\tmpyw6tev.in Page 1 of 14 Publicado na RT 897/61 ¬O CONFLITO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS ¬ E OS ATOS DO CIDADÃO QUE ATENTEM ¬ CONTRA A SUA PRÓPRIA SAÚDE ¬ÁLVARO BRITO ARANTES ¬Advogado. ÁREA DO DIREITO: Constitucional RESUMO: A partir de uma breve análise de situações de conflito entre direitos fundamentais de um mesmo cidadão, este artigo avalia os óbices ao pleno exercício da liberdade do indivíduo de escolher pelo direito que deve prevalecer. Sempre com base no respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, faz-se uma análise crítica sobre o binômio liberdade-responsabilidade. O direito à liberdade de escolha do cidadão deve ser respeitado sempre que seus atos não violem disposição legal nem direito de terceiros. Na ausência dessas hipóteses, a ingerência estatal na vida privada do indivíduo deve ser combatida, pois cabe somente a ele decidir como agir, devendo assumir a responsabilidade por suas escolhas. PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais - Dignidade humana - Liberdade - Direito de escolha Responsabilidade pessoal. ABSTRACT: Departing from a brief analysis of certain situations in which there arises a conflict in and between fundamental rights belonging to one and the same person, this article evaluates the hurdles preventing the full exercise of an individual's right of free determination and choice. Grounded on the foundation stone of the principle of human dignity, a critical analysis is made of the binomial free will-responsibility theory. The individuals' free will shall always be respected in cases in which their acts do not violate the Law nor third parties' rights. In any other situation, the interference of the State in people's domestic lives should not be tolerated, because it is up to the individuals to decide how to behave and act, thereby assuming the responsibility for the consequences of their choices and actions. KEYWORDS: Fundamental rights - Human dignity - Free will - Personal responsibility. ¬Sumário: 1. Introdução - 2. A relativização dos direitos fundamentais - 3. O conflito entre direitos fundamentais - 4. A prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana - 5. O respeito ao livre arbítrio humano e a vedação da ingerência injustificada do Estado sobre a vida privada do cidadão - 6. Os atos dos cidadãos prejudiciais à própria saúde - 7. Conclusão - 8. Bibliografia. 1. ¬INTRODUÇÃO Diante da complexidade das relações jurídicas a que nos submetemos atualmente, inevitavelmente, alguma delas ensejará o conflito entre direitos fundamentais de um cidadão e de outro. Outras situações suscitam o conflito entre direitos fundamentais de um mesmo titular. A partir de uma análise perfunctória dos direitos fundamentais previstos na Constituição http://www.revistasrtonline.com.br/portalrt/DocView/Doutrina/Revista%20dos%20Tr... 19/07/2010 \tmpyw6tev.in Page 2 of 14 Federal, verificar-se-á que esses direitos não são absolutos, podendo sofrer restrição nas mencionadas situações de conflito. Na hipótese de colisão de direitos fundamentais de pessoas distintas, incumbe ao Estado intervir para delimitar o exercício desses direitos, de maneira a solucionar satisfatoriamente o caso. Já nas situações que ensejem o conflito de direitos fundamentais de um mesmo titular, incumbe somente a esse cidadão a escolha de qual direito deve prevalecer, e qualquer tentativa do Estado de lhe tolher esse direito de escolha configura grave violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. O objetivo do presente artigo consiste em despertar o senso crítico do leitor de que o cidadão pode exercer plenamente sua autonomia da vontade, ficando privado, apenas, da prática de atos vedados expressamente por lei, ou que interfiram prejudicialmente na esfera de direito de terceiros. Ressalvados esses dois óbices ao exercício pleno da liberdade, ao cidadão é lícita a prática de quaisquer atos, inclusive os que possam atentar contra sua própria saúde. 2. ¬A RELATIVIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Algumas características são indissociáveis dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Dentre elas, a doutrina destaca a inviolabilidade, a irrenunciabilidade, a imprescritibilidade e a universalidade. Com relação à indisponibilidade, que não pode ser confundida com a irrenunciabilidade, ainda não há um consenso. Parte dos doutrinadores confere aos direitos fundamentais também a característica da indisponibilidade, asseverando que ao cidadão é vedada a prática de qualquer ato que disponha desses direitos. No sentido contrário, alguns acadêmicos entendem que não há previsão de indisponibilidade dos direitos fundamentais na Constituição Federal, sendo livre o cidadão para se desprender de determinados direitos. Em parecer elaborado sobre o direito de recusa de um paciente hospitalar a receber transfusão de sangue por razões religiosas, Celso Ribeiro Bastos opinou favoravelmente à segunda corrente doutrinária acima mencionada, e assim assinalou: “Insista-se, neste ponto, que a Constituição acaba por assegurar, tecnicamente falando, a inviolabilidade do direito à vida, assim como o faz quanto à liberdade, intimidade, vida privada, e outros tantos valores albergados constitucionalmente. Não se trata, propriamente de indisponibilidade destes direitos. (...) Por inviolabilidade deve compreender-se a proteção de certos valores constitucionais contra terceiros. Já a indisponibilidade alcança a própria pessoa envolvida, que se vê constrangida já que não se lhe reconhece qualquer discricionariedade em desprender-se de determinados direitos. No caso presente, não se fala em indisponibilidade, mas sim de inviolabilidade. O que a Constituição assegura, pois, é a 'inviolabilidade do direito á vida' (art. 5.º, caput).”1¬ Virgílio Afonso da Silva parece compartilhar desse ponto de vista: “(...) direitos fundamentais podem ser, em um grande número de casos e nas condições a serem expostas no capítulo seguinte, objeto de disposição pela livre vontade de seus titulares.”2¬ Sem adentrar ao mérito da discussão sobre serem os direitos fundamentais, per se, disponíveis ou não, até porque não é esse o objetivo deste artigo, o importante é constatar que, em situações específicas, que serão exemplificadas nos capítulos seguintes, o cidadão poderá, sim, dispor de um direito fundamental que lhe é conferido pela Constituição. http://www.revistasrtonline.com.br/portalrt/DocView/Doutrina/Revista%20dos%20Tr... 19/07/2010 \tmpyw6tev.in Page 3 of 14 Importante frisar, também, que, ainda que pairem sobre os direitos fundamentais todos os atributos acima mencionados, isso não os torna direitos absolutos, oponíveis contra tudo e contra todos em todas as situações.3¬ O STF já decidiu essa questão, em acórdão da lavra do Min. Celso de Mello, que asseverou expressamente que “os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto”.4¬ No mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet5¬ salienta que “em princípio, inexiste direito absoluto, no sentido de uma total imunidade a qualquer espécie de restrição”. Os direitos fundamentais, assim como todos os direitos, podem ser relativizados em situações específicas. A título de ilustração, vale mencionar que até mesmo o direito à vida pode ser violado licitamente em situações extremas, como no caso de estado de necessidade ou de legítima defesa.6¬ A conclusão a que se chega é que, haja vista a complexidade das relações jurídicas existentes atualmente, em algumas situações específicas os direitos fundamentais poderão e deverão ser relativizados, principalmente nos casos em que houver conflito entre eles. 3. ¬O CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS A Constituição Federal de 1988 albergou uma vasta gama de direitos fundamentais conferidos ao cidadão, que podem ser divididos em três categorias: individuais, políticos e sociais. O objetivo é que essas três categorias de direitos completem-se de forma tal que propiciem a realização plena da dignidade da pessoa humana. Em que pese o almejado objetivo, é inegável que algumas situações do nosso cotidiano suscitam o conflito entre essas espécies de direitos fundamentais, e até mesmo de direitos da mesma categoria. Essas hipóteses de conflito ensejam uma análise aprofundada sobre cada caso específico para que se possa solucionar satisfatoriamente a questão. Não se podem preestabelecer critérios de resolução de conflitos quando se trata de direitos fundamentais. Os critérios tradicionais de solução de antinomias - hierárquico, temporal e especialização - são insuficientes para solucionar a colisão de direitos fundamentais, tendo em vista o princípio da unidade da Constituição. Confira-se a lição de Luís Roberto Barroso a respeito do tema: “A colisão de princípios constitucionais ou de direitos fundamentais não se resolve mediante o emprego dos critérios tradicionais de solução de conflitos de normas, como o hierárquico, o temporal e o da especialização. Em tais hipóteses, o intérprete constitucional precisará socorrer-se da técnica da ponderação de normas, valores ou interesses, por via da qual deverá fazer concessões recíprocas entre as pretensões em disputa, preservando o máximo possível do conteúdo de cada uma. Em situações extremas, precisará escolher qual direito irá prevalecer e qual será circunstancialmente sacrificado, devendo fundamentar racionalmente a adequação constitucional de sua decisão.”7¬ Faz-se imprescindível, portanto, a análise prévia e detida do caso específico, pois só assim é que se poderá avaliar qual direito fundamental deverá sofrer restrição e qual a medida dessa restrição. Como salienta o Ministro Gilmar Mendes, “[é] importante perceber que a prevalência de um direito sobre o outro se determina em função das peculiaridades do caso concreto. Não existe um critério de solução de conflitos válido em termos abstratos.”8¬ É importante mencionar que existem duas hipóteses diversas de conflitos entre direitos fundamentais. A primeira se dá na colisão de direitos fundamentais de pessoas distintas. A título de exemplo, pode-se mencionar a intenção de um repórter em publicar notícia com http://www.revistasrtonline.com.br/portalrt/DocView/Doutrina/Revista%20dos%20Tr... 19/07/2010 \tmpyw6tev.in Page 4 of 14 fatos e fotos da vida particular de um artista (liberdade de expressão x direito à privacidade e à imagem). Nesse caso, cabe ao Estado solucionar o problema, agindo como intérprete da Constituição, utilizando-se da técnica de ponderação das normas e dos valores em jogo. Somente nessa hipótese é lícito ao Estado intervir e solucionar o conflito de direitos fundamentais, determinando qual sofrerá restrição e qual prevalecerá. A segunda hipótese, pertinente ao escopo deste artigo, ocorre no conflito entre direitos fundamentais de um mesmo cidadão, sem que se resvale na esfera de direitos de terceiros. A título de exemplo, tem-se o caso dos cidadãos que se recusam a receber transfusão de sangue por motivos religiosos (liberdade de credo x direito à saúde). Nesse caso, cabe exclusivamente ao cidadão solucionar o conflito de direitos fundamentais, pois somente ele poderá fazer uma devida análise dos valores que lhe são mais preciosos, decidindo o que acha melhor para si. Não é lícito ao Estado intervir nessa situação. 4. ¬A PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA É cediço que, devido ao princípio da unidade da Constituição, todos os direitos fundamentais possuem o mesmo grau de importância.9¬ Por esse motivo é que tratamos no capítulo anterior sobre o especial método de resolução de conflitos entre esses direitos. Contudo, é importante destacar que acima desses direitos encontra-se o princípio máximo previsto na Constituição Federal, que é o da dignidade da pessoa humana. Referido princípio é um inescusável mandamento constitucional, constituindo um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1.º, III, da CF/1988. Por isso, engloba todos os demais princípios e direitos constitucionais. A supremacia do princípio da dignidade humana afasta qualquer possibilidade de conflito entre ele e algum outro princípio ou direito constitucional, haja vista que se sobrepõe aos demais, devendo prevalecer em todas as situações. Com efeito, a aplicação de qualquer princípio constitucional ou o exercício dos direitos fundamentais deve ser feito de forma harmônica com o princípio da dignidade da pessoa humana, que constitui o princípio norteador dos demais. A supremacia do mencionado princípio é absoluta. Confira-se, nesse sentido, a lição do constitucionalista português, José Carlos Vieira Andrade: “Realmente, o princípio da dignidade da pessoa humana está na base de todos os direitos constitucionalmente consagrados, quer dos direitos e liberdades tradicionais, quer dos direitos de participação política, quer dos direitos dos trabalhadores e direitos a prestações sociais.”10¬ A doutrina brasileira também corrobora a tese. Confira-se: “(...) a dignidade da pessoa humana, porque sobreposta a todos os bens, valores ou princípios constitucionais, em nenhuma hipótese é suscetível de confrontar-se com eles, mas tão somente consigo mesma, naqueles casos-limite em que dois ou mais indivíduos ontologicamente dotados de igual dignidade - entrem em conflitos capazes de causar lesões mútuas a esse valor supremo.”11¬ “É no valor da dignidade humana que a ordem jurídica encontra o seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. http://www.revistasrtonline.com.br/portalrt/DocView/Doutrina/Revista%20dos%20Tr... 19/07/2010 \tmpyw6tev.in Page 5 of 14 Consagra-se, assim, a dignidade humana como verdadeiro superprincípio a orientar o Direito Internacional e Interno. (...) A dignidade humana simboliza, deste modo, um verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe especial racionalidade, unidade e sentido.”12¬ “Poderíamos até dizer que a eminência da dignidade da pessoal humana é tal que é dotada ao mesmo tempo de natureza de valor supremo, princípio constitucional fundamental e geral que inspiram a ordem jurídica. Mas a verdade é que a Constituição lhe dá mais do que isso, quando a põe com fundamento da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito. Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito. Portanto, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional.”13¬ “Nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana. (...) A densidade jurídica do princípio da dignidade humana no sistema constitucional há de ser, portanto, máxima, e se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados.”14¬ Como já mencionado, os direitos fundamentais, em situações excepcionais, são passíveis de sofrer restrição, ou até mesmo de serem violados licitamente. A dignidade humana, jamais. Nas situações de conflito entre direitos fundamentais, deve-se observar, caso a caso, qual direito pode ser sacrificado sem que se coloque em risco a dignidade humana. Para que se alcance plenamente esse valor supremo, resguardando-o de potenciais violações, não basta a simples garantia do exercício dos direitos fundamentais tal qual expresso literalmente na Constituição. É preciso mais do que isso. O Estado não pode se limitar, por exemplo, a garantir de maneira simplória o direito à vida do cidadão, mas tem de garantir, também, que viva com condições mínimas de dignidade. Nesse contexto é que a liberdade torna-se um bem assaz precioso. Enquanto o Estado Democrático de Direito fundamenta-se no princípio da dignidade da pessoa humana, este, por sua vez, fundamenta-se originariamente em dois valores fundamentais à democracia: liberdade e igualdade. Confira-se: “Liberdade e igualdade formam dois elementos essenciais do conceito de dignidade da pessoa humana, que o constituinte erigiu à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito e vértice do sistema dos direitos fundamentais.”15¬ Certificam-se, portanto, duas premissas básicas: (a) o Estado Democrático de Direito tem como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana; (b) esse princípio depende da observância aos direitos à liberdade e à igualdade. O direito fundamental à liberdade deve ser amplamente respeitado, porque dificilmente poderá sofrer restrição sem que seja violada a dignidade humana.16¬ http://www.revistasrtonline.com.br/portalrt/DocView/Doutrina/Revista%20dos%20Tr... 19/07/2010 \tmpyw6tev.in Page 6 of 14 Para a efetiva proteção desse princípio maior, o direito à liberdade deve ser observado em todas as suas vertentes e acepções.17¬ Dentre essas acepções, situa-se o livre arbítrio ou autonomia da vontade. O livre arbítrio é o poder de escolha e decisão sobre os atos da vida. É o poder de autogoverno do indivíduo que age e toma decisões conscientes de acordo com suas próprias concepções, conduzindo sua vida da maneira que lhe convém, e assumindo a responsabilidade por seus atos. Essa esfera do direito à liberdade é inviolável. Retirar a autonomia da vontade do cidadão é o mesmo que lhe podar sua dignidade. O respeito ao livre arbítrio humano é condição sine qua non para que se observe a dignidade da pessoa humana. Autonomia e dignidade são valores indissociáveis. Vale conferir o que Daniel Sarmento e Emerson Garcia dissertam sobre o tema: “Mas o valor da autonomia privada não é apenas instrumental para a Democracia, pois ela está indissociavelmente relacionada à dignidade da pessoa humana. Na verdade, negar ao homem o poder de decidir de que modo vai conduzir sua vida privada é frustrar sua possibilidade de realização existencial.”18¬ “O reconhecimento da dignidade da pessoa humana pressupõe que se respeite a esfera de autodeterminação de cada mulher ou homem, que devem ter o poder de tomar decisões fundamentais sobre suas próprias vidas e de se comportarem de acordo com elas, sem interferências do Estado ou de terceiros. A matriz desta ideia é a concepção de que cada pessoa humana é um agente moral dotado de razão, capaz de decidir o que é bom ou ruim para si, de traçar planos de vida e de fazer escolhas existenciais, e que deve ter, em princípio, liberdade para guiar-se de acordo com sua vontade.”19¬ “A dignidade da pessoa humana, no entanto, deve ser concebida como um instrumento de proteção e aperfeiçoamento do indivíduo e da coletividade, não devendo legitimar a imposição de restrições dos aspectos mais basilares de sua liberdade. Sua larga indeterminação semântica exige prudência e responsabilidade argumentativa por parte dos poderes constituídos, evitando posturas absolutistas que, ao fim, terminarão por rechaçar outros vetores axiológicos igualmente relevantes à dignidade, como é o caso da liberdade.”20¬ Conclui-se, portanto, que o princípio da dignidade humana jamais pode ser licitamente sacrificado, e, para que se respeite esse mandamento constitucional, é imprescindível que se preserve o livre arbítrio humano e se observe plenamente o direito à liberdade. 5. ¬O RESPEITO AO LIVRE ARBÍTRIO HUMANO E A VEDAÇÃO DA INGERÊNCIA INJUSTIFICADA DO ESTADO SOBRE A VIDA PRIVADA DO CIDADÃO A observância da autonomia da vontade não significa dizer que o cidadão é irrestritamente livre para agir conforme desejar. O brocardo “a liberdade de um termina onde começa a liberdade do outro” é válido nesse caso. O livre arbítrio dos cidadãos, encampado no direito fundamental à liberdade individual, não é absoluto. Esse direito encontra dois - e apenas dois - óbices ao seu exercício pleno. Há limitação a esse direito quando a lei assim prevê, ou em situações que atinjam a esfera de direito alheio. Confira-se a lição de Daniel Sarmento sobre a questão: “Esta autonomia significa o poder do sujeito de 'autogoverno de sua esfera jurídica', tendo como matriz a concepção de ser humano como agente moral, dotado de razão, capaz http://www.revistasrtonline.com.br/portalrt/DocView/Doutrina/Revista%20dos%20Tr... 19/07/2010 \tmpyw6tev.in Page 7 of 14 de decidir o que é bom ou ruim para si, e que deve ter liberdade para guiar-se de acordo com estas escolhas, desde que elas não perturbem o direito de terceiros nem violem outros valores relevantes da comunidade.”21¬ O cerne desta ideia é previsto expressamente em Constituições de outros países22¬ democráticos, e já havia sido previsto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que em seu art. 4.º assim disciplina: “Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.” No Brasil também vige essa teoria, e a prática de ato que não interfira na esfera de direito de terceiros, tampouco encontre vedação prevista em lei, é permitida ao cidadão, sendo vedada qualquer ingerência do Estado nesse ponto. Assim, tem-se que o direito à liberdade confere ao cidadão o direito de praticar quaisquer atos não vedados por lei, bem como o direito de exigir a abstenção do Estado de intervir em situações que não interfiram sobre direito de terceiros. Confira-se a sábia lição de Canotilho acerca do assunto: “Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).”23¬ Fica claro, portanto, que não é lícito ao Estado intervir na prática de atos do cidadão que digam respeito apenas a seus próprios direitos. O cidadão pode praticar atos que atentem contra a sua própria saúde, vida, ou outro direito fundamental, não cabendo ao Estado impedir ou julgá-lo por isso. É insustentável ao Estado Democrático de Direito supor-se o contrário, concedendo a chancela ao Estado para intervir na vida privada do cidadão, contra a sua vontade, mesmo que os atos por ele praticados sejam lícitos e não digam respeito a mais ninguém. Ao cidadão não pode ser imposta a total observância dos seus próprios direitos fundamentais sob pena de se criar o que Paulo Bonavides24¬ intitula de “deverização” desses direitos. Quando inexistentes os dois mencionados óbices ao pleno exercício da autonomia da vontade, o Estado não pode intervir para garantir a obediência a um direito fundamental contra a vontade de seu titular. Não pode haver tutela absoluta do Estado sobre os direitos fundamentais do cidadão sob pena de se violarem esses mesmos direitos, e também contrariar os princípios constitucionais mais basilares. Nas sábias palavras do constitucionalista alemão Reinhold Zippelius,25¬ “contraria a natureza humana tanto ser totalmente assistido como ser universalmente tutelado”. A ilustrar o assunto, tem-se uma decisão proferida pelo TJRS que, em ação indenizatória proposta por fumante contra fabricante de cigarro, asseverou que o “homem precisa ser protegido de si mesmo”.26¬ Tal assertiva é incompatível com a dignidade da pessoa humana, e retoma ideais http://www.revistasrtonline.com.br/portalrt/DocView/Doutrina/Revista%20dos%20Tr... 19/07/2010 \tmpyw6tev.in Page 8 of 14 paternalistas de um Estado totalitário já derrocado,27¬ que tratava as pessoas como um instrumento da vontade estatal, em detrimento dos direitos e garantias individuais. Os regimes nazista e fascista, por exemplo, tiveram como característica mais marcante exatamente a anulação da liberdade individual em prol de um ideal coletivo de “pureza”, “grandiosidade”, e o “dever de ser saudável”.28¬ Por esse motivo é que na Alemanha era intensa a campanha do governo contra as bebidas e o tabaco,29¬ e a propaganda nazista associava diretamente o álcool e o cigarro aos inimigos do regime. O totalitarismo alemão encarava a liberdade individual, e tudo que a expressasse, como uma afronta ao Estado. O regime totalitário da Itália fascista não foi diferente, e os homens não tinham mais direito do que o Estado lhes concedia.30¬ O lema era: tudo no Estado, nada para além do Estado, nada contra o Estado.31¬ O tempo e os acontecimentos, felizmente, encarregaram-se de dissolver esses regimes políticos marcados pela intolerância à liberdade individual e pelo intento estatal de dirigir a vida privada dos cidadãos. Se é sabido que o Estado puramente liberal foi superado por um Estado que se ocupa de garantir certos direitos sociais, também é notório que algumas importantes conquistas do liberalismo, notadamente o repúdio ao paternalismo/dirigismo estatal, tornaram-se um dos pilares da democracia e não podem ser sacrificadas. Precisa, nesse ponto, a advertência de Luís Roberto Barroso. Confira-se: “O sacrifício de determinadas liberdades públicas, em nome de outros valores - ainda que socialmente relevantes - constitui precedente e revive o trauma do abuso estatal e do autoritarismo, desvios recorrentes na trajetória institucional brasileira.”32¬ Emmanuel Kant já identificava que o paternalismo estatal era incompatível com o regime democrático. Em obra dedicada à visão do pensador alemão sobre o Direito e o Estado, Norberto Bobbio observa que o estado paternalista é aquele no qual “os súditos são considerados como eternos menores, ou seja, não como cidadãos ativos, mas como súditos passivos”. Pior do que isso, Kant afirmava que o Estado paternalista é um Estado que só pode desembocar no despotismo.33¬ Isso porque no cerne do paternalismo reside a ideia de que o Estado é o responsável pela felicidade das pessoas, e, portanto, cabe somente a ele eleger qual o critério a ser adotado para alcançar esse objetivo. Daí a precisa advertência de Norberto Bobbio: “A pretensão de que o Estado possa deixar felizes os próprios súditos está fundamentada no erro de que possa existir um critério geral para definir a felicidade do gênero humano. Mas uma vez que esse critério único não existe, a pretensão do Estado segundo o eudemonismo é absurda.”34¬ Não se pode admitir sejam reavivadas ideias que retomem teorias do Estado tutor, incumbido de decidir o que é bom ou ruim para os cidadãos. Em sociedades livres, as decisões íntimas dos indivíduos, que não impliquem prejuízo a terceiros, são - e devem permanecer sendo - imunes ao controle estatal. Não se pode aceitar que o Estado se coloque no lugar do cidadão, guiando sua vida e suprimindo seu direito de fazer escolhas sob a pretensa escusa de assim agir para protegê-lo. Cabe somente ao próprio indivíduo decidir que estilo de vida levar e decidir o que é ou não bom para si. Ele é o responsável pelas próprias escolhas, e não o Estado. Ao Estado deve ficar reservado o papel de impedir que o exercício da liberdade individual http://www.revistasrtonline.com.br/portalrt/DocView/Doutrina/Revista%20dos%20Tr... 19/07/2010 \tmpyw6tev.in Page 9 of 14 prejudique terceiros. Nas situações que envolvam apenas o direito de um único indivíduo, o Estado deve abster-se de qualquer ingerência, respeitando-se o livre arbítrio. Nesse sentido, são válidas as lições de Daniel Sarmento: “Significa, sim, que não cabe ao Estado avaliar se as liberdades existenciais estão ou não sendo exercidas no sentido que ele considerar mais apropriado, já que tal concepção esvaziaria o poder da pessoa humana de se autogovernar; de fazer escolhas existenciais e de viver de acordo com elas, desde que não lese direitos de terceiros.”35¬ “Deve caber sempre às pessoas a eleição dos seus objetivos e planos de vida, que têm de ser respeitados, desde que não violem direitos de terceiros. O papel do Estado é o de auxiliar na criação das condições necessárias para que cada um realize livremente as suas escolhas e possa agir de acordo com elas, e não o de orientar as vidas individuais para alguma direção que se repute mais adequada aos 'valores sociais', ou mais conforme aos interesses gerais da coletividade.”36¬ “Livres devem ser os homens e as mulheres, para realizarem seus projetos de vida; e não o Estado ou a coletividade política, que não podem impor paternalisticamente aos não conformistas a adesão a um ideal, por mais nobres que sejam as razões invocadas.”37¬ 6. ¬OS ATOS DOS CIDADÃOS PREJUDICIAIS À PRÓPRIA SAÚDE A autonomia da vontade do indivíduo deve ser respeitada mesmo quando possa atentar contra outro direito fundamental seu, como, por exemplo, o direito à saúde ou à vida. O cotidiano da sociedade é farto em exemplos desse tipo. A prática de artes marciais, desde que realizada em eventos autorizados, é lícita no Brasil. Em uma luta de boxe, por exemplo, invariavelmente, ao menos um dos pugilistas terá sua integridade física prejudicada, e até a própria vida é exposta a risco. Contudo, mesmo diante do iminente perigo, não cabe ao Estado impedir ou sancionar o indivíduo por essa assunção voluntária de risco. Impedir um pugilista de praticar o esporte a que se dedica sob o pretexto de lhe proteger a integridade física configuraria uma afronta à sua integridade moral,38¬ na medida em que lhe restringiria a autonomia da vontade. Outro exemplo é dos cidadãos que consomem produtos lícitos, porém prejudiciais à saúde, tais como cigarros, bebidas alcoólicas e alimentos gordurosos. Os consumidores desses produtos lícitos, de risco inerente, assumem a responsabilidade pelas consequências do consumo, não cabendo ao Estado qualquer ingerência a respeito. Acerca especificamente dos cigarros, Ronald Dworkin opinou expressamente pelo respeito à autonomia da vontade dos que optam por consumir esse produto de notória nocividade. Confira-se: “Há um consenso geral de que os cidadãos adultos dotados de competência normal têm direito à autonomia, isto é, direito a tomar, por si próprios, decisões importantes para a definição de suas vidas. Os adultos competentes são livre para fazer maus investimentos, desde que os outros não os enganem nem lhes soneguem informações, e os fumantes podem fumar em recintos privados, ainda que a propaganda de cigarros deva adverti-los sobre os riscos de seu hábito.”39¬ Em obra dedicada às consequências jurídicas da comercialização e consumo de cigarros, Teresa Ancona Lopez defende o pleno exercício do livre arbítrio, mesmo considerando http://www.revistasrtonline.com.br/portalrt/DocView/Doutrina/Revista%20dos%20Tr... 19/07/2010 \tmpyw6tev.in Page 10 of 14 atitudes que coloquem em risco a saúde do indivíduo. Confira-se: “Em suma, não podemos nos ajoelhar diante do 'Grande Irmão' e fazer desaparecer o poder de escolher conscientemente o que nos dá prazer na vida, mesmo que esse prazer possa pôr em risco nossa saúde. É no uso de nosso livre-arbítrio que nos afirmamos como cidadãos. Aqui cabe a sempre lúcida lição de Hannah Arendt: 'quem quer que queira educar adultos na realidade pretende agir como guardião e impedi-los de atividade política'.”40¬ Outro exemplo que ilustra o tema consiste na recusa de pacientes em receberem determinados tipos de tratamento médico por motivos religiosos. Desde que o paciente esteja advertido sobre os riscos de sua recusa, e assuma a responsabilidade pela conduta, ele não pode ser constrangido a se submeter a um tratamento médico contra a sua vontade, mesmo nas situações que impliquem iminente risco de vida. Em parecer proferido sobre o assunto, Celso Ribeiro Bastos concluiu pela ilegalidade de se obrigar um paciente seguidor da religião Testemunhas de Jeová a ser submetido à transfusão de sangue contra a sua vontade. Confira-se: “Ninguém pode ser constrangido a consultar um médico ou a submeter-se a um tratamento terapêutico específico contra sua vontade livre e conscientemente manifestada. Fazendo uma certa analogia, equivaleria a estabelecer a exigência de que o cidadão com problemas visuais mínimos fosse obrigado a procurar o oftalmologista, ou obrigado a adquirir as lentes indicadas pelo médico, sem opção pela recusa em usá-las, ou, ainda, que todos os envolvidos em problemas econômicos, por mínimos que fossem, estivessem constrangidos a procurar um economista e a seguir suas orientações.”41¬ Da mesma maneira, deve ser respeitado o direito dos cidadãos acometidos por doença incurável de não buscar por auxílio médico e viverem seus últimos dias no conforto do lar. Ninguém pode obrigá-los a receber tratamento caso eles não queiram assim proceder.42¬ Nesse sentido, irretocável um recente acórdão do TJRS, que garantiu a uma paciente o direito de se recusar a receber transfusão de sangue por motivos religiosos. O acórdão rejeitou a ideia paternalista e totalitária de o Estado, através do Poder Judiciário, poder intervir nas escolhas da vida privada do cidadão visando a lhe proteger de si mesmo. Confirase: “(...) as piores experiências totalitárias foram justificadas por 'valores' de Estado que arrombaram a tranca das liberdades de consciência, de crença, de pensamento, de escolha do cidadão a respeito do seu próprio destino, da eleição do significado de sua vida, sempre sob alguma justificativa para 'salvá-los de si mesmos', ante um valor maior que os seus. (...) Não pode o Estado intervir nessa relação íntima da pessoa consigo mesma, nas suas opções filosóficas, especialmente na crença religiosa, constitucionalmente protegida como direito fundamental do cidadão, mesmo que importe risco para a própria pessoa que a professa (e para ninguém mais), sob pena de apresentar, o Estado, sua face totalitária ao ingressar cogentemente no âmbito da essência da individualidade do ser humano, onde não deve estar.”43¬ Esses exemplos demonstram o dever de se respeitarem as decisões de foro íntimo dos cidadãos. Havendo um inevitável conflito entre direitos fundamentais do próprio indivíduo (liberdade vs. saúde), cabe somente a ele escolher qual direito deve prevalecer. Ao Estado cabe apenas informar ou ordenar que o cidadão seja informado sobre os riscos de sua conduta, não lhe sendo permitido julgar o acerto da escolha, tampouco determinar a conduta a ser realizada. Nesse diapasão, perfeito o ensinamento do pensador britânico John http://www.revistasrtonline.com.br/portalrt/DocView/Doutrina/Revista%20dos%20Tr... 19/07/2010 \tmpyw6tev.in Page 11 of 14 Stuart Mill: “O único propósito para que o poder possa legitimamente exercer-se em uma comunidade civilizada, sobre um indivíduo e contra a sua vontade, é o de prevenir danos a outros. Seu próprio bem, seja físico ou moral, não constitui suficiente justificação. Não se pode obrigar alguém a suportar algo em virtude de que seria melhor para si, porque ele seria mais feliz ou porque, pela opinião dos outros, o atuar desta maneira seria mais inteligente e mais justo.”44¬ Aos cidadãos cabe escolher livremente que estilo de vida levar e assumir os riscos de suas opções. Da mesma maneira que não é lícito ao Estado exercer o direito de escolha em nome do cidadão, não é lícito a este transferir ao Estado ou a terceiros a responsabilidade pelos próprios atos, pois, como bem ressalta Calmon de Passos, “ou respondemos por nossos atos ou a convivência social se inviabilizará radicalmente”.45¬ 7. ¬CONCLUSÃO Partindo das premissas de que a dignidade da pessoa humana é o princípio que norteia o exercício de todos os direitos fundamentais, constituindo um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, e que o livre arbítrio humano é indissociável desse princípio, a conclusão a que se chega é que é preciso respeitar a liberdade individual do ser humano decidir sobre o que quer para si. Situações que suscitem conflito de direitos fundamentais de um mesmo cidadão resolvem-se no plano da autonomia da vontade. O respeito ao livre arbítrio humano deve imperar mesmo quando o cidadão o exerça em prejuízo da própria saúde, optando por praticar atos perigosos ou por consumir produtos nocivos. Ressalte-se, por oportuno, que o intuito do presente artigo não é o de incentivar as pessoas a se comportarem de maneira lesiva à própria saúde, tampouco o de fazer apologia aos que já assim se comportam. O objetivo é o de despertar o pensamento crítico de que todos são, sim, livres para agir de acordo com suas vontades, independentemente do fato de certas atitudes serem prejudiciais à própria saúde. Os limites ao exercício dessa liberdade encontram-se apenas nas vedações prescritas em lei, ou nos atos que interfiram na esfera de direito alheio. Nas demais situações, a plena liberdade de escolha deve ser respeitada. A exposição a risco à saúde e à vida não autoriza o Estado a intervir na vida íntima do cidadão, e escolher em seu lugar quais produtos consumir ou quais atividades praticar. Se lícita a conduta, deve prevalecer o binômio liberdade-responsabilidade do cidadão, em detrimento da imposição estatal de um padrão geral de bem-estar individual. Ao Estado não cabe “proteger o indivíduo de si próprio”, julgando-o pela assunção voluntária de riscos lícitos, como no caso do consumo de cigarros e/ou ¬ de alimentos gordurosos, da ingestão de bebidas alcoólicas, da prática de esportes de combate etc. Privar o cidadão do seu direito de escolha, se essa for prejudicial à saúde, retoma ideias de um Estado autoritário e paternalista, que “toma conta dos súditos como se fossem eternos menores de idade e cuida da sua felicidade”.46¬ Aceitar essa pretensão equivale a dar guarida a ideias totalitárias já severamente rechaçadas pela Constituição Federal de 1988, justamente por serem incompatíveis com o regime democrático. http://www.revistasrtonline.com.br/portalrt/DocView/Doutrina/Revista%20dos%20Tr... 19/07/2010 \tmpyw6tev.in Page 12 of 14 Não se pode admitir que, sob o pretexto de se conferir uma proteção mais ampla ao direito à saúde dos cidadãos, transforme-se esse direito fundamental em um dever inescusável, que limite o direito à liberdade individual. Também não se pode aceitar que pessoas que se supõem mais esclarecidas, a pretexto de proteger a população, passem a tomar decisões no lugar dela. O cidadão pode escolher o que quer para si, e assume a responsabilidade por suas escolhas. Qualquer tentativa de se negar essa afirmação constitui flagrante afronta às garantias fundamentais e uma grave ameaça ao Estado Democrático de Direito. A restrição ao livre arbítrio ainda estimula a deseducação e a irresponsabilidade. Deseducação porque, ao se subtrair do cidadão a possibilidade de decidir sobre os seus atos, retira-se dele, de maneira gradativa, o discernimento necessário para saber o que é certo e o que não é.47¬ Esse cidadão tornar-se-á dependente de alguém que o guie, que lhe diga o que pode e o que não pode ser feito. Com o tempo, tornar-se-á o que Aristóteles define como “cidadão com alma de escravo”: “Ele simplesmente vive e não organiza seus passos para estar de acordo com este objetivo. Não calcula os efeitos de seus atos, toma decisões sem se preocupar intimamente se a decisão foi certa ou errada, isto é, se a decisão o aproxima de sua razão vital ou a afasta, ignorando a própria consciência. Quando a consciência individual se encontra enferma, o indivíduo passa a não se sentir responsável por si mesmo, pois entende que não foi ele quem tomou a decisão. Sentindo-se incapaz de responsabilizar-se implora ao Estado que o mantenha seguro, que cuide dele, que o guie, que lhe diga o que pode e o que não pode fazer, que regule sua vida, que puna o culpado. (...) Uma consciência individual que não apreende o que é essencial a sua própria saúde e a sua existência, não pode invocar ou pretender responsabilizar outrem pelas consequências de fatos cuja causa lhe cabia evitar.”48¬ Confira-se, a respeito, a lição de Tercio Sampaio Ferraz Junior: “Liberdade, nesses termos, opõe-se à tutela estatal. Ninguém, a não ser o próprio homem, é senhor de sua consciência, do seu pensar, do seu agir, estando aí o cerne da responsabilidade. Cabe ao Estado propiciar as condições desse exercício, mas jamais substituir o ser humano na definição das escolhas e da correspondente ação. Também não pode o Estado, nesse sentido, degradar o ser humano à condição de incapaz de discernir, por si só, entre o bem e o mal. Cabe ao Estado dar-lhes os meios legais para exercer o juízo sobre as coisas, mas não pôr-se em seu lugar, para dizer o que a sua consciência distingue e aprova ou desaprova. (...) Se o Estado tutela a consciência e a deliberação individuais, a condição humana é degradada pelo dirigismo próprio dos regimes totalitários. O Estado que exerce tal forma de tutela destitui o cidadão da possibilidade de responsabilizar-se pelos seus atos, destitui-o da capacidade de julgar quando supostamente o protege. O Estado tutor reduz o cidadão à condição dos que 'não sabem o que fazem', adultos infantilizados, sujeitos às imposições e às manobras do poder.”49¬ O estímulo à irresponsabilidade se dará porque, ao se admitir que os cidadãos precisam ser tutelados sobre decisões de sua vida privada, a consequência será a transferência da responsabilidade dessa decisão a quem os tutelou. http://www.revistasrtonline.com.br/portalrt/DocView/Doutrina/Revista%20dos%20Tr... 19/07/2010 \tmpyw6tev.in Page 13 of 14 Enfim, sob qualquer prisma que se analise a questão, ficam evidentes os prejuízos de se admitir a possibilidade de ingerência indevida do Estado na vida íntima do cidadão. Válidas, nesse contexto, as sábias palavras do ex-presidente norte americano Abraham Lincoln, de que “não se ajudarão as pessoas a longo prazo, fazendo por elas o que elas deveriam e poderiam fazer por elas próprias”.50¬ 8. ¬BIBLIOGRAFIA ANDRADE, José Carlos Vieira. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 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