveriam e
poderiam fazer por elas próprias”.50¬
8. ¬BIBLIOGRAFIA
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