INTRODUÇÃO
Nesta dissertação o referencial teórico de sustentação são obras de Bobbio
sobre o problema em questão. Os argumentos centrais de que lanço mão encontramse imbricados em um contexto histórico cujo olvido tornaria improvável uma
correta abordagem das categorias essenciais que aqui delimito.
Identificado o processo de crise no qual estão inseridas as sociedades
democráticas, isto me leva a adotar pressuposto teórico que indica uma demanda
por reformulação da conexão entre algumas categorias fundamentais que atuam na
esfera da democracia. Isto posto, o problema ao qual me dedico nesta pesquisa
centra-se no processo de descoberta do mais preciso conteúdo das categorias
analíticas aqui oferecidas. Trata-se, portanto, de buscar uma melhor aproximação à
base de formação da sociedade aberta.
A abordagem do trabalho desta pesquisa parte da consideração de que
apenas uma perspectiva liberal pode oferecer elementos para a resolução dos
problemas que ferem os valores da democracia em nossos dias. Com o intuito de
checar a hipótese desta pesquisa valho-me de algumas categorias de análise da
filosofia bobbiana. Não as uso de forma isolada, mas secundada por ponderações,
comparando-as à outras fontes.
A solvência de algumas dessas questões fará com que conceda importante
espaço ao conteúdo da sociedade aberta. As principais categorias de análise usadas
são a tríade citada no título da dissertação, liberdade, desigualdade e democracia.
Através do aprofundamento da análise de cada uma delas e da relação que se
estabeleça entre elas, pretendo extrair de forma aproximada a forma e o conteúdo
essenciais de uma sociedade aberta segundo as referências teóricas mencionadas.
Muito embora Bobbio não faça referência expressa ao termo sociedade
12
aberta, minha leitura é de que sua obra tem potencial para emprestar substancial
conteúdo à concepção de sociedade aberta aqui desenhada. Meu principal
argumento para isto encontra-se em uma interpretação holística de sua obra. Este
motivo somado ao fato de subsistirem reiteradas referências suas aos valores aqui
debatidos permite-me razoavelmente concluir que as informações aportadas por
Bobbio constituem um precioso material analítico para quem, como eu neste
momento, queira debruçar-se sobre os valores que devam permear uma sociedade
aberta e democrática.
Para cumprir esta finalidade é apresentada no primeiro capítulo a correlação
entre política e democracia, começando a delinear as perspectivas estruturais de
uma sociedade aberta. Para analisar estas questões serão trazidos à tona categorias
analíticas auxiliares no contexto desta pesquisa tais como direito e poder, que se
apresentam como instrumento e objeto para o desenvolvimento do trabalho.
Em momento algum aceita-se como objetivo proceder a uma exaustiva
análise da historiografia bobbiana. Neste capítulo inicial retomam-se os pontos
fulcrais de algumas categorias analíticas fundamentais com que trabalhou o nosso
autor e dos quais este trabalho se socorre. Através disto estas linhas procuram
oferecer elementos para proceder à releitura apropriada e atualizada, no que couber,
das categorias bobbianas de que me possa valer para cumprir os desígnios que esta
dissertação se propõe.
No segundo capítulo procura-se desenvolver o diálogo entre duas categorias
analíticas fundamentais da teoria político-jurídica de Bobbio, vale dizer, liberdade e
igualdade. Aqui abordo um dos problemas deste trabalho, qual seja, o de que o
contexto democrático da sociedade livre proposta por Bobbio pressupõe um diálogo
franco entre liberdade e igualdade. Esta posição encontra sustentação em que o
13
turinês mesmo privilegiando a liberdade, considera o valor igualdade como de
importância para a constituição de uma sociedade livre e democrática. O
liberalismo em Bobbio, portanto, não se apresenta como um antípoda da igualdade
mas, tão somente, como será sustentado no decorrer dessas linhas, quando
entendido o igualitarismo em sua versão absoluta.
A sociedade aberta e democrática anunciada que se assenta ferreamente nas
categorias liberdade, igualdade e desigualdade remete também a uma análise do
republicanismo e dos valores iluministas nele presentes. Daí, então, parta-se para
uma breve visita ao pensamento de Rousseau, de liberais e reacionários, para a
obtenção de um melhor e diferenciado ângulo para entender a colaboração de
Bobbio quanto ao tema e em que termos a propôs. Ao adotar o método de antepor
estas díspares linhas reflexivas ao pensamento deste autor parece resultar mais claro
quais são efetivamente suas respectivas argumentações e, por conseguinte, os
argumentos mais sólidos que se prestam à formação de uma sociedade aberta.
No terceiro capítulo sublinha-se a necessidade detectada por Bobbio de que
seja realizado o que denomina de alargamento das instituições democráticas. Esta
tarefa contribui para a abordagem da sociedade aberta porque fortalece suas
instituições tendo em perspectiva seu futuro. Uma vez mais tomando a Bobbio, ele
aconselha que este alargamento deve vir acompanhado da exploração do sentido
dos limites do bom governo e, por conseguinte, de como interage na vida de uma
sociedade livre.Ao lado disto, um dos temas centrais deste capítulo é precisamente a
consideração da democracia como categoria analítica que transcende a mera
instrumentalidade ou, no sentido em que é utilizada, o da mera formalidade.
Por outro lado, ao debater o problema da legitimação política parece
indispensável contrapor uma das mais poderosas filosofias jurídico-políticas do
14
século passado com a qual Bobbio manteve contato, a de Schmitt. Mesmo que não
tenha por escopo adentrar nos meandros de suas convergências temáticas, aqui
focarei as áreas divergências teóricas de Bobbio (manifestamente mais ampla)
relativamente a Schmitt, que foi um dos capitães do conservadorismo totalitário do
século passado. Desta sobreposição espero poder obter uma melhor leitura do
pensamento democrático que permeia a sociedade aberta.
Esta estrutura serve de pano de fundo para articular a aproximação de
diversos aspectos do pensamento de Bobbio com a contribuição teórica de Dahl,
MacPherson e Popper. Através do diálogo entre eles pretendo tornar menos obscuro
o conteúdo do que intitulo por sociedade aberta e democrática. A perspectiva
metodológica em comum de todos é seu verniz liberal, o que, creio, permite com
que a interação dialógica entre eles que proponho seja amplamente facilitada.
As
reflexões
resultantes
desta
aproximação
encontrarão
seu
desenvolvimento quando do estabelecimento de sua conexão interna com a tríade de
categorias analíticas que lhes permeia em uma sociedade livre, a saber, liberdade,
desigualdade e democracia. Em qualquer caso, a segunda delas deverá apresentar-se
de forma limitada, quer quando se trate de desigualitarismo ou igualitarismo.
Esclarecer o equilíbrio desses valores é um dos muitos desafios que serão
enfrentados no decorrer deste trabalho. É possível adiantar que daqui brota idéia
algo nebulosa de “social-igualitarismo”.
No quarto capítulo reserva-se espaço para a análise do liberalismo e do
pluralismo como fontes reais para um processo de construção dos pilares da
sociedade livre. Durante tal processo propõe-se uma retomada de versões radicais
da democracia e, em certo sentido, até mesmo duvidosas, quanto aos seus reais
propósitos. Elas dizem respeito às duas leituras possíveis, e conservadoras, de
15
Rousseau e Schmitt. Articulando o conteúdo com o já desenvolvido no capítulo
anterior, aqui a intenção é de enfrentá-los aos argumentos do pensamento filosófico
político-jurídico de Bobbio e com isto trazer à tona alguns aspectos. O primeiro
deles é de que da filosofia do turinês não se depreendem considerações que lhe
aproximem de campeões do igualitarismo nem ainda menos de versões requintadas
do reacionarismo. Isto, por sua vez, traz conseqüências bastante importantes para a
leitura e compreensão da articulação da tríade de categorias analíticas trabalhadas
centralmente aqui com o escopo de mensurar as possibilidades e limites de uma
sociedade aberta.
A partir dessas exposições a pesquisa procura esclarecer o quanto foram
importantes para os seus propósitos categorias como liberalismo, pluralismo e
democracia (que aparecem em Bobbio), em detrimento de valores como tradição,
igualdade (entendida esta em sua leitura absoluta), privilégios e iniqüidades de todo
tipo e gênero. Neste instante procura-se argüir da importância do papel do
relativismo para a formação de uma sociedade aberta.
Ao fim e ao cabo, cumpre referir que a metodologia utilizada nesta
dissertação foi a da revisão bibliográfica de cunho analítico, conforme aparecerá nas
linhas subseqüentes. Os materiais consultados consistiram fundamentalmente em
livros, artigos, revistas e, em casos pontuais, jornais, sendo que em todos eles foram
usadas fontes diretas e indiretas referentes aos temas propostos como objeto desta
dissertação e ao autor que predominantemente lhe inspira.
16
CAPÍTULO I – SOCIEDADE ABERTA: A DEMANDA POR
LEGITIMIDADE POLÍTICA NA VIDA DEMOCRÁTICA
1.1 – Poder e direito segundo o marco analítico da liberdade: suas estruturas e
engrenagens na sociedade livre
A relação entre poder e direito reveste-se de notável importância para a vida
prática embora não se possa dizer que seja inferior para a teoria política e jurídica.
Esta última, por sua vez, não releva o tema a segundo plano. A análise desta relação
possibilitará observar, talvez como em nenhum outro caso, uma íntima conexão
assim como o fundamento fático do direito, o qual se encontra nas estruturas do
poder. Será a partir desta abordagem que se tornam perceptíveis as perspectivas
fundacionais de uma sociedade livre que é o que primordialmente pretendo discutir
neste primeiro item deste capítulo.
Para Bobbio a relação entre poder e direito busca estabelecer um limite tão
preciso quanto possível acerca da origem e do fundamento de validade da ordem
jurídica. Discutir e esclarecer os pressupostos desta última é um dos temas
recorrentes e importantes em sua obra. É possível dizer que, em certa medida, este
tema da Filosofia Política é pensado e desenvolvido em consonância com os liames
da Filosofia do Direito. Por isto creio que andava bem Reale quando sustentava que
“[...] no fundo, filosofia, política e direito são elementos complementares em seu
pensamento [...]” (2001, p.23). Isto, dentre outros argumentos, levaria o insigne
jusfilósofo brasileiro a sustentar que a filosofia bobbiana alinhava-se de certa forma
a sua teoria tridimensional do direito.
Não é este o momento nem mesmo é o objeto desta dissertação o
cotejamento minucioso do pensamento de ambos descendo à análise de “[...] um
tridimensionalismo implícito na obra de Bobbio [...]”, como afirmou Reale (2001,
17
p.23). Contudo, rapidamente pode ser dito, em primeiro lugar, que Bobbio admitiu
quando de sua presença no Brasil, em seminário organizado em Brasília, que em que
pese não houvesse teorizado sobre o assunto, esta abordagem encontrava-se presente
em sua obra. Em suas palavras, admitia que:
“[...] o mundo do direito tem de ser visto sob três pontos de vista
inseparáveis: [...] valores, [...] normas, [...] fato [...] a diferença está
em que jamais teorizei sobre essas três dimensões do direito,
embora as tenha aplicado, sem nunca ter elaborado uma teoria a
respeito delas” (In: CARDIM, 2001, p.30).
De fato, a filosofia do turinês não parece ter caminhado distante da análise
destes três campos do saber, até mesmo quando se busca entender em qual dos
tradicionais enquadramentos filosóficos sua obra se sentiria mais à vontade. Isto,
contudo, é algo que será visto mais adiante quando abordada relação de Bobbio com
os “ismos”. Esta sua relação com a teoria tridimensional também permite reforçar a
idéia de que para Bobbio é fundamental o liame entre política para a edificação do
mundo jurídico.
Bobbio dedicar especial atenção a dois dentre os elementos elencados na
teoria tridimensional realiana, precisamente poder e direito, onde o fato em Reale
ganha tradução por poder em Bobbio. Observa-se com clareza meridiana como o
turinês não deixa de fazer um claro enlace entre eles. A norma tem dupla
dependência relativamente ao poder. Em primeiro lugar, depende dele para nascer.
Em segundo, como salienta Bobbio, a norma necessita tanto do poder para tornar-se
efetiva como, por outro lado, o poder necessita de que a norma seja efetiva, vale
dizer, seja obedecida pela maioria dos indivíduos e, com isto, tornar legítimo o
exercício do poder (1997c, p.170).
Retomando o argumento inicial que inspira este capítulo, pode dizer-se que
um dos tópicos que permite compreender a relação entre poder e direito na
18
sociedade livre a partir dos elementos fornecidos pela filosofia de Bobbio é quanto à
finalidade com que deve ser estabelecida tal ligação. Ela deve dar-se seguindo a
máxima geral de sua filosofia político-jurídica segundo a qual “[...] os homens vêm
antes das leis [...]” (2000a, p.178), fato que tem conseqüências marcantes para o
bojo não só de sua filosofia jurídica como também política e moral. Neste aspecto
encontra-se, por exemplo, certa convergência do pensamento de Vieira com o de
Bobbio, embora não o faça de modo declarado. Segundo Vieira, um dos valores do
Estado de Direito é precisamente o fato de seu uso basear-se “[...] no ideal de que o
governo das leis, fundado na razão e liberdade, é superior ao governo dos ditadores
[...] (1999b, p.01). Este é um dos pontos centrais para proceder a uma boa leitura e
entendimento de sua obra filosófica, em seu aspecto político tanto quanto em sua
dimensão jurídica.
No contexto da produção de Bobbio a afirmação transcrita no parágrafo
acima tem o significado de dizer que os homens vêm materialmente antes das leis?
Tem o significado de que os homens precedem às leis? Em que consiste este
fenômeno do poder bruto que é exercido pelos homens e que irá desembocar na
elaboração do direito? Primeiramente, soa óbvio que, como produto cultural, o
direito apenas pode ter lugar como derivação da intervenção criativa do ser humano
e, por conseguinte, que este último lhe precede logicamente. Em um segundo
sentido, a tese de que os homens precedem as leis ou ao direito têm o significado de
que ele é a finalidade para a qual as normas são erigidas.
Quanto ao poder, segundo Bobbio, conceitualmente ele é a capacidade que
um sujeito ou um grupo tem de “[...] influenciar, condicionar, determinar o
comportamento de um outro sujeito [...]” (2000b, p.216). Aqui não concedemos
irrestrito crédito ao argumento de Bobbio. Não parece que ande bem em seu
19
conceito de poder ao excluir do pólo passivo a figura dos grupos. Sobre o poder
ainda diria em outro artigo que ele é o “alfa e o ômega” da teoria política, e que um
de seus mais importantes aspectos é o tema de sua conquista, mas não só, até mesmo
a forma de seu exercício. Neste ponto a conexão maquiavélica é manifesta.
Ao considerar este último aspecto mencionado no parágrafo anterior é
também possível tomar Rousseau como um dos clássicos de referência. Em uma de
suas mais conhecidas obras afirma que “[...] es más fácil conquistar que gobernar.
Mediante una palanca suficiente se puede mover el mundo con un dedo; pero para
sostenerlo hacen falta los hombros de Hércules [...]” (1988, p.73). Seguindo a
mesma linha argumentativa, que para tudo o aproxima de Maquiavel (1469-1527),
Bobbio também se ocuparia do problema da conservação, do exercício, da defesa do
poder (e de como dele se defender), de como perdê-lo” (2000b, p.252).1 Em última
análise, ocupa-se da virtude de transmitir o poder em sociedades livres, isto é, sem
que tenham lugar nem as lutas nem o derramamento de sangue.
Neste último tema há uma conexão bastante clara entre os autores
mencionados e Bobbio. A abordagem dá-se em torno à pujança revelada pelas
virtudes da democracia relativamente aos demais sistemas políticos. Observa-se que
um de seus mais louváveis benefícios é de que é o único regime que nos reserva a
transição pacífica do poder. Sendo assim, ao analisar o poder, e o regime dentro do
qual ele é exercido, necessariamente percebe-se a conexão assinalada.
Com a finalidade de esclarecer o argumento até aqui desenvolvido parece
interessante considerar a seguinte premissa e a conclusão que se segue. Trata-se de
que devido ao fato de os homens virem antes das leis isto torna factível pensar que
por meio de uma interpretação dedutiva possa concluir-se que eles se encarregam de
1
Para verificar como Bobbio reitera a idéia expressa ver BOBBIO (1991c, p.187).
20
tornar válidas as leis através da consideração de sua eficácia. Nesse aspecto, o
jusfilósofo afirma que “[...] no fundo, a validade depende da eficácia [...]” (2000a,
p.193), aspecto no qual estabelece polêmica com o primeiro e jovem Kelsen da
Teoria Pura do Direito.2 Em acréscimo ao fato de que os homens precedem às leis
ainda deve ser dito que eles são os que podem e, sobretudo, tem o dever de pôr o
objeto, i.e., a norma, e não o contrário, a norma ao homem. Sendo assim, o homem é
quem irá determinar não apenas a forma como fazer-se responsável pelo conteúdo
da norma ao posicionar-se frente a este objeto cultural. Aqui surge uma questão
crucial para o objeto central de análise deste capítulo, qual seja, a relação entre
poder e a sociedade livre.
Neste momento propõe-se sua discussão para que possamos certificar-nos
posteriormente sobre quais são as condições em que a produção das normas será
compreendida na obra kelseniana, fonte esta cuja influência sobre a formação da
teoria de nosso autor é indiscutível. Diria ele que somente com a autorização das
normas se saberia qual o seu provável conteúdo. Em outras palavras, parece que
inverte a equação da relação entre o sujeito e o objeto que foi proposta logo ao final
do parágrafo anterior. Contudo, se é acertada a idéia de partir do pressuposto de que
o homem é sujeito do mundo da cultura, o indivíduo autorizado para a criação da
norma jurídica não pode permanecer um incógnito, nem seu modus operandi e nem
o produto de seu labor legislativo.
Na verdade, é a intervenção da vontade política da população que define
quem, de fato, está autorizado para criar a norma, tendo por suposto óbvio que o
2
Não é o momento apropriado para aprofundar o debate, mas convém ao menos sublinhar com
brevidade que em sua maturidade Kelsen criaria o conceito de desuetudo. Este tornaria a validade
dependente da existência de um suporte fático que lhe amparasse, vale dizer, da existência de uma
efetiva submissão social majoritária aos seus imperativos.
21
sistema político vigente seja o de uma democracia. Aqui está a grande questão tanto
atinente à filosofia política como jurídica de construir níveis de proteção para as
sociedades livres frente às ações invasoras do poder, traço este comum ao longo da
história e que inspirou o liberalismo, por fazer referência apenas a uma das mais
influentes teorias. Daqui nasce a historicamente não muito praticada virtude política
de proteger o cidadão contra o Estado. Exemplo disto são as categorias liberdade
negativa e positiva, que de certa forma dominaram o debate acadêmico em matéria
política e jurídica e que não escaparam a Bobbio.
A esta altura poderia estar sendo apresentada a primeira antinomia, qual seja,
a de que se um homem põe a norma, como pode ser ela ao mesmo tempo quem
colocará as condições para que o sujeito venha a criá-las. Segundo outra proposição,
poderia questionar se a norma seria entendida como condição de possibilidade,
como condicionante para a criação das normas ou como fator condicionado,
determinado pela ação do homem. Como enfrentar esta questão?
A ela Kelsen respondeu que não há antinomia mas, isto sim, uma cadeia de
validade que se resolve na grundnorm3 onde todas são condicionantes das que lhes
sucedem no tempo e no espaço. Neste ponto pode ser dito que Bobbio não duvida
em algum momento que o indivíduo preceda as normas e que, portanto, ele é quem
as estabelece. Aqui, então, o divórcio. Sendo conhecida a confessada influência
sobre Bobbio, Kelsen parte para uma fundamentação abstrata. Enquanto isto o
italiano resolve o assunto no plano fático, recorrendo ao conceito de poder soberano
dos cidadãos constituintes de uma sociedade livre.
Não obstante, procurando colocar maior sistematização no debate, parece
também bastante razoável ponderar que Bobbio aceitaria parcialmente a tese
3
O conceito é usualmente traduzido por “norma fundamental”.
22
kelseniana de que o ordenamento jurídico é um sistema dinâmico. Kelsen estabelece
uma distinção entre dois tipos de sistemas normativos. Um deles é o estático, e o
outro é o dinâmico. Mas como se articulam estes sistemas em Kelsen e Bobbio?
Segundo Kelsen entre os primeiros estariam, por exemplo, os sistemas morais, a
partir dos quais as normas são passíveis de serem elaboradas, muito embora não
necessariamente terão de possui um conteúdo deste gênero. Do ponto de vista da
articulação lógico-jurídica, elas são deduzidas umas das outras por meio dos
conteúdos que possuam. Conceitualmente, para Bobbio o sistema estático é
definível como “[...] aquele no qual as normas estão relacionadas umas às outras
como as proposições de um sistema dedutivo, ou seja, pelo fato de que derivam
umas das outras partindo de uma ou mais normas originárias de caráter geral [..]”
(1990a, p.72).
No sistema dinâmico, por outro lado, as normas se assemelham às dos
ordenamentos jurídicos e são criadas umas através das outras, como em uma cadeia.
Eis aqui o ponto central da Teoria Pura do Direito kelseniana no que tange à cadeia
de validade das normas jurídicas. Este sistema dinâmico concebe o direito como um
sistema que interage. Ao fazê-lo, emerge um conceito cujo conteúdo Bobbio o
enuncia afirmando nele o que ocorre é que “[...] as normas que o compõem derivam
umas das outras através de sucessivas delegações de poder, isto é, não através do seu
conteúdo, mas através da autoridade que as colocou [...]” (Ib.). Esta referência ao
poder que a institui é fundamental.
Ao buscar a fundamentação para todo o edifício normativo Kelsen, seguindo
uma fórmula distinta a de Bobbio, resolveu a mencionada antinomia recorrendo à
concepção de uma norma fundamental. Este é, em última análise, um conceito
estático e amorfo, do ponto de vista da experiência política, uma vez que
23
indeterminável sua essência última, a experiência primeira ou razão nuclear de
qualquer ente, inclusive do direito e da política. Daí que tomar este conceito
kelseniano por metafísico parece que permite, ao menos, uma abordagem crítica e
promissora da questão.
A abordagem do poder e da sociedade livre no bojo da filosofia política e
jurídica de Bobbio remete necessariamente a tentativa de uma melhor compreensão
de como o poder interage com o direito mas, valendo-nos da categoria tratada nos
parágrafos anteriores, desde uma ótica dinâmica. Dessa forma a caracterização do
suposto positivismo bobbiano passa a carecer de sérias matizações, posto que de
entendê-lo por firme positivista do direito não seria possível, como se faz com
Kelsen, afastá-lo em qualquer momento de suas claras e distintas fases da tradição
de pensamento inaugurada por este último, situação na qual a norma jurídica apenas
pode ser afirmada como tal ao passo que assentada em uma outra norma jurídica até
a fundamentação última do sistema sobre a norma hipotética fundamental. Mas a
opção teórica de Bobbio é outra.
Há não somente boas como também lógicas indicações de que Bobbio
sustenta não ser possível admitir a existência de qualquer poder sem que lhe
precedam a existência de indivíduos ou entes coletivos que possuam e efetivamente
exerçam o poder (1983b, p.71). Isto é o que, de fato, se encontra em Bobbio, vale
dizer, uma demarcação do elo entre o Estado e a política (1987b, p. 76). Aqui está
uma das raízes da teoria individualista da organização da sociedade em torno aos
indivíduos antes do que ao redor de grupos.
Da
análise
da
relação
entre
poder
e
sociedade
livre
passa-se,
necessariamente, a consideração da questão da relação entre poder e direito e, dentro
dela, sobre quem exerce o primeiro. Se à primeira vista todo o discurso sobre as
24
democracias resolvem a questão na supremacia do cidadão, pelo menos no período
que sucede ao triunfo político dos Estados absolutistas, em Bobbio a questão deve
ser encarada sob prisma algo diverso. Nele, o poder exerce a primazia sobre o
direito, vale dizer, o sujeito que o exerce não é um ser humano iluminado, mas sim
tão somente o cidadão que em conjunto com os demais cria as instituições de uma
sociedade livre ao delegar poderes aos seus representantes. Estes representantes,
dentro de certos parâmetros que são identificados aqui com a dignidade humana,
podem atuar em seu nome.
Na análise das relações entre poder, direito e Estado, vem a calhar a leitura
que Grimsley faz de Rousseau e que se apresenta, embora dentro de certa e limitada
medida, analogicamente também aplicável a Bobbio. Trata-se de que a liberdade
humana termina por surgir tão somente em um estágio mais elevado da vida. Este
estágio se confunde com aquele em que os seres humanos adquirem a capacidade de
eleger livremente. Neste ponto surgem dois aspectos que merece a pena ressaltar,
postos por Dworkin e Grismley, respectivamente, ao definir a liberdade e ao analisar
a legitimidade política.
Segundo Dworkin, liberdade não implica que o indivíduo encontre-se sem
amarras para fazer o que bem queira a qualquer preço mas, isto sim, que pode:
“[...] fazer o que (quiser) respeitando os verdadeiros direitos
do próximo. É preciso fundamentar a comunidade, não no
obscurecimento ou na diluição da liberdade e da
responsabilidade
individuais,
contudo
no
respeito
compartilhado e concreto por tal liberdade e responsabilidade.
Isso é o liberalismo concebido como igualdade liberal” (2005,
p.331).
Há aqui a previsão de limites ao exercício das liberdades individuais como
forma de viabilizar a vida em coletividade. Por outro lado, abordando a questão da
legitimidade política, extrai-se da argumentação de Grimsley que algo mais é
25
demandado além do estabelecimento de uma estreita relação entre os partícipes da
sociedade em que habitam (1977, p.117). Este é o ponto da argumentação de
Grimsley que parece explicar em boa parte a leitura de Bobbio sobre o exercício do
poder e as instituições que permeiam a boa e livre sociedade democrática. Nesta o
poder político se encontra descentralizado ou, o que é o mesmo, pluralizado ou
fragmentado.
A argumentação de Dworkin, Grimsley e Bobbio parecem convergir
relativamente a que não existiria um ente racional inclinado a aceitar a vida em
comunidade na qual um tipo específico de vida resultasse manifestamente, e a
priori, em desvantagem relativamente a dos demais concidadãos. Em Dworkin esta
idéia apresenta-se no respeito à liberdade do próximo. Já em Grimsley esta idéia
encontra expressão através de sua ponderação de que a liberdade tem como
pressuposto o exercício pleno da escolha. Estes argumentos desembocam em Bobbio
como constituintes da sociedade de poder descentralizado.
Outra leitura que torna Grimsley todavia mais claro acerca de um dos pontos
centrais de Bobbio é quando pretende introduzir-se na alma rousseauniana. O faz ao
afirmar que os homens deixam de ser uma “[...] criatura de instintos ciegos para
convertirse en un ser reflexivo que no sólo se considera a sí mismo como objeto de
su propia observación [...]” (Ib.). É a questão do amour de soi, este que leva o
homem a direcionar suas ações. Mas, quiçá, ainda mesmo dentro de uma perspectiva
hobbesiano-bobbiana, também a tornar-lhe mais interessado pela sorte dos partícipes
de sua sociedade, uma vez que a tendência apontada pela ruína geral é, por suposto,
a ruína dos próprios particulares, de todos aqueles que nutrem escasso ou nenhum
interesse pelo andamento das coisas públicas.
Esta argumentação torna-se ainda mais interessante na medida que a
26
aproximação de Bobbio com Hobbes estabelece-se quando o inglês assegura que a
aproximação entre os homens se dá através da percepção de que sua união é que lhes
pode dar maior segurança. Esta é uma legítima perspectiva política utilitáriopragmática bastante característica do pensamento saxônico, mesmo em período
antecedente à santa trindade fundadora, James Mill, John Stuart Mill e Jeremy
Bentham. Retomando o argumento, este tipo de motivação para a união seria uma
outra versão do amour de soi? Talvez, mas para Bobbio o ponto central é que
mesmo se esta for a motivação, nela operam fatores bastante importantes.
De qualquer sorte, se o ponto de motivação inicial é ou não egoístico, se o
homem está inclinado por seus próprios interesses como diz a interpretação de
Grimsley sobre a filosofia de Rousseau ou, no mesmo sentido, se a explicação
hobbesiana para a superação do estado de natureza rumo a sociedade organizada, o
fato é que para Bobbio o foco da atenção se dá em um momento bastante prático: o
do exercício do poder. Sendo ele um dos filhos do Iluminismo, mesmo que marcado
pelo ceticismo que impregnou boa parte das filosofias do plúmbeo século XX, a
idéia de que a paz e o asseguramento de direitos – entre eles o fundamental direito à
vida – representam fatores centrais de sua filosofia, tal como será visto no decorrer
desta dissertação.
Retomando o diálogo entre os personagens acima, muito embora não
considerando os fins a que as argumentações de Rousseau e Bobbio se propõem, é
fato que algumas de suas ponderações parecem aproximar-se. Um dos pontos de
maior contato se dá quando o genebrino sustenta que “[...] cada uno, al separar su
interés del interés común, observa que no puede separarlo por completo [...]” (1998,
p.104). Aquela figura egoísta ou maximizadora de seus interesses privados não pode
ligeiramente descolar-se da sociedade em que vive posto que, como assinalado
27
anteriormente, a ruína desta coletividade não lhe proporcionará melhor sorte. O
imbricamento entre estes sujeitos e suas esferas de interesse é fator considerável
para a organização de uma boa sociedade, categoria que será desenvolvida
recorrendo à outras originárias em Bobbio na seqüência deste trabalho.
Em consonância com o argumento anterior e com o tema de que Rousseau se
ocupa, é possível dizer que duas seqüências são observáveis. A primeira é uma
quase que perfeita aproximação entre a filosofia de Bobbio com a concepção
democrática moderna de solidificação do poder justificado na base de sua pirâmide,
e não mais no topo. Aqui entra em cena Rousseau. Não obstante, isto nem mesmo
distantemente faz recair sobre o italiano qualquer possibilidade de leitura totalitária,
como de resto ocorre com o pensador francês. Há outras possíveis, mesmo que
improváveis, uma vez que, de dar crédito a Cassirer, estamos é diante de uma
filosofia que não está pronta. Esta filosofia é:
“[...] ao contrário, um movimento de renovação constante do
pensamento – um movimento de tamanha força e paixão que, diante
dele, a salvação na tranqüilidade da observação histórica “objetiva”
mal parece possível” (1999, p.38).
É por este motivo que a aproximação entre ambos não se possa dar senão de
modo bastante reduzido ou, se se preferir, desde a ótica da delimitação de seu
objeto, e de forma alguma relativamente às suas conclusões sobre ditas
investigações. Novamente recorrendo a Cassirer, diria analogamente que, se para ele
as formulações de Rousseau são obsoletas, o mesmo não é válido para a o objeto de
que tanto ele quanto Bobbio ocuparam-se. Uma segunda seqüência diz respeito à
similaridade do pensamento do turinês com o de Dahl e, em algo, com o de
MacPherson. Este é o objeto a ser considerado na seqüência.
Um dos principais centros de estudo de Dahl é a categoria democracia, a
qual é traduzida aqui de forma aproximada pela de sociedade livre. Precisá-la,
28
contudo, pelo menos neste exato momento não é o mais importante, até mesmo
porque, como dizia MacPherson, “[...] democracy has become an ambiguous thing,
with different meanings [...]” (1972, p.4), e realizar tamanho esforço de redução
conceitual poderia esvair energias à custa de resultados pouco objetivos. Tendo em
vista uma aplicação histórico-política, está repleto de razão. Leoni reforça o
argumento dizendo que a democracia evidencia um exemplo notável de “confusão”,
uma vez que ela faz parte da linguagem comumente utilizada. Esta, diz ele
abertamente, “[...] é a razão pela qual um grande número de mal-entendidos surge
(...) entre pessoas que usam a mesma palavra com significados completamente
diferentes [...] (1993, p.49)”.
Argumentando quanto às finalidades da categoria analítica em questão, ainda
que em outro contexto, MacPherson volta a recordar que quaisquer que sejam as
concepções de democracia, elas convergem para um só objetivo, qual seja: “[...] to
provide the conditions for the full and free development of the essential human
capacities of all the members of the society [...]” (1972, p.36-37). Interessa sublinhar
que não há praticamente qualquer regime político que não se apresente na superfície
dotado destes princípios. As diferenças, e que não são poucas, residem nos meios
utilizados para alcançar essas finalidades tão louváveis. Ao fim e ao cabo, não seria
um grave erro perceber que além de alguns valores fundamentais, a democracia
também requer a abstenção de certos mecanismos avessos à liberdade dos quais o
poder político estabelecido pode lançar mão para que atingir os fins a que se
propõem.
Quanto ao fundamento discursivo de MacPherson parece viável uma
distinção de fundo em sua observação, em que pese não seja algo sobre o que
divergiria fundamentalmente. O reparo ao tema consiste em que seja estabelecido
29
um campo de diferenciação entre o nível de discurso em que opera uma genuína
democracia – entenda-se, ali onde as liberdades públicas são tuteladas, i.e., naquelas
em que, dentre outras, a liberdade de expressão e a de associação são garantidas – e
o discurso operante em uma outra democracia em que a defesa dos direitos relativos
às liberdades públicas não ultrapassa o nível discursivo. Portanto, se MacPherson
propõe que devam ser oferecidas condições para o desenvolvimento das capacidades
dos membros da sociedade, parece que implicitamente inclina-se por algo que esta
pesquisa postula, isto é, a efetivação das garantias e a transferência da retórica à
materialidade das questões que envolvem a democracia.
Assim, se assiste razão a MacPherson no que diz respeito às finalidades das
democracias, acredita-se que isto somente possa ser aceito quando analisada a
eficácia de seu discurso teórico. Uma vez ponderados os níveis do discurso e sua
aplicação prática, a conclusão a que se alcança é que não será possível aceitar como
democrática uma alternativa política que, por exemplo, aparelhe o Estado para
cumprir suas metas de poder. Tampouco poderá aceitar-se como democrático aquele
Estado que ainda quando promova uma alternância de nomes no poder, não o faça
no que tange ao fundamental, i.e., no que tange aos projetos para o exercício do
poder. Ao fazê-lo são fraudadas as expectativas de quaisquer possibilidades de
mudanças de rumo na vida pública através da intervenção da política, condição
essencial para a existência de uma democracia material ou orgânica.
1.2 – O poder e o processo de construção da ordem jurídica na sociedade aberta
Entre outras tarefas cumpridas foram colocados no item anterior os termos
que permitem compreender com brevidade alguns dos problemas do uso
30
descomprometido da expressão democracia. O que há, na verdade, é uma
multiplicidade de acepções. Contudo, não estamos condicionados a assentir quanto a
multiplicidade de empregos da expressão democracia. Em verdade, se não é possível
detectar a essência da democracia por via de algumas particularidades ou de
raciocínios de ordem metafísica, isto sim, é razoável pensar na possibilidade de
aproximar-nos consideravelmente de seu conteúdo através de algumas de suas
configurações históricas em paralelo com uma perspectiva normativa segundo uma
escala axiológica que devemos construir segundo uma hierarquia conveniente a uma
sociedade aberta.
Na análise desta hierarquia axiológica sob a qual será erigida uma sociedade
aberta, nos depararemos com que uma das condições que devem ser garantidas para
que sejam alcançadas as finalidades a que a democracia se propõe é, segundo Dahl,
a igualdade de oportunidades entre os cidadãos. Ela opera de sorte a tornar efetiva
sua participação no processo político de tomada de decisões (1999, p.47). Aqui
percebe-se sua argumentação, que será retomada no último capítulo desta
dissertação, de que em nosso tempo, já não basta para uma democracia o consolo
com a estrutura formal de tutela aos direitos. As aspirações dos membros das
sociedades que compõem as famílias das democracias ocidentais são mais
profundas. Demandam uma igualdade que transcenda a formalidade e adentre no
mundo das questões materiais. Por este motivo é tão interessante quanto profícuo
retomar o diálogo com Rousseau em paralelo ao tema ora em debate.
Sendo a igualdade uma aspiração social, seguramente não é possível pensar
que desta realidade não derivarão divergências teóricas quanto ao grau de sua
admissibilidade nem muito menos quanto aos métodos e a velocidade com que deva
ser implementada. Em suma, trata-se de verdadeiro terreno minado. Contudo, ao
31
tratar do problema das diferenças e dos conflitos encontramos em Rousseau uma
abordagem bastante peculiar. O autor sustenta a necessidade de evitar o conflito e o
debate, posto que estes são fomentadores da discórdia e, ademais, que na prática
terminam por proteger unicamente os interesses particulares (Cf. 1988, p.105).
Esta visão enunciada ao final do parágrafo anterior se antepõe frontalmente a
um conceito minimamente palatável de democracia pluralista com a qual converge
este estudo. Mas se há mesmo esta necessidade de evitar o embate verbal isto ocorre
por força de que em teoria há um porto seguro ao qual chegar ou, ao menos, de que
mesmo que tal porto não exista, a outra possibilidade é ainda pior: a de que alguém
tenha o poder para determinar aonde se possa chegar e quais são os limites
intransponíveis da vida em sociedade. Este é um dos conceitos apurados que nos
traduzem uma concepção de verdade em seu sentido absoluto. A conexão com
Rousseau no campo político está em que este sentido absoluto é expresso por sua
categoria de vontade geral da população.
Este escrito alinha-se a diferente concepção, pois vê como inaplicável a tese
rousseauniana a perspectiva teórica de uma sociedade livre. Partindo confessamente
da reflexão de Bobbio e, mais remotamente, da de Maquiavel, postula-se que os
conflitos e os debates de idéias são precisamente um dos núcleos valorativos dos
quais uma democracia material ou orgânica não pode prescindir. Opostamente,
Rousseau apregoa a virtude da harmonia nas assembléias como sinônimo de bons
augúrios, cuja transcrição ao cenário político da revolução norte-americana ganharia
interpretação no conceito de facções, expresso por Hamilton e Madison.
Não são perceptíveis os bons augúrios da virtude da harmonia assinalada por
Rousseau, senão justo o inverso, aliás, há motivos históricos para crer que é
precisamente o inverso o que ocorre. Devidamente ponderada a ordem sob as qual
32
os debates públicos têm lugar, o que se deve ter por horizonte é algo diverso ao ideal
de harmonia de Rousseau. O reconhecido débito com Maquiavel e Bobbio,
respectivamente, está em que ambos admitem um sólido realismo político e, neste
sentido, a inevitabilidade dos conflitos. Contudo, deve ficar claro, se para o primeiro
os conflitos são inevitáveis isto não quer dizer que pudesse alinhar-se, como faria
Bobbio muito após, entre os defensores de uma sociedade democrática.
O reconhecimento da existência da conflitividade social é, contudo, a pedra
angular para que possa ser bem entendida a sociedade aberta. Este elemento passa a
ser entendido como um dos elementos centrais de qualquer organização social
plural. Como diz Bobbio ao reconhecer sua dívida com o pensador florentino, o
valor daquele estava em não temer “[...] os conflitos sociais e políticos, sob a
condição de que eles permanecessem dentro dos limites da vida civil, e apreciava o
confronto retórico que ocorre nos conselhos públicos [...]” (2002b, p.48). Neste
círculo dialógico sempre presente e gozando do mais nobre espaço na filosofia
bobbiana é que se torna possível avaliar quais e como os valores democráticos
poderiam florescer.
Aos valores democráticos já referidos em uma sociedade plural todavia
devem ser acrescidos outros como a liberdade religiosa, o compromisso com a
realização de eleições periódicas, com o direito ao voto, com a sua extensão
universal e sem que qualquer dos envolvidos, grupo ou classe, tenham privilégios no
que se refere ao peso de sua influência eleitoral. Daí uma outra característica deste
tipo societário, qual seja, a de que deva ter lugar um firme controle das eleições.
Disto surge a demanda de controle legal, político e judiciário sobre as circunstâncias
concretas em que se dá o financiamento dos partidos políticos e, enfim, de todo o
dinheiro aplicado em suas propagandas e de seus candidatos. Surgem daí questões
33
relacionadas ao funcionamento e estrutura das democracias em uma sociedade
aberta, temas que mantém uma estrita relação com o poder e a ordem jurídica mas
cujo afunilamento conduziriam a horizontes bastante distantes dos estreitos limites a
que se propõem esta dissertação.
Seguindo esta linha analítica diria que a democracia, como qualquer outro
arranjo político concebido para a organização da vida social, está estruturada e
funciona em torno às disputas pelo poder. Seu grande diferencial está na forma
como contorna as disputas e as crises em torno à busca pelo acesso ao poder e em
sua gestão. Em uma breve e genérica síntese inicial, ultimada com fins de que sirva
como instrumento mínimo de linguagem comunicativa para o debate que tem início,
proponho dizer que todos os sistemas políticos não passam de um amplo arranjo
social cujo objeto central é a organização do processo de tomada e manutenção do
poder. Assim se dá, pelo menos, nos regimes democráticos, nos quais o
procedimento encontre-se forte a ponto de excluir a violência como meio de
aquisição do poder.
Conceitualmente Bobbio parece ter aproximado consideravelmente o seu
entendimento de poder do conceito proposto por uma de seus clássicos prediletos,
Max Weber. Segundo o alemão, poder “[...] significa toda a probabilidade de impor
a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o
fundamento dessa probabilidade” (1998, p.33). Esta probabilidade de fundamento
infinito é o que, talvez, também aproxime esta concepção da filosofia política de
Schmitt, em que pese o conteúdo reconhecidamente díspar de ambas. Quanto a tese
bobbiana, como veremos, ela não se distancia consideravelmente da perspectiva
weberiana, muito embora centre atenção na necessidade da aplicação da categoria
legitimidade como característica intrínseca do poder exercido em sociedades de
34
tipologia aberta.
Mas o que se pode entender aqui como uma sociedade aberta? Sem avançar
demasiado no tema que será objeto de análise no decorrer desta dissertação,
provisoriamente daria como suficiente o resumo feito por Popper de que sociedade
aberta é aquela na qual os indivíduos podem tomar decisões consoante suas opiniões
pessoais (1992, p.171). Muito embora isto possa parecer bastante esclarecedor,
Popper todavia acresce a isto seu entendimento do que seja uma sociedade fechada.
Com este contraponto parece terminar de elucidar o que seja uma sociedade aberta,
mesmo que para tanto lance mão de uma conceito negativo. Segundo ele, sociedade
fechada “[...] es la sociedad mágica, tribal o colectivista [...]” (Ib.). Este é um tipo
societário bastante reacionário a enfrentar o mundo segundo novos paradigmas. Um
destes novos paradigmas é a leitura da realidade segundo uma perspectiva de
mudança contínua e, por conseguinte, que devam seguir sendo procuradas novas
opções para os problemas que suscita. Elas permanecem presas às antigas e
conservadoras formas “mágicas” de entender e encaminhar seus problemas.
A partir do momento em que a sociedade vence esta etapa ou período
mágico, não necessariamente em suas origens primitivas, e para que o poder possa
ser exercido legitimamente em uma sociedade aberta nestes termos popperianos,
desde logo, as estruturas e procedimentos instituirão mecanismos. Entende-se que
estes últimos devem constituir os objetos secundários desta análise, e abrir espaço
para que nos centremos no cerne das liberdades vigentes em um regime
democrático. Em que pese esta opção metodológica, há que reconhecer que esta
questão procedimental não é, nem sequer longinquamente, menos importante. Isto se
deve a que a democracia, uma vez que não disponha do respaldo deste instrumental
adjetivo ou formal, veria completamente comprometidos todos os objetivos
35
materiais ou positivos.
Como inicialmente visto, o conceito de poder que opera em uma democracia
é de um tipo bastante amplo. A rigor, ele opera em qualquer sistema político,
indiferentemente de que seja ele de tipo aberto ou não. Isto sim, e aqui a diferença
não será pequena, existirão concepções completamente distintas sobre o modo como
tal poder deverá ser exercido. Isto, ao fim e ao cabo, trará conseqüências diretas
sobre todo o sistema político e as categorias que o compõem. Por exemplo, nos dirá
se se trata – e em que nível –, ou se não se trata, de uma democracia. Mas dirá,
também, algo sobre as categorias que lhe compõem, tal como a de legitimidade, uma
vez que o poder não consegue manifestar-se sem que exista uma manifestação
mínima, suficiente e imediata desta categoria.
A abordagem do conceito de poder em Bobbio não olvida a definição das
condições para sua manutenção ou, ainda, daquelas necessárias para sua derrocada.
Aqui fica clara sua influência não apenas metodológica como material proveniente
do gênio de Maquiavel. Enfim, ao ponderar as circunstâncias de poder que medeiam
o seu exercício e os meios para nele manter-se, deriva daí que a análise de suas
normas jurídicas torna-se um imperativo.
As normas que regulam o exercício do poder dentro de um ordenamento
jurídico possuem uma qualidade que deve ser examinada, pelo menos enquanto
estas estiverem assentadas sobre diretrizes determinadas pelas relações de poder da
sociedade civil. Neste sentido é que será inspirada por uma constituição. Este é um
pressuposto para o exercício do poder dentro da ordem jurídica legítima. É fato que
o poder serve de firme alicerce aos direitos, mas em Bobbio ocorre o que
denominaria de invariabilidade. Isto se traduz em que esta é condicionada pelo fato
de que o sistema aprioristicamente se encontra fechado a determinações alheias às
36
concepções distanciadas das proteções à dignidade humana e ou direitos humanos.
Sobre esta matéria, embora valendo-se de outras categorias, Weber aponta
no sentido de que a sociedade aberta não pode fechar-se à ação social recíproca ou,
pelo menos, a todos aqueles que dela queiram tomar parte (1998, p.27). Em outros e
bobbianos termos, isto equivale a dizer que aqueles que visam participar dela
politicamente devem poder ter este acesso facilitado. Segundo uma síntese teórica
de ambos, poderia dizer-se que as sociedades podem ter caráter aberto ou fechado
quando consideramos uma determinada esfera de licitude e, respectivamente, a
possibilidade de que os cidadãos intervenham de forma livre para alcançar os fins a
que se propõem.
Desde uma perspectiva inversa, nas sociedades fechadas a persecução de tais
fins encontra seguidos obstáculos. Alcançá-los torna-se mais do que uma tarefa
apenas difícil. Em consonância com uma muito pouco flexível doutrina política
estatal que lhe dá as diretrizes, a intervenção social pode representar, e normalmente
representa, risco aos direitos mais elementares, como à própria vida. Desde logo,
esta segunda não é a hipótese teórica conveniente a uma sociedade de tipologia
aberta.
Em certos termos é possível dizer que a sociedade democrática bobbiana é
construída através da aplicação da categoria de poder legítimo. A base deste
conceito de Bobbio parece estar enraizada em Weber. Segundo o alemão, a
legitimidade de uma ordem político-jurídica pode estar localizada basicamente em
três níveis, a saber, puramente afetivo ou sentimental, racional com fins a valores
(dada uma crença firme em sua validade absoluta) e, por fim, religiosa, ligada à
crença de que a salvação depende de uma relação obsequiosa com a religião já na
vida terrena (1998, p.21). Em Bobbio não se encontra referência expressa a cada um
37
destes níveis de sustentação do poder mas tão somente no processo heterônomo de
legitimação política do indivíduo perante o Estado e as instituições que lhe cercam.
A certa altura de sua obra o turinês refere-se explicitamente ao que entende
por legítimo. Diz que a legitimidade deve ser entendida em conexão com a categoria
justo título. Esta, por sua vez, representa o “[...] stato attribuito al titolare da una
legge superiore [...] ” (1985, p.9-10). Sem embargo, este poder legítimo que se
encontra instituído visceralmente na figura da base da pirâmide política pode
enfrentar-se diretamente à clássica e mal resolvida questão por Rousseau, que se
ocupa de que as possíveis diretivas tomadas por esta base política podem fazer
frente e lesar os direitos humanos. Bobbio reafirma sua alta importância e, por
conseguinte, que a categoria legitimidade política não se desvincule da
deslegitimação procedimental e material do direito das maiorias sempre que tendam
a cercear os direitos das minorias.
Ao reconhecer a importância dos direitos humanos torna-se bastante
perceptível em Bobbio um dos pontos de entroncamento de sua filosofia política
com sua filosofia jurídica. Isto se dá quando sua defesa dos direitos do homem, ao
fim e ao cabo, encontra seu derradeiro momento em uma área fronteiriça de débito
com o jusnaturalismo lockeano e kantiano, sobre os quais, aliás, escreveu célebres
obras de referência (ver, respectivamente, 1998c; 1984). Ao tema dos direitos do
homem em Bobbio voltarei no último capítulo desta dissertação.
Do fato de que o poder sirva de alicerce para a construção jurídica seguindo
esta limitação de direitos fundamentais em Bobbio é possível extrair ainda uma
outra conseqüência. Trata-se de avistar como a norma fundamental fechava o
sistema em Kelsen e, em certo sentido, também como ela lhe servia de firme
solidificador teórico. Segundo reconhece o italiano, em sua forma de conceber o
38
poder os temas são perfeitamente simétricos (Cf. 2000b, p.250-251). Ele reforça sua
idéia em outro momento ao afirmar que “[...] para a teoria normativa o degrau
superior é sempre representado por uma norma, enquanto para a teoria política
tradicional o degrau superior é sempre representado por um poder [...]” (2000b,
p.251). Para ele a ordem jurídica é o produto do querer e do poder político
conjugadamente atuantes, o que já antecipa duas importantes categorias na
concepção de Bobbio sobre a democracia, a saber: o poder visível e o invisível, os
quais serão abordados, em outro capítulo.
Mas se a ordem jurídica positiva é dependente da criação através de uma
vontade e de um poder instituinte, momento seguinte encontra-se em estado de
dependência das condições em que se dá o exercício do poder para continuar a
existir. Assim, também manifesta dependência da conjunção de vontades para que
não sofra solução de continuidade, de sorte que sobre sua existência recaia o
adjetivo da legitimidade democrática. Aqui intervém a análise de Bobbio sobre
como manter o poder, estudo em que demonstra traços da influência de Maquiavel.
A luta, mais ou menos explicitada, pela manutenção do poder se deve a que,
mesmo considerada em abstrato ou distanciado do apetite político pelo poder, o
ordenamento jurídico em si depende de que o poder político que rege as instituições
tenha êxito na galvanização da aprovação popular. Posto isto, ainda se faz mister
que disto derive, primeiramente, que a maioria se subordine às normas estabelecidas
assim como que obtenha, em circunstâncias extremas, apoio legal e político pelo
menos de uma elite suficientemente forte para apoiar um governo que do ponto de
vista da legitimidade apresente amplo déficit.
De qualquer sorte, na primeira hipótese mencionada logo acima, se tratará de
um sistema de poder e de direito legitimados, categoria esta que é básica quando se
39
pense, como é o caso aqui, na estruturação das conexões teóricas de uma sociedade
aberta e democrática. Na segunda hipótese mencionada no parágrafo anterior as
raízes do poder estarão contaminadas e condenadas, sob o peso da falta de
legitimidade democrática, a qual conspira contra os sistemas políticos com a avidez
do fenômeno da corrosão dos metais.
1.3 – O conceito de poder e sua conexão com a teoria da norma jurídica
Mas se eventualmente pode dar-se uma luta surda entre as instituições
políticas a labor dos operadores legislativos, que tem como resultado a norma
jurídica, fato é que é possível checar alguns aspectos da intimidade entre poder e
direito. Tamanha é a conexão existente que quase inviabiliza a abordagem de um
sem que o outro igualmente seja trazido à consideração. Por este motivo interessa
realizar aqui, mesmo que sucintamente, uma breve referência sobre a perspectiva da
teoria da norma jurídica em sua relação com o poder no conjunto da Filosofia
Jurídica de Bobbio.
O turinês admite que a norma jurídica não é expressa mas que, isto sim, é
perceptível, e que a pressupomos para fundar um sistema normativo. Mais do que
isto, ele propõe a necessidade de uma reductio ad unum, que não pode ser realizada
se no ápice do sistema não for possível dispor de uma única norma, a qual deve ser
proposta como sendo a fundamental (1990a, p.59), momento no qual claramente não
desdenha da proposta sistêmica kelseniana, senão que, faz todo o contrário. Sem
embargo, deve ficar claro que ele teoriza nos estritos limites da análise de uma
ordem jurídica e obtém resultado distinto daquele que acima foi descrito como
próprio da filosofia kelseniana. Contudo, como se sabe, Bobbio atravessa durante o
40
passar dos anos de sua longa vida diferentes e, por vezes, até contraditórias fases em
seu pensamento ou, ao menos, recheadas por certas ambigüidades. Talvez a estas
fases talvez não seja possível qualificá-las como evolutivas mas sim como de pura
ruptura com momentos precedentes. Ao abordar a questão da norma fundamental o
autor parte de Kelsen mas, isto sim, desde um prisma sócio-político bastante
característico seu, terminando por fazer concessões que a princípio não pensasse, tal
como de que a ordem jurídica devesse, em último caso, encontrar-se fundamentada
em uma escolha e, logo, como produto do poder político.
A esta argumentação acrescerá que mesmo após constituída a ordem jurídica,
ela todavia depende de um poder (político) para existir pois “[...] el ordenamiento de
normas válidas se hace también efectivo y sólo un ordenamiento que sea efectivo
además de válido[...] puede ser considerado un ordenamiento jurídico [...]” ( 1993b,
p.357). Isto afirma que a via de persuasão e canalização da legitimidade ao direito é
a órbita da política. Desde outro prisma, em momento anterior de suas reflexões,
sustentaria que o instante pré-político que oferece as condições de sustentação à
criação das normas jurídicas era precisamente jurídico, qual seja, o de um poder
constituinte originário que se sustentava em uma norma fundamental (1990a, p.60).
Esta pode ser interpretada como uma fase de argumentação próxima ao positivismo
na teoria bobbiana mas, que reste claro, não se afirmará como a dominante.
Em nossos dias a conclusão de Bobbio aparece muito claramente posta em
sentido fugidio a sua leitura positivista quando expressa sua idéia de que “[...] teoría
jurídica y teoría política se integran y se completan reciprocamente [...]” (1998d,
p.10), sendo que uma se centra no conceito de norma e a outra no de poder. Posta a
argumentação nestes termos, novamente parece ser que Bobbio promove uma cisão
conceitual entre o perfeitamente político e o jurídico. Contudo, quero crer, trata-se
41
na verdade de coordenação e não de sobreposição de algum dos elementos aqui
considerados sobre o outro. Positivamente, não se trata de falar em sobreposição de
uma à outra, mas não negaria que em última análise, fôra necessário atribuir a algum
destes elementos a precedência. A resposta aqui sugerida é de que tal precedência
cabe ao político sobre o jurídico, mesmo que isto não implique a assunção da idéia
de sobreposição, que remete a ocupação de espaço físico excludentemente a outro
corpo, no caso em tela, outra categoria. Portanto, ao buscar a origem e
fundamento(s) do poder ou do direito, temo que a explicação dada por Bobbio possa
não ser de todo satisfatória e clarificadora do que é o núcleo de seu pensamento
neste aspecto.
Parte da argumentação apresentada no parágrafo anterior tem conexão com o
fato de depender de que o poder político que rege as instituições públicas possa ter
êxito quando logra que majoritariamente a população adira às normas estabelecidas.
Aqui nos deparamos com o fenômeno da eficácia, também destacado por Kelsen,
ainda que em outro contexto. Para Bobbio existirá uma relação entre poder político e
a eficácia da norma jurídica. Trata-se de que o primeiro possa obter eficácia para o
seu ordenamento jurídico valendo-se para tanto do discurso público persuasório.
Este é um dos pontos-chave para a manutenção da ordem política e jurídica de
forma legítima.
Quando de modo conseqüente e eficaz as normas são alvo de afronta pública
disseminada o sistema político começa a ruir. Contrariamente, o que rege neste
momento de forma ainda mais importante é o tema da manutenção do poder, que,
seja em que circunstâncias for, nunca é realmente perdido de vista pelo político
profissional. Aqui a sociedade aberta já avisa que sua estruturação e manutenção
depende de um critério, a saber, o da legitimidade ou adesão pública. Ela serve para
42
emprestar suporte público à coercibilidade exercível desde o âmbito da política, que
reveste e permea todo o conteúdo e aplicação das normas jurídicas de legitimidade,
o que, traduzindo em terminologia jurídica, lhe concede eficácia.
A perspectiva de momento é de que a eficácia fica conceitualmente
entendida como o cumprimento da norma por parte das pessoas a que ela se dirige
(Cf. 1993d, p.35). Isto faz sentido com a argumentação de Bobbio de que a eficácia
é indispensável para a manutenção da validade de um ordenamento jurídico (1990a,
p.67) e, enfim, toda a ordem que ela sustenta. Esta ligação depende da inserção da
categoria democracia ou sociedade aberta. As instituições democráticas operam
como a única possibilidade de ligação entre a eficácia como pressuposto de validade
do ordenamento jurídico. Isto sim, de forma mediata é possível supor corretamente
que qualquer regime é atingido em suas dimensões políticas e jurídicas quando o
grau de eficácia de suas normas é consideravelmente baixo.
A validade do ordenamento jurídico a partir da ótica estritamente positivista
ou, se preferirmos, descomprometida com uma valoração interna e imediata do
ordenamento jurídico em vigor a aplicar, pouco ou nada interessa se estas normas
componentes do ordenamento estão dotadas por elementos caracterizadores de uma
sociedade livre. Contudo, em Bobbio, quando aceita a eficácia de uma norma
jurídica como pressuposto de validade dela e, em certos casos, do próprio
ordenamento jurídico, o que tem em vista é a intervenção sutil da categoria
legitimidade, possibilitada pela intervenção não apenas dos indivíduos na esfera
pública como também do coletivo no âmbito estritamente jurídico.
Estes argumentos permitem minimamente demonstrar que o acordo ou
desacordo com as normas desempenham um papel. Tal importância pode ser
ressaltada até mesmo na conclusão e revisão da obra do mestre do formalismo
43
jurídico, Kelsen, que terminou por admitir caber o conceito de desuetude para o caso
de divergência entre o conteúdo normativo e o comportamento dos destinatários da
norma jurídica. Neste ponto, então, até mesmo Kelsen propôs uma certa viragem em
seu pensamento rumo ao que aqui interpreta-se como sendo um núcleo de ligação, a
democracia, entre o conceito de eficácia e a tomada da validade das normas jurídicas
como pressuposto.
Desde outra ótica, é ainda possível assumir que a eficácia ocupa posição de
destaque, quando não central nas reflexões sobre a teoria da norma jurídica em
Bobbio, e isto basicamente por dois motivos. Primeiro porque tem uma relação
umbilical com as estruturas de poder. Segundo, porque, como diz nosso autor, “[...]
onde não há poder capaz de fazer valer as normas por ele estabelecidas recorrendo
em última instância à força, não há direito [...]” (2000b, p.232). Em outro artigo ele
voltaria a reforçar a idéia sustentando que “[...] o poder sem direito é cego, mas o
direito sem poder é vazio [...]” (2000b, p.240) e, ainda, que a força é considerada
“[...] o conteúdo das normas jurídicas [...]” (1990c, p.325). Em síntese, o argumento
é que na relação entre ambos, a ordem de precedência estava dada pela estrutura de
poder, pois “[...] primero es el poder y después el derecho [...]” (1900c, p.356). Com
tal tipo de argumentação distanciava-se dos rígidos postulados do positivismo
jurídico clássico e somava forças às linhas do funcionalismo e, em parte, até mesmo
às do crescente sociologismo.
Como corolário disso, se torna necessário arrematar que um importante
problema que se põe para o poder é o da sua legitimidade para criar o direito. Sobre
o assunto Bobbio questionava em sua visita ao Brasil o problema de quando a
autoridade é legítima, pois não basta o “poder poderoso” (em que pese isto seja
necessário) para criar normas. Isto não se demonstra suficiente desde a ótica de uma
44
sociedade livre, que é a perspectiva aqui adotada (2001b, p.34). O problema da
eficácia do ordenamento jurídico que o poder político tenha sido incapaz de
engendrar, cujo sistema é de sua responsabilidade administrar, pode vir desembocar
em crise de legitimidade (2000b, p.560). Dessa forma, ele questiona a necessidade
de discutir a base inspiradora da norma fundamental, cuja pedra angular é um
argumento essencial.
A norma jurídica fundamental representa o poder fundante da sociedade. Ele
é um poder de fato e, aceitando-se isto, argumenta o turinês que inexistiria a
necessidade de que se dispusesse de um prévio poder jurídico que autorizasse suas
ações. É interessante sublinhar que em um de seus artigos Bobbio se refere ao que
entende por legitimação, praticamente oferecendo uma definição. Dizia que a
legitimação é o resultado de um processo de justificação e que os dois modos mais
freqüentes de justificar uma ação:
“[...] consistem (as ações) ou em reconduzi-la ao seu fundamento
ou então em medi-la por seu fim, isto é, em considerá-la como a
conseqüência necessária de um princípio apresentado como
indiscutível, ou então como o meio mais adequado para se atingir
um fim altamente desejável [...]” (1990c, p.303).
Sendo assim, residindo a legitimação na população, este é o momento no
qual Bobbio deixasse evidente como se distancia da concepção de um sistema
filosófico fechado, próximo, por exemplo, de um estilo hegeliano, em sua
interpretação puramente filosófica, e kelseniana, a partir de sua leitura puramente
filosófico-jurídica.
Defender essa concepção bobbiana implica aceitar exatamente o pressuposto
veementemente negado pelo formalismo jurídico kelseniano, pelo menos segundo
uma interpretação holística de sua obra e desconsiderando as revisões nela inseridas
que podem apontar caminhos bastante promissores para a pesquisa quanto
elucidativos de uma provável viragem kelseniana contrariamente a um radical
45
formalismo. Sem embargo, uma interpretação clássica do kelsenianismo excluiria de
uma visão cientificista do direito qualquer possibilidade de seu questionamento
político. Igualmente inviabilizaria encontrar para o direito alicerces extra-jurídicos,
algo proporcionado pela fundamentação política do direito moderada que é realizada
por Bobbio segundo Ruiz-Miguel (1983, p.215-217).
Nesse mesmo sentido o jusfilósofo espanhol referido sustenta que a
definição do direito feita por Bobbio não pode ser qualificada de formal, ao menos
não pelo Bobbio da maturidade, posto que faz referência ao conteúdo assim como
aos fins e aos valores nele contidos (Ib.). Enquanto a teoria positivista kelseniana
eleva a seu vértice a norma jurídica, as análises alheias ao estrito positivismo, como
as de Bobbio, poderão colocar ali precisamente as relações de poder. Onde se dá a
relação entre poder e direito é o momento em que se torna perceptível a análise de
matéria que durante muitos anos esteve distanciada das faculdades de direito mas
que são aquelas que mais aproximam Bobbio do pensamento jurídico de reformistas
de muitos variados matizes.
Este fácil trânsito reflexivo nesta matéria lhe permitiu passar da disciplina de
Filosofia do Direito para a de Ciência Política.4 Em seus estudos sobre esta o turinês
parece ter encontrado a possibilidade de enlace teórico entre ambas, podendo sugerir
e estruturar de forma mais consistente as relações entre poder e direito, mais
precisamente da fundamentação política do direito. A síntese sobre a relação de
poder e direito Bobbio parece ter tido a felicidade de encontrá-la em poucas
palavras: “[...] son caras de la misma moneda [...]” (1983b, p.71; p.90). Esta idéia
4
As relações entre Filosofia Política, Filosofia Jurídica e a Ciência Política são abordadas por
Bobbio em alguns de seus artigos. Ver BOBBIO (1987b, p.55-56). Em outro momento faz referência
a que o elemento que une os estudos políticos e os jurídicos é o conceito de poder. Ver BOBBIO
(1990c, p.355).
46
ele não a manifesta isoladamente, mas reitera a mesma metáfora em outro de seus
artigos para definir a relação de proximidade existente entre norma jurídica e poder
(2000b, p.239; 1990c, p.356).
A relação entre poder e direito em Bobbio pode ser havida como atávica,
tantas são as formas e momentos de que se vale para sublinhar sua ocorrência.
Assim, por exemplo, Bobbio volta a referir-se a ela em entrevista concedida a dois
jusfilósofos espanhóis (1995b, p.237). Aqui volta a explicar que a diferença entre
ambos reside em que:
“[...] o escritor político vê o direito desde o ponto de vista do poder,
no sentido de que para ele a norma jurídica é o produto do poder
constituído, enquanto que o jurista vê o poder desde o ponto de
vista do direito, no sentido de que para ele o que interessa é a
distinção entre o poder legítimo e o poder de fato [...]” (Ib.).
Estando assentada a conexão entre poder e direito em Bobbio, o próximo passo
será o do exame mais acurado entre a forma de exercício deste poder na esfera
política (legitimidade) e sua conexão com os parâmetros jurídicos para que possa
fazê-lo (legalidade).
1.4 – Legalidade e legitimidade: categorias políticas, reflexos jurídicos
A análise das categorias legitimidade e legalidade, seja ela feita por via da
ótica bobbiana ou não, implica considerar a dimensão política e os reflexos jurídicos
de ambos. Desde esta perspectiva teórica, isto é bastante claro, Weber emerge como
uma das principais referências.
Na relação entre as categorias de legalidade e legitimidade, uma afirmação
esclarecedora é a de que para Bobbio a legalidade é o requisito para o exercício do
poder, enquanto a legitimidade é o requisito para sua titularidade (1990c, p.299).
47
Desde este instante percebe-se uma vez mais a recorrência, mesmo que subreptícia,
esteja ela oculta ou encontre-se não declarada, à idéia de democracia. Esta operaria
na medida em que as categorias referidas demandam a assunção de
responsabilidades políticas por parte da cidadania, notadamente a segunda.
A primeira das categorias, a legalidade, opera segundo sua necessidade, a de
verdadeira premissa para o exercício do poder. Este supõe o preenchimento de certo
requisito para que se dê com sua figura segundo as bases da legalidade. Contudo,
esta argumentação não parece propor tudo de forma direta, uma vez que fazer-se
com o poder não necessariamente implica seguir a legalidade nem, muito menos,
após detê-lo, que qualquer elo de necessidade derivaria disto, vale dizer, de um
comportamento segundo o exercício do poder. Ao contrário, exemplos históricos
não faltam de Estados cujo único alicerce jurídico foi o voluntarismo explícito dos
ocupantes das posições de poder político. Assim sendo, creio ser bastante com
afirmar que a teoria de que a legalidade é um elemento que deva ser entendido como
requisito para o exercício do poder, apenas pode sê-lo quando aceita como ponto de
partida para que o Estado conforme-se em uma tipologia democrática.
Quanto a argumentação preliminar em torno a categoria legitimidade, ao
colocá-la como pré-condição e também requisito da titularidade do poder, adentra-se
uma vez mais no campo de confluência entre a categoria democracia e a órbita da
análise científico-política de Bobbio.
Acaso fosse questionado mais demoradamente o tema provavelmente
emergiriam dúvidas sobre se a categoria legalidade se encontra em um momento
prévio ao do exercício do poder. O principal argumento para tanto reside, em
primeiro lugar, em que a legalidade é categoria que diz com ordem jurídica
estabelecida e não apenas com poder de fato. Sendo assim, para dar por boa a tese
48
de Bobbio, teria de ser afirmado que não há poder sem uma legalidade prévia. Seria
aceitável dar por boa tal tese? Não há mesmo poder antes que alguma legalidade
seja instaurada? Esta é uma posição que dificilmente pode ser subscrita. Assim, pelo
menos em princípio, a “toda” situação política precede uma legalidade. Legalidade é
fato de ficção jurídica, legitimidade, fato político. Acaso recorresse ao exemplo
jurídico da res nulius seria perceptível o caso em que não existe uma legalidade
estabelecida e, não obstante, logo a seguir da tomada da coisa se estabelece o
exercício do poder relativamente ao objeto.
A categoria legitimidade no esquema bobbiano demanda que o detentor do
poder político possua algo que classificaria como “justo título” para exercê-lo (Ib.).
Isto traduz o mencionado requisito de titularidade para o exercício do poder. Bobbio
enfrenta certas teorias algo reducionistas, segundo a tipologia ideada por Weber.
Segundo ele, é possível localizar uma das formas de legitimidade mais correntes no
mero fato de que ela seja legal (1998, p.23).
Neste contexto a argumentação de Bobbio emerge como postulante da
primazia da legitimidade (democrática no sentido atribuído por Elías Díaz, como
veremos) sobre o de legalidade, sempre e quando o regime político seja aberto.
Ademais, conforme apontado anteriormente, a legitimidade engloba a categoria
democracia ao mesmo tempo em que é subjacente às relações sociais. Ao fazê-lo
aceita a legitimidade como coexistente com a categoria legalidade, muito embora,
como o turinês bem sublinha, esta possa existir sem a presença do primeiro.
A conexão entre democracia e legitimidade é proposta em termos similares
por Elías Díaz. Segundo ele, a categoria legitimidade opera conjuntamente com a de
justiça. Juntas elas desembocam em uma mais ampla, que é a de liberdade, quer seja
esta entendida em seu ponto básico de partida “individual, autonomía moral y, desde
49
ahí, libertad crítica, de expresión y de participación [...] el valor central y
fundamental, supuesta la vida, tanto para la legitimidad [...]” (1990, p.32). A
legitimidade fica acreditada pelo eminente jusfilósofo espanhol, aliás, grande
entusiasta e divulgador da obra bobbiana em sua terra, como elemento central para a
consecução do fim superior da vida, a liberdade, cujo suposto, desde logo, é a
própria vida. Mas antes de prosseguir na relação dos termos propostos com a
liberdades estabeleça-se no parágrafo seguinte, ainda que de forma provisória, o que
será entendido como justiça.
O problema da justiça, posto sob a forma de questionamento foi alvo da
atenção de Platão há mais de vinte e cinco séculos, em sua A República. O que é
justiça? A esta pergunta há uma plêiade de respostas. Todas, ou quase, gravitam em
torno do binômio igualdade-desigualdade, material ou formal, e em que níveis cada
qual se apresenta como desejável. Também são discutidos valores substantivos tais
como a garantia de igual proteção de direitos fundamentais (vida, liberdade,
dignidade, religião, etc.) e de oportunidades. Estes últimos serão os das abordagens
que predominarão nas próximas linhas ao tratar do tema da justiça na sociedade
aberta.
Retornando à conexão da liberdade com os termos propostos anteriormente,
ela deve ser entendida em seu sentido de autonomia individual. Exemplo disto não
pode ser encaixado, e nem de forma alguma poderia, com as tentativas históricas
assinaladas com raro brilho por Weber de revestir formas de governo autoritárias
com a categoria legitimidade. A legitimidade possui íntima ligação tão só com uma
idéia bastante importante, qual seja, a de autonomia individual e, logo, com a
liberdade. A razão fundamental disto é que a legitimidade apenas pode ser
concedida quando se verifique como pressuposto a liberdade de manifestação, em
50
sua concepção mais ampla. Portanto, a autonomia individual apenas tem condições
de afirmar-se e, momento seguinte, conferir legitimidade política a algum regime,
quando possa expressar-se livremente na esfera pública.
As tentativas de revestir de legitimidade formas de governo autoritário
muitas vezes se deram aproveitando-se do reconhecimento plebiscitário, instrumento
manipulador da opinião e da soberania popular. Aqui o diálogo entre Weber e Díaz
torna-se factível. O jusfilósofo espanhol assinala que a manipulação é um dos
elementos acreditados para a operacionalização da categoria legitimidade em
regimes fechados. Por conseguinte, isto possibilita a manipulação através dos
plebiscitos. Exemplo de seu uso histórico para obter legitimação popular a regimes
autoritários não foram poucos nem de escassa importância. Quando da consecução
de tentativas de justificar regimes fechados ou demagogos observa-se uma grande
falsificação do uso da categoria legitimidade na tentativa. A busca da justificação
desses regimes fechados não têm por meta cumprir, como diz Díaz, a finalidade
maior da existência, que é a liberdade humana.
Dito isto sobre o vínculo entre a legitimidade e a liberdade, restaria ainda
sublinhar outro aspecto. Sempre que houver referência ao tema, os termos em que
isto será feito, seja expressa ou implicitamente, será quanto a dimensão de sua
dimensão democrática, acaso dizê-lo não constitua uma imperdoável redundância
conceitual. Na seqüência será abordada a legalidade e, logo após, em paralelo com
esta, a legitimidade.
Da legalidade resta dizer que desde esta perspectiva democrática ela se
constitui em um pressuposto para o exercício do poder democrático. Mas que seja
possível dizê-lo, deve ser verificado que ela tenha por inexorável escopo a
manutenção da legitimidade de suas ações políticas. Neste ponto identifica-se um
51
dos pontos de confluência entre a categoria legalidade como pressuposto da
legitimidade. Desvincular essas categorias implica a assunção dos riscos inerentes às
críticas feitas ao formalismo jurídico, vale dizer, que contempla um sistema tão
asséptico que abre espaços à barbárie, sem mecanismos eficientes para oferecer-lhe
resistência.
A legalidade pode ser utilizada como um mecanismo persuasório no bojo de
um sistema democrático para adquirir de forma continuada a anuência política. Para
isto, no entanto, se apresentam duas condições. A primeira delas é que não exista
vício de origem na formação do processo político que atribuiu poder e constituiu as
autoridades legislativas em seus cargos. Em segundo lugar, que estas autoridades
encontrem definidas e precisas limitações quando investidas de suas funções para
que exerçam o poder. Com isto, torna-se pleno o reconhecimento da soberania do
poder popular que, aberta e livremente, em que pese possa ter sido indiretamente,
elaborou as normas jurídicas vigentes.
À raiz desta argumentação, percebe-se o quanto em um Estado de regime
fechado existiriam amplas, e talvez insuperáveis, dificuldades para encontrar
argumentos em prol da legalidade como elemento predecessor da legitimidade do
regime. O motivo para tanto residiria em seu divórcio potencial ou mesmo de forma
irrestrita do fenômeno da legitimidade, bastando para tanto checar as condições
concretas de um dado momento histórico-político. À legitimidade é a quem pertence
um âmbito de íntima penetração e imediato reflexo na órbita da vida democrática.
Por outro lado, ao observar a legalidade democrática, já não se constata a frieza
reflexiva da qual podem as instituições encontrar-se revestidas. Já a mera legalidade
nem sempre pode ser atingida plena nem imediatamente pelas demandas públicas e,
com isto, chega a consagrar um Estado de regime politicamente fechado.
52
Permanecer avesso a tais clamores é fortalecer a perspectiva do movimento daqueles
que caminham em sentido francamente oposto aos seus interesses de manutenção do
poder a qualquer custo. Portanto, se for possível aceitar a legalidade como
pressuposto da legitimidade, por outro, ela deve ser afirmada como tal apenas nos
limites do entendimento de sua serventia na labor em prol da democracia. Mas este
argumento olvidaria um problema de origem, qual seja, o de que a legitimidade atua
à base da legalidade. Na realidade, é ela quem empresta a esta última em seu
nascimento o formato político de que se reveste e, além disto, também das condições
políticas para que possa sobreviver na vida pública.
Como foi visto, a legitimidade democrática tem maior potencial para
engendrar o exercício controlado do poder. Neste sentido, outro aspecto que pode
contemplar o assunto, diz respeito a diferenciação entre o exercício do poder
concebido como justo e, por outro lado, o direito, propriamente dito, vale dizer,
entendido como “ciência”, em termos positivistas-kelsenianos. A questão que
sobressai e ganha espaço na filosofia bobbiana no que tange ao justo e o jurídico diz
respeito a que visa afirmar qual deles predominará. Em outros termos, trata-se de
questionar sobre se o direito perderia sua juridicidade devido a um déficit quanto ao
seu potencial de justiça.
A resposta bobbiana a esta questão é de que o mundo jurídico não
sucumbiria. A fundamentação que apresenta para isto é que o direito é apenas a
expressão dos mais fortes, e não dos mais justos (argumento que parece buscar
inspiração no pensamento da Antigüidade clássica, precisamente do Trasímaco
platônico). Mas, opondo o ser ao mundo do dever ser, diria que é necessário
ponderar ser altamente conveniente que aqueles que exercem o poder sejam também
os mais justos (1990a, p.67). Outra proposta contidas no fulcro das teses bobbianas,
53
é a de que todos aqueles que mal exercessem o poder fossem eles demovidos da
idéia de dar continuidade, valendo-se para isto do pleno funcionamento das
instituições de uma sociedade livre.
Retornando ao duo legalidade-legitimidade, Bobbio termina por não conectar
ambas categorias de modo necessário. Ele o faz tão somente de modo circunstancial,
e nestes termos: “um poder pode ser legítimo sem ser legal ou ser legal sem ser
legítimo [...]” (1990c, p.300). Isto equivale a aceitar a realidade do ponto de vista
fático, não normativo ou valorativo, que os regimes podem sustentar-se a partir
desta ótica, pelo menos provisoriamente, mesmo prescindindo da legitimidade. Por
outro lado, alguns regimes podem apresentar-se seguidores da mais estrita
legalidade mas, contudo, carecerem de um mais alto nível de adesão, característica
da legitimidade. Esta circunstância marca o desvio dos caminhos de uma sociedade
aberta na qual os desígnios das políticas públicas devem, necessariamente, guardar
relativa relação de convergência com as demandas públicas.
Não obstante a afirmação feita no início do parágrafo anterior acerca da
possibilidade de regime legal e não legítimo, é fato que quando Bobbio distancia-se
de algumas teorias reducionistas em igual medida também o faz do perigo de
justificar o exercício do poder de forma autocrática. Este é um momento importante.
Neste instante é possível fazer entrar em cena argumentação da jusfilosofia de Elías
Díaz, que introduz o elemento da justiça material. Segundo este, a justiça material
de uma norma fundamental como a Constituição – e aqui pode ser trazido o exemplo
de uma outra norma jurídica qualquer componente de um específico ordenamento
jurídico – é que configura toda possibilidade de um equilíbrio político com vistas à
obtenção da governabilidade. Em outros termos, dado o pressuposto de que foram
garantidos acordos necessários entre minorias e maiorias – sendo que neste contexto
54
fica garantido que as primeiras sempre podem vir a articular-se e então tornar-se
maiorias –, elas podem estabelecer, como diz Díaz, um “minimum ético” formado
pela liberdade de expressão, de opinião, de participação política e de decisão
pública. Aqui, uma vez mais, trazer Rousseau ao debate com Bobbio faz sentido.
No diálogo entre ambos, no italiano parece que apenas subsistiria de
Rousseau o interesse pela participação na vida pública. A falha maior cometida por
este mas não por Bobbio residiu em sua desconsideração dos efeitos deletérios que o
seu conceito de vontade geral e unanimidade5 (sempre certas) potencialmente
exerceriam sobre as políticas práticas que seriam instauradas dali por diante em
nome da proteção às liberdades. As autocracias e tiranias de todo gênero não se
justificam ou legitimam pela maldade intrínseca que visem mas, ao contrário, pelo
discurso ao extremo benevolente a que supostamente se propõe.
O realismo que permea a filosofia de Bobbio o faz reconhecer a equivalência
entre a concepção geral que exerce o conceito de soberano (governante político)
para Hobbes e o rousseauniano de vontade geral (popular) (1984, p.23), muito
embora matizações devam ser feitas quanto a extensão que o poder de ambos
possua. Tais matizações centram-se basicamente que enquanto Hobbes não admite
qualquer desvio da vontade do soberano, exceto como fugidia ao justo, por outro
lado, Rousseau descreve como aproximado a maior perfeição aquele Estado cuja
vontade expresse a vontade geral.
Merece destaque o fato de que para Rousseau e, inversamente em Bobbio
assim como para outros contemporâneos como Díaz, se encontra defensável o
argumento da reforma da opinião dos homens. Corrigi-las, disse Rousseau, faz com
que as condutas e costumes se depurem por si próprios (1988, p.126). Isto torna o
5
Rousseau vai tão longe em sua idéia que sustenta que quanto mais graves sejam as deliberações,
mais ela deve em seu resultado aproximar-se da unanimidade (1998, p. 108).
55
genebrino, na opinião de Cassirer, um apóstolo do estatalismo (quase diria do
estalinismo) ou, ainda, de algumas das tantas versões do socialismo que lhe
sucederiam. Segundo as palavras de Cassirer, do que se trata é de que em Rousseau
podemos ver:
“[...] o fundador e o precursor de um socialismo de Estado que
simplesmente abandona o indivíduo à totalidade; que o obriga a
entrar numa forma estatal fixa no âmbito da qual não existe para ele
nenhuma liberdade de ação, nem mesmo liberdade de pensamento”
(1999, p.40).
Por seu turno, Bobbio opta por não estabelecer corrigendas, metas morais as
quais alcançar. Mesmo os censores não são uma arma da qual Rousseau acredite que
não se deva lançar mão. Talvez isto equivalha ao melhor (ou pior) estilo adotado
pelos regimes fechados que infestaram a vida no século XX e, por isto mesmo, seu
pensamento tenha forte inclinação a nutrir tal tradição.
Neste momento os estudos hobbesianos de Bobbio se sobressaem e lhe
permitiram antecipar muitos aspectos dos dilemas da vida política, em consonância
com sua experiência pessoal em seu confronto com o regime fascista. Neste sentido
recorde-se James Madison que, em algum momento do contexto fundacional norteamericano, ao elaborar parte do Federalista, deixava entrever que acaso os homens
não fossem como são, criados para viver livremente, então, positivamente a nossa
seria uma sociedade de anjos para a qual as instituições de governo seriam
desnecessárias. Mas talvez caiba ainda percorrer o caminho inverso, vale dizer,
acaso os homens não fossem livres para não ser anjos, isto é, maus, nossos governos
também se pautariam por uma intrínseca maldade, bastante pior, posto que
organizada, para o controle da vida em escala total.
Neste contexto é que, entre outros como Díaz, coube ao exponencial filósofo
turinês a hercúlea tentativa de empreender e capitanear a descontaminação do
56
pantanoso terreno conceitual em que expressões poderosas como liberdade e
democracia foram jogadas através dos tempos por variadas e nem sempre declaradas
motivações. Para isto, sem dúvida, em muito colaboraram seus estudos hobbesianos,
principalmente de sua antropologia realista, cujo olhar sobre aplicação sobre as
instituições políticas lhe permitiram extrair as conclusões mencionadas no parágrafo
anterior.
Retomando o argumento central apresentado em parágrafos anteriores,
parece resultar bastante firme o horizonte de busca por justiça nas instituições e para
que isto ocorra, da verificação da categoria legitimidade no cotidiano político das
instituições. Segundo o filósofo espanhol, pois de não ser assim “[...] aumentarían
los riesgos de deslegitimación, con graves dificultades de gobernabilidad y hasta
contestaciones activas y violentas cuando no de verdaderos movimientos de
resistência contra el sistema [...]” (DÍAZ, 1990, p.38). Verdadeiramente, parece
assistir razão à conclusão de Santiago de la Puebla, uma vez que a legitimidade bem
pode ser entendida como a face política e de reflexos institucionais imediatos de
uma democracia estável. Sua ausência, efetivamente, implica no aumento das
tensões e conflitos entre os grupos sociais e, como diz o autor, até mesmo
movimentos de resistência violentos são de provável surgimento no cenário políticoinstitucional.
Sendo assim, parece extremamente necessário ponderar no que segue sobre
os limites da relação da política com o direito. Por conseguinte, e na medida em que
almeje de forma bastante concreta, alcançar seus fins, que sejam estabelecidas as
conexões internas entre democracia e política e as demandas cidadãs por amplos
horizontes de liberdades paralelamente a certos níveis de igualdade, ainda que mais
genérica no sentido formal e relativizada em seu sentido material. O problema que
57
decorre daí é como compaginar a existência desse amplo e profundo desejo de
liberdade com a sua limitação em uma sociedade livre? Outro, e não menos
importante, é como tornar pacífica a convivência destas limitações quando entre elas
intervém a demanda por igualdade, muito embora não em níveis absolutos. Em
termos sintéticos, como descobrir onde, legitimamente, deve ser colocado um ponto
final no processo evolutivo do construcionismo legal das instituições igualitárias?
Estas são alguns temas que de modo mais ou menos direto serão abordados nos itens
e capítulos seguintes.
1.5 – A política e sua interface necessária com o direito como pressuposto para
a democracia
As demandas por igualdade formal e material, em sentido amplo e também
relativizado, não serão concebidas como generalizações de conceitos. Serão
compreendidas tão somente como um âmbito da tradição de pensamento políticojurídico, entendendo que a igualdade nas duas versões assinaladas compreende uma
diversidade tal que lhe abre caminhos, é certo que limitados, dentro da tradição
liberal de pensamento. Por isto, então, poderá afirmar-se que a idéia de que a
liberdade, a igualdade (entendida segundo os limites de um conceito contido) e o
direito são fundamentos do Estado Democrático que abriga uma sociedade livre.
Tão ou mais relevante que este é o papel desempenhado pela desigualdade em
contraste a sua antípoda, a igualdade, que em sua leitura democrática apenas pode
ser desenvolvida no marco do Estado liberal. Esta é a conexão que deve ser
estabelecida no pensamento bobbiano para alcançar a sociedade livre.
Tendo por pano de fundo o mais profundo desejo e necessidade humana que
58
encontra boa tradução na categoria liberdade, estas demandas por igualdades devem
apresentar uma paralela e eficaz articulação, e em nada contraditória, com os
direitos dos indivíduos. Tais direitos não devem ser concebidos de modo
desconectado quando o que se tem em vista são as instituições de um Estado livre,
dos elementos que compõem o pensamento de estirpe libertária, como é o caso de
Rousseau. Ele escreve sobre igualdade desde a ótica de quem recorre ao estado de
natureza para nele recuperar a estrutura da igualdade, categoria que deveria
prevalecer na sociedade organizada através do pacto social. Em outros termos, o que
Rousseau visa é que, ao invés de destruir o nível existente de igualdade natural, que
o pacto fundamental instituinte da sociedade humana criasse mais do que as bases da
igualdade moral, legítima, substituindo a anterior e natural desigualdade física entre
os homens (1988, p.23) por uma artificial igualdade. Em síntese, transforma-se a
igualdade natural em um postulado convencional jurídico da mesma forma
instituidor e garante da igualdade, agora em plano material, além de formal.
Tomando a questão desde uma perspectiva léxica e historiográfica, em um
primeiro plano há que deixar claro que a igualdade postulada não é em absoluto a
material ou substancial ilimitada. Tampouco se trata de recuperar parte da
argumentação clássica sobre o assunto e neste quadro, uma possibilidade
hermenêutica da tese de Rousseau – e que em parte remeteria ao primeiro Locke,
cuja argumentação ele mesmo logo reverte na seqüência de sua obra fundamental
(1987) – de que “[...] todo hombre tiene por naturaleza derecho a todo aquello que le
es necesario [...]” (1988, p.21). A argumentação de Locke e Rousseau, cuja
lineariedade não vem ao caso atestar ciência, reside em que inicialmente Locke
adota de modo expresso a tese de que os indivíduos não poderiam apropriar-se além
daquilo que poderiam consumir.
59
Este argumento sobre a apropriação de bens e sua transformação em
propriedade encontra-se alicerçado em certa medida em postulados do Direito
Natural, logrando assim, como diz Villaverde, “[...] la quadratura del círculo [...]”
(1988, p. XVII). O que o autor procura expor é a tentativa lockeana de harmonizar
alguns postulados do Direito Natural que envolvem o problema do direito à
subsistência. Isto justificaria a posse, por todos e cada um dos indivíduos, de tudo o
que lhes fosse necessário, por exemplo, mesmo que de um pequeno pedaço de terra.
Isto se contrapunha no mundo fático à constatação da existência de um grupo social
desprovido de qualquer meio de vida e, por isto, possuidor de um veio
revolucionário.
O modelo lockeano prevê que com o advento da moeda o quadro histórico
lhe impele a alterar sua teoria. Passa a sustentar a possibilidade de que os homens se
apropriem de mais bens do que aqueles passíveis de consumo imediato devido a que
poderiam ser trocados por moeda, algo cuja estocagem não apresenta problemas de
perecibilidade. Este segundo Locke seria, portanto, um antípoda da idéia defendida
por Rousseau, posto que há leituras que devem ser consideradas e que não atribuem
a Rousseau a defesa de um igualitarismo absoluto. Esta tese encontra apoio em
leituras fundamentadas de sua obra, em que pese com sentido às vezes bastante
diverso. Um de seus estudiosos, Villaverde, sustenta que o genebrino não aspira ao
comunismo de bens e que, ao contrário, assume um certo grau de desigualdade.
A questão que parece que lhe distanciar de pensadores clássicos como Locke
e contemporâneos como Bobbio é a magnitude deste grau de desigualdade admitida
por ele e, por conseguinte, do impacto dessa maior ou menor amplitude. A medida
de desigualdade que Bobbio admite parece estar presente em outro de seus diálogos
permanentes com um dos clássicos, Maquiavel. Em seus escritos é perceptível,
60
como diz Bignotto, que “[...] a desigualdade é uma das causas fundamentais da
corrupção, (e que) [...] é importante notar que Maquiavel acompanha essa
formulação [...]” (1991, p.206). Quiçá seja esta idéia de corrupção uma herança,
embora com terminologia diversa, de leitura da obra de Aristóteles, que na
Antigüidade grega abordava o problema da desigualdade e suas conseqüências. É
precisamente a aceitação limitada da categoria desigualdade, com vistas a evitar que
ela escorra para a corrupção ou, em outros termos, para a degradação da vida
pública da sociedade civil e do Estado, que é o objetivo de Bobbio tanto como fora
em Maquiavel.
Desta forma, o tratamento da igualdade em uma sociedade aberta implica,
por definição, que ela comporte uma dimensão relativizada de suas possibilidades de
amplitude e extensão. Portanto, também nisto o padrão das sociedades abertas é
avesso ao dos Estados fechados. O sentido aqui empregado de relativização no que
tange à igualdade é compreendido em seu sentido material na clássica Filosofia
Política de Platão. É autor que propõe uma sociedade igualitária. Sua perspectiva foi
relida por Aristóteles, já com maior amplitude de horizontes. Neste percebe-se o que
se poderia conceber como a origem de princípios jurídico-filosóficos como o da
progressividade dos impostos, como o cobrado sobre a renda, em que a tônica em
diversos países com também diversos ordenamentos jurídicos, não obstante, é a de
consagrar o princípio da progressividade.6
Entretanto, estas linhas ocupam-se primordialmente, respectivamente, é da
6
Neste sentido, por exemplo, entre nós encontramos a Constituição Federal da República Brasileira
de 1988 instituindo tal princípio: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão
graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária,
especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos
individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do
contribuinte” (Artigo 145, §1º; Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).
61
desigualdade, de sua necessária matização e, residualmente, da igualdade formal.
Esta última pode ser reputada como uma categoria que pertence a uma espécie
classificável como inerente ao processo civilizatório do ser humano. Esta é uma
idéia que será exposta logo na seqüência desta sucinta introdução ao tema. Um de
seus mais interessantes formuladores foi Dicey. Segundo ele em seus estudos sobre
a condição inglesa:
“[...] a igualdade legal, ou da sujeição universal de todas as classes
a uma lei ministrada por tribunais comuns, tem sido levada a seu
limite máximo. Aqui, a qualquer funcionário, desde o primeiroministro até um guarda ou cobrador de impostos, é atribuível a
mesma responsabilidade por todo o ato cometido sem justificação
legal, como a qualquer outro cidadão. Os registros abundam de
casos em que funcionários foram levados à corte e tornados, em sua
capacidade pessoal, passíveis de punição ou pagamento de fiança
por atos cometidos em caráter oficial, mas que excediam sua
autoridade legal. [...]” (apud LEONI, 1993, p.82).
Este é precisamente o tipo de igualdade que a sociedade aberta não abre
mão. Em que pese as observações de Dicey sobre a realidade inglesa, é fato que elas
ficam circunscritas a um determinado período histórico, mas isto não impede
considerar válidas, e atuais, suas impressões sobre a igualdade. Esta versão de Dicey
é bastante interessante na medida em que remete à igualdade formal, muito embora
traduzida em termos que fogem aos padrões de responsabilidade costumeiramente
reconhecidos no direito pátrio. Ao contrário, a perspectiva analítica de Dicey para
abordar a igualdade formal é a da responsabilidade das diversas classes sociais.
Ao confrontar a conduta do servidor público ao indivíduo privado, Dicey
acaba demonstrando que neste particular existe uma acentuada igualdade formal.
Assim, se alhures a igualdade atinge às condutas de todos de forma ampla, entre nós
tal tradição entre o público e o privado todavia persiste em resistir privilegiando a
esfera pública com foros e recursos processuais nem sempre ao alcance do vulgo.
Isto caracteriza a permanência entre nós de um processo jurídico que eterniza a
62
desigualdade formal. Esta é a desigualdade de que absolutamente não necessitamos,
menos ainda de forma acentuada. Ainda pior realidade avistamos ao adentrar no
terreno do acesso à própria justiça, o que conduziria ainda muito mais longe do que
os estreitos limites que esta dissertação permitem.
Dentro destes limites todavia cabe examinar a versão de um dos mais argutos
e astuciosos inimigos da liberdade e de seus desdobramentos político-jurídicos, Carl
Schmitt, filósofo cujas reflexões não estiveram dotadas da preocupação com a
igualdade perante a lei. Isto fica patente em seu comentário de que “[...] la igualdad
de todo el que ‘tenga una figura humana’ no puede ofrecer fundamento ni a un
Estado, ni a una forma política, ni a una forma del Gobierno [...]” (1992b, p.224).
Esta é uma afirmação francamente oposta ao mais profundo sentido dos direitos
fundamentais do ser humano cuja melhor tradução creio poder encontrar-se no fato
de que nela uma determinada forma política registre seu patrimônio genéticopolítico. É por meio da materialização jurídica da tutela dos direitos do homem que
uma proposta política tem condições de apresentar-se como aberta e comprometida
com os valores democráticos. É, enfim, ao contrário do que propõe Schmitt, um
fundamento. O é na medida em que o sistema jurídico-político não é concebido
como uma existência abstrata com um fim em si mesmo. No limite, a característica
abstrata de que as normas jurídicas estão compostas devem estar constituídas por
uma outra, bastante concreta, qual seja, a de servir uma finalidade estritamente
humana e, primordialmente, protetora dos direitos fundamentais do ser humano..
Até aqui a ênfase foi dada a categoria igualdade. Neste instante deve
começar a ser integrado ao discurso a categoria liberdade para, posteriormente,
concluir em que nível ambas se entrosam e de que maneira o fazem. Neste momento
serão alcançadas algumas conclusões provisórias sobre a concepção de democracia e
63
de um Estado composto por uma sociedade aberta tal e como ela se apresenta em
Bobbio.
Ao dar início a estas considerações é indispensável propor uma prévia ao
entendimento sobre liberdade de um dos clássicos que parece mais sugestivo. Lorde
Acton assinalava que a liberdade deveria implicar a concessão de segurança a todo
homem no que tange a executar ao que acredita estar obrigado a cumprir. Mas se for
entendida a liberdade latu sensu, no sentido que o liberalismo lhe empresta, logo se
conclui que ela atinge outras áreas além da mera crença de agir consoante suas
próprias convicções. Entre os liberais, Wilhelm von Humboldt (1767-1835),7 por
exemplo, não hesita em afirmar a função de guardião da segurança e da paz das
quais o Estado está incumbido.
Retomando o argumento de lorde Acton sobre a liberdade de ação do
indivíduo, e que lhe credenciam como um dos epígonos do liberalismo, ao voltar os
olhos para um Estado que zela pela pacificação, é aceitável dizer que em termos
constitucionais pátrios nos deparamos com princípios que garantem tal demanda. No
ordenamento jurídico brasileiro encontramos sua tradução parcial em dois princípios
constitucionais: o de que não há crime sem prévia lei que o defina (1988, art.
XXXIX), que garante ao cidadão contra o Estado e, o outro, o de que ninguém está
obrigado a qualquer conduta senão em virtude da lei (1988, art. 5º., II), que garante a
tranqüilidade do cidadão quanto à segurança jurídica. Além disto, lorde Acton
comentava conclusivamente que a proteção ao bem maior aludido deveria ser
intensa e extensa, vale dizer, tão comprometida com a eficácia como indo contra
toda a influência da autoridade e das maiorias, costumes e opiniões que pudessem
7
Uma das principais obras de Humboldt é Los límites de la acción del Estado (1988), obra na qual
traça com singular precisão os estreitos limites que acreditava devessem ser postos para a ação do
Estado. Paralelamente, uma boa obra para a introdução a sua leitura é a obra de Abellán (1981).
64
formar-se para invadir e causar danos àquela esfera individual de ação acima
delineada. O problema é que a liberdade não possui este ou aquele entre os sentidos
acima mencionados.
Um dos problemas é justamente o de delimitar seu campo, além de seu
sentido. Quanto a este, por exemplo, diferentes culturas valem-se da palavra
liberdade para conferir-lhe os mais diversos conteúdos e, não incomumente, até
mesmo francamente opostos. Por isto cabe recordar que nem mesmo o sentido da
expressão na Inglaterra ou entre os Founding Fathers nos primórdios da América do
Norte em sua arrumação institucional das treze colônias foi uniforme. Nem entre
eles, muito embora se tenha em conta a relativa harmonia cultural, religiosa, social,
política e, por que não dizer, até mesmo étnica, existente entre seus habitantes. Para
agravar o exemplo trago à colação a atribuição de significado como a que, por
hipótese, concedem à liberdade os povos árabes ou, quiçá, até mesmo certas tribos
africanas ou as indígenas latinas.
Afora as primeiras linhas explicativas das dificuldades que o tema propõe,
foi ensaiado o posicionamento dos limites impostos pela teoria relativista do
processo de conhecimento a que estão submetidas quaisquer conclusões a que se
alcance. Este momento parece apropriado para delimitar ainda mais as
possibilidades de êxito deste empreendimento teórico, uma vez que o embate que se
avizinha se dá com a categoria liberdade. Com o fito de ir o mais longe possível, à
seqüência são lançados um par de idéias para dar seqüência ao processo de
clarificação preliminar da categoria liberdade até que as pré-condições para um
diálogo com Bobbio encontrem-se satisfatoriamente preenchidas. Para tanto, o
segundo capítulo abordará o indispensável contato teórico-dialógico entre as
categorias liberdade e igualdade. Através de tal ligação o trabalho espera colocar as
65
condições de possibilidade para uma sociedade estruturada em bases que firmem as
condições públicas mínimas para um entendimento político sustentado.
66
CAPÍTULO II – O DIÁLOGO ENTRE LIBERDADE E
DESIGUALDADE NA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA
2.1 – Liberdade, desigualdade e direito como fundamentos do Estado
democrático
Nas linhas que sucedem são propostos o exame de alguns temas. Dentre eles,
a hipótese de encontrar uma resposta positiva para a existência de uma íntima
conexão entre liberdade e desigualdade. Entre os outros temas abordados e que
possuem esta característica de forma marcante estão a liberdade e a desigualdade e a
interpretação de como ambos podem conviver em um Estado democrático e em que
termos isto pode ocorrer de sorte a manter a estabilidade do sistema político.
Como ponto de arranque para essas considerações, são apresentadas um par de
idéias, as quais mostram-se bastante promissoras para a consideração da liberdade,
tema que ocupa posição nevrálgica na obra de Bobbio. Pode ainda ser acrescido que
não apenas em sua obra como de resto em toda a tradição de pensamento da filosofia
jurídica e política da qual o autor é um lídimo representante e que tão bem maneja.
A primeira referência diz respeito a um breve trecho de entrevista concedida
por Bobbio a Viroli. Neste pequeno texto, mesmo que sendo de reconhecida
inferioridade quanto a sua potência teórica relativamente a outras de suas produções
científicas, ele constitui uma pequena estrela no microcosmo da teoria de Bobbio
sobre a liberdade mas que merece algum destaque quer pela clareza quer pela
precisão de suas observações. Algumas asseverações de Bobbio neste diálogo são
particularmente relevantes. A primeira delas enfrenta o problema da independência
do homem entendida como “[...] superiorem non recognoscens [...]” (2002b, p.34).
Submetem-se os indivíduos às regras dos Estados, e aqui, recuperando a teoria
67
kantiana, o turinês não permanecerá longe da aceitação da análise da concepção de
heteronomia das normas que, de resto, não apenas lhe demonstra a influência do
filósofo de Königsberg como também, através deste, da obra de Kelsen.8 Sobre este
problema Bobbio sustenta hobbesianamente que “[...] os indivíduos são soberanos
apenas no estado de natureza [...]” (2002b, p.34). Já constituído o Estado civil,
organizados os indivíduos política e socialmente, eles podem ser considerados
independentes (autônomos no sentido kantiano) mas, contudo, não independentes de
leis que rejam seus comportamentos.
Segundo o turinês a independência se apresenta como sinônimo de liberdade
assim como da concepção de autonomia. Em seu diálogo com Viroli, este discorda da
posição de Bobbio, que promove a equivalência das categorias e concepções
mencionadas. Na visão de Viroli existem duas categorias diferenciadas de liberdade.
Uma pertencente ao campo democrático e uma outra ao campo da teoria liberal, em
que pese o ideal de liberdade e o de democracia terem sido, nas palavras de Leoni,
concomitantes desde os tempos da Atenas antiga (1993, p.115). A primeira sustenta
que a liberdade se dá no campo de ação das leis, as quais são postas por seres
autônomos, que compõem a sociedade que estará regida por aquelas normas.
Há ainda, por outro lado, a visão da teoria liberal sobre a categoria liberdade é
de que quanto maior o campo de ação das normas jurídicas mais estreito torna-se o
das liberdades. Portanto, a evolução direta desta forma de raciocínio foi o
neoliberalismo de Hayek, Friedman9 além de Leoni que, grosso modo, defendem a
8
As observações sobre as concepções de autonomia e heteronomia jurídica na obra de Bobbio são
recorrentes. Uma delas, que não é a mais extensa e nem a inserida em um texto específico de direito, o
que creio provar ainda mais sua preocupação com o tema, se encontra em BOBBIO; VIROLI, 2002b, p.
49.
9
Algumas referências bibliográficas básicas para o leitor introduzir-se no argumento trabalhado são as
seguintes: FRIEDMAN (1988) e HAYEK (1985; 1982).
68
tese da diminuição da esfera estatal ao mínimo possível, até versões mais próximas ao
anarquismo, e já atinentes ao pensamento jusfilosófico, como o de Robert Nozick
(1988). Como diz Leoni, em sua leitura de Hayek, pessoalmente crê que:
“[...] as pessoas que prezam a liberdade individual devem suspeitar
mais ainda dos legisladores, na medida em que é precisamente
através da legislação que o aumento nos poderes – inclusive os
poderes vastos – dos funcionários foi e continua sendo alcançado
[...]” (1993 p.114).
O sentido da liberdade é, enfim, o da defenestração do avanço impulsivo do
Estado, agressivamente possuído pelo desejo expansionista de sua competência sobre
a esfera de liberdade própria dos indivíduos. Em outros termos, o que se visa é a
tutela da individualidade frente a ingerência Estatal no controle das ações daqueles
que lhe outorgaram o poder. Nesta tradição liberal, em nossos dias a compenetração
na defesa das esferas individuais desloca o debate para outro ponto. Trata-se da
ausência de uma esfera coletiva mais atuante na defesa de valores públicos e, porque
não dizê-lo, para uma ampliação da esfera individual que deve ser alvo de tanta tutela
quanto cuidado para que tal preocupação não ocasione um desequilíbrio interno no
que tange às estruturas comunitárias dentro das quais, necessariamente, o indivíduo
procura desenvolver seus potenciais.
Ser independente para Bobbio é ser livre para agir, mas sê-lo no âmbito da
esfera pública vigilante. Kantiano, este conceito aplica-se ao desfrute e livre ação no
âmbito da esfera pública. Ele representa deter e expressar a capacidade de autoorganizar-se politicamente e dar-se leis a si mesmo (2002b, p.37), no melhor sentido
kantiano que a expressão possui. Retornando a tradição liberal da qual Bobbio se
declara pertencente, é fato que John Stuart Mill já anunciava que naquele momento
histórico existia “[...] una creciente inclinación a extender de manera indebida los
poderes de la sociedad sobre el individuo [...]” (1991, p.80). No bojo dos argumentos
69
do turinês é recorrente esta preocupação com a extensão dos poderes do Estado e, por
conseguinte, da necessidade de disponibilizar eficazes mecanismos para limitá-lo,
como será visto mais detalhadamente no decorrer deste escrito.
Uma segunda idéia proposta para a análise do tema em questão é trazida a
público por um dos autores mais sugestivos sobre o tema. Trata-se de Antonio
Martino. Para ele a relação entre liberdade e igualdade se dá com forte predomínio da
primeira sobre a segunda. Nos encontramos com uma situação de considerável
disparidade, notavelmente quando este predomínio concentra-se na órbita do domínio
econômico. O mesmo autor sustenta que ao verificar-se um forte predomínio da
igualdade isto nos remeteria para a configuração de formas políticas autocráticas
(1983, p.314). Já a sobreposição da liberdade sobre a igualdade é admitida até mesmo
por Ruiz-Miguel (1994, p.124). Estas são idéias tão centrais no debate sobre a questão
que se torna um imperativo demorar-se algo mais sobre elas.
Uma das conclusões parciais a que se chega é que a relação entre liberdade e
igualdade em Bobbio inclina-se para uma concepção do triunfo da desigualdade. Não
obstante, ela deve ser entendida em termos ponderados, sem um exacerbado grau de
abrangência que, por exemplo, lhe concede a teoria neoliberal. Tal pendor para o
desigualitarismo como resultante da análise entre liberdade e igualdade deve-se a que
da consideração entre ambas emerge o triunfo da primeira. Por conseguinte surge sua
pré-condição, a desigualdade. Esta é assim entendida por força de que o mundo do
livre agir e da realização da individualidade não pode escapar da intrínseca
diferenciação de nossas peculiaridades como seres humanos e da projeção desigual
que isto acarreta no mundo da vida concreta.
Sobre a idéia de que pode dar-se um forte predomínio da liberdade sobre a
igualdade,
algumas
ponderações
importantes
todavia
devem
ser
feitas.
70
Primeiramente, não deve afirmar-se que seja, por princípio, um predomínio carente de
atributos saudáveis. Contudo, como metodologicamente foi anunciado, esta
dissertação permanece alheia a quaisquer absolutos. De resto, a filosofia bobbiana
igualmente propõe que as matizações são condicionantes para uma perspectiva
conseqüente com o ponto de vista metodológico aqui anunciado. O predomínio
qualificado como saudável se justifica em consonância com o liberalismo e com a
filosofia bobbiana. Ela expressa a liberdade como ponto de partida e também de
chegada.
A liberdade possui a característica de inalienabilidade para a existência
humana, desde logo, suposta a garantia da vida. Tudo isto se apresenta com vistas a
que os demais fins que medeiam a existência possam ser alcançados em níveis
mínimos. É neste sentido que creio que esteja correto Díaz ao sustentar o valor
supremo da liberdade. Recorrendo ao pensamento antigo, já Demócrito dava a
entender em um de seus fragmentos todavia conservados, que a liberdade e a
democracia precedem a prosperidade. Isto significa sua aceitação como um bem
maior, como um verdadeiro fim ao qual os homens aspiram em detrimento de outros
bens costumeiramente havidos como tão ou mais valiosos que a própria liberdade.
Neste particular a relativização que merece ser feita diz respeito a que ela
questiona até que ponto as instituições de uma sociedade aberta democrática
suportariam sem que em paralelo se desse o avanço dos índices de riqueza. Qual o
limite de suas forças até que as demandas por riqueza terminassem por minar-lhe as
bases? Seria este um célere processo de corrosão? Em verdade não há uma resposta
acabada para estas questões. Todas elas dependem das circunstâncias em que o
Estado e a sociedade em questão encontrem-se inseridos.
Partindo deste argumento quiçá seja apropriado contextualizar a máxima de
71
Demócrito e, mesmo aceitando sua tese central, admitir que em nossos dias os
avanços científicos e seu conhecimento quase que de modo imediato por parte de
todos, lhes tornam indivíduos potencialmente demandantes destas novas descobertas.
Frente a estes avanços na área das ciências que as democracias também se vêem
chamadas a dar respostas eficazes. Exemplo disto são as áreas médicas. Aqui as
autoridades políticas passam a ter de dar respostas às demandas por tratamentos e
equipamentos de última geração bem como por capacitação cada vez maior, de mãode-obra altamente especializada que as novas circunstâncias introduzem. Isto tem em
vista a atender as demandas de seus cidadãos de forma mais efetiva e, logo, que a
democracia não sofra, pelo menos desde ângulo, corrosivos ataques.
Por um instante conceba-se o quanto críticas sobre o tema abordado logo
acima podem ser infundadas. Parta-se do pressuposto de que as verbas escassas são
bem aplicadas mas que, de qualquer forma, existirão escolhas a ser feitas, por
exemplo, na alocação de recursos de terminarão por salvar mais ou menos vidas de
determinados grupos de pacientes em detrimento de outros. As críticas as escolhas
públicas feitas pelos responsáveis políticos no que tange à alocação de recursos em
uma democracia pedem um certo grau de instrução política, ainda quando este não se
revele um manto e escudo protetor quanto às disfunções na formação das opiniões
individuais e da opinião pública. Neste sentido é perceptível como a liberdade (em
todas as suas acepções) tem ligação com a cultura pública democrática que torne a
liberdade um dos valores comunitários centrais aos quais proteger.
Ao retomar o argumento central cabe sublinhar a importância da identificação
da liberdade não apenas como um valor individual mas como um alto valor coletivo
que serve como esteio para que elas descansem com segurança. A liberdade não se
materializa por meio de meras aspirações, mas depende, e em grau elevado, da
72
existência de instituições eficazes que tenham como sólido alicerce o caldo cultural
político publicamente articulado que tenha por sentido sua constante defesa. Aqui
emerge uma fonte inspiradora dos regimes livres, qual seja, a categoria tratada no
capítulo anterior, a legitimidade.
Uma análise entre liberdade e igualdade nos termos propostos sugere a busca
por versões dessas categorias que se apresentem de forma ponderada. Na prática, uma
dessas alternativas equivale a adoção de posições que se aproximam bastante da
teoria bobbiana. Portanto, a busca pela compreensão e equilíbrio entre estas
categorias sugere uma análise ponderada da desigualdade em sua convivência com a
igualdade, sempre quando entendida em seu sentido limitado. Ao ser percebida em
seu domínio material revela-se uma categoria tão ampla e irrestrita (plano teórico)
quanto irrealizável (plano concreto). Conceber a igualdade como factível é limitá-la
ao âmbito formal e jurídico ou, por outro lado, restringi-la a uma mais modesta
concepção.
É concebível uma abordagem que enfatize o predomínio da igualdade e isto
remete à configuração de formas políticas autocráticas. No plano concreto esta
observação é procedente. Analisando desde uma perspectiva histórica, por exemplo, a
conclusão dista um pouco de um otimismo pelo igualitarismo. Na realidade, o
predomínio da igualdade sobre o valor liberdade encontrou tradução histórica em
regimes políticos onde teve lugar alguma forma de autocracia, vale dizer, nos
denominados regimes fechados.
Por sua vez, o triunfo da desigualdade não deve ser compreendido em termos
absolutos para que possa ser efetivamente considerado como aportador de benévolos
efeitos. Seguindo análise eivada por princípios inerentes à filosofia bobbiana, creio
poder dizer que a desigualdade poderia ser considerada triunfante mesmo que em
73
condições muito distantes de uma versão de um desigualitarismo absoluto. Em
Bobbio não será detectável a convergência do desigualitarismo absoluto e liberdade –
assim como não é o igualitarismo com a liberdade –, nem no plano deôntico nem
mesmo no plano fático. Neste sentido, a intervenção do Estado não necessita que se
dê em termos positivos. A rigor, como diz Dahl, tão somente o fato de que manifeste
sua preocupação pode ser suficiente para que se mantenha e, talvez mesmo, até para
que conquiste a lealdade de um grupo de pessoas excluídas do processo político (Cf.
DAHL, 1997, p.99).
A abordagem apropriada às provisórias conclusões que se pode alcançar aqui
são conexas com as apresentadas no esquema bobbiano. Este, em tantos momentos
rechaçado por ambíguo, na realidade parece nutrir especial apreço pela busca de
equilíbrio entre categorias especialmente difíceis de serem ponderadas como é o caso
da desigualdade e da liberdade. Em circunstância deste tipo, atribuir-lhe a pecha de
ambíguo é, no mínimo, prejudicial a uma boa compreensão do real sentido da
filosofia do turinês. O que ele promove na relação entre liberdade e igualdade é uma
integração destas categorias de sorte em que a primeira goze de predominância. Ela é
concebida de modo a que possa abrir espaços para as ações livres, com especiais
cuidados com a intervenção estatal.
Neste momento faz sentido a interpretação de Bobbio sobre a aproximação da
categoria liberdade desde a ótica do direito. Segundo ele, há dois compartimentos
visualizáveis desde esta ótica. A primeira delas diz respeito a regulação da atividade
do homem pelas normas jurídicas o que, por conseguinte, é denominado de espaço
jurídico pleno. A segunda é denominada zona livre, e representa um espaço jurídico
vazio. Quando Bobbio argumenta que tertium non datur e logo a seguir que a esfera
da liberdade está diretamente relacionada ao aumento ou diminuição desta ação
74
legislativa (1990a, p.129) percebe-se novo fenômeno. Trata-se de, agora claramente,
como ele se encontra afinado e perfilado com os teóricos que protestam contra o
intervencionismo desmesurado10 do Estado. Isto representa uma aposta em um dos
mais caros princípios liberais, aspecto no qual emerge do classicismo liberal a
argumentação milliana recém exposta logo acima.
A todas luzes aqui é onde Bobbio começa a realizar a integração de certa dose
de igualdade com, por exemplo, a liberdade. Mantida a desigualdade como valor
fundante, a igualdade limitada tem lugar na sociedade bobbiana. Na leitura desta
dissertação esta categoria intervém em sua filosofia jurídico-política como meio para
a construção de uma sociedade solidamente organizada. A idéia principal é de que os
horizontes estejam abertos e com mais amplitude aos indivíduos para que desfrutem
de possibilidades mais tangíveis de desenvolver seus valores pessoais, suas
personalidades e, ao conjugá-los, seus planos de vida. Portanto, ao falar de
construtivismo no seio da filosofia bobbiana não se trata de rememorar a prática da
ação de algum ente “superético” que age desde altas e improváveis esferas na
elaboração de uma sociedade que lhe corresponda em supremos valores.
A integração entre liberdade e igualdade dar-se-ia em planos bastante práticos.
Ela estaria eivada de falhas e imperfeições, mas fundamentalmente sustentada na
desigualdade. A relação entre liberdade e igualdade não se dá nos termos de perfeita
equivalência. Interpreta-se da leitura de Bobbio que muito embora a liberdade e a
desigualdade gozem de prioridade, a igualdade também é imprescindível para a
estruturação de uma boa sociedade. Do que se trata, e não é tarefa fácil, é de mensurar
seus limites ótimos para que possa auxiliar e não obstaculizar a sociedade aberta e de
mercado em que está inserida. Ainda que esta categoria igualdade seja entendida
10
É neste aspecto em nada secundário que Bobbio difere, por exemplo, das posições teóricas
desenvolvidas pelos pró-homens do neoliberalismo como Hayek e Friedman.
75
como secundária, ela ocupa uma posição central na estrutura da sociedade
organizada. Atua como elemento potencializador de suas capacidades de
desenvolvimento, em todos os âmbitos. Mesmo quando consideramos tão somente a
prioridade dos interesses individuais, o fato é que sua tutela eficaz não pode
prescindir para tanto de atentar aos objetivos e às relações sociais mantidas e, por
conseguinte, da intervenção de uma categoria que medeia muitas destas relações, qual
seja, a de igualdade.
A igualdade operativa em Bobbio será de tal espécie que demanda a
apresentação de uma tutela que possa traduzir-se na prática das relações sociais,
políticas e econômicas. Estas instâncias detêm um poder de impacto considerável no
aumento ou na diminuição das desigualdades, e a um nível em que a dignidade do ser
humano é atingida de modo visceral, quando não vital. Portanto, ao integrar as
categorias liberdade e igualdade não se trata aqui de subsumir o primeiro ao segundo
mas, ao contrário, de articular a participação do segundo na esfera do primeiro
promovendo, antes de tudo, a esfera de desigualdade que a liberdade não apenas
pressupõe como necessita para manter-se ativa.
Contudo, dentro da ampla esfera de ação da liberdade há que se criar
obstáculos para que seus nefastos resultados, tais como os altos níveis de
desigualdade, possam ser continuamente desenvolver-se. Esta intermediação deve
encontrar-se baseada em valores sociais compartilhados, tais como uma concepção de
bem social e de desenvolvimento sócio-econômico. Todas estas concepções devem
atuar no âmbito da esfera da liberdade. Independizar a categoria da igualdade,
soprepondo-a às demais, ou valer-se de concepções não compartilhadas, é
instrumento que historicamente demonstrou que, no mais das vezes, resulta na
subjugação da liberdade. Foi infraposta a valores supostamente nobres que, contudo,
76
não passaram de engodo para a submissão de interesses gerais ao de castas políticas.
O caráter fechado e, do ponto de vista da evolução da história das instituições
políticas, antiquado do discurso libertário do socialismo igualitarista, não passou
inadvertido a Bobbio. Este caráter pôde muito bem entendê-lo juntamente com outros
intelectuais italianos quando de sua viagem à China comunista nos idos de 1950.
Contudo, talvez tenha percebido isto até mesmo antes, uma vez que confirma em uma
de suas últimas obras que “[...] no fim da guerra (Segunda Grande Guerra Mundial)
sabíamos muito bem que o Estado soviético era um Estado despótico [...]” (1998a,
p.95). Mesmo em seus mais clarividentes momentos Bobbio foi tão claro sobre o
assunto. Mas ele não esteve desacompanhado em suas conclusões. Jean-Paul Sartre,
por exemplo, pronunciava violentas diatribes contra os defensores da liberdade de
mercado. Estendeu-se tanto nisto a ponto de afirmar quando de seu regresso da União
Soviética em meados dos anos 50, precisamente em alguns dos mais difíceis períodos
relativamente às liberdades, que tinha podido comprovar que “[...] na União Soviética
a liberdade de crítica é total [...]” (Cf. LLOSA, 2005, p.D8). Fora pouco e ainda
negou em sua famosa polêmica com Albert Camus a existência dos campos de
concentração todavia mantidos por Joseph Vissarionovich Djugashvili (vulgo Stalin)
na melhor tradição nacional-socialista (Ib.). Mas, ainda que em menor número,
Bobbio contava a seu favor com luminares do século recém vencido do naipe de
Raymond Aron.
Aron, tanto quanto Bobbio após sua viagem ao gigante chinês, reconheceu
após sua estadia na URSS – e antes mesmo da desestalinização e do reconhecimento
oficial desta do culto às personalidades – que:
“[...] Estado totalitário, estalinista, [...] deportava milhões de kulaks
para acelerar a coletivização das terras e, durante os expurgos,
aprisiona milhões de cidadãos por razões que permanecem ainda
hoje misteriosas [...] esse Estado-Minotauro merece de fato o temor e
o ódio que os liberais de outrora dirigiam a qualquer tipo de Estado
77
[...]” (1985, p.270).
Assim, enquanto os estalinistas do Ocidente alteravam o discurso mas não a
convicção, Bobbio e Aron, entre outros, ao longo de suas obras apresentavam com
provas a queda político-discursiva do regime soviético como uma exemplar marca de
como a ausência de liberdade sob a égide, ainda que puramente retórica, do triunfo da
igualdade inviabiliza o nascimento de um regime democrático. Era notório o
reconhecimento de Aron de que o estado das liberdades naquele país era lastimável.
Ironicamente afirmava que “[...] o império soviético, ambicionando as duas coisas
(liberdade e igualdade), excluiu a liberdade sem ao menos ‘sintonizar’ a igualdade
[...]” (apud PONTES, 2005, p.83). Aquele momento histórico era, pelo menos na
órbita dos homens políticos de compromisso com o diálogo, muito pouco propício às
afirmações como as publicamente atiradas ao vento por Sarte, adjetivando todos os
anticomunistas de cães. Bobbio está longe de ocupar-se com este tipo de libelos.
Aproxima-se das críticas comedidas daquele que se tornaria, após os ataques do
célebre e influente francês, um de seus desafetos, o liberal Aron. Para Bobbio, nem
com eles, nem sem eles, segundo uma de suas máximas prediletas.
Atualmente, em que pese o caráter retórico menos incendiário na órbita
pública, o perigo todavia existente é de que na ausência de discursos aos quais
enfrentar-se claramente, a arena discursivo-teórica liberal termine por esgotar-se ao
não oferecer respostas eficazes a problemas menores mas inerentes à existência.
Neste ponto pode incidir em petição de princípio símile a estas as quais
historicamente buscou opor-se. Momento conseguinte, pode atingir-lhe de forma vital
mais do que a credibilidade teórica, mas também e principalmente, a pública. O
próximo passo é a legitimidade, que lhe é emprestada pela opinião pública. Por isto,
então, começa a tornar-se necessário o exame do conceito do político e sua relação
78
com uma sociedade livre com forma de que esta possa manter-se operante assim
como os valores discutidos neste item.
2.2 – O conceito do político na sociedade livre e sua relação com a defesa dos
fundamentos da democracia
A relação entre política (analisada desde seus graus de legitimidade) e o
direito na filosofia política bobbiana é de clara distinção. Contudo, em que pese tal
dissociação, elas possuem um alto grau de conexão. Sobre se ambos podem ser
reputados como interdependentes é do que as próximas linhas pretendem ocupar-se
assim como sua forma de inserção em uma sociedade livre.
Para Bobbio, quando entendemos o direito como um conjunto de normas sob
as quais se desenvolve a vida em sociedade, logo a seguir nos deparamos com seu
precedente lógico, qual seja, a política. Recordando um de seus clássicos mais
admirados, Thomas Hobbes, traz à colação uma das máximas que traspassa sua obra,
a saber: “Autorictas non veritas facit legem”.11 Como dito por ele em um trecho de
sua obra, é “[...] para além do direito se encontra a política [...]” (2001b, p.33). Este
“para além”, quiçá, fosse melhor compreendido no contexto geral de sua obra acaso
houvesse preferido a fórmula “para aquém” e/ou para além. Parece ser bastante
razoável afirmar que o direito representa tão somente um hiato entre dois momentos
de afirmação das instâncias da política.
Esta concepção se torna evidente quando Bobbio sustenta que “[...] o poder
nasce de normas e produz normas [...]” (1990c, p.301) e, da mesma forma, “[...] a
norma nasce do poder e produz outros poderes [...]” (Ib.). Através destas palavras é
11
Sobre a relação bastante próxima do pensamento de Bobbio com Hobbes bastaria com assinalar sua
extensa obra analítica sobre os principais escritos do filósofo de Malmesbury. Ver BOBBIO (1991b).
79
perceptível que a distinção entre política e direito realizada por Bobbio não é do tipo
excludente. Ambas esferas aqui consideradas não deixam de coexistir em um mesmo
ambiente. Não obstante, há certa relação e ordem entre elas. À similaridade da
indicação de Peces-Barba, aqui nos inclinamos pela leitura de que mesmo quando
suas ações se dêem em momentos diferenciados (1993, p.22), quer no tempo ou no
espaço, elas não deixam de manter conexão.
O desenvolvimento da política e do direito podem ser entendidos e mesmo
desenhados como uma efetiva sucessão, ainda que intercalada, de poder (política) e
norma (direito). Uma única dúvida permanece na disputa entre as diferentes teorias
acerca de qual dos dois elementos presta-se como fundamento a todo o ordenamento
jurídico-político, se o direito ou o poder político, como querem, pela ordem,
juspositivistas e sociólogos do direito.
Quando Bobbio sublinha que o problema fundamental do direito político é o
das relações entre direito e poder (2001b, p.34) ele nos remete à análise detalhada
proposta aqui. Isto pede considerações sobre o problema do Estado livre, da
democracia e do papel do intelectual neste contexto. Um dos entroncamentos entre o
pensar político e o jurídico dá-se quando o turinês concebe o que denomina de função
promocional do direito.
A função promocional é estritamente jurídica e é concebida na seara do
político. Ela opera diretamente na sociedade e tem ampla repercussão no que pode ser
chamado de teoria política de Bobbio. Segundo ele, esta concepção responde ao
aumento vertiginoso do ordenamento jurídico e, mais, das chamadas normas
organizacionais. Com estas o Estado tem por objetivo, como diz Tércio Sampaio
Ferraz, o de regular suas atividades, sejam elas assistenciais, fiscalizadoras ou
produtoras (2001, p.48). Percebe-se com clareza como a orientação política,
80
interventora ou não de um Estado, mantém estrita conexão com a estrutura jurídica do
Estado até mesmo em suas preferências por normas abertas (normas de função
promocional ou positivas) estimulantes de comportamentos desejáveis ou se, ao
tratar-se de um regime menos democrático, prefere as normas imperativas negativas.
Admitindo esta função promocional do direito ele introduz no debate o
conceito de técnicas ou normas de encorajamento ou, ao contrário, de
desencorajamento de certas condutas. A diferença relativamente a aproximação
anterior de conceber o ordenamento jurídico reside em que agora, afora a concepção
meramente repressiva, Bobbio manifesta sua adesão a medidas não necessariamente
punitivas como formas de encorajar as condutas desejáveis. Em outras palavras, o
objeto de análise são técnicas premiais, as quais, de certo modo, poderiam, embora
nem de modo distante ele o mencione, deitar raízes em estudos da psicologia
behaviorista.
As normas jurídicas promocionais transcendem as técnicas clássicas
meramente punitivas ou negativas e não tendem a ser adotadas em Estados cuja
orientação política seja de, pelo menos, um baixo nível de apreço pelas instituições de
uma sociedade livre. Disto é razoável extrair que as sanções premiais ou positivas –
das quais as isenções fiscais, os subsídios ou os incentivos de toda espécie são
exemplos bastante apropriados –, são típicas de um ordenamento jurídico que visa
ampliar a esfera de livre ação dos indivíduos, retirando-lhes certa perspectiva da
carga penosa de uma sanção.
Esta concepção da norma jurídica mostra como Bobbio estabelece conexão
entre a função política com o direito já positivado, a forma segundo a qual concebe o
direito como dotado de uma função de adequação à sociedade na qual está inserido.
Neste sentido, pelo menos nas sociedades ocidentais, é possível empreender a
81
conclusão de que Bobbio conjuga a tarefa do direito com a de uma política voltada
para a tutela das liberdades e, como sugere sua teoria das normas promocionais, a de
libertação do direito de suas técnicas de direcionamento da conduta humana através
de pesadas sanções punitivas. Ao contrário, ao defender a função promocional ou
sanções positivas, Bobbio fomenta o incremento de um das categorias básicas em sua
filosofia e que encaixam perfeitamente com o liberalismo, ou seja, a responsabilidade
individual e seu pressuposto, a liberdade de escolha.
Segue bastante bem Ferraz quando diz que Bobbio observa que nos
comportamentos permitidos o agente é livre de fazer ou não fazer, vale dizer, de
utilizar-se de sua liberdade (2001, p.49). A filosofia que está por trás disto é de corte
francamente liberal. Como diz o mesmo autor, “[...] isto cria a impressão de que, no
uso das sanções positivas, o agente sancionador restringe sua própria força, posto que
não ameaça, mas encoraja [...]” (Ib.). Sendo é certo dizer que encoraja
comportamentos, o legislador o faz seguindo vetores do liberalismo, mas nunca
determinando-o. Desde logo, não escapa ao ilustre jusfilósofo brasileiro que no uso
deste tipo de sanção pudesse a autonomia da vontade estar sendo sutilmente
escamoteada. Contudo, o aprofundamento deste tema transcenderia aos limites desta
dissertação e remeteria ao velho, muito embora sempre atual, debate kantiano sobre o
livre arbítrio.
Até aqui uma parcial conclusão sobre a visão de Estado de Bobbio pode ser
alcançada. Disto é possível extrair elementos jurídico-políticos que permitem uma
melhor visão sobre a concepção de Estado e, em última análise, até ideológica da
filosofia bobbiana. A teoria que perpassa a norma jurídica promocional ou positiva
possui um caráter modificador ou criador do direito, como observa Ferraz. Por outro
lado, sustenta o autor, as normas próprias de um Estado protetor e repressor põe o
82
jurista em situação de intérprete e sistematizador do direito positivo (2001, p.50).
Esta última perspectiva encontra-se filiada ao que se convencionou denominar
de dogmática jurídica (2001, p.50-51) ou teoria estrutural do direito. Ela foi,
indubitavelmente, transcendida por Bobbio, rumando não apenas à interpretação
axiológica como a uma concepção dinâmica do direito. Quanto ao trabalho de Ferraz,
ele procede a uma clara diferenciação entre o enfoque estrutural e o da teoria
funcional que vale a pena reproduzir em breves linhas. Da primeira, diz ele que:
“[...] prepondera (...) a interpretação do sentido das normas, as
questões formais da eliminação de antinomias, da integração de
lacunas, numa palavra, de sistematização global dos ordenamentos
conforme a melhor tradição dogmática. No enfoque funcionalista (...)
a problemática volta-se muito mais para a análise de situações,
análise e confronto de avaliações, escolha de avaliação e formulação
de regras [...]” (2001, p.50-51).
Fora permitido traduzir essas duas atitudes segundo um enfoque estrutural, a
relação meio e fim no estudo do direito ficaria limitada a um pressuposto global e
abstrato, que quase não interferiria em análises símiles a que indicam que o direito é
uma ordem coativa que visa à obtenção da segurança coletiva. Já no enfoque
funcionalista, a relação meio e fim ganha outros relevos, passa a constituir o cerne da
análise exigindo do jurista novas modalizações do fenômeno normativo.
Retomando o argumento do penúltimo parágrafo, dizia que quando Bobbio
realiza esta passagem da teoria estrutural do direito, o que faz em certa medida
influenciado por Kelsen – entre outros –, rumo a uma teoria funcional do direito, ele
termina por tornar mais claras quais as ligações existentes entre política e direito em
uma sociedade aberta. Deixava patente que os diversos centros de poder formados em
uma sociedade deste tipo compõem o quadro de uma teoria funcionalista do direito,
posto que esta estimula o papel criador e modificador das normas segundo um
modelo que não é necessariamente centralizado. Na verdade, aponta em sentido
83
inverso, isto é, caminha a passos céleres para uma concepção teórica e prática da
multiplicação dos centros de poder e de produção do direito e, ainda mais, de
legitimação dos centros estatais de produção do direito.
Frente a estas relações estabelecidas entre direito e poder (política) Bobbio
parece muito à vontade para concluir em uma de suas mais conhecidas obras – e de
extrema atualidade, em que pese publicada em 1979 – que aqueles pertencentes à
intelectualidade e que vivem em uma sociedade democrática quando pregam o uso da
violência se excedem. Ao fazê-lo, argumenta, não merecem mais ser considerados
senão como “[...] insensatos e irresponsáveis [...]” (1982, p.19). Este seu comentário
possui tons bastante definitivos a respeito. Em seu cerne o argumento mostra o quanto
rechaça a violência como meio de fazer política e, por conseguinte, como a
democracia seria um dos alicerces em prol de uma vida política pacífica. Assim as
coisas porque a democracia asseguraria níveis de rotação no poder e, ainda mais, que
estes se dão sem que a violência seja o meio para que se efetivem.
Sobre a violência na política cabem ainda dois comentários. O primeiro é
sobre sua atualidade e, o segundo, sobre sua importância para Bobbio. Quanto ao
primeiro aspecto convém recordar interessante artigo de Vázquez (2005). Nele o
autor demonstra o quão expandida encontra-se a violência como forma de tentativa de
realização de tarefas inerentes à política. As provas empíricas argüidas pelo autor
compreendem desde a política interna de vários países às relações internacionais.
A violência foi uma idéia contra a qual Bobbio lutou quase obstinadamente
durante toda sua vida, até mesmo por motivação e sofrimento pessoal. Resulta que
quando a democracia afirmou-se como o veículo de transmissão pacífica de poder ela
ganha um espaço central na obra do autor, e é sobre seus fundamentos que as
próximas linhas irão ocupar-se.
84
A democracia é um dos temas centrais da filosofia política e jurídica de
Bobbio. Várias foram suas abordagens sobre o assunto ao longo de sua vasta
bibliografia. Nesse momento não seria exeqüível reproduzir todas estas variáveis e
nem mesmo do ponto de vista metodológico seria aconselhável proceder a tentar tal
empreendimento. O objetivo aqui será o de focalizar nada mais do que alguns
aspectos considerados altamente relevantes para o desenvolvimento da argumentação
central desta dissertação. Esta visa extrair conseqüências partindo de uma análise
percuciente da democracia e sua relação e ligação com as já mencionadas categorias
liberdade e igualdade, bem como de mais alguns detalhes todavia não examinados
sobre a relação que no nível de uma sociedade aberta estes últimos estabelecem entre
si.
Bem especificados e delimitados estes aspectos, isto virá a permitir
minimamente iluminar, guardada certa distância – o que implica aceitar que a tarefa
não se cumprirá no sentido de desvendar-lhe inteiramente –, que sejam freqüentados
certos recônditos do núcleo do pensamento bobbiano sobre a questão em foco mas
que são todavia pouco debatidos. Portanto, mesmo obtendo êxito apenas de modo
parcial, isto por si só isto já valeria para insistir neste item, dotado de completa
autonomia dentro da perspectiva bobbiana.
Estas linhas se ocuparão em precisar em que consiste a concepção de
democracia em Bobbio para, logo a seguir, encadeá-la com o sentido e a relevância de
que goza a participação política no contexto de sua obra política. Nela será aplicada
vigorosamente sua concepção de activae civitatis. Neste estudo existe a percepção de
que ela desfruta de uma posição bastante privilegiada, ao menos quando se trata de
valer-se de uma hermenêutica comprometida com uma visão holística da filosofia
político-jurídica de Bobbio. No desenvolvimento destes itens com certeza surgirão
85
questões paralelas, que mesmo quando não planejadas desde o princípio, requisitarão
uma resposta satisfatória.
Ainda antes de dar início a esta abordagem convém primeiramente recordar
dois aspectos sobre a concepção de democracia. Conforme assinalado, várias são as
aproximações sobre a democracia levadas a termo no decorrer da história da filosofia
política. Muito embora este aspecto deva ser considerado, suas origens são comuns.
Isto possivelmente esclareça alguns pontos sobre o seu desenvolvimento e também no
que se refere ao aspecto conceitual.
A concepção de democracia provém da Antigüidade Grega, dos estudos e dos
pensadores clássicos amplamente dominados por Bobbio. Ali a democracia possuía
uma leitura ou conotação negativa. Era entendida como uma forma poluta de regime
político, como um desvio de um regime político virtuoso em que se dava o triunfo da
demagogia popular. Em Aristóteles, por exemplo, se observa com clareza que a
democracia é considerada como o governo dos demagogos, muito embora esta
péssima reputação fosse contraditada por Tucídides, em seu célebre discurso fúnebre
aos atenienses. Bem mais adiante, em pensadores de referência como Hobbes, em
seus estudos sobre Atenas, referiu-se à democracia como não merecedora de melhor
consideração do que a reservada por Aristóteles assim como a atribuída por Schmitt.
Já em um filósofo do quilate de Georg Wilhelm Friedrich Hegel a democracia não foi
alvo de menores achaques. Ao contrário, na maior parte das vezes em que surge em
sua obra é como centro de pesadas e constantes críticas.
Mas se entre estas fontes existe um certo consenso sobre a falta de virtude
democrática não há, por outro lado, a possibilidade de traçar em termos lineares uma
conexão teórica entre as críticas desenvolvidas por elas. Isto sim, o que parece
bastante provável em nossos dias é observar o quanto – até mesmo do ponto de vista
86
histórico – a expressão democracia foi mal utilizada. Ele vem servindo para encobrir
todo tipo de sistemas políticos, mesmo aqueles reconhecidamente avessos às
liberdades. Isto põem amplas dificuldades para uma melhor percepção pelos
indivíduos e pela sociedade sobre a natureza e os limites teóricos da democracia e,
nesta medida, de oferecer melhores parâmetros para as cobranças que podem recair
sobre tal sistema.
Antes de prosseguir no exame da democracia é interessante sublinhar as três
tradições históricas que confluem na teoria da democracia segundo Bobbio. São elas
as seguintes: a) a teoria clássica, ou teoria aristotélica; b) a teoria medieval ou de
origem romana; c) a teoria moderna, conhecida como teoria de Maquiavel. Na
primeira delas Bobbio explica que se sobressai a compreensão da democracia como
governo do povo. Na segunda, diz que:
“[...] apoiada na soberania popular, na base da qual há a
contraposição de uma concepção ascendente a uma concepção
descendente da soberania conforme o poder supremo deriva do povo
e se torna representativo ou deriva do príncipe e se transmite por
delegação do superior para o inferior [...]” (1998b, p.319).
Nas palavras de Maquiavel lê-se a síntese do Estado absoluto e do Estado
democraticamente fundamentado. A teoria moderna nasce, como se supõe, com o
Estado moderno. Isto se dá na forma das grandes monarquias que se instalaram
naquele período histórico ainda dominado por uma concepção de que sua
fundamentação segue o padrão de uma forma descendente, vale dizer, onde o poder
supremo deriva do príncipe.
Este foi o padrão com que o Estado começa a ter sua estrutura e
fundamentação abordada. Neste diapasão, entende-se que a concepção de democracia
começa a colocar as bases para vir a fundir-se com outra concepção que viria a
influenciar definitivamente nos Estados ocidentais, qual seja, a de republicanismo. À
87
época o republicanismo era entendido tão somente como antípoda político da
aristocracia, sem que em linhas gerais fossem estabelecidos vínculos positivos
relativamente à democracia12. Contextualizando a questão no período pósrenascentista e, quiçá, do Iluminismo, é razoável dizer que este era o quadro em que
se desenvolviam as tensões ideológicas e políticas do período pré-revolucionário
francês e norte-americano.
2.3 – Bobbio e Rousseau: diálogo sobre o desenvolvimento da sociedade
democrática
No século XVIII Jean-Jacques Rousseau apresenta uma outra coincidência
teórica sobre o problema da democracia. Trata-se do conceito de vontade geral e de
como ela se sobrepunha às individualidades de forma legítima. Ao partir da premissa
de que a vontade geral não comete equívocos o autor parte a abordagem do famoso
trecho já no início de seu célebre O Contrato Social no qual questiona como seria
possível justificar a submissão do homem em sociedade. Perdida sua individualidade
após constituída a comunidade, dentro da qual se resguarda dos perigos da vida
isolada, agora se necessita de uma justificativa política para o exercício de uma
vontade geral bastante ampla.
Tal amplitude de horizontes do conceito de vontade geral é bem observado
por Sabine. Segundo o autor ela representa um “hecho único respecto a una
comunidad, a saber: que ésta tiene un bien colectivo que no es lo mismo que los
12
O que quero dizer aqui com que em “linhas gerais” não foi estabelecido vínculo positivo entre
republicanismo e democracia é que houveram diversas abordagens do assunto. Como indica Pocock, as
diversas aproximações ao tema se dão na América, na Inglaterra e a partir da ótica da teoria maquiavélica
e de seus sucessores (ver POCOCK, 2002).
88
intereses privados de sus miembros. En cierto sentido vive su propia vida, realiza su
propio destino y sufre su propia suerte” (1992, p.432). Nota-se como o intérprete
distancia a vida do indivíduo da comunidade ou, em outros termos, como o indivíduo
subjaz àquilo que em Rousseau se concebe como vontade geral, pois ela é que será
capaz de apontar os mais lídimos interesses sociais pelos quais o homem abandonou o
estado de natureza para viver em comunidade.
A tese de Rousseau da sobreposição da vontade geral sobre as
individualidades opõe-se de certa forma a uma concepção pluralista. Observa-se tal
oposição na medida em que a vontade geral é potencialmente esclarecedora do que
serve, ou não, aos desígnios sociais, e individuais. O espaço para o dissenso é ínfimo
perante tão magnânimo conceito rousseauniano. Em outro e oposto contexto
filosófico, John Stuart Mill afirmara que a liberdade de expressão merece estar
assegurada, pois ela oferece como retorno a possibilidade o caminho da correção de
quaisquer distorções da opinião que se forme. Aqui afirma-se a predominância dos
interesses da individualidade, ao menos garantindo-se espaço para sua manifestação
e, ainda mais importante, que sua esfera individual não seja invadida por uma
concepção triunfante de vontade geral. Nos moldes rousseaunianos pouco resta à
afirmação de uma vida individual díspar daquela entendida como convergente com o
conceito de vontade geral. Enfim, o próprio Sabine reconhece que no bojo da teoria
rousseauniana da vontade geral “[...] la doctrina de los derechos individuales
inviolables [quedan] ostensiblemente [...] abandonado[s]” (1992, p.433).
Em Bobbio não é possível identificar esta supremacia do coletivo e a
submissão do indivíduo. Uma abordagem do tema no turinês remete a consideração
da ligação entre a democracia e o ideal republicano. Nele, ambos estão
inexoravelmente relacionados, algo que, como foi visto no item anterior, não fica
89
suficientemente claro para outros autores. Como diz o italiano, em que pese a
diferença conceitual entre as imagens de democracia e República, elas terminam por
sobrepor-se em alguns escritores clássicos. Em suas ponderações o italiano afirma
que eles:
“[...] exaltam, juntamente com as repúblicas antigas, as repúblicas
pequenas e livres do tempo, desde a Holanda até Gênova, Veneza,
Lucca, e Genebra do citoyen virtueux Jean-Jacques Rousseau. O
Oceana de Harrington [...]” (1998b, p.323).
Foi neste pequeno espaço que a concepção de republicanismo moderno foi
forjada. As origens do triunfo da liberdade no âmbito da vida civil em consonância
com as estruturas políticas estatais caracterizam a vida civil em que todos os
indivíduos submetem-se às leis de forma igualitária. Neste ponto o igualitarismo brota
como valor eminente no sentido da sociedade aberta aqui proposta. Esta concepção
encontra guarida e frutifica na obra de Bobbio. A partir do espaço dedicado ao tema
pelos clássicos deu-se o debate sobre sua valia e aplicabilidade às peculiares
circunstâncias políticas das colônia norte-americana ainda em processo de formação e
em vias de independizar-se.
Até então a idéia de república fora exitosa historicamente apenas em pequenos
espaços geográficos. A imensidão do território norte-americano, que ainda sofreria
acréscimo com a aquisição da Louisiana por Thomas Jefferson, muito embora os
empecilhos legais criados para as políticas expansionistas, geraria profundos debates
sobre a adoção ou não da forma republicana de governo. No cerne deste debate é
detectável a influência rousseauniana. Este, entre outros, sustentava que “[...] el
gobierno democrático conviene a los pequeños Estados, el aristocrático a los
medianos y la monarquía a los grandes [...]” (1988, p.65). Claro que aqui procedo
apenas a uma aproximação de uma concepção de democracia, tal como o de aplicação
ao modelo republicano, conforme a possibilidade acima mencionada, em oposição a
90
todas as demais possíveis. Portanto, no momento histórico vivido pelas
revolucionárias colônias norte-americanas é que a concepção de democracia encontra
seu processo de consolidação, ao menos no sentido que modernamente goza.
É possível dizer que a aproximação conceitual de democracia e
republicanismo se dá até o ponto em que a vontade ou soberania popular constitui
uma vontade geral ilimitada que tudo pode. Eis uma leitura rousseauniana que não
tem símile em Bobbio. Parece ser este um dos pontos divisores de águas entre a
democracia entendida em sua forma legítima e limitada (bobbiana), e por que não
dizer clássica, em oposição a uma outra vertente que igualmente clamaria para si as
louvas de democrata. Esta última linha apresenta a ilimitação da soberania popular
como seu eixo de argumentação e sustentação política. Desde logo, entre os primeiros
se encontrariam aqueles que temeram historicamente o hiper-poder concentrado nas
mãos de um ou de poucos, fosse qual fosse o ocupante do poder ou o regime de
governo adotado. Daí a necessidade de acatar não apenas a legitimação do poder dêse na forma ascendente, isto é, desde a população à figura do ocupante do cargo
público como também que a forma de exercício do poder seja limitado por uma
ordem normativa bastante precisa.
Acerca disto ainda resta considerar que a ação onipotente de um condutor
político nem mesmo é praticável, pois ele é falível. Mas se a equação política estiver
alicerçada no conceito de vontade geral (popular) ilimitadamente exercida tampouco
o problema fica resolvido, pois ela tampouco encontra-se revestida de infalibilidade.
Não obstante, o entendimento de Rousseau sobre o assunto é de que se acaso alguém
contradita este querer geral o faz porque se equivoca em suas razões. Esta vontade
pública não possui entre seus atributos a falibilidade e, além de tudo, não poderia ser
manipulada (1998, p.103). O que precisamente diz Rousseau é que individualmente
91
os homens poderiam ser enganados, que “[...] hombres rectos y sencillos se les
engaña dificilmente, a causa de su sencillez: los ardides, los pretextos sutiles, no les
infunden respeto; no son ni siquiera bastante finos para ser enganados [...]” (Ib.). Daí
ele segue para concluir sobre o mito da felicidade no campesinato, tese na qual
enfileirou-se outro visionário de seu tempo, Thomas Jefferson, que sustentava idéia
similar.
Mas o que dizer da concepção de Rousseau? Seria um mero equívoco teórico
ou uma irretorquível demonstração de ingenuidade? Os séculos e a experiência
política subseqüente atestaram com sobras o quanto as manipulações políticas sobre a
constituição da opinião pública seriam muito mais do que probabilidades. Mesmo em
se tratando de pequenos Estado seria difícil conceber a contextualização da doutrina
rousseauniana. Relembrar algum caso de sua Genebra de então para aplicar seu
conceito de convergência expressa, consensual, dada pela participação de todos os
cidadãos na elaboração e aprovação das leis. Tampouco permitiria extrair a conclusão
da veracidade das decisões desses pequenos grupos ou assembléias.
A abordagem da idéia de participação o torna um clássico no assunto e isto
fará com que volte a ser retomado por Bobbio. Por outro lado, igualmente deve ser
dito que é este mesmo Rousseau quem oferece o caldo de cultivo para a teoria
jacobina em que a existência individual encontra sentido e referência na formação de
grupos e que, no que tange à política, abre caminho para o furioso exercício do poder
em nome da democracia.13 A compreensão do jacobinismo como uma versão radical
do republicanismo é factível. Sua projeção além do campo da res publica é
igualmente aceita por Bongiovanni para quem pode a “[...] opinião democrática (ser)
exaltada ou sectária [...]” (1998b, p.653). Do ponto de vista histórico tal exaltação
13
Sobre o jacobinismo ver FURET (1989).
92
parece ter lugar na visão dos historiadores no ano de 1793, período em que são
intensificados os choques no cenário político da França revolucionária. Resta alguma
leitura favorável a intervenção desta opinião exaltada ou sectária? Segundo
Bongiovanni ela pode ser feita a partir daqueles que desde o prisma da esquerda vêem
no jacobinismo um momento de ruptura contra as instituições de um mundo feudal
que, agora, encontrava seu termo. Mais, a monarquia reacionária até então imbatível,
perecera apenas frente a esta força revolucionária. Por isto, diz o autor que “[...] os
jacobinos tornam-se heróis trágicos, como certos heróis antigos, porquanto encarnam
as necessidades da história e as dores do parto da nova civilização democrática [...]”
(1998b, p.654). Esta é uma interpretação bastante cara ao marxismo que preza os
movimentos revolucionários.
Um radical construtivismo da democracia deste tipo indubitavelmente passaria
longe das influências de Bobbio. Ao contrário da proposta de Rousseau, o turinês se
socorre do diálogo como forma de construir uma sociedade bem ordenada e aberta em
que o poder não pode ser exercido de modo oculto nem sem que existam freios
àqueles que os detém. Neste ponto existe uma relação de aproximação de seu
pensamento com o de Rousseau, e não de anteposição, posto que este último sustenta
que na democracia nada é mais perigoso que a influência dos interesses privados nos
assuntos públicos e, no mesmo diapasão, reforça que para evitá-lo, quem faz as leis
não deveria dispor de poder para fazê-las cumprir (1998, p.65).
Bobbio retoma e aplica séculos depois um tema caro ao iluminismo grego,
personificado na filosofia socrática. Trata-se da busca do contato entre pensamentos
diversos através do diálogo. Bobbio não se valeu, pelo menos não radicalmente, do
conceito socrático da parturição da verdade. Contudo, indelével fato é que Sócrates
em seus misteres filosóficos públicos e cotidianos propunha o diálogo, e ao fazê-lo
93
agiu de forma assemelhada a como Bobbio o faria mais tade. O que em ambos se
parece é a crença no potencial do diálogo. Em Sócrates, ele surge como dotado da
possibilidade de encontrar a verdade, e em Bobbio, com a função de estabelecer
pontes entre quem contende. Em Bobbio o diálogo dá-se também através da palavra
escrita, largamente utilizada por ele, bastando observar sua mediação de vários
debates públicos como articulista e, enfim, partícipe constante dos meios de
comunicação e formador de opinião.
Retomando a linha argumentativa, é importante frisar que a sociedade aberta
parte de um suposto. Trata-se de que ela não apenas admite como pressupõe os
conflitos de opinião, e que isto não lhe oferece problemas para que tenha
continuidade. Mas esta não era uma idéia compartilhada por Rousseau, segundo quem
era necessário (e era, ademais, desejável) que inexistissem os conflitos de opinião.
Daí o papel fundamental do debate e do diálogo na teoria bobbiana, avessamente ao
engessamento da opinião particular e pública no conceito de vontade geral e de
unanimidade apresentados por Rousseau.
As discrepâncias conceituais entre Bobbio e Rousseau atingem um de seus
momentos mais delicados quando o genebrino propõe ou, no mínimo, aceita a
ditadura como uma necessidade imperiosa para que alguns males possam ser
remediados, dando espaço a uma das interpretações que a esquerda fez
posteriormente de sua obra. Aron, por exemplo, é bastante claro ao estabelecer a
conexão entre o pensamento de Rousseau e Marx: “[...] Marx descende também de
Rousseau [...]” (1985, p.275). Obviamente, não apenas ele como, entre tantos outros,
também recebeu a influência de outro alemão, Hegel. Particularmente sobre o tema da
ditadura, Rousseau ressalva que ela deva durar “[...] un plazo muy corto que no pueda
nunca ser prolongado [...]” (1998, p.126). Contudo, o que a história testemunhou, é
94
que a enfeixamento de poderes possui um estranho magnetismo de duas vertentes:
primeiro, o de aspirar continuamente a aumentar seu poder; segundo, o de contraporse de modo progressivamente mais belicoso aqueles que tentem tomar o poder.
Portanto, a leitura rousseauniana sobre o papel da ditadura parece muito pouco
promissora, aliás, como também se demonstraria mais tarde na prática o conceito
marxista de ditadura do proletariado.
Isto demonstra que a análise de Bobbio e Rousseau sobre este tema mais lhe
aproxima é de Aron. Na verdade, parece que isto suscita novamente a questão sobre
se seria um grave erro teórico ou pura ingenuidade de avaliação do genebrino. A
aproximação de Aron tem razão de ser à luz da tendência humana na gestão das
coisas que envolvem o poder, vale dizer, de perpetuar-se nele. Para ilustrar, basta
lembrar a famosa divisa de lorde Acton sobre o quão corruptor é o poder e, mais
ainda, tão mais corruptor é quanto mais disponível totalmente ele se encontrar. Aliás,
é bastante curioso como Rousseau adianta James Madison quando percebe a falta de
santidade dos homens no trato de suas coisas, consignando a máxima utilizada pelo
norte-americano de que se houvesse um povo de santos, este deveria governar-se
democraticamente. Contudo, sublinhava que um governo assim tão perfeito não era
algo originário da criação humana. Com mais razão esta perpetuação no poder tende a
ocorrer, em detrimento da hipótese de permanência apenas por curto prazo
vislumbrada por Rousseau, quando sejam atribuídos poderes totais a alguém. Esta é a
tese que se encontra ínsita no núcleo teórico do que se entenda por ditadura, na qual a
única voz da conveniência de colocar-lhe termo – apoiado na força – é a do detentor
do poder.
Este lineamento da concepção de poder contribui para entender como poderia
estar constituído o Estado ideado por Rousseau. Ele possui similaridade com a
95
concepção bobbiana no que se refere à conceituação. Fala de República, por exemplo,
e ao fazê-lo remete a uma distinção já realizada por Jean Bodin entre forma de Estado
e forma de governo. A democracia para Rousseau deve coincidir com a idéia de
República ou sequer poderá sequer ser entendida como exercício do poder político
mas uma forma privada de dominação por parte de poderosos que se fizeram com o
poder para governar através da força. Em um primeiro momento este ponto parece
sugerir ser aceitável o entendimento da aproximação de democracia em Rousseau e
Bobbio se dá de modo parecido. Isto, contudo, é um engano. A distância entre ambos
reside principalmente no que Rousseau entende por democracia, em seus elementos
constituintes como, por exemplo, a já examinada categoria de vontade geral,
incompatível com a filosofia bobbiana.
Seguindo esta abordagem o funcionamento do republicanismo em Bobbio e
Rousseau seria bastante diverso, uma vez que para o italiano a aceitação das teses
republicanas implica um altíssimo grau de compromisso com os interesses públicos e
transparência na gestão da res publica – idéia que Lafer crê ser um dos grandes
legados bobbianos (2005a, p.A10) – e, não menos, na efetiva garantia dos direitos
humanos, lendo-se nisto com letras destacadas os direitos das minorias. De fato, esta
dificilmente poderia ser entendida como a leitura republicana de Rousseau, ao menos
não no que se refere à concretização da vida política de seu tempo.
Como é de conhecimento, há possibilidade de proceder a uma leitura que
resguarde um viés de esquerda do pensamento de Rousseau tal e como mencionado
algumas linhas atrás em termos bastante conclusivos em conformidade com o
expressado por Cassirer. Isto reforça a indicação de alguns aspectos que divergem da
abordagem da democracia feita por Rousseau relativamente aquela realizada por
Bobbio. Exemplo disto é a negação e expressa menção feita por Bobbio de que a
96
esquerda tivesse idéias claras sobre as regras do jogo democrático (2000a, p.78).
Outro aspecto que se soma a este argumento é que Rousseau reforça
apaixonadamente a visão da democracia direta própria da Antigüidade Grega que,
efetivamente, não é uma proposta que encontre eco em Bobbio. A democracia direta
encontra demasiados óbices em nosso tempo. Dente outros, talvez dois sejam os
principais. O primeiro, a complexidade das sociedades contemporâneas e, em
segundo, e não menos importante, que não se pode transformar a participação política
em uma conditio sine qua non para o funcionamento das instituições. Isto sim,
conforme a filosofia bobbiana, tal participação deve dar o tom tanto da continuidade
quanto da qualidade das instituições de uma sociedade democrática.
Bobbio, ao contrário, se aproxima da tradição dos grandes formuladores da
defesa da representatividade política tais como Benjamin Constant, Alexis de
Tocqueville e John Stuart Mill. Esta linha de reflexão teórico-política desemboca
naquilo que reconhecemos como democracias parlamentares nas quais as liberdades,
latu sensu, são direitos tutelados. Nelas o mandato tem legitimidade política na
medida em que mantenha conexão com a vontade política popular, momento em que
sempre é possível retomar o velho debate proposto por Edmund Burke sobre a
titularidade do mandato político.
Nas democracias ocidentais contemporâneas é indubitável a titularidade do
poder político e, mesmo, do mandato. Assim, em que pese o grande papel exercido
historicamente e o fascínio que exerce mesmo sobre as mentes políticas mais argutas,
o problema da democracia direta não tem um desfecho favorável aos mais
apaixonados. De forma sintética disse Georgopoulos, nascido no berço da democracia
direta, que esta já não é praticável no mundo moderno. Segundo o autor, exemplo
aberto e instrutivo disto é o da Confederação Helvética, que passou a adotar um
97
sistema misto, denominado de democracia semidireta (1977, p.30). Neste sentido,
Bobbio continua a gozar de atualidade ao reconhecer a necessidade de participação
como uma forma de manter ativo o desejo de que o sistema político encontre-se
eivado da necessária legitimidade, virtude da qual necessariamente toda democracia
direta está composta. Contudo, tendo em vista os obstáculos assinalados, o
encaminhamento do turinês desfruta de um caráter realista e pragmático.
2.4 – Republicanismo: entre forças liberais e reacionárias. Participação política e
transparência no processo decisório
A análise das relações conceituais que gravitam entre a democracia e o
republicanismo até aqui ponderadas abrem espaço a algumas reflexões que trazem
algumas conseqüências teóricas. Uma das reflexões diz respeito ao papel da
participação política cidadã como elemento intrínseco de uma democracia. Em que
pese não o faça na condição de fator determinante da vida política democrática
hodierna, é fato que em nossos dias ela atua como paradigma. Por sua vez, na teoria
aristotélica a concepção de democracia mantinha escassa relação com uma
participação efetiva e de base geral cidadã ampla.
Isto resulta no entendimento de que o alcance contemporâneo de que um dos
elementos da teoria cíclica aristotélica (a democracia) sobre as formas de governo
encontra-se diminuído e que por isto é necessário que seja reafirmada a existência de
um nexo entre democracia e republicanismo a partir de outra ponte teórica. Por este
motivo é conveniente retomar mais pausadamente o tema, tratando a matéria sob a
denominação de democracia moderna para estabelecer as conexões com a abordagem
bobbiana do assunto.
98
Esta conexão entre republicanismo e democracia é promissora por força de
que estes são elementos que se mostram como faces de uma mesma moeda em
Bobbio. Falar de democracia será referir-se, em última análise, ao trato refinado com
a coisa pública, a um cuidado para que princípios complementares como eficiência e
moralidade no trato com os interesses públicos efetivamente possam ser observados.
A democracia fortifica-se quando perpassada com instituições republicanas, uma vez
que estas atuam a partir e voltada à realização dos interesses públicos. Mas de que,
enfim, falamos ao trazer à baila a democracia em sua relação com o republicanismo?
Quando Bobbio se refere à democracia está falando em algo similar ao que,
nos termos de Dahl convencionou-se denominar poliarquia, que deve ser tomada em
oposição à monocracia. Mas antes que a democracia e sua relação com a pluralidade e
com a liberdade tenham espaço para serem estabelecidas, interessa notar que a
articulação entre a tutela das liberdades que caracteriza a democracia e da própria
liberdade com a política importa deixar em evidência a origem da idéia de poliarquia.
Em verdade, Johannes Althusius foi o precursor do argumento central da idéia de
poliarquia posteriormente consagrada por Dahl.
O diferencial entre poliarquia e monocracia reside nas várias estruturas que
compõem as formas de governo, o que ganharia com Dahl uma ampla projeção.
Assim, a monocracia reata com origens políticas bastante conhecidas do centralismo,
em suas distintas vertentes históricas, mantendo um traço em comum, ou seja, o de
comporem um regime politicamente fechado. Não obstante suas variações históricas,
sempre surgiram abaixo da média daquilo que se poderia aceitar como o conteúdo de
um minimun libertatis. Efetivamente, este não é o espaço adequado nem o momento
propício para proceder a uma análise mesmo que superficial das evoluções históricas
dos Estados e das circunstâncias que envolveram sua forma monocrática e, em
99
especial, no que aqui mais interessa, que diz respeito aos regimes fechados. Contudo,
bastaria realizar um breve passeio pela história dos regimes políticos para que se
tornasse possível observar o nível de proximidade das relações existentes entre este
fator e o autoritarismo.
A esta altura da argumentação torna-se possível introduzir um outro elemento
importante para a compreensão do funcionamento da sociedade democrática e
assentada sobre valores liberais. Trata-se da pluralidade, que no conjunto da filosofia
bobbiana é valor que não passa despercebido. A pluralidade é instrumento eficaz para
o combate ao centralismo e os inelutáveis efeitos que ocasiona. Esta é a conseqüência
lógica da intervenção teórica da categoria pluralidade, na medida em que a cultura do
exercício do poder, desde a menor escala até a mais alta, centra-se em sua
compreensão como indissoluvelmente marcada pela disseminação dos diversos ideais
e concepções sociais dos co-partícipes e autores de uma sociedade política.
O pluralismo na filosofia bobbiana procura obstaculizar o caminho ao
centralismo e suas derivações. Por outro lado, anima-se em uma firme oposição ao
predomínio da esfera coletiva, posto que esta constrange o desenvolvimento dos
indivíduos e suas esferas íntimas de realização. Centralismo ou enfeixamento de
poderes é conceito contraditório com a concepção de uma sociedade plural. Contudo,
esta permanece em plena convergência com a afirmação da idéia de realização da
singularidade. Esta é uma verdadeira pré-condição para afirmação de uma sociedade
plural. Ali onde não existam as condições formais e materiais para o desenvolvimento
do self não pode ser atribuída a esta sociedade a qualidade de dignificante dos
indivíduos que a compõem e, por extensão, qualificável como plural. Singularidade e
individualismo são a reafirmação dos valores instituintes de uma sociedade plural e
aberta.
100
Tudo isto significa basicamente que o pluralismo funciona com vetor à
singularidade e aos valores que os indivíduos protegem em seu íntimo. Para cumprir
tal desiderato o pluralismo tende a dificultar a ascensão das diversas formas de
opressão da esfera do coletivo expresso em figuras singulares ou perfeitamente
identificadas em pequenos grupos. Mas quando o pluralismo exerce tal oposição à
esfera do coletivo ele corre grande risco de incidir em ataque mortífero às mínimas
bases de sustentação das instituições que criam espaço e condições de possibilidade
para que o próprio indivíduo e, por conseguinte, a pluralidade, possam exitosamente
articular-se. Portanto, a sobrevivência tanto conceitual quanto fática da pluralidade
parece estar ligada à capacidade de seu substrato último, o indivíduo, de articular-se
em suas esferas. A primeira, a de atacar a quem lhe toma o espaço, o coletivo, mas ao
mesmo tempo encontrar a medida em que ultrapassar a derivação do coletivo possa
organizar todo o processo de desestruturação que cria óbices poderosos ao
desenvolvimento das condições de existência da pluralidade. A segunda esfera diz
respeito a um fino ajuste entre a defesa o item arrolado no período anterior e o espaço
onde tem lugar a vida coletiva.
Não parece, contudo, que tenha sido dito o suficiente sobre a questão. Ao
invés, ainda resta outra questão. Trata-se de introduzir aqui uma importante questão
suscitada por Habermas. Questiona ele se em uma sociedade plural seria possível
estabilizar do ponto de vista normativo todos os valores de fundo que nela tem lugar
(2005, p.4). Esta é, de fato, uma questão transcendental. Em seus termos, Habermas
opta pela alternativa de que:
“[...] a reivindicação de validade do direito deve estar dirigida para
uma fundamentação nas convicções pré-políticas e éticas de
comunidades religiosas ou nacionais, pois uma tal ordem jurídica
não pode ser somente legitimada, auto-referencialmente, a partir de
procedimentos jurídicos gerados democraticamente [...]” (Ib.).
101
A idéia com que Habermas abre o período é precisamente uma em que esta
pesquisa vem insistindo à luz da teoria bobbiana, qual seja, a do valor da cultura
política para a formação da esfera jurídica e daquilo que Habermas denomina de
direito válido. Desde a ótica de uma sociedade plural como se operaria sua tradução
em termos jurídicos, ou seja, quais seriam os valores considerados válidos? Há
alternativas teóricas. Entre elas uma que sugere francamente que quanto a estes
valores
apenas
há
a
possibilidade
de
soluções
consensuadas,
isto
é,
procedimentalistas. Qualquer outra solução não seria possível. Teorias como as
expostas na Legitimação pelo procedimento de Niklas Luhmann, por exemplo, tem
como pressuposto lógico e ponto de partida os termos berlinianos. Neste aspecto vale
recordar que quando se trabalha com valores incomensuráveis os acordos não são
possíveis. Nestas situações tão somente cabe aos interlocutores aceitar soluções
intermediárias ou as chamadas soluções de compromisso, as quais não afetam
diretamente a quaisquer destes valores incomensuráveis.
Em que pese o caráter não-exaustivo acerca do valor que a concepção de
democracia desfrutou durante o evolver da história a partir da ótica de alguns
pensadores-chave, assim como de umas de suas conexões com elementos importantes
tais como o da articulação política em uma sociedade plural, resta agora atentar na
seqüência a como os atores sociais podem intervir em um regime democrático.
Primeiramente, deve considerar-se a conexão da concepção de democracia com
alguns dos instrumentos que lhe permitem operar. Disto deriva que o aprofundamento
da abordagem intervenção dos atores sociais em uma democracia e das articulações
políticas de uma sociedade plural conforme os argumentos presentes em Bobbio
devem começar, e com bastante considerável chance de êxito, através da avaliação do
concepção de activae civitatis.
102
A avaliação desta concepção remete ao período do humanismo clássico onde,
conforme observa Bignotto, a postura do sábio contemplativo parecia insustentável.
Uma alteração de perspectiva quanto ao ponto de apoio e legitimação do poder e a
intervenção pública passa a ser requisitada. Naquele instante, sustenta, passava a ser
necessária uma ação política eficaz (1991, p.15). É precisamente neste marco que
encontro o ponto de encontro entre Bobbio e a argumentação dos humanistas através
da interpretação de Bignotto. Creio que quando Bobbio propõe em seu tempo a
activae civitatis o faz nos termos e moldes de que o inerte cidadão contemporâneo
não concentra muitas forças e, por conseguinte, não dispõe de muito poder para reagir
frente ao mundo e ao patrimônio que a cultura ocidental lhe legou.
A herança descuidada pode ser perdida e, lastimavelmente, não há tantas
outras opções superiores, em que pese a demasiado otimista perspectiva de
Huntington de que “essa moderna cultura ocidental se transformará na cultura
universal do mundo” (1997, p.81). Desconsiderar a força das demais culturas com as
quais convivemos, sendo inclusive algumas delas dotadas de notável corte sectário e
dogmático, pode consistir em mais um dos erros que pode minar as sociedades
democráticas. Ao contrário do que se possa supor, tal patrimônio político e cultural
demanda uma ação política contínua e eficaz. É neste momento em que se torna
importante a idéia de intervenção pública do cidadão, a demonstrar seu apreço e
apego pelas instituições. Esta perspectiva encontra guarida no humanismo e seu
conceito de activae civitatis, cuja síntese se encontra no indivíduo voltado aos
negócios da polis.
Tal procedimento logo remete à análise da relação entre igualdade e liberdade
na medida da possibilidade de intervenção na vida pública. Também favorece a que
seja considerado com não menos interesse o problema da igualdade que medeia as
103
possibilidades de que sejam influenciadas tais relações públicas. Estas são as que
efetivamente marcam o terreno conceitual da activae civitatis. Quando a idéia de
participação vem à tona, ela conclama à análise da existência de liberdade para fazêlo tanto quanto sobre os termos, se igualitários ou não, em que esta ação pública pode
se desenvolver.
Sobre esta relação entre igualdade e liberdade existem interessantes
abordagens que não poderão ser esgotadas aqui. Contudo, em um de seus aspectos,
precisamente no entorno da obra bobbiana, pontificam considerações de autores como
Martino. Segundo este, quando se dá um forte predomínio da liberdade sobre o valor
igualdade nos encontramos com uma situação de forte disparidade, que tende a
manifestar-se principalmente do ponto de vista econômico. De fato, esta
argumentação caracteriza uma forma de pensar bobbiana, que em seu desenlace
termina por opor-se à discrepâncias oceânicas. Por outro lado, argumenta Martino,
quando se dá um forte predomínio da igualdade isto remete para a configuração de
formas políticas mediadas pelo autocratismo (1983, p.314). Bobbio, por sua vez,
realçando seu viés filosófico eminentemente liberal, não socava o valor da liberdade,
ao contrário, lhe sobrepõe ao valor igualdade como, por exemplo, reconhece RuizMiguel (1994, p.124).
O regime democrático não permanece incólume a estas variações, senão que
responde diretamente a estas oscilações. Em síntese, do que se trata é de que em
perfeita consonância com Bobbio, a resistência e a conseqüente durabilidade das
instituições que promovem a liberdade necessitam formas ativas de participação. Em
outros termos, se trata da referência a activae civitatis. Ao referir-se a ela o turinês
pressupõe as formas das relações entre liberdade e igualdade. Contudo, para que este
seu pressuposto possa efetivamente dar lugar à materialização de um devir livre, eis
104
que a monitoração das ações políticas apresenta-se igualmente necessária. Quando
esta monitoração ocorre a partir da concepção de activae civitatis surge uma nova
dimensão, qual seja, a que apresenta uma firme demanda por controles das possíveis e
amplíssimas desigualdades que as sociedades livres historicamente demonstraram,
paralelamente aos genéricos e genéticos benefícios que também demonstrou ser capaz
de oferecer.
Toda esta argumentação tende a apresentar-se concretamente quando o Estado
encontra-se estruturado sobre alicerces sólidos de uma sociedade aberta e que, então,,
concede espaço aos seus cidadãos para que estes positivamente materializem suas
demandas e opiniões. Ambas adquirem formatos diversos. Ambas preenchem desde o
mundo estritamente político até atingir a órbita do fenômeno normativo. Essa última é
feita tanto através da política como, quando esta se encontra desgastada, por meio de
mecanismos que tendem a suplantar a esfera mediadora das instituições políticas, tais
como os partidos tradicionais.
As demandas de cunho jurídico tendem a apresentar-se sob a forma de normas
jurídicas que, mormente, tem por conteúdo (o aumento) de gastos em políticas
compensatórias ou, e tão ruim quanto, da articulação de interesses de segmentos
sociais através de lobbies. As políticas compensatórias muitas vezes possuem um viés
populista ou, em certos casos, uma fina inclinação social-democrata. Em qualquer
caso, buscam a extensão de certos níveis de igualdade dentro das relações sociais
regidas pelo Estado, quer seja este seu objeto direto ou indireto, vale dizer, quer seja
este um objetivo a ser alcançado tendo em vista algum benefício público (da
população) ou privado (político), respectivamente.
Esta é uma leitura que não cria empecilhos teóricos para notar a importância
prática da concepção de activae civitatis bobbiano. Ao contrário, os males derivados
105
da apatia política são mais relevantes e visíveis do que as demandas nem sempre
razoáveis ou bem gerenciadas por parte dos movimentos sociais que tem por função
apresentá-las. É fato que a ausência da população da vida pública torna árida não só a
tarefa de encontrar o mais genuíno interesse de alocação de recursos e sentido das
políticas públicas a serem adotadas como, e talvez principalmente, uma vez cumprida
esta primeira tarefa, de mobilizar vontade política com vistas a realizá-la. Desde logo,
é também mister ressaltar que nem sempre este é o objetivo principal dos atores
políticos. Não incomumente ao deparar-se com um cenário político de abandono da
esfera pública tomam para si tão somente a defesa de seus interesses políticos e
econômicos, mas sempre privados, relegando – quando chegam a preocupar-se em
fazê-lo – em alguma escala com os interesses públicos. Disto surge a questão que
ocupa o item seguinte, a saber, como poderá dar-se a garantia das liberdades nos
moldes desta situação política?
2.5 – Espaço de intervenção política e formas de garantia às liberdades na
sociedade aberta
Considerando o contexto descrito de preocupação insatisfatória dos
responsáveis políticos com os assuntos públicos, e ainda considerando que esta
realidade não incomumente remete à comissão de práticas políticas escusas, por dizêlo de forma pouco contundente, torna-se imperativo retomar a concepção bobbiana de
intervenção política. Esta abordagem será realizada desde a ótica de quem mira
verificar sua capacidade para garantir níveis aceitáveis de liberdade e igualdade em
vistas a constituição de uma sociedade aberta.
106
A análise deste tema pode ter início com a afirmação de Bobbio de que existe
um âmbito de conflito entre liberdade e igualdade que, dada a ampliação da primeira,
redunda na limitação da segunda categoria. Contudo, a participação política não é
uma concepção que deva ser concebida em Bobbio tal como na doutrina dos
comunitaristas, na qual evitamos entrar em seus pormenores. Na versão de nosso
autor a concepção de participação política que caracteriza uma democracia política
tem sua gênese e afirmação na teoria liberal14 mesmo que busque em seu diálogo com
os clássicos e com a concepção de activae civitatis boa parte de sua inspiração. Seja
como for, quando utilizo a expressão liberal ligada ao pensamento do turinês cabe
sempre recordar que o faço no sentido europeu continental de que o termo se encontra
investido.
Estas constantes referências à activae civitatis poderiam ensejar a conclusão
de que, em alguma medida, Bobbio propõem um pleno retorno às origens, ao estilo
dos humanistas cívicos, ponto no qual tematicamente se aproximaria de Maquiavel,
personagem já retratado por Bignotto como “[...] uma verdadeira máquina de guerra
contra o humanismo cívico [...]” (1991, p.213). Neste particular Bobbio não
compartilha o espaço teórico de Maquiavel. Na realidade, o turinês é ciente das
dificuldades que a vida moderna suscitaria ao impor um modelo como o apregoado
pelo humanismo cívico. Ainda mais, a partir de seu conhecido realismo político,
distancia-se de propor tal coisa. O que sugere é a aproximação entre as
individualidades e a sociedade civil relativamente aos assuntos públicos.
Uma aproximação deste gênero poderia ser proporcionada através da
manifestação contínua de interesse pelos assuntos públicos, quer através das
14
Para melhor compreensão sobre as origens da teoria liberal ver MAcPHERSON (1973). É especialmente
aconselhável a consulta minuciosa ao seu capítulo I. Sobre a democracia participativa o principal
trecho é o capítulo V.
107
associações ou bem por meio da mídia, de manifestos ou outros mecanismos. É
através desses mecanismos que, ao estilo do texto proposto por Maquiavel, torna-se
possível que esses atores possam contrapor-se à corrupção na esfera pública.
A percepção de um significado mais preciso da democracia, ladeado pelas
considerações de participação política em prol da defesa da liberdade e da igualdade
política não são efetivamente temas de fácil abordagem e execução. A corrupção na
esfera pública prospera ainda mais notavelmente quando a articulação entre esses
difíceis elementos é tão somente minimamente abordada. Uma aproximação histórica
e teórica ao problema remete a uma interessante questão apontada por Rousseau:
“[...] cuando los ciudadanos, reducidos a siervos, no tienen ya ni
libertad ni voluntad, entonces el temor y la adulación convierten em
actos de aclamación las votaciones: ya no se delibera, se aclama o se
maldice [...]” (1998, p.106).
Esta forma de manifestação do desejo político denominada aclamação,
Rousseau a observara na história política do Senado de Roma quando este devia dar
suas opiniões sobre os imperadores. Posteriormente esta idéia foi retomada por Max
Weber, embora o tenha feito com diferente terminologia e dotada de propósitos
distintos.15 Conforme Weber, a democracia em sua forma de “[...] democracia
plebiscitária [...]” (1998, p.176) era uma “[...] espécie de dominação carismática
oculta sob a forma de uma legitimidade derivada da vontade dos dominados e que só
persiste em virtude desta” (Ib.) Aqui se estabelece uma conexão temática entre o
pensamento de Weber e Carl Schmitt, muito embora não possua uma linha de
continuidade material. Uma das provas disto está em que Weber sublinha que o “[...]
líder (demagogo) domina, na verdade, devido à lealdade e confiança de seu séqüito
político para com sua pessoa como tal” (Ib.), os quais podem estar compostos além de
15
Interessa mencionar aqui um estudo comparado das filosofias de Rousseau e Weber por um dos mais
bem preparados intelectuais brasileiros. Ver MERQUIOR (1990).
108
seus subordinados diretos como também por um número mais expressivo de
indivíduos.
Absolutamente, nada do argumentado ao final do parágrafo anterior se
apresenta de modo compatível com a prática da teoria que Weber propõe sobre o
exercício do poder. Contudo, é certo, enquanto mera teoria, ela se apresenta bastante
compatível com a defesa proposta por Schmitt da aclamação como a “autêntica”
manifestação política popular. Para o célebre constitucionalista, a aclamação é que
traduziria em sua essência plena a concepção de democracia. Já em outros sistemas e
regimes uma proposição neste sentido não constituiria mais do que um mero blefe ou
engano discursivo dirigido pelo poder político contra os interesses públicos. Naquele
momento histórico, contudo, as circunstâncias foram outras, e as conseqüências,
infelizmente, trágicas.
Desde a perspectiva de uma teoria democrática que deve presidir uma
sociedade aberta, a participação representa a inserção no debate público, no
contraditório que espelha os conflitos entre os indivíduos. Estes conflitos privados
transpostos à esfera pública são inerentes aos diferentes projetos de vida que uma
sociedade aberta necessariamente considera válidos e que, nesta medida, os tutela em
seu processo de busca de sua materialização. Ao fim e ao cabo, nenhuma das partes
está obrigada a aceitar os resultados que possam ser adversos. Sua única obrigação
em tal cenário político é a do acatamento que as diferenças de interesses possam
ocasionar e, daí, que as encaminhem institucionalmente. Em outros termos, isto
equivale a dizer que o único recurso admissível é o da livre negociação pública na
esfera política dos mais recônditos interesses privados, o que implica em tornar
manifesto o conteúdo de suas reflexões acerca do destino da coisa pública.
O valor da participação política emerge aqui tanto em seu aspecto legitimador
109
quanto no plano pedagógico de que se reveste. O primeiro aspecto diz respeito à
sustentação explícita de que dispõe os responsáveis políticos para prosseguir no
processo político tanto quanto de seu resultado legislativo. O segundo aspecto,
pedagógico, refere-se a uma importante blindagem política ao sistema de garantias
contra ideologias antidemocráticas. Isto se dá porque a constante participação política
em uma sociedade aberta torna possível ao indivíduo apresentar uma das maiores e
melhores tendências, qual seja, a luta pela liberdade e, portanto, de valer-se desta
oportunidade para proteger uma das dimensões do homem prenunciadas por Bobbio:
a interior. A repetição de tal comportamento perpetua a tendência dos indivíduos a
proteger este seu valor fundamental, a liberdade, cujo hábito de desfrutar dificilmente
é desentranhado daqueles que o apreciam, senão sob o jugo mais estrito da força, e
mesmo assim por tempo incerto, até que possam reunir forças para retomá-la. Já
quanto a outra dimensão, a exterior, sobre esta quem opera é o Estado, sobre ela é que
poderá exercer o seu poder.
Mas onde podem os indivíduos exercer este desejo pela liberdade? Em uma
sociedade livre, indubitavelmente, possuem espaço suficiente para tanto. Mas em qual
subsistema dentro de uma democracia eles podem fazê-lo? Na realidade, Bobbio não
deixa de perceber que a democracia perfeita, ideal, é mesmo a democracia direta
(1983a, p.58). Mas atenta para que a idealidade das concepções, e não menos da
democracia, não é de alguma forma aplicável ao nosso mundo. Muito embora a
democracia direta nunca desapareceu como verdadeiro paradigma idealizado da
democracia nos moldes modernos e (1987b, p.154), portanto, como subsistema
adequado para lutar pelas liberdades, fica bastante claro como, para um pensamento
realista como o de Bobbio, ela não se apresenta como uma alternativa viável,
conforme mencionado no item anterior.
110
A democracia indireta serviu como um útil corretivo à democracia direta
(1983a, p.70), ainda que não tenha sido de forma isolada. Ambas versões da
democracia têm, sem dúvida, o mesmo escopo, qual seja, o da busca pela liberdade.
Contudo, ao vislumbrar o papel de sua proteção por parte do Estado percebe-se uma
encruzilhada nem sempre muito perceptível a olhos nus pelos mais desavisados
cidadãos. Trata-se de que ao Estado apenas deve ser outorgada jurisdição sobre a
dimensão exterior dos indivíduos, não admitindo qualquer possibilidade de
intromissão em sua dimensão interna. Para alcançar tal finalidade, não há outra
solução, segundo as referências históricas, que firmes ações dos indivíduos em defesa
desse que, para o turinês, é o caminho da democracia (2001a, p.84). O filósofo
também deixa claro que o Estado fez-se res publica, e que é nessa medida que ele
torna-se portador de interesse coletivo, partícipe ativo do Estado e, assim, cidadão
(2001a, p.86).
O caminho para a democracia apontado por Bobbio se encontra cimentado
pela tutela às liberdades. Mas para isto é indispensável que se faça acompanhar pela
ação efetiva dos indivíduos que dela pretendem valer-se. Um exemplo prático disto
fica por conta da postura de Bobbio no período pós-fascista italiano. Reconhecia a
pesada tarefa que aguardava tanto a ele como aos seus contemporâneos, qual seja, a
de “[...] nos preparar culturalmente para o objetivo de renovar as nossas instituições e
restaurar o Estado liberal [...]” (2000a, p.16). Estas renovações foram assentadas
principalmente nos costumes que necessariamente constam da cultura de qualquer
povo. Este é o pressuposto ou alicerce para a criação das instituições, fato que não
passou ao largo da arguta mente bobbiana, que admitiu que o costume tem mais
importância do que as instituições (2001a, p.140), pois eles são os constituintes desta
última.
111
O Estado liberal em Bobbio anda de mãos dadas com o Estado democrático. É
muito importante para bem compreender a posição de Bobbio que em sua reflexão
ambos, Estado liberal e ao Estado democrático, não se distinguem essencialmente na
prática. Muito embora do ponto de vista teórico seja possível diferenciar liberalismo
de democracia, na práxis política de um Estado ambos pode existir apenas
conjuntamente. Daí que se possa dizer que estas categorias exercem são
interdependentes. A prova histórica desta ligação segundo Bobbio está no fato de que
“[...] Estado liberal e Estado democrático, quando caem, caem juntos [...]” (2000a,
p.33) e, em sentido contrário, quando estão em vigor, o estão lado a lado.
Mas falar de Estado liberal no contexto italiano equivalia a colocar as
condições de possibilidade para que o Estado italiano pudesse dar o salto qualitativo
almejado por Bobbio. Este salto significava a superação do domínio pela violência
para a restauração do domínio político não-violento (1981, p.94), característico não
apenas de toda sociedade civilizada como particularmente daquelas dominadas por
instituições que se convencionou chamar de democracias consolidadas. Aqui, uma
vez mais, aparece a importância do papel dos costumes e da cultura como elementos
que perpassam as instituições e a própria democracia. Aqui também brota o
significado da intervenção do intelectual, resplandece o próprio papel pedagógico da
política no que tange a participação política do cidadão.
Como conseqüência da defesa da participação (que chega a ser considerada
por Bobbio como um dever cívico) (1983a, p.63) e do fato de que ela muitas vezes
não se dá, é possível assinalar um outro aspecto da filosofia política de Bobbio. Este
aspecto é o do combate a apoliticidade. Bastante prático, destacou em que grau
reprovava a geração de seus pais pelo fato de terem sido pouco operantes na defesa
das instituições contra o avanço do fascismo. Dizia ele que “[...] reprovávamos o fato
112
de não terem defendido o direito do cidadão de participar como sujeito da vida
pública e de se terem reduzido pouco a pouco (...) a uma multidão aclamante [...]”
(2001a, p.107-108). Um resumo pertinente, a posteriori, das circunstâncias que,
curiosamente, em que pese tenham sido alvo da reprovação de Bobbio no
comportamento de seus antepassados tanto quanto de companheiros de infortúnio na
Itália fascista, de alguma maneira, alguns outros dentre seus pósteros poderiam
igualmente ter censurado. Em certo sentido tal reprovação poderia ter alcançado o
turinês através do argumento de que ele foi mais acadêmico do que militante.
Uma sociedade de “esperadores” (2001a, p.109), personagens que a Itália
daqueles dias conheceu alguns, não coloca as condições de possibilidade para o
resguardo das liberdades públicas. Por isto, evidentemente, condenava o mal
representado pelo absenteísmo, “[...] da indiferença diante das grandes questões
públicas [...]” (2001a, p.110). Mas isto não representa que cresse em que fosse um
cometido indispensável impor o dever legal da participação política. Ao restar a
conta, estes “esperadores” nada mais faziam do que buscar preservar-se através do
princípio da não-intervenção na vida pública. Terminavam por lucrar. Em algum
momento terminam por ser reconhecidos como um entrave à vida política ao passo
em que se apresentam não apenas como seres não-propositivos mas também como
fortes o bastante para servir de obstáculos a muitas das novas idéias (2001a, p.53).16
Corolário disso é que adotá-las implica em um efetivo posicionamento político, ainda
16
De fato, é de ciência pública a força com que contam aqueles que, pelo menos de forma aparente, se
posicionam na vida pública de forma anti-propositiva, ou seja, ladeando discursos negadores de
projetos construtivistas. Estes discursos costumam dispor de ampla base porque se valem da
demagogia e do populismo para, pelo menos, articular-se publicamente, mesmo que na órbita privada
venham a alterar-se integralmente. Por outro lado, o discurso político propositivo necessita estabelecer
as bases com o real, e nessa medida, com o factível, sob pena de arcar com o ônus sócio-político do
proposto mas não realizado.
113
quando isto seja feito de forma algo inconsciente e inconsistente.
Entre os apolíticos há uma classificação possível. Bobbio os identifica em
basicamente dois grupos. O primeiro é composto por aqueles que não participam da
política, e que não o fazem por carecer de reflexões políticas (2001a, p.27). Muito
tempo depois ele esmiuçaria o tema reclassificando estes primeiros como aqueles que
“[...] não engolem a política [...]” (Ib.), e que por isto se tornam indiferentes à ela. Já
uma segunda categoria não intervém na política por não pretender rebaixar-se ao
nível em que se travam as disputas políticas (Ib.; 2001a, p.111). Indubitavelmente,
ambas classificações estão compostas por atores sociais cuja atuação racional lhes
permite perceber vantagens de sua ação absenteísta muito embora, ao menos em
princípio, o primeiro grupo esteja composto por atores menos dotados de percepção
política.
Na primeira das classificações mencionadas é possível admitir que a inação
possa dever-se a uma falta de amadurecimento político e, por conseguinte, da
capacidade de percepção do poder. Assim, o efeito que as interrelações políticas que
se dão ao redor de si e sobre a comunidade não se tornam perfeitamente legíveis a
este grupo. Do segundo caso mencionado no parágrafo anterior pode dizer-se que a
negação do fenômeno político em si pode ter sua origem na falta de integração social
do indivíduo. Nesta hipótese ele negaria que a sociedade pode estar composta por
virtudes e vícios que lhe foge à compreensão quando considerada em seus detalhes.
Aqui surge o elemento negador do relativismo ou, o que é o mesmo, tendente a
afirmar o monismo ou o dogmatismo em matéria moral. Não obstante, o fato é que o
comportamento de ambos tem repercussão, em alguns casos até mesmo
profundamente, na vida política compartilhada.
Em qualquer sentido em que o problema da participação seja analisado nos
114
termos propostos por Bobbio, uma das questões que sobrevém é a de sua conexão
com o comunitarismo de viés aristotélico. Uma leitura inicial que reporte à menção
que faz da intervenção política do cidadão parece guardar maior proximidade com os
obstáculos relevantes apresentados pela vida política de seu tempo do que em uma
profunda e inabalável crença na busca dos valores comunitários anunciados por
Aristóteles. Ao contrário, Bobbio parece ter-se valido com intensidade deste
argumento como forma de fortalecer a tradição libertária do pensamento liberal ao
qual, como se saber, mencionou expressamente ter não apenas pertencido como de
modo constante durante toda sua caminhada intelectual.
Desde uma outra perspectiva, a análise da democracia em Bobbio chega a
definir alguns elementos como imprescindíveis a quem vise aproximar-se de sua
conceituação. Basicamente dois seriam os seus elementos. O primeiro deles é o
entendimento do que seja o individualismo e o segundo diz respeito aos termos em
que se faz presente o voto universal em uma sociedade democrática.
No individualismo Bobbio percebe a base filosófica que empresta as
condições para a ação democrática e, ainda mais, da própria Constituição jurídica de
corte democrático que o Estado possa vir a elaborar (1991d, p.164). Sofisticando sua
argumentação, o turinês associa o individualismo à existência do voto universal
(2000b, p.481). Isto reforça sua percepção de que o Estado tem como ponto de partida
a individualidade e não a coletividade, como preferiria uma concepção orgânica
(2000b, p.478-480). Além disso, ele associa historicamente o antiindividualismo mais
bem acabado concebido nas filosofias políticas às iniciativas reacionárias, nos
moldes, por exemplo, da elaborada e fomentada por Edmund Burke em seu tempo
(1991d, p.147).
Nesta ordem dos fatos, dois são os elementos a considerar. O primeiro deles
115
diz respeito às especificidades da idéia trabalhada, que neste caso indica que a sua
compreensão pertence a um âmbito de estrita formalidade e, em outro momento,
como partícipe do âmbito da materialidade. O segundo elemento que será analisado
no item subseqüente diz respeito à concepção de bom governo e como ele está
constituído em Bobbio.
A abordagem do primeiro desses elementos leva a concluir que na obra de
Bobbio a democracia não pode ser aceita como uma mera formalidade. De modo
positivo isto quer dizer que não basta com a existência de certos procedimentos, tais
como os da eleição da classe política, pois este procedimento não pode permanecer
restrito a uma mera fachada.17 Os problemas e as variáveis que compuseram os
regimes dotados deste tipo de constituição política é também outro dos assuntos que
serão examinados no capítulo subseqüente.
17
Não pretendo avançar em demasia na abordagem do assunto, mas creio que aqui reside a grande
importância de que as leis eleitorais sejam determinadas com toda precisão possível bem como todos
os aspectos que envolvem a participação do cidadão assim mesmo como a intervenção dos atores e das
instituições políticas nesse processo.
116
CAPÍTULO III - O PROCESSO DE ALARGAMENTO
DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS E A EXPLORAÇÃO
DOS LIMITES DO BOM GOVERNO
3.1 – A concepção instrumental da democracia como antípoda das liberdades
democráticas
No primeiro capítulo desta pesquisa foi examinado o argumento de que a
sociedade aberta constrói-se apenas a instâncias da intervenção política. Esta idéia
voltou a cobrar importância quando ao término do capítulo anterior foram analisados
alguns aspectos do republicanismo e sua relação com o pensamento de Bobbio. Na
seqüência haverá espaço para refletir sobre seus méritos tendo em vista a instauração
da boa e livre sociedade, ambas estruturadas na tríade de elementos centrais que
limitam este trabalho. Por outro lado, também foi visto nas linhas do capítulo anterior
o indispensável diálogo entre as categorias liberdade e igualdade. Ele pôs os
pressupostos para o desenvolvimento da argumentação deste capítulo que se inicia.
Um dos temas centrais deste capítulo será a retomada, embora a partir de uma
perspectiva diferenciada, do diálogo entre a liberdade e a igualdade. Estes são
elementos que põem as condições de possibilidade para uma sociedade estruturada
em bases que firmam as condições públicas mínimas para um entendimento político
sustentado. A sólida articulação entre estas categorias abrirá o horizonte para que seja
possível que ainda neste capítulo seja dada atenção ao que seja o alargamento das
instituições democráticas, exigência bastante marcante do pensamento bobbiano para
que o problema contemporâneo da crise da democracia pudesse ser satisfatoriamente
resolvido.
Os desastres provenientes de uma concepção meramente instrumental ou de
117
caráter estritamente formal da democracia são patentes, e isto é atestado por
sobrados exemplos mundo afora. Não obstante, na segunda metade do século
passado verificou-se um progressivo e grande avanço no que se refere aos regimes
políticos que tutelam as liberdades. Foi possível perceber um avanço bastante
satisfatório da democracia (Cf. 2001a, p.99). Um dos paradigmáticos desastres
históricos que marcaram a evolução das instituições democráticas foram os
acontecimentos na Alemanha. Ali o nacional-socialismo começou a fincar raízes e
disseminar-se de forma mais penetrante entre a sociedade a partir de 1933, quando
alcançou o poder.
Estes fatos deram lugar a desdobramentos tristemente emblemáticos de
ordem prática, mas cuja lição teórica no bojo da filosofia do direito não pode ser
olvidada. Este foi um dos mais bem acabados referenciais para o estudo sobre a
ascensão ao poder dos intolerantes pode dar-se valendo-se do aproveitamento das
arestas existentes em um regime democrático18 e, ainda, de como uma vez que
chegam ao poder eles tendem a exercê-lo.
Especificamente sobre a forma como os nacional-socialistas alcançaram o
poder há renomados jusfilósofos como Elías Díaz que fundada e veementemente
contestam que a ascensão ao poder por parte dos nazistas na Alemanha tenha
ocorrido por via democrática como de forma freqüente são feitas referências através
de diversos meios. O argumento central do jusfilósofo espanhol é de que um dos
pressupostos para a realização de eleições livres, a plena liberdade de manifestação e
a não-coação, absolutamente não estiveram presentes naquele momento histórico da
Alemanha. Para cientificar-se disto basta com observar as narrações históricas do
18
Ver DÍAZ (1979, p.49). Sobre o mesmo tema e com acréscimos de referências históricas do
período podem ser encontradas valiosas observações em BRACHER, 1995; AYÇOBERRY, 1999;
SHIRER, 1990.
118
período, onde as perseguições aos dissidentes, judeus, entre outros grupos étnicos e
políticos, eram cotidianas e bastante violentas.
Sendo certo que a liberdade política envolve liberdade para decidir quais
serão os representantes populares, então cabe, uma vez mais, retomar o pensamento
de Bobbio. Segundo ele a “[...] democracia pressupõe o livre desenvolvimento das
faculdades humanas [...]” (1983a, p.62). Sendo assim, já não basta apenas um
regime de liberdades para proceder à escolha, mas sim um sistema que se encontre
estruturado de forma a oferecer o desenvolvimento do self e dos desígnios a que
cada um dos indivíduos componentes de uma sociedade se propõe.
Portanto, um sistema político como o nacional-socialista representa
cabalmente a negação de tudo o que foi articulado no parágrafo anterior. Desta
forma, e levando em consideração a ofensa direta destes sistemas aos nossos planos
de vida, e apoiados na referência clássica do liberalismo milliano, não temos razões
suficientes para tolerar a intolerância. Será aqui admitido que o limite da liberdade
encontra-se marcado nos termos sugeridos por Mill, vale dizer, precisamente pelo
ponto em que começa a tornar-se uma moléstia para os demais (1991, p.145).
Considerada esta limitação, as ações positivas por parte dos indivíduos todavia
necessitam apoio e espaço público suficiente para contrapor-se às iniciativa
massificantes.
Em outros termos, a argumentação do parágrafo anterior equivale a garantir
às individualidades a preservação das esferas íntimas contra a invasão de supostos
limites que retoricamente dirigem-se a sua proteção. Ao fim e ao cabo, do que se
trata é de encontrar um justo e fino critério de ajuste que calibre o livre exercício da
liberdades a partir da iniciativa das esferas privadas e as limitações que lhe seja
imposta desde a órbita do Estado. Tanto a ausência da tutela às liberdades como o de
119
sua limitação sugere a formação de um contexto social de predominância da
intolerância. Esta conformação social pode dar-se mediante um Estado de
resignação generalizada através de um processo de adesão que em outras
circunstâncias não seria adotado pelos mesmos indivíduos.
Bobbio conheceu o poder e a virulência da força do Estado totalitário, cujo
jogo e atores políticos estiveram marcados pela intolerância. Voltar-se à realidade
dos totalitarismos, cujas nada nobres variantes compunham da humilhação à tortura,
é deparar-se com quadros que variam da pilhagem à rapina, do assassinato ao
extermínio. Este último de forma coletiva, atingiu requintes de perversidade
inomináveis no século 20, tanto na forma de eleição dos inimigos – grupos
dissonantes sob diversos e irrelevantes aspectos (ideológico, racial, etc.) – como
pelas formas de execução de seus bárbaros planos, como bem ficou expresso na obra
máxima de Arendt (1974).
Em termos genéricos, uma abordagem que aproxima-se à de Hannah Arendt,
teórica que desfia as conexões da submissão das massas ao governo totalitário e de
formas barbaramente insólitas de exercer tal dominação. Arendt argumenta, por
exemplo, que a perpetração da barbárie não apenas ocorre em nome de ideologias
totalitárias senão que as relações de submissão atingem níveis impensáveis quando
os próprios executores não hesitam em impingir aos seus e, sendo o caso, a si
próprios, os desígnios das condenações por parte do regime. Mas onde Arendt
também detectou fator inquietante foi no “[...] altruísmo de seus seguidores [...]”
(1974, p.387). A base de sustentação do regime está dotada de uma capacidade de
conduzir-se de forma a esquecer de suas próprias particularidades e interesses, como
em um vôo escuro, seguindo um processo de deixar-se guiar nos limites dos
instintos humanos de sobrevivência, abandonando-se às condições e conceitos
120
políticos da obediência.
Neste diapasão, como compreender que o ser humano possa desenvolver-se
plenamente com tão declarada ausência de liberdade? Efetivamente, a liberdade é
condição indispensável, embora não suficiente, para a concretização dos mais altos
valores humanos, dentre os quais a auto-realização pessoal. Em que pese não seja
este o objeto da presente dissertação, um argumento auxiliar precioso é o desta
bobbiana de que a liberdade é um valor central a ser tutelado. Tal afirmação não
apenas repercute na teoria como em sua prática política. Recuperando a idéia
exposta ao fim do parágrafo anterior, o que dizer do indivíduo que visa promover as
condições de seu autodesenvolvimento mas vê-se apartado das circunstâncias
políticas que lhe permitem livremente transitar dentro de sua esfera privada? Dando
prosseguimento, seria possível questionar sobre as peculiaridades dessas
circunstâncias nas quais estará inserido para levar a cabo tal tarefa altruísta
mencionada por Arendt.
As idéias referentes ao autodesenvolvimento não se comunicam em absoluto
com as de totalitarismo e autoritarismo. Ao invés, elas são antípodas. A autorealização, incluído o plano ético, é libertária. Ela delinea uma sociedade livre que
não se coaduna com o espírito de submissão ética e pessoal tomado em sentido
dogmático por concepções de Estado levadas à última potência. Estas são
características de regimes que demandam culto à personalidade, cuja síntese, de
maneira oblíqua ou não, foi formulada pela concepção de Estado absoluto em Hegel.
Segundo este, a ética individual encontra-se prostrada ante o supra-sumo da
moralidade realizada no ente Estatal. Em uma análise, o totalitarismo e o
autoritarismo são avessos à formação de personalidades livres, ativas na esfera
pública a partir de uma sólida e plural formação moral e política. Por outro lado, o
121
conceito de autodesenvolvimento é inerente aos sistemas políticos abertos, uma vez
que a legitimidade do sistema depende de que os indivíduos expressem sua
conformidade não apenas com as políticas públicas como também, em última
análise, com todas as esferas desde as quais as relações sociais se estabelecem.
Através dessas observações teóricas em paralelo com a luz da história é
possível perceber com certa clareza como o século XX foi pródigo em desmascarar
o Estado como benfeitor de toda democracia possível e, paralelamente, fomentador,
uma vez mais, do renascimento de doutrinas éticas do pensamento aristotélicotomista que sobrepõe a ética à política. Portanto, à guisa de resposta da questão com
que iniciei o parágrafo, a liberdade não é realizável, como atestou a experiência
histórica recente do século recém vencido, senão à luz da primazia da ética
individual sobre um conceito homogêneo e politicamente interessado de ética
coletiva.
Aceito o argumento do parágrafo anterior e de que a liberdade é uma
categoria importante para que a democracia se veja equipada com instrumental
fundamental para sua realização e de garantia para sua manutenção há que destacar
outro aspecto. Trata-se de que a liberdade é categoria-chave para a compreensão da
articulação das engrenagens da democracia, principalmente no que tange a um
conceito fundamental, o de democracia real. Bobbio não a descuidou. Sua
aproximação à democracia real é, sobretudo, ligada a concepção de ética que
perpassa todo seu trabalho. A ética, por sua vez, mantém interconexões temáticas
com a política, mas não a determina. Esta interconexão matizada deve ser assinalada
porque Bobbio sofre um tipo de influência de Maquiavel que denominaria de
temática, mas não analítica.
Isto, sem embargo, não lhe torna devedor das análises que distanciam a ética
122
da política ou, pelo menos, como diz Cultrera, de teorias que possuem alta
dificuldade em conciliá-las (1999, p.43). Segundo o mesmo autor, a alternativa
Bobbiana é dual, ou seja, de que existe uma moral pessoal e outra política. Entre
ambas, a primeira é uma norma absoluta, desconhecedora de exceções e, a outra,
moral política, que se assenta sobre a responsabilidade, enfim, sobre a eficácia da
ação política (Ib.). Aqui se percebe com clareza a aproximação bobbiana de uma de
duas de suas mais célebres fontes, vale dizer, da teoria kantiana (imperativos
categóricos) weberiana (as duas éticas).
Um dos momentos em que é perceptível tal aproximação de Bobbio com
Weber é no conteúdo de uma das mais conhecidas obras do alemão, a saber, La
ciencia como profesión y la política como profesión. Sua tese central consistiu em
opor ambas enunciadas já no título. Com isto conseguiu obter como resultado duas
concepções sobre a ética. Uma delas, a concepção de ética da responsabilidade,
equivalente a de moral política, e uma outra, a ética das convicções, que no
referencial acima encontra seu parentesco com a concepção de moral pessoal (1992,
p.153-155), interna, portanto. Ao ser abordada a ética das convicções, em alguns
momentos o tema é debatido desde a perspectiva de sua santificação, é como se
fosse realizada uma franca oposição entre esta ética e uma outra ética, irracional,
inerente ao mundo. Este racionalista se apresenta ante os demais como um
“racionalista ético extremado” e nesta qualidade, como alguém que não suporta seus
pares enquanto transgressores éticos.
Um racionalismo do gênero referido no parágrafo acima não é condizente
com a filosofia de Bobbio. Em sua teoria prevalece o diálogo em detrimento das
perspectivas ético-dogmáticas. Por este motivo não poderia postar-se entre aqueles
que obstassem a uma concepção pluralista da sociedade. Uma ética das convicções
123
inflexível não poderia, portanto, fazer parte do mundo da práxis social ou política de
Bobbio. Neste particular, a teoria weberiana pode ser aceita nos limites em que foi
proposta, vale dizer, da subjetividade do agente moral, que ora pode inclinar-se por
uma leitura, ora por outra. Por outro lado, a transcendência política da concepção de
ética da responsabilidade, muito embora deva considerar-se o seu horizonte
maquiavélico, realmente encontra é em Bobbio uma ressonância particular. Não se
tratará de promover a desvinculação pura e dura entre ética, responsabilidade e
política. Isto sim, o objetivo é buscar-lhe algum tipo de conexão para que o
exercício da política não fuja às rédeas da democracia e de uma progressivamente
mais bem elaborada concepção republicana.
Um dos exemplos desta caminhada encontra-se quando Bobbio propõe uma
categoria como a da transparência ou visibilidade para o exercício do poder político.
Neste momento ele está, evidentemente, introduzindo uma categoria ética na
política, mesmo permanecendo no raio dialógico de ação do realismo político de
Maquiavel. Esta visibilidade claramente possibilita uma fuga de valores inerentes à
esfera privada dos valores para concentrar-se na órbita dos valores e interesses
públicos. Nisto ele distancia-se de Maquiavel, o qual não hesitou em aconselhar o
príncipe para que se valesse da moral e da religião e delas se apropriasse para a tem
em Maquiavel um de seus referenciais teóricos, mas também atento ao classicismo
aristotélico ao passo que devedor de Weber, e talvez mais próximo deste último em
sua perspectiva filosófica do que dos dois primeiros. De qualquer maneira, do ponto
de vista normativo propõe-se uma ética kantiana, uma vez que distanciado dos
preceitos religiosos que orientam a plena submissão de preceitos políticos à ética
teológica.
Ao fim e ao cabo, cabe sublinhar que a aproximação de Bobbio com
124
Maquiavel é possível de ser exposta sempre e quando seja proposta no que se refere
ao realismo político que decorre da filosofia política de ambos. Como se sabe, as
reflexões do florentino proporcionaram um giro no estudo da política. Esta passou a
ser vista como um objeto concreto ou, em outras palavras, a ser tomada a partir da
experiência histórica.
Contudo, se este anunciado realismo maquiavélico mantém relação com a
filosofia de Bobbio, por outro lado, subsiste na filosofia deste último uma face
humanista. Sobressai em seus escritos uma preocupação com os níveis de
responsabilidade pública por parte dos agentes políticos. Em suas atividades
reclama, por exemplo, a aplicação do princípio da transparência e da moralidade.
Estes são dois dos tópicos indispensáveis para compreender o contexto no qual o
indivíduo irá mover-se para promover sua personalidade e cuja análise tem espaço a
seguir.
Paralelamente a estes dois aspectos, retomamos agora o problema da
democracia real é central para Bobbio. Mas o que significa uma democracia real que
se encontre pautada pela ética? Antes de tudo, estabelecendo uma rota de fuga dos
princípios maquiavélicos, Bobbio sustentará que a democracia não pode ser
entendida senão a partir de conteúdo intrinsecamente moral, conduzido pelo
entendimento do respeito à dignidade do ser humano e do diálogo e da transparência
na política, ao invés de ações belicosas. Através disto cria o que denomina de base
para uma concepção ética da democracia, a qual tem como fundamento último nada
menos do que a ética kantiana, ou seja, a do homem como ser dotado de dignidade
(2001a, p.106) cuja projeção sócio-política encontra-se informada pela noção de
democracia ideal (2000a, p.33).
A primeira das categorias mencionada no parágrafo acima, a dignidade,
125
excetuando o bem último, vida, precede a todos os demais dentre os valores da
organização sócio-estatal. Com base nesta argumentação Bobbio crê ser possível
encontrar a estrutura adequada para a satisfação das necessidades das pessoas em
consonância com o respeito à sua condição humana. Nessa democracia denominada
integral Bobbio antevia o futuro. Contudo, ao permanecer congruente com as
perspectivas de sua filosofia da história, mantinha este futuro aberto, não prefixado
por quaisquer leis históricas necessárias que viessem a encaminhar o seu evolver
(1994, p.122). Autores como Ruiz-Miguel abrem espaço a questionamentos sobre
quais teriam sido os fins que Bobbio teria atribuído à história, muito embora de
forma distanciada de uma leitura determinista. O autor espanhol resume que seriam
basicamente três os sentidos atribuídos à história, a saber: a) liberdade; b) igualdade;
c) segurança.
Estes fins encontrados por Ruiz-Miguel são plenamente congruentes com os
valores da sociedade democrática que podem ser apreciados ao longo da obra de
Bobbio e que novamente são encontrados à medida que o italiano deixa aberta a
história para uma melhor integração desses valores que, como disse em algum
momento, não são plenamente realizáveis senão através de um franco confronto e de
modo excludente com os demais. Em outro momento ao propor-se a realizar uma
classificação da filosofia bobbiana, Ruiz-Miguel não deixa de enquadrar a filosofia
da história do turinês como “[...] basicamente liberal [...]” (1994, p.130). Seguindo
esta idéia de futuro aberto, Ruiz-Miguel observa em Bobbio a existência de razões
para assumir a presença de uma concepção progressiva da história, em que pese
admita a possibilidade dos retrocessos (1994, p.135), o que fica bastante claro
quando o italiano assinala os perigos que as crises da democracia envolvem.
Seja como for, a idéia de que Bobbio não comunga do princípio de que
126
exista um sentido a priori e determinado na história fica ainda mais clara quando ele
abertamente sustenta que ela tem apenas um vetor, qual seja, aquele que os
indivíduos historicamente lhe atribuírem, em consonância com seus desejos e
esperanças (1991c, p.111). Aqui, então, volta a ter lugar o aparente paradoxo da
leitura que realizo neste momento e o apontamento feito por Ruiz-Miguel. Do que se
trata é de que os três sentidos atribuídos à história (liberdade, igualdade e segurança)
são basicamente construções dos próprios seres humanos e não um conjunto de
categorias abstratas autoconstruídas no evolver da história por si e para si.
Sendo assim, percebe-se que não há contradição entre o sentido atribuído por
Bobbio – de que não existem categorias a priori – sua interpretação por RuizMiguel e o que estas linhas sugerem. Não passa de uma aparente contradição, pois
em ambos os casos apresentam categorias construídas pelos seres humanos,
comparativamente a elaborações filosóficas que percebem no evolver da história um
sentido evolutivo conceitual próprio. Efetivamente, não é o caso em Bobbio.
3.2 – Democracia, formal ou material? O que é o bom governo?
Em outro de seus artigos Bobbio traz à colação uma vez mais o problema da
relação da forma e do conteúdo da democracia. Uma versão integral da democracia
não poderia descuidar da substancialidade, não poderia apenas apresentar-se de
forma meramente instrumental. O caráter teleológico que deve possuir seria
fundamentalmente desenvolvido a partir de um “[...] conjunto de princípios
inspiradores irrevogáveis [...]” (2001a, p.113) cuja base teórica em Bobbio pode,
pelo menos em certa dose, ser encontrada em sua argumentação em torno dos
direitos do homem, assunto que remete a outro item deste trabalho. Por outro lado,
127
há intérpretes como Vigo que admitem a hipótese de uma teleologia ou axiologia de
caráter material ou substancial paralelamente a uma outra meramente formal (1991,
p.138).
Por outro lado, historicamente, diz Bobbio, o aparecimento da democracia
material em substituição à democracia meramente formal teria ocorrido através da
instituição dos direitos sociais, o que nos remete às constituições liberais do século
recém passado.19 Esta ligação não pode ter sua dimensão perdida quando tenhamos
por objetivo melhor compreender não apenas o alcance de uma genuína versão do
liberalismo como também de sua projeção no tempo e sua interferência na
constituição das instituições econômico-políticas contemporâneas.
Um contexto como este permite chamar a atenção para que em outro de seus
artigos Bobbio se refira à igualdade formal e à igualdade substancial como
elementos mais do que prováveis em um regime democrático. Na realidade, ambos
elementos apresentam-se como indissociáveis. Desde logo, o que se pode observar é
menos uma confusão do que uma desuniformização de categorias. Esta
desuniformização deriva de que muitos teóricos atribuam a ambas categorias um
mesmo significado. Nada disto seria correto, pois algo é entendê-las como
indissociáveis, mas diferentes, e outra, como possuidoras de um e único significado.
Portanto, ao dizer que ali onde há democracia também há igualdade formal, isto
reflete querer associar ambas idéias no plano espaço-temporal, não no conceitual.
Isto seria equivalente a unir categorias díspares por uma relação de necessidade
injustificável teoricamente. O mesmo pode dizer-se de quando se refere a
democracia e seu caráter de igualdade substancial.
Cabe dizer que no plano de uma sociedade aberta – onde as instituições
19
Ver BOBBIO (1990b, p.209; 1987b, p.157-158).
128
visam constante avanço no plano das condições democráticas – a democracia
substancial exige a revisão contínua20 das estruturas econômicas e sociais como
fatores fundamentais para tornar efetivos os direitos democráticos. Em outras
palavras, o jusfilósofo italiano parece sugerir que se pense na integração da
democracia formal e da democracia substancial como uma condição para a
constituição de uma sociedade aberta. Contudo, no plano da violência, Bobbio
remete a um de seus paradoxos e ambigüidades, suscitando a interpretação de que se
inclina, na verdade, por uma democracia formal, algo contra o que se insurgira
parcialmente ao defender o valor da democracia real ou substancial.
Sem embargo, em outro momento passava a argumentar que passara a
inclinar-se paulatinamente “[...] a reconhecer a essência da democracia no conjunto
das regras processuais que permitem a solução dos conflitos sociais sem que seja
necessário recorrer ao uso da violência recíproca [...]” (2001a, p.130),21 questão a
qual voltaremos adiante. Ademais, o uso desse metido não permite o nascimento de
sociedades pacíficas, senão o contrário.22 Isto representa, indubitavelmente, uma
alteração de perspectiva.
Sendo necessário solucionar a oposição entre a categoria democracia formal
20
É interessante a lembrança de Lafer de que no período revolucionário de 1968 Bobbio se
surpreendera, desgostosamente, com o movimento. Isto se deveu a que ele já tinha dado por
consolidada a vitória do argumento social-democrata liberal no plano político-ideológico da Europa
do pós-guerra (Cf. LAFER, 1998, p.101). Uma manifestação expressa de seu desgosto com os rumos
políticos constitui-se em um elemento mais a indicar o quanto Bobbio já se distanciara de qualquer
aspiração igualitária. Isto, contudo, não equivalia a que, no plano político, viesse a reconhecer em
qualquer momento a necessidade de abandonar o diálogo com forças políticas completamente
antagônicas e com as quais, ao fim e ao cabo, verdadeiramente não mantinha conexões axiológicas
de fundo.
21
Nesse mesmo sentido ver BOBBIO (2000a, p.51). Aqui ele destaca o papel mediador da
convivência exercido pelas instituições democráticas.
22
Esta idéia de Bobbio tem sido trazida com freqüência ao debate público entre nós. Exemplo disto é
o recente artigo de Bittar (2006).
129
e substancial que parece defender em distintos momentos de sua obra, e valendo-me
de uma tipologia holística de hermenêutica, nos inclinamos aqui pela admissão da
convivência pacífica entre a convicção bobbiana de uma democracia formal e de
uma real ou substancial. Esta parece ser a melhor leitura, pois ao adotar como um
dos parâmetros de sua filosofia o conceito de paz, nos deparamos com que este é um
ponto intermediário entre ambas idéias que serve não somente para equilibrá-las
como para estabelecer uma ligação entre elas. Portanto, não se consolida a leitura da
supremacia de uma das democracias sobre a outra.
Na convivência entre democracia formal e real ou substancial, o divergente
ou opositor não é percebido como um inimigo. Sua condição é a de um concidadão
divergente. Afirma-se aqui a necessidade da convivência, o que só é possível através
da mediação do conceito de paz como valor-guia sócio-político fundamental. A
convivência, por sua vez, requer uma relação público-dialógica mas que pressupõe,
ao tempo em que deve desembocar, em fundadas esperanças de que os diálogos e
crenças possam em algum momento vir a aproximar-se ou desenvolver-se, que é a
hipótese do aperfeiçoamento das instituições.
O fundamento dessa necessidade da integração da democracia formal e
substancial está em que a dissociação de ambas concepções cria na prática da
política um hiato deslegitimador de sua esfera e, por conseguinte, altamente
corrosivo das instituições que lhe servem de alicerce tanto quanto para suas
aspirações de legitimação. Assim sendo, é possível dizer que ali onde exista “[...]
apenas a primeira e não a segunda, a primeira irá se esvaziando aos poucos,
transformando-se no seu contrário [...]” (1990b, p.168), e daí a inversão da própria
estrutura daquilo que este trabalho propõe como sociedade aberta.
A interrelação destas categorias é o que tornaria possível a democracia em
130
sentido amplo ou, como diz Bobbio em outra obra, “[...] o processo de alargamento
da democracia na sociedade contemporânea [...]” (1987b, p.155). Esta feliz
expressão “processo de alargamento” deve ser entendida em boa parte como uma
proposta pela extensão do processo de participação dos cidadãos mas,
secundariamente, como um chamado a que a democracia possa atingir outras
latitudes em termos que se possa entender como o de um avanço considerável em
seu aspecto qualitatitvo.
Quanto ao primeiro aspecto do parágrafo anterior, o fato é que a maior
intervenção cidadã se deu em boa parte às custas da perda de espaço pelo Estado.
Isto
parece
ficar
bastante
claro
ao
ater-nos
à
evolução
histórica
do
constitucionalismo, que parece bem representar a tomada de poder por parte da
cidadania em detrimento dos espaços ocupados pelo Estado e por seu soberano.
Neste momento a cidadania que se faz ativa descobre progressivamente neste nicho
de poder estatal um grande espaço para que seus indivíduos arregimentem as forças
para garantir as condições para que possam desenvolver seus potenciais. Como diz o
turinês, as forças que se movem em direção à liberdade e ao progresso histórico
encontram no Estado um empecilho, “[...] uma forma residual arcaica, em vias de
extinção [...]” (2000b, p.154). É contra estas que sua concepção de activae civitatis
se contrapõe e que demonstra sua leitura liberal de um dos aspectos mais
importantes e candentes da filosofia política, a saber, o tamanho do Estado.
Enfim, do que se trata nesse processo de alargamento das instituições
democráticas é de que se dê a superação do momento da democratização da direção
política. Isto se deu, por exemplo, com a instituição das casas parlamentares para,
como diz Bobbio, a seguir dar-se a democratização intestina da própria sociedade
(1987b, p.156). Em outros termos, isto equivale a dizer que se deu um processo de
131
democratização da forma de direção das instituições que compõem e inspiram a
condução da sociedade. Assim, desde o ponto de vista teórico, a compreensão da
democracia formal conjugada com a democracia real ou substancial é a única
estrutura realmente sólida com capacidade de garantir eficácia e presteza às tutelas
que as liberdades demandam em complexas sociedades modernas como aquelas em
que vivemos.
O segundo dos elementos imprescindíveis ao regime democrático aparece na
argumentação de Bobbio quando retoma a defesa das instituições como base para a
concepção de bom governo, que pode ser desenvolvido no bojo das instituições de
um regime democrático. Nesse instante surge a indefectível questão: o que é um
bom governo? Em primeiro lugar cabe destacar que este questionamento não é uma
contribuição original de Bobbio ao desenvolvimento da filosofia jurídica e política.
Ao contrário, trata-se da retomada de um tema fundamental para as disciplinas que
valem-se de uma abordagem do pensamento clássico grego, o que equivale a dizer
que conectam-se com quase todo o arcabouço teórico ocidental relacionado ao seu
pensamento político.
Ao distanciar-se parcialmente de sua perspectiva estruturalista predominante
em sua metodologia filosófica, Bobbio toma como um dos referenciais para o bom
governo o critério de que ele tenha como preocupação o bem comum. Aqui,
novamente, abre-se espaço a mais uma pergunta: de que tratamos quando falamos de
“[...] bem comum? [...]” (2000b, p.219) Em algum momento Bobbio viu-se
enfrentado a esta pergunta proposta por Viroli e a respondeu nos seguintes termos:
“[...] bem comum não é nem o bem (ou o interesse) de todos, nem
um bem (ou interesse) que transcende os interesses particulares,
mas sim o bem dos cidadãos que desejam viver livres da
dependência pessoal, e, como tal, é um bem oposto ao bem de
quem deseja dominar [...]” (2002b, p.48).
132
Bobbio conclui que o bem comum é “[...] o bem daqueles que querem viver
em comum, sem dominar, nem ser dominados [...]” (2002b, p.48), admitindo ao
final de que se trata de um conceito de tipo retórico. Efetivamente, sua explicação
não oferece uma contribuição quanto ao conteúdo. Não é fora de questão esta
assertiva na medida em que não foi historicamente demonstrado em qualquer
momento como poderia tal conceito de bem comum estar composto de sorte a que
ficara estabelecido seu conteúdo mínimo, permanente do ponto de vista teórico e
também confiável quanto à congruência da argumentação, excetuando-se, claro
esteja, qualquer concepção perpassada por um viés religioso de vida político-moral
terrena.
Com o intuito de melhor caracterizar o bom governo Bobbio buscou recursos
argumentativos no pensamento de Einaudi, um dos mais influentes sobre sua
filosofia. Aliás, diga-se que não apenas sobre Bobbio. Sobre o assunto, este
argumentou que “[...] não se governa sem um ideal [...]” (2000b, p.204), mesmo que
os ideais não sejam deste mundo (2000b, p.425). Aqui se torna possível encontrar
um significado para uma concepção de utopia no contexto da filosofia bobbiana
ainda que, segundo a interpretação aqui proposta, a utopia encontre-se bastante
distanciada da tradução etimológica que o termo possui. Ao abordar o tema, do que
se trata em última análise é da admissão de uma orientação política consoante a fins
que podem, mais ou menos remotamente, realizar-se. Mas esta concepção de que
fala, não obstante, não contempla a proposição de um u-topos como partícipe do
sistema político fechado ou da política concreta do devir. Devidamente matizada, ela
é partícipe de uma sociedade democrática.
Uma outra percepção que ilustra a aproximação daquilo que Bobbio reputa
como ponto nevrálgico do bom governo está em sua análise sobre a relação entre
133
governo e regras. Sobre este aspecto sublinha que não basta o “[...] governo respeitar
as regras do jogo para ser considerado um bom governo [...]” (2000a, p.78).
Reiterando este princípio que parece ser fundamental na caracterização do bom
governo, menciona em outro momento que:
“[...] il governo sub lege è una delle attuazioni possibili di quello
che è stato chiamato il ‘buongoverno’ contrapposto al governo in
cui potere è esercitato arbitrariamente, a capriccio, ‘senza leggi né
freni’[...]” (1985, p.9).
Portanto, será precisamente o respeito às regras em geral o que irá traduzir
mais do que a legalidade de um governo, muito embora este seja apenas um de seus
elementos que o compõe. Contudo, o desrespeito às regras invade em cheio a
categoria legitimidade – que ocorre, entre outras circunstâncias políticas, também
quando o governo é exercido arbitrariamente – do sistema político e jurídico em
vigor.
É perceptível que Bobbio caracteriza o bom governo não apenas pela
composição de suas instituições. Ele parece que a elas se uma a ética, que é
individual e, portanto, não institucional. Em uma demonstração de que o problema
do classicismo filosófico grego – que perambula por diversas teorias científicas, tais
como o pragmatismo – não lhe é estranho, Bobbio deixa entrever que a questão da
prática é vital. Assim, a concepção de bom governo ficaria caracterizada mais do
que presa a meras concepções teóricas. Ela estaria ligada visceralmente às formas de
exercício do poder, que seria a chave-mestra para torná-la operativa segundo uma
prática balizada pela ética.23 A necessidade de que se bem governe leva a postulação
23
Aqui seria não apenas possível como interessante introduzir um debate sobre qual a conexão entre
a ética prático-política bobbiana e os conceitos de virtú e fortuna maquiavélicos, uma das fontes
clássicas dominadas pelo autor turinês. Esta é uma exploração que sugiro que possa ser desenvolvida
em outro espaço, posteriormente.
134
de uma prática política possuidora de algum ideal, expresso em uma percepção e
direcionamento ético do agir político.
Em suas reflexões Einaudi (1973, p.301-302) leva a termo uma proposição
bastante estimulante e que parece ter surtido relevantes conseqüências. Elas foram
perceptíveis tanto na filosofia política como jurídica de Bobbio, principalmente no
que tange ao rumo das políticas e da forma com que os responsáveis políticos as
executam. Assim “[...] o político não deve ser um mero manipulador de homens;
deve saber guiá-los em direção a uma meta e essa meta deve ser escolhida por ele, e
não imposta pelos acontecimentos mutáveis do dia que passa [...]” (Ib.). Contudo,
tomando este ponto de análise proposto por Einaudi, quanto ao aspecto econômico
da concepção de bom governo, como estaria estruturada a questão em Bobbio?
Alguns aspectos deste argumento é o que veremos a seguir.
3.3 – O bom governo e as estruturas de mercado em uma sociedade livre
As limitações metodológicas deste trabalho convidam a uma abordagem
teórica de alguns aspectos do livre mercado que não incluem uma análise minuciosa
de algumas das teorias econômicas que necessariamente encontram-se à base do
funcionamento das estruturas de mercado em uma sociedade livre. O mercado e a
sociedade livre são dois aspectos em que Bobbio parece demonstrar interesse. Sua
abordagem dá-se desde uma perspectiva funcionalista. Ela informa em grande
medida não apenas dos fins como também dos valores inerentes ao sistema político
e jurídico. Um exemplo da ação eminentemente prática dos valores libertários de sua
filosofia jurídica e política e, por derivação, de sua aplicação sobre a categoria
democracia, foi a instrumentalização de sua teoria como arma para o combate em
135
prol da redemocratização da Espanha franquista. Assim mesmo, não menos
importante foi seu uso no período de transição para a efetivação das instituições de
uma sociedade aberta24 naquele mesmo país e, neste marco, algo que não é tão
sublinhado pelos acólitos da esquerda que lhe reclamam o pensamento é que é, ao
fim e ao cabo, o pensar de Bobbio está alicerçado forte e declaradamente em valores
liberais e nas instituições de livre mercado.
Da aplicação da declarada vinculação bobbiana à tradição liberal ao seu
conceito de bom governo podemos extrair um apreciável grau de congruência
teórica. Trata-se de que Bobbio defende a posição de que quem exerce o poder deve
fazê-lo segundo o princípio claramente aristotélico da “[...] equa distribuzione degli
oneri e dei benefici, della ragione e del torto, fra il citadini [...]” (1985, p.9). O
liberal expressa-se através da preocupação com os direitos dos cidadãos, enquanto o
teórico do bom governo deixa entender o seu conceito na prática quando aconselha
que tanto o ônus quanto o bônus da vida em sociedade encontrem uma repartição
equânime.25
Mas não seria adequado enquadrar o pensamento do turinês entra os
combativos da esquerda por força de que procure que o benefício público seja
24
Sobre o tema diz Díaz que “[...] en estas páginas, incluso con ese mismo pretexto, yo querría
evocar, de manera resumida y como memoria casi exclusivamente personal, algunas circunstancias,
informaciones y reflexiones que estimo relevantes en torno al significado de la presencia y muy
positiva influencia de Norberto Bobbio, de su obra y de su pensamiento, en nuestro país en este largo
tiempo de preparación y construcción de la actual democracia [...]” (DÍAZ, 2004, p.1). Díaz ainda
recorda que a penetração de Bobbio na Espanha deu-se através da figura do célebre professor e
sociólogo do direito milanês, Renato Treves, contato que começou a se estabelecer em meados dos
anos sessenta. Para uma melhor averiguação das fontes doutrinas que se ocupam da influência de
Bobbio no pensamento jurídico e político na Espanha ver RUIZ-MIGUEL (2004).
25
Este é um assunto sobre o qual Bobbio teoriza mas não oferece critérios normativos concretos que
permitam sua tradução em política públicas. Por outro lado, ainda que preso a aspectos teóricos da
questão, Rawls foi mais longe ao sugerir critérios para a elaboração de políticas públicas apropriadas
a uma sociedade democrática de corte liberal como aquela aqui proposta (ver RAWLS, 1981).
136
orientado pela distribuição equânime dos ônus e vantagens. Fôra assim e
praticamente toda virtude política teria de ser concentrada na órbita desta linha de
pensamento.
Para estabelecer uma hipótese plausível para uma melhor compreensão do
pensamento de Bobbio, ainda quando ela não seja de causa e efeito, é possível
aduzir como um dos argumentos centrais o fato de que se posta entre os defensores
do livre mercado. Esta idéia pode ser aceita por dois motivos principais. O primeiro
é por seu explícito alinhamento com a tradição liberal e, segundo, por seu ataque aos
regimes politicamente fechados de seu tempo, tais como o gigante totalitário
soviético e a China.
Entre aqueles que propõe a defesa do livre mercado e que o fazem de uma
forma eficiente não há como obscurecer no bojo de sua argumentação o papel
metodológico desempenhado pelo direito de escolha individual. Esta é uma
categoria inserida em uma outra mais ampla contemplada nesta dissertação, a saber,
a liberdade. Logo, ponderar sobre a exclusão da escolha individual equivale ao
distanciamento ou, pelo menos um progressivo controle, desta por parte do Estado.
Quando sua órbita incide sobre tal direito colocam-se as condições de possibilidade
para a perversa equação do Estado (do mal) total.
É possível observar uma dupla relação quanto à liberdade quando
considerada em oposição ao Estado. A interferência na esfera privada guarda com a
liberdade política a mesma relação que a norma jurídica com a liberdade na órbita
do direito, a saber, quando uma aumenta, a outra diminui, e vice-versa. Portanto, os
indivíduos devem ocupar-se com a busca de sua preservação através da atenção
prioritária à tutela de sua capacidade e direito de escolha. É sobre este alicerce que a
produção e a economia buscarão seus referenciais em uma sociedade aberta e de
137
livre mercado. Isto tem uma estreita ligação com o fato de que a liberdade individual
seja concebida, necessariamente, como um pressuposto do próprio liberalismo
bobbiano, o qual, no entanto, não pode chegar a ser confundido com o dos clássicos
modernos como Mises e Hayek ou ainda um outro autor de referência já comentado
sinteticamente em linhas antecedentes, Leoni.
Não se trata da hipótese prezada pelos autores referidos ao final do último
parágrafo, mas sim de que a economia pode apresentar-se de forma muito ou
parcialmente controlada. Isto sim, sua opção é por uma estrutura onde a economia
encontre-se ao máximo vigiada quanto à ilimitada interferência do Estado, hipótese
na qual os indivíduos podem livremente escolher. É nesta circunstância que se
procura estabelecer a ligação da economia com o conceito de bom governo. Esta
concepção
bobbiana
não
foi
manejada
pelos
clássicos
da
economia
supramencionados. Não chegaram a ocupar-se dele uma vez que, como se sabe, suas
preocupações gravitaram basicamente em torno às formas de evitar o “alastramento”
do Estado.
Esta proposta teórica de alinhamento entre a leitura liberal e o bom governo
termina por representar a filosofia de Bobbio segundo uma perspectiva francamente
anti-hegeliana.26 Nos moldes do pensamento do turinês não há expectativa de
convergência com a aposta final hegeliana pela eticidade (e superioridade) absoluta
do Estado, na qual deveria dar-se a síntese final da sociedade e dos indivíduos nela
integrados. A moral é inerentemente individual, e a ética coletiva fundada no Estado
não traz oferece mais do que firmes alicerces para a instauração do autoritarismo.
Fora apenas e tão somente com o motivo desta sobreposição do Estado-ético
sobre a eticidade-moralidade dos indivíduos e seria possível expressar a decisiva
26
A propósito da filosofia hegeliana Bobbio desenvolveu estudo bastante interessante sobre o autor
o que, como soa óbvio, não é suficiente para tornar-lhe um hegeliano. Ver 1991a.
138
inclinação por uma leitura desfavorável de Bobbio frente a uma decisiva influência
de Hegel sobre ele, uma vez que os valores que o italiano postula são absolutamente
antitéticos com os defendidos por todos aqueles que propugnam a submissão do
indivíduo. Ainda mais grave, é possível dizer que a postura hegeliana ao fixar a
forma de uma profunda e genuína expressão da ética no Estado fere de morte sua
criação e concretização porque atinge frontalmente valores personalíssimos dos
indivíduos. Isto implica a precipitação do caminho para a sucumbência de uma
dimensão ética e moral de suas vidas. Desta forma seria inconcebível pensar, ao
menos na íntegra, em um Bobbio hegeliano como também em um Bobbio
rousseauniano, como foi visto anteriormente. Isto deve ser aceito enquanto seja
considerada a versão do genebrino como um opositor dos conflitos e debates e afeito
aos consensos e à vontade geral (Cf. 1988, p.104).
A vontade geral atua em Rousseau, inversamente ao concebido por Bobbio,
como um elemento transubstanciador de conflitos, superando-os e, ao homogeneizar
as vontades, criar uma nova realidade social, política com reflexos econômicos. Ela
opera como elemento filtrante de conflitos de modo a que sua negação equivalha ao
reconhecimento ab origine do direito primário do Estado de impor comportamentos
conformes àqueles que supostamente teriam participado do hipotético e legitimador
pacto social desenhado por Rousseau (Cf. 1988, p.19). Nada mais distante do
princípio democrático bobbiano do exercício do diálogo.
O conceito de bom governo em sua interface com a máquina estatal recebeu
de um dos melhores intelectuais brasileiros um apropriado estudo. Segundo boa
síntese de Merquior, era possível dizer que o bom governo do qual Bobbio se
ocupava apresenta cinco características (1991, p.214). A primeira delas é que vive
em um ambiente policrático, em que o monopólio do poder e o uso da força
139
efetivamente tem lugar, em que pese isto ocorra segundo padrões de legitimidade
politicamente asseguradas. Sobre este tema Bobbio faria em outro momento uma
afirmação. Sustentou que, de fato, uma das características de um Rechsstaat ou
Estado de Direito (acrescentaria que se trata é de Estado Democrático de Direito), é
que o Direito deve regular o uso da força de que o Estado dispõe, de modo que seja
uma força não arbitrária (2002b, p.64).
A segunda afirmação de Merquior é de que outro dos elementos
componentes do Estado de Direito é o da limitação do poder estatal, tal como
expresso na teoria dos freios e contrapesos que, como se sabe, recebeu tratamento
intelectual ímpar e fundador em Montesquieu. Em terceiro plano, admite que um
Estado que desfrute de um bom governo deve assim mesmo possibilitar aos cidadãos
a participação efetiva no processo de elaboração das normas jurídicas. Isto
representa de um modo concreto não necessariamente sua interferência no processo,
mas ver garantida a possibilidade de influenciá-lo ao fazer-se ouvir. Uma quarta
característica diz respeito a garantia de escolha constante entre grupos políticos que
dirijam os interesses sociais. Por último, Merquior refere-se a que as instituições
públicas não só devem instituir políticas e normas jurídicas tuteladoras dos
interesses e liberdades públicas e individuais como também ela mesma seja
respeitadora dos direitos que instituiu.
Em síntese, Bobbio postula que a caracterização do bom governo pode ser
bem feita quando é utilizado um método negativo, qual seja, o de sua oposição a um
conceito paralelo de, no caso em tela, mau governo. O bom governo é todo aquele
em que os responsáveis políticos assumem como ponto de interesse único e, quase
dizendo, final, o do bem comum. Os maus, por outro lado, cujo conceito auxilia na
compreensão da categoria, são aqueles em que se dá o triunfo dos fins particulares
140
sobre os gerais (2002b, p.47). O problema que se apresenta nisto é sobre como
delimitar qual é o conteúdo e alcance deste “bem comum” a ser atingido.
A esta questão Bobbio apresentou resposta bastante interessante, não
olvidando a dificuldade que o tema comporta. Propõe esta resposta em dois tempos.
No primeiro, de modo negativo, e no segundo, de modo positivo. Primeiramente diz
que mesmo que de bem comum se trate, esta noção tem certas limitações. Portanto,
o bem comum não tem por conteúdo o bem de todos nem sequer um bem que
transcende os interesses particulares. Já o bem público tem como conteúdo o bem
dos cidadãos que desejam uma vida em liberdade da dependência de poderes
despóticos (2002b, p.48) ou que, desde qualquer prisma que se observe, se
apresentem devedores de quaisquer das teorias autoritárias de governo.
Muito embora Bobbio adote durante longo período uma perspectiva
funcionalista, logo ele lhe acrescerá a necessidade de que o governante exerça o
poder conforme o princípio de legalidade (2000b, p.206) nos moldes da tradição
clássica. O governo das leis, portanto, salta de uma leitura da Antigüidade clássica,
mais precisamente de linhas de O Político, de Platão, passando pelo pensamento
moderno em Locke e Montesquieu até alcançar os nossos dias por meio do
constitucionalismo e das proteções garantidas por este ao cidadão contra o
governante. Ali foi cultivada a cultura de que a lei era o guia dos governantes e os
governantes são seus escravos. Tal concepção apresenta a possibilidade de que nela
se detecte uma das matrizes teóricas mais importantes do constitucionalismo. Esta
argumentação apresenta, segundo Bobbio, “[...] o desfecho natural da idéia do bom
governo fundado na supremacia da lei [...]” (2000b, p.212), tal e como anunciara em
outros termos tanto tempo antes outro dos luminares-fundadores da cultura
ocidental, o estagirita Aristóteles e, posteriormente, Cícero ao expressar o teor de
141
suas concepções de governo e república.
Mas se o caminho percorrido desde os clássicos não dista muito deste, o
turinês também assinala alguma influência de Dicey, para quem a supremacia da lei
caracterizava o Estado de Direito. Esse seria, por conseguinte, um dos elementos
fundamentais do bom governo? Sim, mas talvez não o principal. Na verdade, é uma
condição necessária, mas não suficiente. Em primeiro lugar, diz-se que é necessária
porque o conceito de bom governo supõe a submissão às leis tanto por parte dos
responsáveis políticos como por parte dos súditos em geral. Mas tanto ou ainda mais
importante que este, há ainda outro aspecto. Trata-se de que o bom governo supõe
que as relações entre os atores sociais se desenvolvam em certos níveis.
Exemplificativamente, aqui se encontram o respeito à dignidade do ser humano, às
liberdades e a exigência de transparência nas relações político-institucionais.
Em suas palavras, e adotando uma linha de raciocínio bastante similar aquela
que seria adotada por Bobbio, Dicey sustenta que o Estado de Direito deveria
apresentar alguns componentes, a saber:
“1. a ausência de poder arbitrário por parte do governo para punir
os cidadãos ou cometer atos contra a vida e a propriedade;
2. a sujeição de todo homem, independentemente de sua classe ou
condição, à lei comum do reino e à jurisdição dos tribunais
ordinários;
3. uma predominância do espírito legal nas instituições inglesas, em
razão da qual ‘os princípios gerais da constituição inglesa – como,
por exemplo, o direito à liberdade pessoal, ou o direito à assembléia
pública – são o resultado de decisões judiciais [...]” (apud LEONI,
1993, p.78).
Alguns destes princípios enunciados por Dicey parecem ser plenamente úteis
na prática. Mas também percebe-se uma conexão teórica entre o pensar deste e o
conteúdo expresso por Bobbio no bojo de sua concepção negativa que configura o
mau governo. Ele está pautado pelo desrespeito à lei, pela condução de um regime
político segundo o prisma do mero voluntarismo. Ao destacar este traço voluntarista
142
Bobbio se aproxima da definição de governo despótico de Montesquieu cujas ações
punitivas ou premiais se dão sem prévias limitações. Em suas palavras, “[...] hay
Estados donde las leyes no son nada o non son más que la voluntad caprichosa y
transitoria de un soberano [...]” (1987, p.323). Um regime político que adote tal
procedimento seria igualmente classificável na terminologia bobbiana como
possuidor de uma das marcas registradas do totalitarismo, vale dizer, o enfeixamento
de poderes em uma só pessoa ou a um restrito grupo.
Esta reflexão remete ao monopartidarismo, que é, efetivamente, o ponto de
apoio que na prática aproximou a teoria do fascismo italiano e o nacional-socialismo
alemão. Na verdade, ambos encontram resumo vocabular na expressão
“autoritarismo”, segundo Stoppino (1998, p.1247). Segundo o autor, a origem do
termo totalitarismo na Itália teve lugar por volta da metade de década de 20, e
naquele momento servia para caracterizar o Estado fascista em oposição conceitual
ao Estado liberal (Ib.). Neste mesmo sentido Jaspers, por exemplo, define a questão
com sua particular acuidade intelectual e a experiência de quem vivenciou o
problema. Sua perspectiva é a de que o Estado não pode constituir-se em um fim em
si mesmo, vale dizer, ser entendido como um ente alheio e superior à vida dos
indivíduos que lhe compõem (1998, p.83). Aqui percebe-se o enfoque comunitário
que valoriza a perspectiva do indivíduo, muito embora não seja relegada à
desconsideração completa a questão da vida em sociedade e dos valores que ela
implica, inclusive para que a própria pessoa humana possa realizar seu potencial.
Esta é uma leitura cara a Bobbio. Ela encontrou boa acolhida na filosofia
jurídica de Elías Díaz que foi uma dos maiores receptores e divulgadores da filosofia
bobbiana na Espanha. Isto se deveu até mesmo às circunstâncias políticas de sua
terra natal no momento da elaboração do corpo central de sua obra e da
143
argumentação filosófica do turinês. Assim, Díaz esclarecia que o totalitarismo se
explicita pelo fato de que o:
“[...] uso y la exaltación de la violencia y el terror como sistema de
control, así como la eliminación de las minorías disidentes de todo
tipo (y, por supuesto, también de los indivíduos que critican o se
enfrentan al sistema) [...]” (1979, p.49).
Retornando a concepção de bom governo frente a estes maus governos,
tornam-se pertinentes algumas reflexões sobre os regimes despóticos e totalitários.
Em outra de suas obras Bobbio aponta rumo a uma certa viragem conceitual. Ele
passa a reconhecer que esta terminologia foi substituída por um outro dualismo, qual
seja, o da governabilidade e ingovernabilidade (2000b, p.214). Esta dualidade
refere-se a um dos temas centrais que envolvem a crise da democracia
contemporânea. Esta crise se refere a todos os problemas que deslegitimam o regime
democrático enquanto carente dos resultados que anuncia. Isto também tem sua
origem positiva nos abalos sofridos pelo devido às intervenções e manifestações
contrárias às políticas públicas.
A dialética anterior se dava entre regimes despóticos e libertários. Esta
relação predominou durante todo o período que englobou a geopolítica bipolar,
quando das acérrimas disputas universais entre direita e esquerda, entre capitalismo
e socialismo. Agora, não obstante, ao que tudo indica, mesmo sem desconsiderar por
completo algumas questões que todavia sobrevivem, tais como os embates políticos
na luta pelas liberdades, parece fato que se superou o grande conflito ideológico.
Como parece sugerir Bobbio ao falar da nova dualidade governabilidadeingovernabilidade, o problema deslocou-se para uma abordagem mais pragmática,
qual seja, a questão dos critérios e parâmetros em que a governabilidade se
apresenta possível e, no mesmo sentido mas com vetor contrário, a partir de que
momento o esgotamento dessas condições torna presente a ingovernabilidade das
144
instituições.
Quanto a relação deste tema com a crise da democracia contemporânea, três
os itens apontados por Bobbio e que são relembrados por Carrion-Wam em seu
diálogo com o turinês, a saber: a) a questão da ingovernabilidade; b) o problema da
privatização da esfera pública. c) o papel exercido pelo poder invisível.
Referentemente ao primeiro aspecto, entendo que, mesmo que não o tenha dito
expressamente, quando de sua conferência realizada em sua visita ao Brasil, quando
Bobbio ressaltava que um dos grandes problemas da democracia é o “[...]
alargamento da esfera democrática [...]” (2001b, p.38). Naquele momento propôs
com toda clareza um dos problemas centrais acerca das condições de
governabilidade hodiernas.
Este problema é causado em grande parte pelo geométrico aumento das
demandas sociais aos governos e, conforme seu grau de abertura democrática,
igualmente pelo aumento dos canais para fazê-lo. A governabilidade democrática,
portanto, se encontraria em uma encruzilhada: o aumento, ou alargamento, como
prefere Bobbio, da esfera democrática conduz os responsáveis políticos à tomada de
decisões progressivamente mais dramáticas que, em certo sentido, pode entender-se
como excludentes, a todo momento, de interesses que têm ser de alguma forma
contemplados. Desta forma, as decisões variam quanto à impopularidade. Exemplo
notório disto são os casos de aumento de tributos ou, em outros, ou paralelamente, o
corte de benefícios sociais,27 uma vez que aqueles que demandam são os mesmos
que, por outro lado, não desejam contribuir com mais recursos para o sistema
funcionar de forma mais genérica e inclusiva.
27
Para que a argumentação possa ser considerada válida supõe-se a boa gestão dos recursos
arrecadados, estando a malversação dentro de limites razoáveis e as instituições ativas no sentido de
perseguir os responsáveis.
145
Aqui voltamos a um entroncamento entre a (ciência da) economia e a estrita
órbita das decisões políticas, cujas ações nem sempre são ou podem ser marcadas
pela mais contundente racionalidade de cálculo de custos e benefícios públicos, em
que pese este não seja um critério que possa ser simplesmente desconsiderado nos
procedimentos decisórios. Aqui o que se põe, então, é o problema do critério para a
tomada de decisões quando tenhamos em vista a concepção de bom governo
bobbiano.
3.4 – O bom governo e a necessidade do alargamento das instituições
legitimatórias da democracia
O conceito de bom governo e o de alargamento das instituições
legitimatórias da democracia guardam relação com a forma adotada para que sejam
tomadas as decisões nas sociedades democráticas do tipo que hodiernamente
vivemos no Ocidente. O processo de constante reacomodação e modificações
justifica-se pela necessidade de aperfeiçoamentos institucionais, nos termos já
assinalados por Bobbio. Segundo os parâmetros da concepção de bom governo do
turinês esta é uma tarefa não só irremediável como urgente. Uma primeira
observação que deve ficar assentada é que isto se deve a uma alta e progressiva
complexidade das relações que traspassam nossas sociedades. Isto, remete a um
sem-fim de problemas de ordem prático-teórica para que as decisões possam ter
lugar segundo princípios democráticos basilares.
As instituições democráticas exercem papel de procurar constantemente
desanuviar o céu nublado da governabilidade que paira sobre as sociedades livres.
Em outros termos, é possível dizer que essas instituições cumprem sua função ao
146
mostrar sua face legitimadora através da participação. Esta última é que consegue
dar o sustentáculo ao sistema, em que pese suas disfunções, e lhe permite continuar
operativo. Assim, um dos homens ligados à prática tanto quanto a teoria e bem
próximo ao pensamento bobbiano, Celso Lafer, sustenta que um dos equívocos da
esquerda foi que “[...] os marxistas sempre consideraram que o exercício do poder
seria natural porque a vanguarda governaria em nome de uma classe de vocação
universal, que é o proletariado. Estava, portanto, assegurada a qualidade do governo
[...]” (2005a, p.A10). Um dos problemas, contudo, é que a ética da vanguarda não
assegura a correção de seus pressupostos e nem mesmo que convirja com a moral
individual que compõem a perspectiva de cada um de seus membros.28
Sobre o tema, arremata Lafer, Bobbio “[...] mostrou que isso não é verdade
[...]” (Ib.). Desta maneira, o processo decisório em uma sociedade livre encontra
vicissitudes cujas dimensões não puderam ser bem dimensionadas pela prática
revolucionária nem pelas teorizações de seus mais ilustres sequazes. O bloqueio à
participação nas sociedades nas sociedades fechadas deu-se por força do espaço
ocupado por uma vanguarda redentora. Ela obsta o surgimento ou consolidação das
instituições democráticas.
Ainda a respeito das decisões, cumpre dizer que mesmo em uma sociedade
aberta a abstenção de tomar decisões políticas eventualmente traumáticas induz à
possibilidade de crises da democracia posto que, como bem alerta Lafer, “[...] o
(exercício do) poder é complicado [...]” (Ib.). Talvez seja possível dizer que um dos
maiores mandamentos do exercício do poder seja o de decidir, condenando-se a
inação ou a letargia no exercício das funções políticas. Um dos fatores que
proporciona a inclinação às crises políticas é que as condições de legitimidade sobre
28
Dentre outras referências, há uma substanciosa entrevista de Romano. Ver ROMANO (2006).
147
as quais se assenta uma sociedade democrática podem ver-se terrivelmente corroídas
com a ocorrência de algumas circunstâncias e com o passar do tempo. Isto tem ao
menos duas origens, a saber, pelo fato de que sejam tomadas decisões altamente
impopulares e impactantes ou que, por outro lado, o poder político se abstenha de
tomar decisões.
A primeira hipótese que consagra a tomada de decisões altamente
impopulares deve ser analisada segundo dois resultados que pode gerar. Segundo
um deles, pode gerar aspectos benévolos do ponto de vista macrosistêmico,
econômico e político. Por outro lado, muitas das políticas podem ser apenas
circunstancialmente impopulares mas absolutamente eficazes. Não menos, podem
apresentar-se populares mas absolutamente ineficazes quanto aos objetivos que tem
em vista.29 Em uma e outra situação fica relativamente claro como se encaminhará a
questão da legitimação por parte da sociedade civil. Já a segunda hipótese diz
respeito à abstenção de tomada de decisões. Nesta situação o processo político tende
29
Um exemplo manifesto disto são as aspirações à estipulação de altos valores para o salário mínimo.
Sem descer às minúcias da argumentação econômica e de suas repercussões jurídicas, é possível
razoavelmente assentir com a idéia de que seu valor deve guardar certa proporção com o nível geral
das riquezas produzidas na economia de um determinado Estado. Congruentemente com este
pressuposto, um Estado que produza riqueza em nível representado por X, e que se encontre composto
pelo restrito conjunto de indivíduos [Y1 ... Y4] e supondo uma rede social de distribuição salarial
marcada por uma noção de desigualdade moderada, poderíamos nos deparar com o seguinte quadro de
distribuição da massa salarial: Y1, Y2 = 2/4 de X; Y3 = 1,5/4 de X; Y4 = 0,5/4 de X. Portanto, o que se
deseja sublinhar é que de forma alguma demandas por políticas eminentemente populares poderiam ser
empreendidas pelos responsáveis políticos quando elas supusessem a transposição dos níveis de
riqueza produzidos no âmbito do Estado. A função legitimidade tenderia a aumentar abruptamente pela
sua adoção no curto prazo, mas a médio e longo prazo a curva decrescente experimentada seria
vertiginosa, comprometendo todo o sistema político. Em que pese rudimentar, a argumentação aqui
apresentada cumpre a finalidade mínima de expressar a idéia de que as demandas públicas por políticas
populares podem revelar-se absolutamente ineficazes quanto aos objetivos que almejam (nesta
circunstância o aumento do bem-estar), podendo mesmo gerar o duplo e inverso efeito, a saber,
diminuição do bem-estar e uma crise da democracia.
148
a ficar emperrado e as conseqüências disto muito dificilmente poderão apresentar-se
como positivas. Ao contrário, a tendência é de que seja gerado um processo de
deslegitimação do poder político.
Ainda quando o processo decisório contemple possibilidades de reversão de
más expectativas quanto a legitimação imediata, o problema do alargamento da
democracia persiste em vários outros pontos. Em conferência realizada na UnB,
Bobbio sublinhava que em outros momentos o problema principal a enfrentar era o
do aumento da abrangência dos possuidores do direito de sufrágio. Mas este
momento fora vencido. O problema agora passava a ser o dos lugares onde se vota,
por exemplo, se se deveria votar nas fábricas ou nas escolas para que se possa
controlar o poder. Esta passava a ser uma questão nevrálgica da teoria da
democracia.
Desde outra ótica, há um problema que deriva de uma melhor e mais precisa
visibilidade de um determinado regime político. Ele mantém ao menos duas relações
bastante íntimas com aspectos que aqui são denominados material e formal. Nos
dois casos trata-se das relações estabelecidas com o poder. O primeiro desses
aspectos diz respeito ao grau de visibilidade com que suas elites atuam e que
também esta ação dê-se de forma eticamente contida na defesa de seus interesses
quando interveniente em negociações políticas. Já o ponto de vista formal diz
respeito à ação das elites em consonância a limites pré-estabelecidos. Entende-se
englobado pelo conceito de ação eticamente contida todo aquele que age no sentido
de descortinar suas ações políticas perante o público. Com isto a visibilidade toma
grande parte da pauta. A relação disso com o exercício do poder por uma elite – seja
qual for a constituição originária dessa – é que, mormente, ela detém meios eficazes
para organizar e dirigir suas ações e proteger seus interesses. Por conseqüência, suas
149
possibilidades para proceder à opção, ou não, pelo caminho de ações politicamente
visíveis são bastante concretas.
Disto deriva que, tendo como pressuposto o instrumental teórico bobbiano, a
democracia não pode abrir mão de acurada reflexão sobre o papel exercido por suas
elites. Deve ser ponderado que a soberania popular não passa de um ideal-limite e
que em qualquer regime político quem realmente exerce o poder é uma minoria,
mesmo que o faça por delegação legitimada. Por outro lado, a percepção
apresentada aqui é que a idéia de visibilidade bobbiana deve servir como
instrumento jurídico-político descortinador de ações e interesses que têm lugar
formalmente quando esta minoria exerça o poder que lhe tenha sido delegado. Esta
legitimação é conferida pelo conceito de soberania mas, não incomumente, esta
permanece no âmbito da formalidade, carecendo, na prática, do que denominaria de
processo de legitimação continuada. Daí que se faça necessário operativo o conceito
bobbiano de visibilidade, como forma de que um mero conceito formal, embora
legítimo, possa transformar-se, na prática, em alvo de controle e, por conseguinte, de
um processo de legitimação continuado.
Desde outro prisma, como diz Lafer, em um século que começa marcado por
tantas violências e radicalismos de todas espécies, que variam dos religiosos aos
políticos e econômicos, “[...] a lição de Bobbio sobre a moralidade da discussão
pública têm plena atualidade [...]” (2005b, p.A2). Em outras palavras, trata-se da
assunção de que o conjunto da visibilidade da prática do poder e de sua percepção
pelos governados formam uma via de mão dupla. Ela é essencial desde a ótica da
organização social que vislumbre primar pela limitação constitucional dos poderes,
por apresentar estruturas republicanas de governo (preferentemente) ou, até mesmo,
por uma forma monárquica, mas igualmente constitucional. Tanto em uma como em
150
outra a moralidade no trato com a coisa pública desfruta de posição privilegiada no
exercício do poder político.
Desde a ótica jurídica, propugna-se a materialização de instrumentos legais
eficazes para assegurar o acesso às informações atinentes ao poder público, o que
evidencia uma das formas de visibilidade do exercício do poder. Um desses
mecanismos disponíveis ao cidadão em nosso sistema jurídico encontra-se disposto
na Constituição brasileira de 1988, que prevê em um de seus remédios
constitucionais, o habeas data.
A visibilidade, contudo, não se esgota na possibilidade de maior percepção
da vida pública. Uma outra variável do tema é são os termos em que é proposta a
formulação de uma sociedade livre em termos bobbianos e como ela é perceptível
em suas categorias analíticas comparativamente a certas análises aronianas. Ao
referir-se ao clássico trânsito da liberdade negativa à positiva, Aron frisou que, até
então, a mera garantia de um “não-impedimento” ou não-obstaculização alicerçada a
uma ameaça de sanção não assegurava aos tutelados o exercício do direito. Em
outros termos, para Aron faltava a liberdade positiva. Seu asseguramento dependia
da introdução de meios que interviessem para torná-los realidade (1985, p.271).
Portanto, se em um primeiro momento existia a “proibição de proibir”
(liberdade negativa) a qualquer cidadão, por exemplo, no que tange à admissão em
determinadas escolas, tradicionalmente freqüentadas por elites, disto decorria a
singela conclusão de que elas não poderiam permanecer hermeticamente fechadas às
classes baixas. Já com a liberdade positiva, a questão era a de assegurar meios que,
efetivamente, permitissem às classes desfavorecidas exercer os direitos de ingressar
nas escolas que mais lhe aprouvessem. Esta terminologia termina sendo convertida
na questão da igualdade de oportunidades, da qual me ocuparei em outro momento.
151
Portanto, desde o prisma político, parece possível encontrar certo diálogo e
posições compartilhadas entre Aron e Bobbio. Isto ocorre, principalmente, quando
da leitura em suas obras sobre a necessidade de que sociedade e cidadãos contem
com liberdades e dispositivos políticos suficientemente fortes para interagir com a
esfera política. Aqui, então, intervém a categoria bobbiana de visibilidade. Dela
advém a possibilidade de um feed-back, ou, se se preferir, um sistema de inputs e
outputs. Sendo perceptível tanto em Aron como em Bobbio o interesse pela
liberdade individual, e política, é necessário que a sociedade conte com fortes
dispositivos que permitam a interação cidadão com a esfera política. Um destes
equipamentos é o conceito bobbiano de transparência. Sem ela os sistemas políticos
tendem a progressivamente ingressar em terrenos obscuros que lhes farão esbarrarar
no voluntarismo que, como visto, caracteriza os despotismos, os totalitarismos e
autoritarismos de todo gênero, qualquer que seja a classificação e as peculiaridades
teóricas que lhes seja atribuída.
Enfim, uma boa leitura de parte do argumento apresentado até aqui sobre a
função da transparência ou da publicidade nas relações políticas encontra-se nas
palavras de Lafer. Em outro contexto, ao abordar as relações entre governantes e
governados, ao introduzir o elemento publicidade conclui que ela tem por função
“dar aos governados condições de julgá-los” (2006, p.02). Indubitavelmente, a
possibilidade do julgamento adequado do exercício das funções políticas e públicas
em geral, depende do grau de liberdade, pluralidade e, neste sentido, da qualidade da
informação veiculada à cidadania e, em certo sentido, da capacidade desta em
decifrar os signos transmitidos.30
As crises a que a democracia pode ver-se exposta, portanto, exibem, a signo
30
A exploração deste assunto é bastante rica e interessante mas distancia-se do foco deste trabalho,
motivo pelo qual fica postergada a uma outra iniciativa acadêmica.
152
de cautela, a preservação de um conceito como o de visibilidade do funcionamento
das instituições e da vida política. Em nossos dias a crise das democracias vê
renascer tendências históricas que até há pouco pareciam entregues à lembranças
históricas. Ao contrário, hibernavam. Por força do ressurgimento destas ignotas
teses esta análise a não passar totalmente ao largo das experiências do século XX.
De conteúdo nefasto, essas vivências demonstraram claramente um outro
componente que não escapa de um dos mais argutos dentre os filósofos, Jürgen
Habermas.
Em sua particular análise da democracia conclui que essa crise envolve em
alguns casos a idéia de racionalidade. Isto, por sua vez, implica que as instituições
compõem as democracias, tais como sua esfera governante, sintam-se afetadas
quando tal racionalidade entra em colapso. Este foi o caso da Alemanha nacionalsocialista. Mas qual racionalidade colapsou naquele período? Acaso teria sido
apenas e tão somente a racionalidade da elite governante? Acaso é possível conceber
que o ocaso da razão em uma elite tenha força e poder para açambarcar toda um
Estado em um estágio de insanidade política geral? Entre as várias teorias que
buscaram explicar o fenômeno está a de Daniel Goldhagen, segundo quem os
objetivos nacional-socialistas não poderiam ter sido perseguidos não fosse uma
adesão cidadã expressiva a ideologia em vigor (1997), afinal, não há quem exerça o
poder sem que tenha suporte da burocracia e, em última análise, de uma ou outra
forma, pela submissão dos indivíduos ao ordenamento jurídico e da força coercitiva
que lhe dá sustentação.
Sem adentrar em demasia nas perspectivas habermasianas, a crise
mencionada no tópico acima encontra bom estudo de Carrion-Wam. Fala sobre a
análise de Bobbio ao quanto importa para a democracia ter uma perspectiva mais
153
bem definida de si mesma. Em outras palavras, do que se trata é de que a
ingovernabilidade estaria dada pela desproporção entre as demandas que provém em
um número cada vez maior por parte da sociedade civil e, por outro lado, a
capacidade de que esteja composto o sistema político em que vivemos para
responder a tais demandas. Portanto, há uma relação aberta e visível entre a
racionalidade política triunfante entre os indivíduos e aquela outra que vige na
perspectiva da minoria que exerce o poder. Que ela atinja alto grau de transitividade
parece uma condição indispensável para a caracterização de uma sociedade livre. O
movimento inverso não desconstitui de imediato a estrutura de poder do Estado, mas
criam as condições de ingovernabilidade ideais para a corrosão das estruturas do
Estado.
Esta é uma perspectiva fundamental e, ademais, tem importante ligação com
a idéia não menos central sobre as promessas não cumpridas pela democracia. Este
tema adquire importância porque é a partir dele que em Bobbio tem espaço um
profundo estudo como o desenvolvido em seu O futuro da democracia. Contudo,
não poderia ser dito sequer que Bobbio põe em destaque a análise deste tema pois,
como diz Habermas, lá pelos idos dos anos 60 Böckenförde apresentava a idéia de
que “[...] o Estado liberal e secularizado consome pressupostos normativos que ele
mesmo não pode garantir? [...]” (2005, p.4). Habermas reitera a idéia afirmando que
aqui se encontra um dos dilemas que têm de ser vencidos pelo Estado constitucional
democrático para que possa renovar os pressupostos de sua existência (Ib.).
Mas se Bobbio não pôs as bases fundantes do debate sobre o tema,
seguramente ele alarga as discussões sobre ele. Um dos aspectos culturais da
contemporaneidade que parece ter influenciado o contexto das reflexões do turinês é
Höffe. Tomando as reflexões dele sobre a modernidade, por analogia, é possível
154
chegar a algumas interessantes conclusões. Um destes aspectos é que a modernidade
prometeu alcançar a felicidade através da organização do Estado moderno. Na
verdade, diz o professor de Tübingen que “[...] uma expectativa, talvez até uma
promessa de cujo cumprimento o Estado não é capaz, nem autorizado [...]” (1991,
p.378) para oferecer.
Höffe prossegue em seu argumento dizendo que não se trata de atribuir ao
Estado a promoção direta da felicidade mas sim, segundo um viés que remonta à
tradição jeffersoniana, arendtiana e liberal, de instituir espaços para que as pessoas
disponham de seu direito de livre expressão e para decidir nas questões da
comunidade (1991, p.379). Ainda mais, que isto termine por refletir no sentimento
de auto-realização. Indubitavelmente, isto remete ao problema da participação
política, embora aqui a perspectiva seja diferenciada, vale dizer, seja a do bem-estar
que o indivíduo pode desfrutar quando dispõe da possibilidade de interferir nos
assuntos públicos de forma incisiva.
A analogia possível a partir da abordagem de Höffe com a temática bobbiana
reside precisamente em que a democracia liberal se propôs à promessa da felicidade
espiritual humana. Ela se ocupou com algo menos, mas de forma não menos
importante e pretensiosa, a saber, com a promessa da felicidade material. A ela
todavia aliaram outra promessa, a de condições para que seus membros pudessem
buscar, cada a qual à sua maneira, sua realização em consonância com seus
princípios morais. Isto não foi realizado necessariamente de forma direta. Para isto
bastante eficazes são os mecanismos indiretos. Exemplo acabado disto são os
instrumentos publicitários (com fins declaradamente políticos ou não) subliminares
utilizados à exaustão não apenas em regimes políticos fechados como também,
convém ressaltar, nos abertos.
155
Outra referência que se encontra em plena conformidade com o diagnóstico
bobbiano é a do jusfilósofo espanhol Rubio Carracedo. Diz com detalhe que as
promessas não executadas da democracia foram o fator primordial que a conduziu
ao atual estado de crise. O autor assinala que entre os elementos que levaram a tal
estado encontram-se os seguintes: a) a supressão dos corpos intermediários entre os
deputados e a nação; b) a salvaguarda dos interesses nacionais sobre os particulares
e, por conseguinte, do interesse público sobre o privado; c) em conseqüência do
anterior, a eliminação das oligarquias e a supressão dos “poderes invisíveis”
(categoria bobbiana) ou fáticos, que interferem na transparência dos serviços
públicos;31 d) por último, a ausência de uma mais ampla participação dos cidadãos
nas decisões coletivas através de programas públicos de educação cívica e política
(1993, p.56) algo a ser evitado para que a democracia possa afirmar-se. Aqui, uma
vez mais, o autor toma por empréstimo, mesmo que não declaradamente, uma
linguagem teórica muito próxima aos princípios mais caros à filosofia jurídicopolítica de Bobbio.
O conjunto dos elementos apresentados acima podem ser entendidos como
uma boa síntese dos argumentos bobbianos para explicar em que termos a
democracia torna-se uma promessa irrealizada. Partindo destes elementos é possível
questionar quais motivos podem ensejar a inércia ou indiferença cidadã a respeito da
esfera pública. Neste sentido é interessante observar como um pensador conservador
da estirpe de Strauss igualmente ressaltava de forma negativa este tema em sua
leitura de Schmitt. Como soa óbvio, sua leitura difere da realizada por Bobbio. Sem
31
O conceito de transparência na vida política ganhou considerável espaço na argumentação pública.
Entre nós, por exemplo, Celso Lafer, um dos jusfilósofos próximos ao pensamento bobbiano, referese continuamente ao conceito quando de suas análises sobre filosofia política ou sobre a política
contemporânea. Ver LAFER (2006).
156
embargo, na perspectiva do autor alemão, o momento vivido no mundo moderno era
marcado pelo liberalismo e este incentivava a negação do político ou, o que é o
mesmo, conduzia a um processo de despolitização (1996, p.32). Contudo, devemos
sempre recordar que Schmitt é um portento do antiliberalismo, que sua
argumentação em torno dos desfavores liberais relativamente à participação dos
indivíduos parece constituir mais um de seus ardilosos sofismas. Aceitando como
certo que o liberalismo anda par e passo com as instituições individualistas, por
outro, não é menos certo que, histórica e filosoficamente falando, que foi também
ele que melhor ocupou-se da tutela das liberdades. Ao fazê-lo, o liberalismo
estabeleceu uma firme conexão da tutela das liberdades com a ampliação da esfera
possível de participação cidadã na vida pública.
Sem aprofundar em demasia sobre Schmitt, aspecto interessante é que ele
antepõe-se ao liberalismo. Ao fazê-lo também se opõe a uma tradição cara a Bobbio.
É a esta altura do debate que parece apropriado introduzir a concepção de
qualunquismo do turinês. Esta concepção traduz o fenômeno de descrença
relativamente às instituições democráticas cuja ocorrência tanto prejuízo práticoteórico podem causar. O alerta certa vez feito por Bobbio é muito bem vindo neste
momento. Nele dizia que na história política muitas vezes, “[...] somente se dá valor
a algo quando você o perde [...]” (apud CARDIM, 2001, p.17). Improvável suscitar
um melhor acabado diálogo com o verbo político aroniano. Segundo ele “o regime
democrático (...) reavê assim o valor que o costume pode deixar de lhe reconhecer,
mas que uma simples observação dos Estados ilimitados e autoritários basta para pôr
as coisas no seu lugar [...]” (1985, p.271). Para Bobbio um acabado exemplo
expressivo do discurso sobre os deméritos da democracia era o hábito de alguns
socialistas italianos de proceder a ácidas críticas sobre o que chamavam de
157
democracia burguesa.
Mas estes críticos viviam nela e, paradoxalmente, a rechaçavam com força,
ao menos desde a ótica retórica. Contudo, em perfeita consonância com o
ensinamento de Bobbio exposto por Cardim no parágrafo anterior, eles terminaram
por valorá-la quando tiveram de defrontar-se com as instituições fascistas.
Enfrentados com sua antípoda no espectro ideológico, a democracia “burguesa”,
esta logo ganhou traços axiológicos mais positivos em suas avaliações. Mas ali
vivenciavam um ponto de não retorno, ou seja, já era demasiado tarde. Por certo, o
problema dos intelectuais em suas relações com o poder foi um dos temas mais
prezados por Bobbio. A ele dedicou excelente trabalho (1997b).
Estas relações entre democracia, da necessidade de seu alargamento, da
consideração de uma maior transparência, de maior grau de participação política
assim como da intervenção dos intelectuais conduziram Bobbio a outros portos. É
necessário passar a considerar outro e não menos importante assunto, ou seja, como
é possível conceber o estabelecimento de um diálogo entre Bobbio com o realismo
político e o conservadorismo através das figuras de Maquiavel e Carl Schmitt como
referenciais teóricos bastante úteis para entender não apenas o momento da
concepção de sua teoria da democracia como, e talvez principalmente, como equipála com categorias apropriadas para enfrentar as doutrinas antilibertárias que, de um
ou outro modo, se farão presentes na sociedade aberta. Este é o tema do item
subseqüente.
3.5 – Entre as perspectivas da democracia e o realismo político: diálogo entre
Bobbio, Maquiavel, Schmitt e a tradição conservadora
158
As questões que envolvem a democracia e o realismo político e suas diversas
perspectivas vêm à tona fortemente quando se procura analisar se as suas promessas
foram em algum momento, mesmo que do ponto de vista teórico, passíveis de
cumprimento. Em segundo lugar, mas não com menor importância, pondera-se se
estas promessas foram realizadas em uma acentuada e tardia manifestação iluminista
ou bem se apenas se tratou do uso de uma estratégia política naïve e demagógica.
Estas duas são questões propostas encontram respostas que transcendem os
limites destas linhas. Contudo, uma abordagem meramente preliminar parece sugerir
que deva ser aceita a hipótese de uma resposta mista. Ela aceita que se trata de uma
mescla das duas opções mencionadas no parágrafo anterior ademais da interferência
bastante considerável de um outro elemento superveniente. Esse elemento tornaria
mais complexas as relações sociais, estas que só fizeram crescer, enquanto que, por
outro lado, as promessas da democracia não poderiam ter sido expandidas ao ponto
que foram, ao menos não sem que o ônus políticos viesse a ser apresentado sob a
rubrica de crises sistêmicas do regime.
Proponho a existência de, ao menos, dois planos discursivos através dos
quais estas relações podem ser entendidas. Um é o do discurso político congruente e
comedido. Em que a promessa democrática, ele resguarda-se e mantém-se adstrito
às condições efetivas de possibilidade de sua realização, quer considerado da ótica
teórica como da ótica material. Um outro plano que pode animar o discurso dos
responsáveis políticos em sociedades complexas é o de tipo populista. Nele, nem
não se observa congruência entre seu conteúdo e as possibilidades de sua
materialização. Portanto, tal discurso permanece bastante além das possibilidades de
implementação. A orientação deste tipo discursivo visa à obtenção e gerência dos
mecanismos de poder. Em segundo plano trata de gerir crises de insatisfação e, por
159
conseguinte, de possíveis descrenças no sistema democrático, alicerce no qual com
certa freqüência o discurso populista se baseia para alcançar o poder. Acima de tudo
este plano político revela-se altamente descomprometido com uma dentre as mais
essenciais tarefas da política que, segundo Bobbio, é a função pedagógica.
Esta opção populista muitas vezes convive com uma outra variável que deve
ser considerada. Trata-se da irracionalidade. Ela pode conviver de forma latente com
as estruturas de uma democracia. Elas podem subsistir no seio de democracias
enfermas até que, em algum momento, seu modus operandi conduza o sistema que a
crises de maior amplitude ou, no limite, ao colapso. Em sua leitura, Habermas não
deixa de relacionar o estudo do problema com a marcante experiência do nacionalsocialismo alemão. Para fazê-lo retoma o engenhoso Carl Schmitt. Este ridiculariza
o ponto nevrálgico das teses popperianas que, em certo sentido, são também
habermasianas, qual seja, a das sociedades abertas. Parece encontrar-se o parentesco
entre ambas na medida em que não se dariam as condições para uma teoria
comunicativa em condições que não fossem as de uma plena liberdade discursiva.32
Neste ponto se estabelece em certo nível um contato temático entre a prática
dialógico-política bobbiana e a teoria habermasiana da comunicação. Cabe incluir
como de interesse de ambos a comunicação e discussão pública, cuja versão se
encontra em Bobbio sob a forma do diálogo político entre partes com fins diversos.
Obviamente, não se deve desconhecer a grande diferença de abordagem do
na teoria de ambos filósofos. Assim, por exemplo, Habermas entra no mundo da
teoria discursiva, da análise das possibilidades da linguagem, das condições de um
discurso universalizante assim como de suas condições ideais, ou quase, para o
desenvolvimento do diálogo entre os atores. Neste sentido sua exploração o
32
Para uma análise mais detalhada do assunto ver Habermas (1987; 1992).
160
aproxima bem mais de Perelman e Gadamer do que de Bobbio. A este nível de
profundidade Bobbio não se ocupa. Ele mais se aproxima deste tema quando
procura viabilizar o diálogo na prática dos atores políticos. As teses defendidas em
nos pontos de partida de Bobbio e Habermas parece que lhes aproximam. Suas
perspectivas são de promover uma comunicabilidade no sentido de fomentar o
diálogo entre partes cujos interesses nem sempre se mostram muito bem afinados
ou, mesmo, explicitados, por dizer o mínimo, mas que necessitam estabelecer regras
comuns de convivência.
Quando Habermas recorre aos argumentos de Schmitt recorda que a
oposição acirrada deste à discussão é essencial para a afirmação de um Estado
totalitário e, portanto, completamente avesso a uma aproximação do conteúdo
mínimo de democracia.33 Ele afirma seu distanciamento de uma teoria assentada
sobre o processo discursivo como um de seus argumentos centrais para proceder a a
um ataque virulento contra o parlamentarismo como esfera de cultivo, mediação e
debates dos interesses políticos. Schmitt traz à baila uma vez mais sua constatação
de que os parlamentos na maior parte dos Estados já não são lugares onde se
desenvolva uma controvérsia racional e que, por conseguinte, possa estabelecer as
regras de convivência. Caberia questionar sobre qual a racionalidade inerente ao
sistema propugnado por ele, acaso existisse alguma, e não tão somente uma
profunda manifestação de irracionalidade em seu aclamacionismo.
33
Aqui utilizo a expressão “conceito mínimo de democracia” com o escopo de deixar a entender que
esta pode apresentar-se segundo diversos graus, e não somente de uma forma e em um nível
qualitativo, e sob o formato negativo e ainda excludente em uma relação de “existe-não-existe”. A
democracia é suscetível de apresentar-se em diversos níveis. Em cada um as liberdades podem ser
mais ou menos amplas. De qualquer sorte, um sistema político para ser considerado como
democrático deve na prática, necessariamente, garantir algumas condições ou direitos mínimos, tais
como o direito à liberdade de expressão e o devido processo legal, direitos dos quais derivam outros
tantos.
161
Para Schmitt no Parlamento inexiste a genuína possibilidade de que uma
parte dos deputados convença à outra e que, por conseguinte, o acordo na
Assembléia seja o resultado do debate. Segundo ele, os partidos apenas formam
organizações em um contexto de luta acirrada por interesses bem localizados onde
as discussões parlamentares estão longe de poder convencer e, portanto, mudar-lhes
a atitude (1992b, p.306) sobre os temas debatidos. De fato, a análise de Schmitt é
percuciente, e não em poucos casos, estruturada em silogismos cujas reflexões de
conteúdo levam a observar conclusões nem sempre perceptíveis à primeira vista mas
que tampouco se revelam conformes à liberdade e á dignidade humanas.
Não obstante, a marca de Schmitt não deixa de traduzir um segmento da
realidade política que envolve os parlamentos das democracias, desde as menos
desenvolvidas àquelas que já ocupam estágio de maior avanço. É forçoso reconhecer
que algumas de suas análises, dentre elas aquelas que dizem respeito às falhas dos
parlamentos, são de proveito quando temos em perspectiva a realização de análises
pragmáticas dos representantes e das instituições nas sociedades desideologizadas
dos nossos dias.34
Desde esta perspectiva o tema central é o de abrir mão do diálogo como
mediador ou, o que é o mesmo, desconsiderar o papel que ele possa exercer no
parlamento como forma de compor interesses diversos. Isto sim, aqui a questão é de
saber se este processo tem necessariamente de dar-se através da convicção ou se
bastaria a adesão externa. Em nível prático deve-se procurar entender se para reputar
um compromisso como válido basta tão somente ceder frente a interesses em troca
de outros. Seria esta composição meramente pragmática e ao mesmo tempo, talvez
por destituída de maior fundamentação teórica, suscitadora da invalidade dos
34
Uma das boas referências bibliográficas sobre o assunto é a obra de Tenzer (1992).
162
compromissos?35 Acaso o pragmatismo das composições anula o valor do debate e
do diálogo em si nas sociedades abertas? A concepção não invalida o argumento
mas, isto sim, a matéria da qual seu procedimento se constitui. Por hipótese,
existindo respeito aos direitos humanos que mais haveria em acordos de ordem
pragmática para tutelá-los de forma mais eficaz? Parte-se, portanto, de um firme
fundamento para, em um segundo momento, aplicar o critério pragmático. Por outro
lado, qual o argumento politicamente responsável e moralmente aceitável para, antes
da consideração de qualquer pragmatismo, acatar dentro da perspectiva da
razoabilidade decisões em sentido inverso ao da tutela dos direitos do homem no
bojo de alguma ordem jurídica? Esta não é precisamente uma questão que aflija os
nossos dias mas, na verdade, a todos os tempos desde que esta questão foi proposta,
primitivamente, por Sófocles (1997).
Margeando a questão, e voltando aos argumentos de Schmitt, fato é que o
autor se vale muito bem da selva conceitual e dos silogismos que propõe para poder
abrir caminhos e assim mantê-los para operacionalizar uma das categorias-chave de
sua filosofia jurídico-política autoritária, qual seja, a de amigo-inimigo. Segundo
comenta Strauss, isto é o que faz a diferença em política (1996), e não qualquer outro
aspecto. É nela em que, indubitavelmente, se dá a eliminação do irremediavelmenteoutro, ou seja, daquele que é efetivamente diverso de nós próprios
Nestas
circunstâncias percebe-se que as condições indispensáveis para o estabelecimento do
diálogo, diferença, pluralidade e liberdade, são eliminadas, denotando ser este um dos
principais pontos de distanciamento do duo Bobbio-Habermas relativamente ao texto
filosófico schmittiano.
35
Há que recordar que a aceitação da livre negociação de interesses na órbita política, sem mais
fundamento que aspectos de ordem pragmática pode suscitar a introdução de normas de conteúdo
abjeto.
163
Esta eliminação tem, no mínimo, duas esferas.A primeira delas é a da disputa
verbal e terminológica que visa excluir o discurso alheio, destituindo-lhe de
veracidade e de valor. Isto é o que denominaria de esfera de combate axiológico.
Outro grau de enfrentamento para a exclusão do outro é o da pura eliminação física.
Este não é, infelizmente, o último recurso de que se valem as filosofias intolerantes.
Este foi o caso do nacional-socialismo. Especificamente neste caso encontraram na
primeira das esferas apontadas seu momento inicial com o progressivo avanço da
segunda esfera, o que prenunciou os piores dias que o porvir reservava.
Em todo caso, estes processos de eliminação do que denominei
irremediavelmente-outro pode ter lugar na medida em que são assumidos valores
essencialmente irreconciliáveis onde ao menos um dos grupos é intolerante.
Recordando a terminologia de Berlin, e ainda que espose filosofia de corte tolerante,
dentro desta dinâmica os incomensuráveis valores passam a ocupar o lugar central da
discussão. No âmbito da sociedade aberta que tenho em perspectiva a opção será pela
exclusão do processo de exclusão do irremediavelmente-outro. Esta é uma fórmula de
compatibilizar a preservação do sistema com os requerimentos mínimos de uma
democracia. Daí a opção pelo debate que persiste no núcleo de teorias democráticas
como, por exemplo, de Bobbio e Habermas, em que pese suas diferenças de
abordagem.
Um outro aspecto sobre a discussão pública remete à relação entre democracia
e liberalismo. Como bem recorda Borges, um tema altamente problemático em
Schmitt “[...] é a separação entre democracia e liberalismo [...]” (1999, p.40). O
problema reside nos silogismos em que sua filosofia habilmente tergiversa e na busca
holística dos significados através dos quais é possível interpretá-los. Contudo, na
particular relação entre democracia e liberalismo, há mais clareza. É possível ler o que
164
quer quando afirma que “[...] la democracia se ha ligado e identificado con
liberalismo, socialismo, justicia, humanidad y reconciliación de los pueblos [...]”
(1992b, p.223). Quando percebida de forma sistêmica é possível observar algum grau
de contradição em sua filosofia. O mesmo pode dizer-se de quando procura conjugar a
categorias liberalismo e socialismo, humanidade e reconciliação dos povos quando,
precisamente o maior destaque da prática de sua filosofia jurídico-política foi não só
do enfrentamento como do extermínio do outro.
Na verdade, Schmitt procede a uma clara separação entre democracia e
liberalismo. Para isto oferece o argumento de que a democracia permanece
desconectada do conceito de decisão, que vem a ser fundamental para a sua própria
teoria política. As decisões ficariam incumbidas a um conjunto reduzido de cidadãos
os quais, além do mais, seriam etnicamente homogêneos. Esta homogeneidade é um
recurso do qual se vale para, aliado à identidade do povo consigo mesmo, caracterizar
o que ele denomina de democracia. São, sem sombra de dúvida, desvios tortuosos os
que percorre o autor. Em seus termos, sua caracterização da democracia contém a
“[...] más fuerte y consecuente expresión del pensamiento democrático [...]” (1992b,
p.226). Borges conclui que o papel representado pela homogeneidade no contexto da
democracia em Schmitt é que ele rebaixa enormemente a discussão democrática ao
processo de aclamação pelas massas.
Este provavelmente seja o verdadeiro substrato da ação política democrática
para Schmitt. Escudando-se em uma interpretação antilibertária de Rousseau, diz o
autor que ou o povo está representado por si mesmo – e aqui o fantasma do fetiche da
democracia direta combatido por Bobbio – e nesta condição existe a democracia, ou
então ao ser representado, tal sistema fenece. É um ataque direto a qualquer
possibilidade de democracia representativa. Por outro lado, encaminha o argumento
165
para aquilo que sugere ser a única alternativa, qual seja, o processo de aclamação de
massas. No entanto, na verdade, ao tratar de democracia direta não se fala,
necessariamente de processos de aclamação. Schmitt teria de empregar ainda mais seu
gênio para extrair uma outra conclusão, a saber, que a democracia direta exercida pela
cidadania deveria constituir-se em um processo de aclamação de massas antes do que
perpassado por livres discussões democráticas até o momento da tomada de
decisões.36 Aqui emerge o fundamento da categoria schmittiana da identidade do povo
consigo mesmo, o qual se estende do elemento ético para fundamentar o político.
Em sua obra o alemão não põe em entrelinhas o seu fundamental desapreço
pela decisão majoritária (1992b, p.222) articulada democraticamente, ao menos nos
padrões em que a tradição liberal entende o funcionamento da democracia. Isto sim,
consagra o processo de aclamação pelas massas em detrimento de todas as outras
formas de encaminhamento para a tomada de decisões. Discordo parcialmente de
Borges, pelo menos quanto ao linguajar utilizado, quando fala que a “[...] discussão
democrática fica rebaixada a uma aclamação de massas [...]” (1999, p.40). Com isto
dá a entender, ainda que longinquamente, que mesmo na aclamação residiria algum
resquício de democracia, que ela seria apenas um nível inferior de um processo
todavia democrático. É um descuido terminológico que deve ser evitado. Contudo, é
com a compreensão da aclamação como método democrático que efetivamente não
concordaria.
A discordância apontada tem duas ordens de fundamentos. O primeiro deles é
de ordem prática, sendo pragmático, empírico e histórico. Já o segundo é basicamente
36
Considerando não ser este o momento mais adequado para aprofundar a discussão sobre o tema,
convém ao menos destacar que a democracia direta pode perfeitamente ser considerada menos
eficiente que outras alternativas para a tomada de decisões políticas. Contudo, nem por isto deve ser
excluída como hipótese e, portanto, aceitar o decisionismo schmittiano como a conclusão lógica da
exclusão da democracia representativa, uma vez aceitos seus argumentos contrários a esta última.
166
teórico. Desde o primeiro ponto de vista conclui-se que todas as experiências
indicaram para o fracasso do método decisório schmittiano como mecanismo para que
a democracia fixara seus fins e possibilidades. Desde a ótica pragmática não se
percebe como poderia bem funcionar o referido instrumento, já ao ponderar sobre o
segundo dos elementos não seria igualmente possível perceber como a aclamação
poderia ser entendida como mecanismo idôneo para criar e manter as condições de
possibilidade e manutenção das instituições democráticas.
Embora não sendo a pretensão destas linhas a realização de uma análise
exaustiva de todas as possibilidades, o objetivo é o de centrar-me no principal e
grande empecilho à aceitação da aclamação como método. Seu problema consiste,
entre outros impactos derivados, em que ela tende a desconsiderar as preferências
minoritárias através de seu sufocamento. Isto ocorre através de dois momentos, um
relacionado à prática e outro à histórica política. O primeiro deles diz respeito a virtual
impossibilidade de que os indivíduos possam manifestar suas opiniões quando a
massa delibera conjuntamente de modo aclamativo. O segundo momento mostra como
o direito à livre expressão do pensamento individual ficou extremamente prejudicado.
Historicamente ficou comprovado como regimes políticos deste gênero suprimiram os
direitos à livre reunião e debate das diferenças, direitos fundamentais para que
deliberações livres e, portanto, democráticas, possam ser tomadas. Neste contexto,
colado às massas, não raro o indivíduo perece, a coletividade assume os espaços e a
política termina guiada por categorias que duvidam da existência de preciosos valores
individuais.
Neste contexto as minorias tendem a ver-se limitadas a processo de retrocesso
em vários aspectos. Um deles diz respeito ao seu direito de expressão, o que, ao
considerar-se os clássicos do pensamento, como Mill e Jefferson, indica-nos ser esta
167
uma grande perda. Ela não ocorre apenas para esta minoria como para a própria
sociedade em que ela está inserida, uma vez que da ausência de pluralidade deriva
uma muito concreta perda da capacidade de soluções criativas para antigos e novos
problemas. O caráter libertário da sociedade dependerá visceralmente do
reconhecimento do direito das minorias além de manifestarem seus interesses de
terem direitos mínimos garantidos. Será este espaço público de que disponham que
lhes concederá a oportunidade de, em algum momento, tornar-se maioria, como
argumentava Mill. Atualmente, um dos problemas que a filosofia propõe é como
construir efetivamente um espaço público onde o diálogo político seja factível.37
As opções distantes das alinhavadas no parágrafo anterior, por si só,
constituem um grave atentado à democracia. O fundamental aspecto da garantia do
direito de expressão e de divulgar publicamente seus pontos de vista seria o de
permitir que nutrissem fundadas esperanças de vir em algum momento reconstruir o
discurso político. Isto poderia dar-se através de uma argumentação consistente que
reconstituísse a crença de que se tornara necessário um novo discurso político público
que viesse a emprestar um novo destino à sociedade, valendo-se para isto dos novos
caminhos que pudesse apontar. Mas quando se denega esta esperança a uma minoria
ou, ainda pior, aos homens em geral, nos deparamos com o sofrível resultado do
processo, um ser humano diminuído em suas raízes existenciais.
Neste contexto, quando o nível de discussão democrática sofre uma tão
acentuada queda como sugerem os termos anunciados por Schmitt, é possível observar
a que ponto e em que grau ocorre uma considerável diminuição das atividades das
instituições políticas. Elas deixam de representar e organizar a vontade popular
segundo seus mais íntimos desígnios, abandonando a busca pela expressão de seu
37
Esta é uma tarefa para a qual devo empregar esforços em meus estudos de doutorado.
168
querer e contentando-se com uma adesão meramente externa ou formal. Isto é o que
um processo de restrição das liberdades políticas ocasiona. Ainda mais, e talvez mais
grave, a democracia é atingida de imediato em um de seus pontos centrais, qual seja, a
legitimidade. Daí a que se instaure uma crise sistêmica é um passo que muitas vezes
pode revelar-se inevitável.
Nos dois capítulos anteriores foram examinadas a partir de óticas distintas que
é necessário que tenhamos presente o diálogo entre as categorias liberdade e igualdade
como pré-condições para que seja possível posteriormente analisar o alargamento das
instituições democráticas. O primeiro é um momento em que são postas as condições
públicas mínimas no que tange ao entendimento político. Passada esta primeira fase, a
segunda, que acabamos de examinar acima, indicou a necessidade de avançar no
processo de democratização e dos riscos que implica não fazê-lo. Isto pode ser
assinalado, por exemplo, ao considerar concepções como a de bom governo e sua
proximidade com a categoria democracia e os valores republicanos em Bobbio. Mas
para cumprir o desiderato deste item foi imprescindível analisar a tradição
conservadora em paralelo com a evolução teórica de alguns pensadores liberais
concomitantemente com Bobbio.
A abordagem do capítulo subseqüente torna-se viável por força de que estão
postas as condições argumentativas para incorporar a análise de mais um outro
elemento. Este referencial teórico argumenta que o liberalismo e o pluralismo são
necessários para que todas as categorias anteriormente referidas possam ser
articuladas. Desta forma elas poderão ser tomadas de forma plenamente operativa para
a construção teórica de uma sociedade livre nos moldes da hermenêutica axiológica
bobbiana aqui proposta.
169
CAPÍTULO IV – LIBERALISMO E PLURALISMO: AS FONTES
BOBBIANAS E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA
DEMOCRACIA EM UMA SOCIEDADE ABERTA
4.1 – Igualdade de oportunidades, liberalismo e o processo de construção da
democracia
Entre os problemas que envolvem uma análise mais cuidadosa da crise da
democracia tomada em seu sentido amplo, uma das interrogações que não podem deixar de
ser colocadas é aquela que diz respeito ao desencanto das sociedades periféricas com dois
aspectos. Um deles é o acesso direto às ofertas materiais e outro, talvez ainda mais
importante, o acesso às oportunidades para que as pessoas desfrutem de meios concretos de
se autopromoverem social, cultura, intelectual e economicamente. Muitos sistemas
parecem estar falhando neste aspecto, e os democráticos não perseguem à longa distância
as falhas de regimes fechados.
Uma leitura necessária sobre as falhas da democracia é que ela ao tempo em que
fomenta aspirações materiais tarda em dar-lhes respostas efetivas em seu mais mínimo
degrau: a igualdade de oportunidades. Isto mantém uma íntima relação com o perfil que os
agrupamentos humanos mantém em suas relações sociais, econômicas e políticas. Um
desses aspectos bastante relevantes é que a maximização da esfera individual e do
relativismo proporcionou boas condições para o surgimento de uma cultura do
narcisismo,38 tema que volta a ser abordado no penúltimo item deste capítulo.
O desenvolvimento econômico que cada vez mais se torna possível assistir em
38
Este é um assunto cuja abordagem mais detalhada foge ao foco deste trabalho. Sobre o tema ver
LIPOVETSKY (1994,1999, 1989), HUGHES (1994) e SENNETT (1999).
170
tempo real estimula a eu também ocorra em idêntico tempo ao atendimento de
necessidades nem sempre tão reais assim. Esta ordem de avanços econômicos estimula a
colonização do sistema político por uma sorte bastante ampla de demandas que de outra
forma não teriam sido introduzidas. Esta seria uma relação que denominaria de forja
publicitária de necessidades público-privadas.39 Poderia ser dito, em outros termos, que se
trata de um fomento midiático que hiperdimensiona necessidades e, por conseguinte, torna
mais constantes, profundos e, por conseguinte, mais complexos, os contatos para que
possam ser levados a termo os arranjos políticos.
Quer seja operativo este conceito de forja publicitária de necessidades ou qualquer
outro que lhe equivalha, o que resulta é que existem mecanismos de disseminação das
informações que, por si sós, dispõem de meios para traduzir as necessidades individuais em
demandas políticas. Estas podem ser introduzidas no sistema político tanto por meio do eco
que encontre pela l abor do sistema publicitário-jornalístico que a veiculou como, por outro
lado, através das organizações políticas tradicionais. Contudo, como é sabido por todos, os
mecanismos tradicionais de canalização das demandas sociais vem sofrendo de uma crise
que retrocede, ao menos, à década de 60, com os movimentos estudantis, as manifestações
pacifistas, a paulatina despolitização e, para atingir o cume do processo, a queda do Muro
de Berlin, que apenas solidificou o processo de fragmentação e desinteresse pela política.
Uma sociedade aberta não pode estruturar-se de maneira sólida neste alicerce. Ela
precisa de uma perspectiva republicana que possibilite vencer este momento de impasse.
Esta perspectiva requer que a relação entre os indivíduos e suas demandas sociais, quando
são enfrentadas às estruturas do poder estabelecido, sejam devidamente ponderadas mas,
antes de tudo, que estes indivíduos intervenham com mais intensidade nos assuntos da vida
pública.
39
Este é um outro ponto em que o tema mantém contato com a referida cultura do narcisismo.
171
Para dar prosseguimento a como deve estabelecer-se este tipo de relação, devemos
nos ocupar da recuperação de um argumento de Calvino. O autor questionou em certo
momento se existia algum requisito para que a massa de trabalhadores permanecesse
obediente a Deus, e se exisitisse, se acaso seria este o de, imperiosamente, mantê-los na
pobreza. Atualizando sua proposição, diria que seu questionamento poderia dar-se nos
seguintes termos: acaso seria necessário considerar como um elemento forte para a
manutenção das instituições democráticas a restrição de demandas e, em alguma medida,
até mesmo de acesso a bens materiais? Em outros termos, se retrocedêssemos à tese de
Calvino, ainda que aplicada a outro tema e contexto, poderia ser aceito que para manter os
homens no estrito cumprimento de determinadas regras e para atingir certas finalidades –
no caso atual a permanência dentro das regras da democracia – seria admissível até mesmo
vilipendiar os mais caros princípios do sistema?
Primeiramente, convém marcar o terreno da argumentação e sustentar que a
exigência republicana de maior intervenção na vida pública não contradiz o problema de
excessivas demandas que o sistema democrático possa gerar. Parte do argumento de
Calvino acima apresentado permea implicitamente todo o discurso conservador de uma
sociedade que pode até mesmo apresentar instituições próprias de uma democracia mas, na
realidade, não resiste a um exame mais minucioso, como aquele que a classifica segundo o
ponto de vista qualitativo. A democracia, cujo discurso público oculta um conservadorismo
deste naipe, é uma de baixíssima intensidade, o que equivale a dizer que está em uma zona
fronteiriça com as sociedades fechadas. Nelas a fundamental categoria democrática de
igualdade de oportunidades não passa de mero jogo retórico. Como pensar em algo distinto
quando se dá uma restrição firme quanto ao acesso aos bens materiais? O assunto encontra
boa definição em Oppenheim, para quem a igualdade de oportunidades:
“[...] não podem ser dadas ou distribuídas por “C” a “A” e a “B”. “A” tem
a oportunidade de obter x: isto significa que não existem obstáculos no
172
caminho para obter x, de sorte que ele pode fazer x, se quiser. “C” oferece
a “A” a oportunidade de alcançar x, eliminando determinados obstáculos, e
põe, por isso, “A” em condições de obter x; por conseguinte, o fato de “A”
lograr alcançar x depende apenas da sua habilidade natural e adquirida e do
seu esforço [...]” (1998, p.603-604).
Para abordar esta questão, em seus termos, o liberalismo se propôs resolver ou, ao
menos, encaminhar o problema da igualdade de oportunidades.40 É possível dizer que
desde seus primórdios o assunto não esteve alheio aos temas centrais de que se ocupou.
Contudo, a questão da igualdade de oportunidades não ficou bem resolvida. Por exemplo,
nos termos da Revolução Norte-Americana, a partir da célebre tríade de direitos lockeana,
que muitos crêem ser a mais autêntica fonte inspiradora dos revolucionários.41
O fato é que o equilíbrio entre categorias como liberdade, igualdade e busca da
felicidade (esta em clara substituição a lockeana categoria ‘propriedade’ e, segundo alguns,
na clara tentativa jeffersoniana de ampliar-lhe o alcance) terminaram por naufragar em seu
objetivo de equanimizar o acesso às oportunidades. Ainda explorando exemplos históricos,
algo que deve contextualmente ser interpretado, sob pena de grave desvio hermenêutico, é
o da proposta jeffersoniana de que os graus de acesso dos infantes às escolas fossem
universalmente garantidos. Era o ensaio de uma proposta de garantia universal de ensino e,
portanto, de igualdade de oportunidades para competir.
No entanto, nos termos da proposta de Jefferson, a partir de certo nível,
especialmente já no grau acadêmico, tão somente aos mais hábeis e capazes seriam
reservados recursos públicos para que concluíssem sua formação. Mas se em um balanço
final mesmo o liberalismo lidou com várias experiências históricas às quais não podem ser
atribuídos os melhores adjetivos quanto ao seu êxito, por outro lado, seu grande mérito
40
Esta argumentação encontra desenvolvimento na clássica obra de Rawls (1981).
41
Há debates teóricos sobre qual a corrente que influenciou de forma preponderante. Há algumas que
se inclinam por conceder tal papel à corrente inglesa enquanto outros enfocam o papel desempenhado
pelos iluministas escoceses.
173
reside em ter originado o debate que permitiu a futura introdução de maiores níveis de
igualdade de oportunidades nas sociedades liberais.
Quanto aos livre-pensadores do período do Iluminismo francês um dos que pode se
revela útil à reflexão da questão que foi proposta nos parágrafos anteriores é Rousseau,
juntamente com seu contratualismo. Esta foi uma cultura não menos influenciadora dos
fatos na América revolucionária. Em um de seus aspectos mais importantes, assentia que a
liberdade perdida pelo homem era a liberdade natural, e que aquela ganha era a de tipo
jurídica. Em seus termos, acrescia Rousseau que “[...] la libertad civil y la propiedad de
todo lo que posee [...]” (1998, p.19-20) significava tudo o que se passava a ganhar naquele
novo estágio de vida sucessor ao estado de natureza. Se estas liberdades passavam a ser as
liberdades protegidas, a igualdade para exercê-las e a igualdade de oportunidades no bojo
da própria sociedade apresentam-se como elementos indispensáveis.
Neste sentido, a igualdade de oportunidades no marco de uma sociedade
democrática recupera uma de suas possíveis leituras na filosofia liberal e, em certo e
descontextualizado viés, conservadora, para constituir uma perspectiva mais ampla de
democracia. Assim, quando Rousseau fala de liberdade civil e propriedade como
contrapostas a uma liberdade natural, ele relembra a trajetória do contratualismo
hobbesiano. Contudo, a sociedade democrática não pode abrir mão da liberdade dentro de
um conjunto mais ou menos limitado de possibilidades comportamentais.
Desta forma, muito embora a sociedade aberta busque o distanciamento progressivo
dos estritos limites da juridicidade apontados por Rousseau como um dos elucidativos
apontamentos do trânsito da sociedade natural para o civil, fato é que contemporaneamente
tal busca pela maior elasticidade da esfera das individualidades não alcança os até há
174
pouco almejados ideais anarco-utópicos ou comunistas.42 De qualquer sorte, a igualdade de
oportunidades não pode garantir a igualdade de resultados, idéia esta próxima aos ideais
referidos ao final do período anterior e não à tradição liberal.
Retomando o argumento de Oppenheim, em síntese, do que se trata é de que o
liberalismo clássico afirmava ser possível a igualdade de oportunidades. Isto poderia
materializar-se através da ponderação eficaz entre as categorias que compõem a tríade de
direitos lockeana. Até o momento a experiência demonstrou que sua efetivação em níveis
satisfatórios não foi possível. Mas se em seus primórdios esta tríade conceitual lockeana
não pode formatar as bases para o sustento teórico de um sistema de igualdade de
oportunidades, isto sim, tem o mérito de, dentre os primeiros, ter sido um dos principais
referenciais teóricos que viabilizaram o debate consistente sobre o tema.
Em momentos subseqüentes, entretanto, tornam-se necessárias certas correções de
rota bem como a introdução de argumentos mais sofisticados para que melhores resultados
possam ser alcançados. Realizada esta tarefa ingressamos no âmbito dos sistemas políticos
e econômicos. Daí seguramente advirão níveis de exigências redistributivas. Há um fácil
trânsito entre os argumentos e debate sobre a igualdade de oportunidades e o
redistribucionismo. Conclui-se que há de se ter cuidado em não evitar o debate central
acerca do aprofundamento e aperfeiçoamento da igualdade de oportunidades e, em
paralelo, evitar que o debate adentre na órbita de um redistribucionismo invasivo às
concepções de livre mercado que caracterizam a sociedade aberta nos moldes aqui
propostos.
Sem embargo, alguns novos níveis de demanda por distribuição se mostraram
historicamente oportunos. Um deles, e que se dá de forma implícita nas sociedades
42
Não desconheço as diferenciações conceituais que os termos possuem. Contudo, entre eles há algo
em comum, e isto é o que creio permite sua aglutinação. O elemento que os une é o da busca de uma
sociedade amplamente liberada das limitações impostas por autoridade estatal.
175
contemporâneas do mundo ocidental, tem como exemplo o princípio tributário da
progressividade aplicado ao Imposto sobre a Renda. Na maioria dos casos possui um teto
mínimo abaixo do qual encontram-se os isentos e, em níveis superiores, há escalas
progressivas de pagamento de impostos conforme maiores os ganhos. Este princípio,
portanto, transfere renda dos setores economicamente mais pujantes da sociedade para que
o Estado possa financiar suas atividades públicas. Isto, enfim, consagra proteção tributária
aos mais desfavorecidos pelo sistema de livre mercado sem que implique em atacar seus
conceitos básicos.
Mas em uma sociedade aberta não basta com a garantia formal de direitos. Em sua
articulação com a igualdade de oportunidades deve ainda dizer-se que é necessário mais.
Demanda-se uma intervenção positiva para que já em seu ponto de partida possa ser
estabelecida uma efetiva igualdade de oportunidades. Sem esta pré-condição, que
tampouco se apresenta como suficiente, uma boa sociedade democrática conforme os
moldes bobbianos tem poucas chances de prosperar.
Tendo por base o princípio enunciado no parágrafo anterior, ficam colocados os
termos para o debate entre liberdade econômica (e desigualdade) e liberdade política,43 e
sua vertente jurídica. Mas em uma sociedade aberta não se descerá aos mínimos detalhes
como os engenheiros socialistas da política ou do Estado. Por outro lado, é certo que exista
uma clara preocupação, e que denota a influência kantiana, ao tomar como valores centrais
a dignidade e a liberdade humanas. Talvez resida neste particular um sinal teórico de seu
pós-kantismo.
Os dois valores mencionados encontram natural ligação com a abordagem da idéia
de igualdade de oportunidades, entre outros direitos, que necessitam de uma proteção
material, para além da meramente formal. Agora há ainda um outro ponto de contato cuja
43
Para exame mais detalhado do assunto ver BUENO (2002).
176
atenção é indispensável. Trata-se de entender como esta demanda política de reflexos
jurídicos
mantém
uma
relação
de
retroalimentação
com
o
pluralismo.
Esta
retroalimentação se deve a que ele tanto fomenta a participação individual como, ao
mesmo tempo, esta participação individual garante um conteúdo normativo que lhe reforça
a estrutura conceitual.
4.2 – Política e direito: conexões positivas e contradições prático-teóricas entre
pluralismo e democracia
Consoante o exposto torna-se possível aceitar o pressuposto de que há uma relação
a unir pluralismo e democracia. Esta é uma questão central não apenas para o pensamento
de Bobbio como também para a própria essência da sociedade aberta, cujo perfil este item
tem como propósito desenvolver.
A afirmação da relação entre pluralismo e democracia se justifica pelo argumento
de que para qualquer sociedade aberta e laica de nossos dias não seria concebível a
imposição de escalas axiológicas produzidas por alguma matriz reveladora dos
fundamentos de uma moral incontroversa e inexpugnável. Isto pode ser tomado como
referencial tão somente quando ele não seja religioso. A sociedade aberta mantém ligação
umbilical com o pluralismo, e o faz a partir de uma visão respeitosa da vida religiosa. Ela
não admite que esta dimensão da vida colonize através de seus dogmas e crenças o espaço
público da vida civil, conturbando-lhe o ambiente com a imposição de concepções
particulares do mundo. Elas terminam por interferir impeditivamente no exercício das
demais concepções de mundo.
Neste sentido é que reside a importância de explorar e esclarecer, no que couber,
segundo a proposta teórica de Bobbio, o papel que cabe a uma sociedade aberta e plural.
Diz ele que uma sociedade plural:
177
“[...] é a concepção que propõe como modelo a sociedade composta de
vários grupos ou centros de poder, mesmo que em conflito entre si, aos
quais é atribuída a função de limitar, controlar e contrastar, até o ponto
de o eliminar, o centro de poder dominante, historicamente identificado
com o Estado [...]” (1998b, p.928).
A análise do turinês toma como referencial o poder. Contudo, é possível estabelecer
nexo argumentativo com o que vem sendo apresentado nestas linhas na medida em que ao
tratar de pluralismo referimo-nos igualmente a uma multiplicidade, com a única diferença
que de indivíduos, dos quais, por certo, e aí nova convergência teórica com Bobbio, se
espera que desfrutem e usem seus poderes políticos.
Partindo do pressuposto lógico de que o autor não propõe em o defenestramento do
Estado na linhagem do melhor anarquismo político-jurídico, então do que se trata é de,
paralelamente a aceitação de que sejam colocados limites a sua ação que também o modelo
sob o qual está calcado tal sistema de controle seja plural, isto é, organizado segundo forma
tal que diferentes núcleos e grupos de poder tenham chance de interferir. Nos termos
propostos por Bobbio o pluralismo se apresenta como um antípoda político de qualquer
regime centralizador e, como conseqüência, dos diversos regimes fechados que a história
nos fez conhecer.
A proposta de Bobbio é rica porque ao fragmentar o poder em distintos núcleos da
sociedade o controle sobre seu exercício torna-se praticamente impossível. Possui efeito
similar ao da teoria da tripartição dos poderes, cuja origem britânica alcançou a vida
política norte-americana através de Montesquieu. O efeito prático que surte inviabiliza o
surgimento e afirmação dos regimes autoritários, ao menos em segundo sua forma de
aparição clássico centralizada de poder com discurso salvacionista que, como diz Popper,
as tiranias tendem a propor (1992, p.179). Neste contexto é perceptível que o pluralismo
consegue adequar-se tão somente às sociedades abertas nas quais o poder poder encontrase consideravelmente descentralizado, mas muito dificilmente naquelas estruturas políticas
sustentadas por um regime fechado.
178
O pluralismo que aparece nestes modelos possui, ao menos, duas vertentes que
merecem ser destacadas. A primeira envolve uma perspectiva sociológica que contém
relações sociais tanto quanto aborda o fomento de valores individuais. A segunda das
perspectivas contempla uma leitura teórico-política. Ela propõe remédio eficaz contra o
poder exorbitante do Estado, objetivo que visa atingir fortificando a esfera das diferentes
escalas axiológicas individuais de seus membros.
Paralelamente à concepção alinhavada no parágrafo anterior outras foram ideadas.
Exemplo disto foi a teoria da separação dos poderes. Há um ponto de contato que é ao
mesmo tempo diferenciador do pluralismo. Enquanto a primeira é uma teoria vertical que
procura rearranjar os poderes de modo descentralizador – e neste aspecto há convergência
entre ambas –, a teoria pluralista se apresenta de modo horizontal (Ib.). A teoria pluralista
se apresenta assim por força de argumento conseqüencialista, vale dizer, de sua ocupação
em distribuir e constantemente fortalecer o processo de multiplicação dos centros
elaboradores, influentes e executores do poder. Estes grupos, assinale-se, deverão estar
cotados, conforme sua natureza, de poderes equivalentes.44
Por seu turno, Bobbio estabelece diferenciação entre o pluralismo a teoria do
liberalismo clássico e a teoria democrática. Na primeira vê o remédio para o alargamento
do Estado na “[...] subtração à sua ingerência em algumas esferas de atividade (religiosa,
econômica, social) [...]” (1998b, p.928). Desde logo, há uma lógica política interna em
afirmar que o crescente avanço de estruturas paralelas de poder dentro do Estado faça com
44
Neste particular, fora explicitar a referida tese bem como o procedimento e o resultado seria um
indesejável distanciamento do foco deste trabalho. Contudo, ainda que resumidamente, diria que a
concepção de distribuição de poder aqui seguida se vale do critério de justiça aristotélico de concessão
de poderes iguais aos iguais, e desiguais aos desiguais. Alerta-se para que ligeiras mas amplamente
necessárias matizações deveri ser feitas sobre quem realmente são considerados iguais e, dentre os
desiguais, quem assim considerado, para com isto legitimar a circunstância de receber, por exemplo,
mais ou menos poder.
179
que a sua órita de poder mingüe. Contudo, na sua essência o pluralismo não diverge das
teorias apresentadas. Ao contrário, sua existência supõe a manutenção de franco diálogo
com ambas. Isto se dá porque todos os três conceitos referidos se dispõem a criar
mecanismos que se oponham eficazmente a um Estado concentrador e mau gestor dos
poderes que lhe foram outorgados. Por isto elas são perfeitamente compatíveis. A grande
diferença entre estes conceitos reside tão somente no mecanismo ou enfoque escolhido
como o principal para desempenhar sua tarefa.
Todavia resta uma diferenciação realizada por Bobbio a separando o pluralismo das
demais concepções teóricas apresentadas. Diz ele que em oposição a outras correntes
estatalistas o pluralismo “[...] se caracteriza por afirmar uma sociedade articulada em
grupos de poder que se situem, ao mesmo tempo, abaixo do Estado e acima dos indivíduos
[...]” (Ib.). Isto deriva de sua crença básica de que o estatalismo e o individualismo são
duas faces da mesma moeda, em que pese a supremacia da última. Não obstante esta
proximidade, apenas o estatalismo tende a eliminar ou marginalizar um mesmo agente
social, qual seja, os denominados grupos intermediários. Isto ganha relevância porque são
eles que interagem e estabelecem conexão entre o indivíduo e o Estado criando pontes
através das quais o diálogo pode frutificar.
Na edificação da teoria bobbiana de pluralismo é possível detectar a influência de
Dahl. Sua aproximação das reflexões sobre pluralismo levadas a termo pelo norteamericano é notável. Isto enseja a reafirmação da convicção sobre o caráter de menor
originalidade da obra do turinês, principalmente quando comparada a sua capacidade de
manejo dos clássicos. Mesmo alheio a tanta originalidade, Bobbio soube manejar com
bastante eficiência a categoria pluralismo presente em Dahl. Este último define pluralismo
como sendo o portador de um axioma, que se resume no seguinte:
“[...] Em vez de um único centro de poder soberano, é necessário que haja
muitos centros, dos quais nenhum possa ser inteiramente soberano.
180
Embora na perspectiva do pluralismo americano só o povo seja legítimo
soberano, ele não deve ser nunca um soberano absoluto [...] A teoria e a
prática do pluralismo americano tendem a afirmar que a existência da
multiplicidade de centros de poder, nenhum deles totalmente soberano,
ajudará a refrear o poder, a garantir o consenso de todos e a resolver
pacificamente os conflitos [...]” (1998b, p.931).
Desde outra ótica, Bobbio identifica a existência de diversos pluralismos. Ele os
relaciona ao menos em três tipos de correntes que se definiriam como pluralistas: o
socialismo, o cristianismo social e o liberalismo democrático.45 Sem embargo, nos termos
em que este trabalho se propõe entender o pluralismo e nos termos em que sua aplicação à
sociedade aberta é aqui concebida, elas não poderiam ser incluídas nessa tradição.
Além desta tipologia Bobbio volta a aproximar-se da idéia de pluralismo em outra
obra. Nela sustenta que “[...] a democracia dos modernos é pluralista, vive sobre a
existência, a multiplicidade e a vivacidade das sociedades intermediárias [...]” (1987b,
p.152). Neste ponto interessa destacar que o elemento de ligação das sociedades
intermediárias, em seu tempo já comentadas por Tocqueville (1989), constitui um firme elo
para que a pluralidade possa ganhar vigor em uma sociedade que se desenhe como aberta.
Tomando a categoria pluralismo e acrescendo algumas aproximações episódicas
feitas ao último parágrafo é possível extrair duas conclusões. A primeira delas é que existe
uma incompatibilidade teórica detectável entre as categorias pluralismo e socialismo
histórico. Esta não é uma leitura que pareça muito clara em Bobbio. Não obstante, tomando
como referencial o socialismo histórico, observa-se como este se apresentou como
centralizador de poderes e habitualmente avesso à tutela das liberdades públicas. Ao
45
No que tange à diferenciação das diversas correntes Bobbio estabelece dois critérios. Um deles se
baseia “[...] na oposição existente entre uma concepção catastrófica da história e uma concepção
pragmática, que considera a história como um processo em contínuo desenvolvimento mediante a
inserção do novo no velho [...]”(1990b, p.21). O outro dos critérios de distinção “[...] é de natureza
estrutural e baseia-se na forma de conceber a estrutura da sociedade. Interpretada ou projetada antes
como um multiverso do que como um universo [...]” (Ib.).
181
comparar pluralismo e socialismo logo se vislumbra o quanto carece de fundamento que
este último reclame para si pertenência a tradição liberal que inspira o pluralismo.
Um dos mais argutos comentários sobre o assunto coube realizar a Reale. Em breve
síntese dizia que Bobbio pregou um “socialismo liberal”, mas apenas valendo-se do
“socialismo [...] somente onde e quando necessário” (2005, p.02). Talvez valha a pena
entender que por socialismo entendesse uma concepção política humanista antes do que,
propriamente, socialista. Neste sentido ela interviria em políticas liberais com o intuito de
amenizar alguns de seus indesejáveis efeitos. Nestes termos torna-se possível ao menos
excluir a oposição entre os conceitos de liberalismo e socialismo, uma vez que seja este
entendido como elemento residual atenuador das insuficiências estruturais proporcionadas
pelos excessos que um sistema de livre mercado pode ocasionalmente originar.
Uma segunda conclusão observável diz respeito à aproximação do pluralismo com
a leitura realizada por Dahl. Desde o cerne destas categorias emerge uma relação que deve
ser considerada. Trata-se da união entre pluralismo e democracia. Neste sentido, em algum
momento o turinês destaca que ou a “[...] democracia é pluralista [...] (1990b, p.17) – e
aqui ele a toma no sentido de poliarquia, como Dahl a concebera – ou, então, ela “[...] não
é democracia [...]” (2000b, p.85). Neste sentido há uma proposta de Revel que muito se
aproxima do discurso que estas linhas afirmam. Diz ele que a “[...] democracia [...] no seu
sentido moderno [...] (é) uma forma de sociedade que consegue conciliar a eficiência do
Estado com sua legitimidade e sua autoridade com a liberdade dos indivíduos” (1984p.07).
Quando o autor atrela a democracia ao conceito de liberdade dos indivíduos dá-se a
aproximação com a leitura sobre pluralismo e democracia realizada nestas linhas. Ela se dá
na medida em que concebemos a consecução da liberdade como tendo sua possibilidade de
realização na expressão intrínseca do ser. Para que isto ocorra encontra-se uma précondição, e esta é a de o espaço público não careça de espaço para a existência e expansão
182
à pluralidade.
Retomando Bobbio, a democracia “[...] é a sociedade aberta em oposição à
sociedade fechada, ou não é nada [...]” (2001a, p.98). Promove uma concepção de
sociedade aberta equiparada a de democracia. Neste momento ele trabalha com duas
categorias, próprias das filosofias políticas de Dahl (1997) e Popper (1992),
respectivamente. Esta é uma reflexão que merece maior exploração, posto que não é muito
comumente trazida à tona e devidamente realizada pelos teóricos mais próximos ao
pensamento bobbiano.
Nesta matéria o jusfilósofo turinês apresenta um interessante objeto para análise
tanto quanto uma aparente contradição em sua filosofia. Segundo ele “[...] os dois
conceitos de democracia e de pluralismo não coincidem [...]” (2000a, p.71). Como em
outros aspectos de sua obra, aqui é possível detectar uma contradição aparente. Contudo,
há uma explicação de fundo para a questão. Nesse caso parece que sua conclusão se deve
esclarecer com referência às reflexões feitas no corpo deste texto sobre o fato de
democracia e pluralismo estarem ligadas entre si de forma indissociável. Percebe-se um
entendimento bastante disseminado em sua obra de que a defesa da democracia é mesmo
intrínseca em sua análise a de pluralismo, e vice-versa. Isto nega visceralmente a
dissociação entre ambos feita por Bobbio no artigo Democracia representativa e
democracia direta, que nega a sugestão de uma contradição.
A categoria pluralismo é postulada como fundamento para uma sociedade livre
quando Bobbio sustenta que ela oferece as condições para a “[...] liceidade (e a
praticabilidade) do dissenso [...]” (2000a, p.73). Em outro livro Bobbio volta à mesma
idéia. Ali dava conta do que parece ser a origem desse seu pensamento sobre o papel do
consenso e do dissenso na democracia. Sublinhava que ao ler um artigo de Franco Alberoni
intitulado Democracia quer dizer dissenso, em torno de 1977, ficava clara a idéia, desde o
183
título, de que “[...] a democracia é um sistema político que pressupõe o dissenso. Ela
precisa do consenso apenas num ponto: nas regras de competição [...]” (1990b, p.47). Com
isso Alberoni atingia precisamente o que parece ter sido a origem tanto da idéia do papel
do dissenso na democracia como também o que viria a ser uma das teses centrais de
Bobbio acerca da democracia, qual seja, a de seu caráter instrumental, aliada a que
denominei de caráter material.
A partir desta reflexão parece ser possível assinalar com boa dose de propriedade
que o pluralismo constitui um marco divisório entre as sociedades abertas ao progresso e
aquelas outras estancadas, “[...] mortas ou destinadas a morrer [...]” (2000a, p.74). Como a
defesa da democracia é um dos grandes referenciais bobbianos, não é minimamente
aceitável o argumento de que sua perspectiva sobre a relação entre democracia e
pluralismo viesse a afetar a primeira destas categorias de forma fatal. Nesta relação não há
possibilidade de diminuição de espaços de qualquer delas. Ao contrário, ambas
mutuamente reforçam as estruturas sobre as quais a outra se assenta.
Mas o pluralismo para se tornar operante remete à existência de uma categoria
fundamental, o dissenso. O dissenso originária e pacificamente não sobrevive senão no
âmbito de um pluralismo tolerante. Por isto ele se constitui em marca indelével e
indispensável da sociedade aberta aqui desenhada em seus contornos primários. Por força
disto, na leitura bobbiana que aproxima democracia e pluralismo, e na medida em que a
categoria consenso deste faz parte, igualmente será feita a aproximação entre a democracia
e o dissenso. A leitura inversa do problema do dissenso em uma sociedade livre aponta
para o rechaço do distinto, do oposto e, em regimes fechados, primeiramente da oposição
política assim como, secundariamente, de todo tipo de negação sociológica da doutrina
oficial. Por via de conseqüência, o pluralismo e o dissenso não podem ter lugar ali onde a
doutrina oficial é a do combate ou da perseguição ao que pensa e age diferentemente.
184
Historicamente percebemos que esses regimes antipluralistas foram executores de
supostas políticas direcionadas à reeducação de cidadãos com vistas a formação de uma
melhor sociedade. Isto faz bastante sentido desde o ponto de vista da lógica interna do
regime pois, afinal, se há dissenso é porque existe ao menos uma ameaça em potencial de
que o poder lhes seja tomado das mãos. Se há dissenso, do ponto de vista públicodiscursivo, é porque algo falta aos indivíduos para que tomem conhecimento e se
convençam do acerto das políticas estatais. O guia para seguramente obter o passe e
vislumbrar a face obscura dos desfavores do Estado totalitário é o de não mostrar-se em
perfeita conformidade com o regime ou, ainda mais, colocar-se em franca oposição ao
regime (1990b, p.49).
Neste tipo de regimes o que prevalece é o que Bobbio denominou, talvez inspirado
no referencial teórico da linguagem política schmittiana, de “[...] lógica do choque frontal’,
onde o escopo último é a “[...] eliminação do adversário e a permanência hegemônica em
cena [...]” (1990b, p.53). Neste sentido é interessante a observação de Vieira, segundo
quem o conceito de política de Schmitt pode ser classificado como pré-hobbesiano, uma
vez que não haverá qualquer de discussão possível que sirva de base suficiente para fixar
um compromisso e, por conseguinte, que possa “resolver pendências entre inimigos”
(1999a, p.96). Em um caso, a eliminação é a forma para manter-se e, no outro, o contato e
o contrato, através do diálogo. Esta última é a tradição da qual é devedor Bobbio, e que
desemboca na busca consensuada pela paz.
Mas se Schmitt não admite o poder fora dos limites do consenso obtido através da
aclamação, no desenvolvimento do referido capítulo da obra de Bobbio, a tese central deste
é de que há duas espécies de dissenso. Em um deles o dissenso apresenta-se compatível
com o consenso, enquanto em outro caso o dissenso apresenta-se irredutível quanto a
possibilidade de diálogo com os que pensam de maneira diferente (1990b, p.55). No
185
primeiro caso temos ponto de contato com a descrição da sociedade democrática e, no caso
da segunda, de um regime fechado.
Mas se a perspectiva histórica nos mostra uma seqüência bastante perturbadora de
eventos, Bobbio visa atacar a incisiva cultura antipluralista e intolerante. Um de seus
méritos é fazê-lo de forma incessante e incansável. Sublinha a relevância do pluralismo
como uma noção que transcende os nossos dias e abarca toda a história do pensamento
político, em que pese seus períodos de obscuridade. Entremeando pluralismo e poder, faz
ver que “[...] uma sociedade é tanto melhor governada quanto mais repartido for o poder e
mais numerosos forem os centros de poder que controlam os órgãos do poder central [...]”
(1990b, p.15). Aqui é ressaltada a relevância do papel exercido pela disseminação do poder
entre os mais diversos organismos sociais.
Estes diversos organismos representam, na prática, diversas fontes de legitimação
política da sociedade a partir das quais o quadro da pluralidade da sociedade torna-se
límpido para análise. Mas quando as categorias pluralismo e tolerância vêm à tona,
paralelamente, emerge o dissenso. Isto se dá em conseqüência de que ele opera nos limites
da existência e operação da tolerância. Isto torna-se bastante claro quando proponha-se a
questão de como seria possível conceber a tolerância sem que ao mesmo tempo exista a
dissensão?
É
virtualmente
inconcebível
pensá-las
desconectadamente.
Torna-se
irremediável a existência fática do último quando a estrutura sócio-política esteja eivada
pelos valores da tolerância e do pluralismo. Mas do papel exercido pelo dissenso surge
ainda uma outra questão destacada por Bobbio, qual seja, a da importância da relação entre
ele e o consenso no bojo da sociedade democrática.
Em primeiro lugar, sustenta que no marco libertário bastaria a expressão do
consenso na forma de maioria, ou seja, que seria dispensável a unanimidade. Este é o
princípio do realismo político que subjaz ao seu pensamento, no melhor estilo da
186
abordagem da tradição política inaugurada por Maquiavel. Por outro lado, Bobbio
questiona qual o valor que poderia ter o “[...] consenso onde o dissenso é proibido [...] se o
consenso não é livre, que diferença existe entre o consenso e a obediência ao superior [...]”
(2000a, p.74-75). Em outras palavras, o consenso somente pode ser valorado ali onde o
dissenso seja viável e factível na prática política. Portanto, dissenso e consenso são
categorias que se expressam tais como duas faces de uma mesma moeda. A afirmação
legítima de qualquer um deles depende fundamentalmente da existência da possibilidade
de expressão pública e, por conseguinte, em condições de liberdade, por parte do outro.
Daí não existir o consenso ou dissenso legítimos onde não tenha existido previamente a
liberdade de dissentir, em que não tenha sido possível agir de forma livre.
A condição de autenticidade e de legitimidade de um possível – mas não freqüente
e nem indispensável – consenso é a da existência do dissenso. Isto ocorre dentro de certos
limites, os quais podem ser aqui entendidos como as condições – sejam elas formais e
procedimentais – mínimas de possibilidade para que o próprio dissenso possa ser expresso.
A partir disto é possível estabelecer a relação entre democracia e dissenso (2000a, p.7576). Não é o momento para aprofundar nesta relação mas sim para colocar a questão da
categoria consenso em Bobbio frente a sua operacionalidade no bojo da sociedade aberta.
Tratando-se de uma sociedade aberta e plural a questão não pode resumir-se em
conceder papel central ao dissenso como sua característica inerente. Ela igualmente está
composta pela necessidade de consenso em torno a alguns valores fundamentais para a
vida. Este é um aspecto onde a sociedade aberta guarda certa distância do relativismo em
sua mais crua interpretação. A aplicação de uma visão ilimitada do relativismo nada
acresceria a formação e desenvolvimento da estrutura de uma sociedade livre. O consenso
surge como necessário unicamente quanto a certas categorias fundamentais sobre as quais
esta sociedade se assentará, tais como, o respeito à dignidade e à vida humana.
187
Instaurada a sociedade aberta, o consenso desempenha-se de forma distinta, já não
mais devendo ser entendido como um pressuposto para que o sistema funcione, senão
como uma mera opção e, quiçá, nem a mais desejável, para que ele opere. Em qualquer
sentido, o consenso não deve ser lido em seus limites extremos, vale dizer, como a
possibilidade concreta de afirmação da unanimidade nas decisões políticas que envolvem
assuntos não transcendentais. Aqui ele é admitido como consenso básico ou mínimo, isto é,
sobre temas fundamentais que permeem as sociedades de forma a que se possa, através dos
acordos pontuais que se estabeleçam, alcançar a estabilidade social e política.
Tendo em vista que o conceito de consenso implica uma aglutinação perfeita
relativamente da generalidade de pessoas envolvidas em um processo, a busca por alcançar
a estabilidade social e política através de negociações políticas deve afastar-se deste
mecanismo, uma vez que é possível tomar como impróprio para tal fim o seu caráter de
essencialidade.
Portanto, o que aqui se expõe é, com matizações, um dos argumentos constitutivos
das sociedades abertas que, entretanto, se deriva das teorias contratualistas.46 Enfim, do
que se trata é de que nas democracias ocidentais há uma multiplicidade de perspectivas que
as envolvem. Uma delas é a da presença tanto do dissenso como do consenso como seus
elementos constitutivos (1990b, p.48). Mas, como foi sublinhado, há que ter ciência do
quanto a mera referência a estas categorias pode ser enganosa uma vez que não sejam
consideradas as circunstâncias em que serão utilizadas.
Retomando a linha argumentativa em torno à democracia e ao pluralismo, é
interessante recordar a ligeira diferenciação conceitual entre ambos procedida por Bobbio.
46
Ainda que com finalidade distinta a de propor uma definição para o que fôra o contratualismo,
Bobbio termina por oferecer uma interessante definição, embora em uma versão reducionista onde o
elemento central é o uso da força: “[...] A relação política [...], a relação entre governante e governado,
pode ser representada como uma relação de troca, um contrato sinalagmático, diria um jurista, no qual o
governante oferece proteção em troca de obediência [...]” (2000a, p.106).
188
Abordada em determinado artigo, em algum momento ela sofre solução de continuidade.
No mesmo escrito, logo adiante, voltaria a admitir que “[...] a democracia de um Estado
moderno nada mais pode ser do que uma democracia pluralista [...]” (2000a, p.72), a qual
goza da proteção jurídica emprestada pelo Estado moderno. O Estado moderno teria
montadas suas estruturas históricas a partir do que Bobbio chama de “[...] lento e
irreversível processo de monopolização do uso da força [...]” (2000b, p.557). De qualquer
forma, no artigo Democracia representativa e democracia direta, Bobbio termina por
admitir que nossas democracias são mesmo sociedades estruturadas sob vários centros de
poder e (2000a, p.71) e, portanto, essencialmente pluralistas. Esta é uma temática que
indubitavelmente refletirá na concepção de poder e força como critérios para o
reconhecimento do direito na filosofia jurídica bobbiana (Cf. 1990c).
A conclusão de que Bobbio associa democracia ao pluralismo termina por admitir
que ele põe os argumentos fundamentais para o direcionamento de sua filosofia no sentido
de abrigar a proteção às liberdades antes do que a outros valores estruturais concorrentes –
como a igualdade – em uma sociedade livre, ainda que não contraditórios. Ao assentar as
bases da aplicação da categoria de pluralismo em uma sociedade democrática Bobbio não
permanece adstrito a uma considerável contribuição ético-moral. Esta consistiria na
afirmação da necessidade de introduzir, ao menos, uma certa dose de relativismo moral nas
instituições da sociedade livre. Neste momento surge uma categoria filosófica de alto corte
cético que subjaz, segundo alguns, a todo o pensamento bobbiano, tema do item seguinte.
4.3 – Um diálogo com as fontes bobbianas: do ceticismo ao pluralismo milliano e sua
afirmação do relativismo democrático
É senso comum que a matriz filosófica do mundo ocidental tem seu ponto de
189
arranque na cultura helênica, notavelmente no período de apogeu intelectual da Grécia. O
recurso às fontes clássicas bobbianas para desenvolver sua argumentação sobre o tema
proposto neste capítulo podem ser encontradas na Antigüidade clássica grega. É neste
período histórico que se localizam não apenas as referências originárias sobre o ceticismo
que inspira parte de sua filosofia política como também a influência dos argumentos dos
sofistas. Aqui parece ser possível encontrar a fundamentação de seu relativismo moderado,
o qual merece atenção e do qual me ocuparei nas linhas subseqüentes.
Admitido que o pluralismo democrático tem seu berço moderno na sociedade norteamericana, Bobbio reconhece algo cujo conteúdo não lhe faz distanciar-se de um dos
preceitos amplamente aceitos naquela sociedade. Este diz respeito a que aos indivíduos
lhes seja dado possuir em “[...] um cofre escondido as pedras preciosas dos próprios
dogmas [...]” (2001a, p.43). Talvez isto não esteja muito longe dos preceitos millianos,
pelo menos não daquele Mill inspirado nas iniciativas teóricas do liberalismo (1976).47
Segundo esta leitura é atribuído ao indivíduo direito que encontra correlação no dever da
coletividade de resguardar sua esfera de valores particulares ou, se se preferir, da escala
axiológica considerada preferencial por cada um de seus membros.
Este argumento afirma rigorosamente seu possível relativismo. Claramente
solidifica-se o argumento da existência de valores individuais intransigíveis perante os
quais as pessoas que os nutrem têm o direito de manter-se fiéis o quanto, o como e até
quando queiram. Desde já, neste instante é levantado o óbice do argumento da exceção da
intolerância com os intolerantes, uma vez que infringe um dos fundamentos essenciais da
sociedade livre que consta do acordo consensual assumido no momento da constituição da
sociedade.
47
Não é objeto, nem mesmo residualmente necessário para abordar o tema central deste estudo, aquilo
que alguns estudiosos de Mill denominam de período socialista de Mill, onde a influência de sua
esposa, por exemplo, fez-se sentir. Sobre o tema ver PAVÓN (1976).
190
Sobre o tema advertia Revel que, muito embora aqui não fizesse referência
precisamente aos intolerantes, os inimigos da democracia jogam uma partida fácil (1984,
p.08) contra ela. O motivo disto é que eles se valem do direito de discordar, inerente aos
regimes democráticos para socavar as bases do sistema que lhes dá guarida. Em sintéticas e
muito felizes palavras, Revel define a democracia e, a meu ver, também sua relação com os
intolerantes, ao dizer que a primeira é um “[...] regime paradoxal em que se oferece aos
que querem aboli-la a possibilidade única de preparar-se para isso na legalidade [...] (Ib.).
Esta é uma concepção de democracia que não deve encontrar receptividade em nossos
tempos. Dentre os motivos há os ideológicos e os tecnológicos, ambos com alto poder de
destrutividade.48
Outro trabalho bastante esclarecedor a respeito foi desenvolvido por Vázquez. O
autor alerta que um Estado que se balize pelo respeito aos direitos do homem49 deve,
paralelamente, garantir aos cidadãos dos agravos que possam lhes causar a conduta de seus
semelhantes. Estes podem estar organizados em grupos imbuídos de fins alheios ao ideal
de proteção aos direitos humanos. É neste momento que o Estado tem de intervir
positivamente. Em síntese, o autor depõe a favor das democracias, posto que se enfrentam
com um menor número de ameaças o que, ao fim e ao cabo, vem a exigir menos e menores
ações repressivas por parte do Estado (VÁZQUEZ, 2005, p.03). Embora concordemos em
linhas gerais com a teoria do autor, também é fato que nos dias que correm não podemos
deixar de concordar principalmente com o alerta bobbiano para os riscos que a democracia
sofre. Isto também foi assinalado, ainda que em outro contexto, por Revel (1984). Neste
sentido é bastante oportuna a observação de Vázquez quando diz que:
48
Não há dúvida de que é promissora a abordagem deste assunto. Assim se revela na medida em que a
limitação da prática da democracia gera incontáveis controvérsias. Não obstante, um ponto de partida
razoável parece que deve ser proposto ao debate, fugindo de abordagens metafísicas perpassadas por
uma pureza conceitual de democracia não apenas inatingível como virtualmente perigosa.
49
Uma perspectiva alternativa sobre o assunto pode ser encontrada em Pozzoli e Marcílio (1998).
191
“Las democracias, que no pueden aplicar una violencia cruda debido a sus
constricciones institucionales internas y quizá a su sensibilidad a los
controles internacionales, se salvan, no obstante, por la presencia de
Estados eficaces que pueden detectar el peligro y eliminarlo en sus fases
iniciales o reducirlo a una escala menos peligrosa para la supervivencia del
propio Estado. Por tanto, el que no se den casos de terrorismo estatal
extremo en las democracias probablemente sea una consecuencia tanto de
la estructura institucional de esos regímenes como de que no necesitan
aplicar tanta violencia” (VÁZQUEZ, 2005, p.03).
Os Estados democráticos tendem a reduzir o uso de meios violentos a níveis
bastante toleráveis pela sociedade. Isto se deve a eficácia e legitimidade dos mecanismos
com que elas contam para intervir nos conflitos sociais. O Estado tende a ser menos
atacado em seus pontos essenciais. Mesmo assim, o alerta bobbiano para os riscos que as
crises democráticas implicam permanecem atemporalmente válidos. Quando se afirma que
os Estados democráticos são mais eficazes e legítimos e que por esta razão encontram-se
menos expostos a riscos, devemos tomar isto como um parâmetro para comparar este tipo
de organização livre com outras fechadas mas não como excluídas de riscos de que percam
sua constituição livre.
Toda esta argumentação deve servir para retomar um outro aspecto relativamente
ao pensador de Turin. Segundo ele o dogmatismo pode encontrar espaço na sociedade
livre. Mas o espaço que venha a ocupar não tem a mesma característica que permite, por
exemplo, o uso descontrolado por parte de um Estado para manter seus dogmas políticos
ou, mesmo, que sustenta política ou ideologicamente um grupo a que valha-se da violência
como meio de realização de seus propósitos políticos. Para Bobbio o dogmatismo em
matéria política tem lugar tão somente enquanto encerrado no âmbito privado, aliás,
dimensão da vida esta tão própria da preocupação do individual-pragmatismo que
transpassa a sociedade norte-americana. Em que pese a superficial apreciação em contrário
que pode ser feita, o fato é que a defesa do dogmatismo no âmbito da esfera privada
reforça o princípio da pluralidade. Contudo, quando invade a esfera pública instaura-se o
192
regime de ausência de liberdades e de pluralidade.
Um bom entendimento desta última categoria remete a que seja concebida de forma
a permanecer dentro dos limites propostos pela esfera do domínio público, segundo o qual
não cabe outro proceder senão o da não-relativização de valores últimos. Esta
argumentação converge com a tradição triunfante na sensibilidade moral ocidental que
reconhece a validade de certas verdades morais individuais. Como diz Kekes, nesta
abordagem há uma descrença em uma jutiça cósmica (1995, p.183), ou seja, em uma
leitura moral universal predominante. Mas a ausência desta moral universal não faz com
que a leitura que procedemos nestas linhas exclua a possibilidade de que apenas
relativamente a certos segmentos culturais seja possível afirmar a existência em comum de
valores básicos com características universalizantes.
Retomando o argumento apresentado por Kekes, é perceptível certo paralelo teórico
com o argumento desenvolvido nestas linhas. Ele fundamentalmente assenta-se em que
“We do not believe that there is a moral order in reality guaranteeing that lives of moral
worth will be satisfying and that wicked lives will not be” (Id.). A perspectiva do autor
também aqui subscrita é de que “[...] that permanent adversities are ineliminable features
of the human condition. We deplore this fact, but recognize that it is the fact” (Ib.). Enfim,
do que se trata é de que não há um guia seguro que informe sobre as verdades morais,
exceto quando recorremos a verdades reveladas, saber atinente ao campo teológico,
indevassável ao saber crítico humano. A perspectiva dessas linhas, ao contrário, é
perpassada por um viés analítico-laico e politicamente realista da sociedade. De certa
forma ela recorda a abordagem da política feita por Bobbio, inspirando estas linhas em sua
concepção de uma sociedade aberta e plural.
Esta leitura supõe contar com um poder político instituído dotado de alto grau de
legitimidade política assim como de estruturas fortes em uma sociedade civil atuante. Disto
193
é do que se necessita quando se tem em vista a criação ou a manutenção das estruturas de
uma sociedade aberta. Retomando o argumento popperiano, quando um regime político se
apropria de uma versão da salvação frente a concepções políticas díspares, invariavelmente
o que resulta é uma tendência à justificação da tirania (1992, p.178). Esta concepção
seguramente seria subscrita por Bobbio e encontraria guarida em uma hermenêutica
holística de sua filosofia político-jurídica.
Por outro lado, mesmo não sendo este o momento mais indicado para aprofundar o
debate sobre o tema é isto sim positivo ao menos para destacar que mesmo na esfera
pública Bobbio não deixará de admitir a existência de limitações a esta idéia de
relativismo. Disto resulta que a abordagem de sua filosofia aqui seja levada a termo desde
uma perspectiva de caráter moderado, embora afirmativa. Embora seja possível questionar
sobre a universalidade dos valores aqui assumidos, dois pontos parecem fundamentais. O
primeiro é de que sempre há que abordar este assunto em seu contexto histórico. Isto,
contudo, não obsta à elaboração de uma teoria normativa. Aqui o segundo ponto. Este diz
respeito à assunção do enfrentamento do ceticismo filosófico com o intuito de afirmar
teoricamente alguns dos valores caros à tradição liberal.
Devido aos motivos alinhados no parágrafo anterior Bobbio ponderará acerca da
existência de valores tais como a dignidade humana. Mirará o argumento de que eles não
poderão ser sobrepujados por quaisquer outros valores sociais, nem mesmo valendo-se do
argumento relativista, em cujo seio pudessem ser aceitos em alguma de suas variações
morais como valiosos.
Conseqüentemente a esta linha de reflexão pode verificar-se uma gradação na
argumentação bobbiana quando de sua aceitação do relativismo que se insere no diálogo
com a democracia. O tolerante com o diverso não pode abrir mão de valores tais como o
valor da dignidade humana, o qual se manifesta, entre outros momentos, de forma
194
eloqüente na análise de Bobbio sobre os direitos humanos. Assim, se o não tolerante não
pode, por definição, abrir mão da dignidade humana, estabelece-se a conexão com que o
relativismo que permea a categoria de tolerância também não é entendido de modo
absoluto, ao menos não relativamente a alguns valores básicos.
Neste sentido é possível dizer que Bobbio esteja recuperando valores assaz caros ao
humanismo cívico. Em suas considerações soma o ponto de vista das tradições culturais
que percorreram o bojo da filosofia italiana, tal como a obra de Pico della Mirandola. Neste
sentido, por exemplo, emerge uma opera magna como a de della Mirandola, cujo cerne
argumentativo em torno da dignidade humana reflete a maior confiança que os novos
tempos passariam a depositar na capacidade humana de criar um mundo novo. Ao recusar
a estrutura medieval e feudal della Mirandola enfrenta abertamente o grave problema das
hierarquias e seu reflexo sobre assuntos como aqueles relativos aos seres humanos, um dos
eixos temáticos de sua obra.
Por via de conseqüência algumas ponderações sobre a igualdade tornam-se um dos
centros de gravitação das reflexões de della Mirandola recuperadas por Bobbio. Antes de
chegar a ele, contudo, o tema teria continuidade na obra de Maquiavel – também uma fonte
bobbiana – segundo o qual o sucesso da permanência da liberdade se encontra no fato de
que nas repúblicas não nos deparemos com nenhum cidadão reconhecido como
gentiluomo. Ao contrário, é a manutenção dentre todos eles de um nível de igualdade que
depende o sucesso da liberdade (1991, p.206). Aqui se retoma a leitura de della Mirandola
sobre a igualdade o que conecta-se com o problema da liberdade, tema do qual me
ocuparei no item subseqüente.
Dentro de uma perspectiva que perpassa os argumentos da pós-modernidade aceita-
195
se aqui que cada indivíduo pode assumir princípios que, dentro de certas limitações,50
seriam considerados válidos. Aqui começa o que qualificaria como a aplicação dos
princípios do relativismo no campo político. Um dos momentos da obra de Bobbio em que
tal postura fica meridianamente clara é quando ele sustenta que a luta política não pode ser
posta em termos teológicos, recordando a filosofia de Schmitt (2000). Em outros termos,
que ao evitar a abordagem teológica aceitamos a primeira das assertivas de Schmitt,
segundo quem ao “[...] herege, ou deixamo-lo viver com todas as suas idéias, ou mandamolo para a fogueira [...]” (2001a, p.20). O alemão abraça a última idéia, Bobbio, a primeira
delas.
O tema, contudo, envolve outras dimensões. Uma delas diz respeito à proteção do
campo da política através do muro do laicismo, ou seja, do criticismo. É utilizado como
refúgio fiel de ódios cultivados na órbita das religiões, enfim, como diz o turinês, que “[...]
o inimigo do laicismo é, na política, aquele comportamento que leva [a]o espírito de
intransigência dogmática [...]” (2001a, p.44). O fenômeno da intransigência dos
intolerantes que mesmo que em grau menor continua em evidência na Europa neste início
de século bem demonstra o perigo das versões dogmáticas destes intolerantes. Contudo,
convém lembrar, são várias estas versões. O grande perigo à sociedade livre reside
essencialmente na transferência de seus valores intolerantes da órbita estritamente privada
à pública e que tendo nela ingressado, permaneça propagando-se de forma incombatida.
Este risco se encerra em valores morais e políticos em suas versões radicais, assaz
intransigentes. Eles amadureceram em uma espécie de apreço, ou desconhecimento, de
toda a degradação humana causada pelas barbáries experienciadas no século passado. A
50
A referência aqui é aos princípios morais básicos de uma sociedade. Sem a pretensão de um discurso
teórico que esgote a limitação de quais seriam eles, exemplificativamente menciono que o valor
dignidade do homem seria um deles. Ele constitui escala axiológica ampla e consensualmente
intransigível quando se vislumbre a criação das estruturas de uma boa sociedade ao estilo bobbiana,
mas que todavia congregue outros valores morais de matiz kantianos.
196
necessidade de diminuir a ocorrência destes riscos é sugerida em outro contexto por Furet
ao analisar o poder, a democracia e a Revolução Francesa. Diz o autor que na órbita da
política “[...] o povo, reduzido à sua definição democrática de soma de indivíduos iguais,
não mais é capaz de atividade autônoma: ele se encontra, de uma parte, despossuído de sua
relação com o mundo social [...]” (1989, p.187). Este problema posto por Furet encontra
bom encaminhamento nas reflexões aqui propostas sobre a activae civitatis de Bobbio.
A activae civitatis não tem o poder, como se supõe, de instaurar toda a virtude.
Contudo, está dentro de seus limites uma série de ações bastante positivas, dentre as quais
a tomada de posição contrariamente às políticas intolerantes e a degradação humana pela
qual estas teorias inclinam-se. Ao fazê-lo, tornam os efeitos deletéreos das políticas
intolerantes algo menos suscetível de materialização. A activae civitatis tem o que dizer
em um contexto em que a autonomia está sob ameaça e, por conseguinte, também a esfera
da construção política democrática que, para sê-lo, deve ser congruente com os interesses
de seus outorgantes.
Desta forma, considerado que se dão claros embates para que possa ser preservada
a cultura democrática e, por conseguinte, a tolerância que tão bem demarca o terreno de
uma sociedade aberta, a activae civitatis é a todas luzes elemento central em uma
sociedade aberta. Contudo, falta ainda estabelecer maior nexo entre sua fundamentação no
relativismo e intervenção no domínio público como forma de assentar a sociedade aberta,
algo que o item seguinte tomará como tarefa principal.
4.4 – Relativismo e intervenção no domínio público como fontes da sociedade aberta
No mesmo sentido da idéia proposta no parágrado anterior, e em conexão com a
activae civitatis bobbiana, cabe recordar com Barry (1995, p.19) que os indivíduos chegam
197
a tomar consciência de que as disposições sociais não são mesmo fenômenos provenientes
de uma vontade natural perante a qual apenas não devamos mais do que submeter nossas
ações. Ao contrário, à todas luzes, os constructos articulados socialmente são
eminentemente culturais.
Existe nisto um profundo ponto de contato com a argumentação sobre a
necessidade de intervenção dos membros de uma sociedade. A activae civitatis opera de
duas formas. Primeiramente para criar as instituições fundamentais. Em segundo lugar
como um mecanismo para torne a todos mais sensíveis sobre a necessidade de introduzir
alteração nos constructos sociais. Como resultado destes processos há a tendência de que
seja maior o grau de compreensão do papel da diferença e da tolerância para o avanço de
uma sociedade aberta. Neste sentido, seria mais do que um contrasenso atribuir a qualquer
das categorias abordadas o caráter de fenômeno natural. Aqui o que se põe a debate é que a
activae civitatis torna perceptível que a construção teórica chamada tolerância lança pontes
que tendem a firmar sociedades abertas e, logo, conflitivas, muito embora dotadas de
equilíbrio interno.
Neste ou em outro contexto histórico a categoria democracia não pode nutrir
relação estrita com formas de valores absolutos, exceto um pequeno conjunto de valores
socialmente consensuados mencionados exemplificativamente em linhas anteriores. Há
aqui, sem embargo, uma contraditoriedade com os valores apreciados e cultivados pelos
jovens,51 embora ela não seja assinalada diretamente por Bobbio. Depreende-se que pelo
menos certos segmentos dentre os jovens ainda tem dificuldades em lidar com o
fragmentado mundo cultural propiciado pela sugestão filosófica da ruptura da pósmodernidade com a modernidade. Uma linha analítica leva a acreditar que eles têm
necessidade de crer em valores absolutos, e ainda tão elevados, que resultam inalcançáveis
51
Na Europa é entre os jovens, normalmente entre os desempregados e de baixa renda, que se verifica o
número mais expressivo dos componentes de seguidores de doutrinas totalitárias, neonazistas ou não.
198
senão aos sonhos mais dourados. São sonhos que apenas à juventude parece ser dado
sonhar, embalados por imperativos como os de felicidade e justiça (1990b, p.133), entre
outros tão doces e cativantes quanto esquivos à dura realidade política.
Aplicando os anseios dos indivíduos, jovens ou não, membros de uma sociedade
livre nos termos de uma perspectiva fria da política, somos levados a recorrer a um
referencial analítico bastante promissor que se encontra em Bobbio. Nele a democracia é
concebida desde uma ótica ligada ao realismo político. Isto explica em certa medida
porque sua obra refere-se ao caráter procedimental da democracia, em que pese não
excludentemente das preocupações com o aspecto material. Por si própria a democracia
não tende a ser apreciada em toda sua inteireza pelos jovens dos nossos tempos, posto que
“[...] a democracia não é em si mesma, um valor absoluto [...]” (Ib.). Ao contrário, ela
aparenta demandar uma constante auto-exposição, explicação e justificação de suas razões.
Ao valer-se destes macanismos ela realiza processos de esclarecimentos sobre seus
procedimentos, objetivos e das possibilidades concretas de êxito. Enfim, ela tem uma
muito importante tarefa, que pode ser entendida como pedagógica e que se aplica às
questões políticas. Esta é uma função indissociável da prática democrática como também,
mesmo que a partir de outros parâmetros teóricos, de outros sistemas que igualmente
procuram reafirmar e dar continuidade aos seus projetos políticos. Esta tarefa democrática
representa uma condição para sua admiração e preservação por parte das gerações de
jovens e, por conseguinte, da sobrevivência da democracia.
O relativismo torna-se um elemento essencial para o diálogo tolerante e à prática
democrática. Mas ao mesmo tempo em que mantém estas estreitas relações, por outro lado,
a sua saudável sobrevivência depende de eficazes mecanismos de autodefesa contras
aqueles grupos e ideologias que atentem aos seus princípios. Portanto, ao aplicar o
relativismo e a tolerância a uma concepção político-jurídico de corte liberal como a de
199
Bobbio resulta que não há espaço para tolerar ideologias violentas ou, o que é o mesmo,
continua existindo espaço para a pronta reação resposta a elas.
Deste argumento se conclui que a democracia em Bobbio não nutre relação estrita
com quaisquer formas de valores absolutos, nem mesmo referentemente à tolerância. A
esfera onde Bobbio efetivamente leva ao limite a categoria tolerância reside nas íntimas e
exclusivas convicções mantidas pelo indivíduo em sua vida privada. Sem embargo, isto
não encontra eco absoluto nem forma a cultura política na esfera pública. Bobbio rejeita
esta possibilidade e o faz de forma literal em pelo menos um de seus artigos. Recair neste
absolutismo seria manter-se no raio de ação teórico de alguma forma de teologismo,
mesmo que em sua versão política. Algo de estranho nisto? Para esclarecê-lo está a feliz
expressão de Bobbio de que esses teólogos são aqueles que “[...] traficam princípios para
defender interesses [...]” (2001a, p.44-45).
Contrariamente, se há alguma categoria com a qual a política praticada em
sociedades abertas se coaduna é com “[...] aquela forma de sociedade estatal em que os
valores opostos não são combatidos como se fossem interesses inconciliáveis [...]” (2001a,
p.21). Isso transmite a segurança de que entre os diferentes o meio de aproximação não é
violência, mesmo quando os valores se apresentem como inconciliáveis. O contato se dará
através da tentativa de composição de interesses baseado em uma concepção de proteção
da dignidade do homem e dos valores fundamentais que permeam a ampla cultura de uma
comunidade projetada em suas raízes filosóficas e que em determinado momento refletem
aproximadamente o interesse social. Além disto, este contato se dará de forma a abranger
outras duas grandes áreas importantes, a saber, a proteção das liberdades individuais e os
interesses comunitários a médio e longo prazo. Eles nem sempre se refletem positivamente
quando da composição de interesses realizada isoladamente entre atores privados.
Considerando a questão dos valores desde uma perspectiva relativista na teoria
200
bobbiana, isto não implica assumir que os valores são essencialmente compatíveis. Ao
contrário. Como mencionado, eles podem apresentar-se de modo plenamente inconciliável.
Contudo, o que o sistema político deve necessariamente prever é a existência concreta das
condições suficientes para o estabelecimento de pontes sólidas para a manutenção do
diálogo. Acredita-se que poderia estar nesta uma via segura para o estavelecimento do
diálogo ou, em outros termos, que é uma alternativa para quando nos dispuséssemos a
encontrar uma fonte formal da democracia em sua e essência.
O relativismo moral que é consagrado na seara da filosofia política em Bobbio é
formado na órbita da cultura de uma sociedade historicamente considerada. Dada a firme
relação entre moral e política, e tendo em perspectiva o relativismo dos valores que
permeia a sociedade, a construção da moral individual e social irá projetar-se sobre a
política de sorte a determinar o constructo jurídico final. A aceitação desta relação entre
moral e política tendo como eixo a filosofia relativista conduz a positivação e tutela
jurídica de valores eminentemente díspares, segundo termos que implicam o respeito a
valores díspares, considerando-os igualmente valiosos.52
Na mesma linha de argumentação, ainda quando seja atribuído o mesmo peso às
diversas concepções morais e não podendo elevar qualquer delas à categoria de
indiscutivelmente triunfante, surge uma inarredável e clássica questão dentro de uma
sociedade aberta. Esta tem como cerne o debate em torno da articulação dos interesses de
maiorias e minorias. A questão se cinge a como tornar a sociedade operativa tanto quanto
fundamentada em acordos perpassados por uma idéia de justiça? Esta questão é o ponto de
52
Vale a pena ressaltar que em seu diálogo com o Direito Positivo o relativismo filosófico irá suscitar
o desenvolvimento de uma disciplina fundamental para as sociedades abertas, qual seja, a
Hermenêutica Jurídica, principalmente a de nível constitucional. Por outro lado, cabe ainda ressaltar
que este é mais um motivo para que, dentre outros aspectos, os operadores do direito não possam
neglienciar a leitura dos valores sociais vigentes como uma das fontes para realizar a hermenêutica das
normas jurídicas.
201
partida para a argumentação em torno da necessidade de que seja reconhecida às maiorias a
faculdade de estabelecer o “seu próprio reino” na terra. Em outros termos, isto não
significa apropriar-se do espaço público tendo como referente apenas a quantidade de
preferências. Ao contrário, trata-se do que denominaria de laica santificação de seus
valores na esfera privada. A estes valores, contudo, não será admitido que operem em
detrimento daqueles outros valores competidores sustentados e apreciados visceralmente
pelas minorias e que constituam o núcleo de valores historicamente apreciados como
direitos inerentes a dignidade da pessoa humana.
A um mundo de estruturas idealizadas pertencem tão somente categorias inerentes à
realização desses valores. Portanto, até mesmo o relativismo quando completamente
desconstituído de esferas-limite de bloqueio axiológico comporta riscos para a democracia.
Isto ocorre na medida em que impõe novos desafios às estruturas democráticas a partir de
concepções sócio-políticas que se alternam como dominantes. No mundo livre pode
afirmar-se que a tendência ao desenvolvimento das instituições democráticas ocorre de
modo constante. Este estágio de coisas é o que Bobbio traduz como sendo o estado natural
das democracias (2000a, p.19).
Por paradoxal que à primeira vista isto se pareça, aqui está um dos motivos que
leva Bobbio a crer na existência de um risco a democracia. Este risco se concentra
essencialmente em que ela possa expandir-se a ponto de massificar-se. Em tais dimensões
o raciocínio é que ela pode tornar-se ineficaz no que tange a sua gestão. Conseqüência
direta disto seria, como vimos, desatender muitas dentre as demandas públicas que, não
raro, tiveram origem nas próprias promessas da democracia.
O risco assinalado no parágrafo anterior se traduz na prática por apresentar
obstáculos não previstos a cada novo momento (2000a, p.17). Isto conduz Bobbio à
conclusão de que “[...] nada ameaça mais matar a democracia que o excesso de democracia
202
[...]” (2000a, p.39). Em outras palavras, sua leitura é de que se por um lado a democracia e
os seus avanços são mais do que desejáveis, contudo, estes passos não podem dar-se sem
grande risco aos próprios objetivos que se almeja alcançar, a menos que isto seja feito com
zelo e prudência. Desta sorte, é possível dizer que o problema não seria o avanço e a
ampliação da democracia, algo em si desejável, mas a forma, a velocidade, da consideração
ponderada que se faça das estruturas sociais, políticas e econômicas e, principalmente, das
garantias que sejam tomadas a cada etapa de desenvolvimento do processo.
Por outro lado, cabe considerar tanto a possibilidade de ampliar e fazer avançar os
princípios democráticos como o grau de cultura democrática de uma determinada
sociedade. Paralelamente a isto, há que atender à necessidade de incrementar o nível de
interesse que a coletividade deva manifestar para que os princípios que lhe são caros não
sejam subtraídos da vida em comum no bojo do processo de ampliação da democracia.
Efetivamente, não é o caso de aprofundar a presente análise, uma vez que fugiria
consideravelmente ao objeto central desta dissertação. Contudo, convém ao menos
assinalar que muitos dos problemas que atingiram os Estados pós-comunistas derivaram, e
autoritários de esquerda em geral, em sua transição para o capitalismo precisamente por
encontrarem-se marcadas por cultura política onde a tônica era a falta de livre intervenção
na vida pública e, sim, da disseminada crença e prática política, de que as decisões
deveriam ser tomadas por uma pequena cúpula que ocupava o poder.
Nos países do leste europeu, por exemplo, a passagem do socialismo real ao
capitalismo foi tentada de modo abrupto e com tal cultura como substrato. A transição
parece ter originado diversos problemas e, à raiz da falta de cultura democrática popular, o
que se observa ainda nos dias de hoje é que frente aos problemas de uma sociedade que se
pretendia e, em certo grau todavia pretende apresentar-se democraticamente ao Ocidente, é
que ali existe um renascimento da cultuação à figura do líder e, mesmo, dos próprios
203
líderes do antigo período comunista. Isto retrata a que ponto a disseminação da cultura
anti-participativa, e as conseqüências que disto provém, foram eficazmente implantadas na
sociedade. Este exemplo histórico apresentado de maneira bastante sintética confirma a
hipótese que levanto no texto de que a activae civitatis é instrumento útil para a
manutenção de algum grau de controle sobre as instituições e, ao revés, de que sua
ausência fomenta condições favoráveis aos regimes políticos fechados.
Um outro caso de regime autoritário mas que possui desfecho histórico bastante
diverso foi o da Espanha, o se especula dever-se em boa parte aos seus precedentes. Ali há
dois elementos a considerar. O primeiro, o da existência de uma forte tradição antifranquista que logo adquiriu verniz anti-autoritário. Ela estava constituída por praticamente
metade dos intervenientes na vida política e do caldo cultural e política da vida espanhola.
Portanto, estavam colocadas as condições de possibilidade para a intervenção na vida
política. O segundo elemento diz respeito ao período de transição levado a termo durante a
segunda parte da década de 70 pelo habilidoso político espanhol Adolfo Suárez. Nos
estados do leste europeu, via de regra, nenhuma destas duas condições existiram, e a
tentativa de transformação da sociedade de forma tão abrupta não mostrou-se apta a
alcançar o melhor dos resultados possíveis.
Retomando a argumentação, para que o evolver qualitativo da democracia não abra
espaços à proliferação real de riscos à sua existência, há que sublinhar o quanto é relevante
o papel exercido pela cultura democrática. Em uma determinada sociedade histórica na
qual haja falta de aceitação, ampla percepção e, por conseguinte, da prática dos valores
democráticos, é possível dizer que dificilmente as instituições de uma sociedade livre
poderiam encontrar terreno fértil para germinar e ver-se implementadas de forma segura. É
sobre tais valores que o item subseqüente irá ocupar-se.
204
4.5 – Projetos democráticos coletivos na sociedade individualista. Um diálogo entre
narcisismo, liberdade, igualdade e pluralismo.
Conforme anunciado no item anterior, é necessário reservar espaço à relação que se
estabelece entre liberdade e igualdade. Antes, contudo, devo retomar idéia que foi proposta
no início deste capítulo e que apontava como as sociedades ocidentais contemporâneas
encontram-se constituídas pelo conceito de narcisismo.
É recomendável a análise do conceito de narcisismo por força de que a sociedade
plural de nossos dias apresenta-se perpassada por condutas dirigidas à auto-satisfação. As
sedutoras estruturas de mercado e publicidade proporcionam fragorosos estímulos às
anteriormente assinaladas necessidades público-privadas. O narcisismo e a cultura do bem
na medida em que se encontra ligado ao individualismo e ao pluralismo, terminam por
somar-se a um conjunto que caracteriza a sociedade livre.
O conceito de narcisismo aqui é utilizado apenas no sentido de revelar algo a que se
entende como um superdimensionamento da esfera privada. Contudo, o real foco destas
linhas é abordar o equilíbrio entre a tutela da esfera privada a partir da tradição liberal
frente ao potencial de invasão destas de que o discurso conservador antilibertário se
reveste. Não obstante, este discurso oferece em uma de suas faces a necessidade de
estabelecer controles públicos às ações individuais, e esta é uma contribuição que deve ser
considerada dentro dos limites do respeito às liberdades públicas e privadas. De certa
forma, a leitura desta matéria encontra referência no texto de Dworkin citado no capítulo 1
(p.23).
Ainda entre os argumentos preliminares, há que ressaltar que uma das implicações
importantes relativamente aos assuntos abordados nos capítulos anteriores assim como o
que será aqui desenvolvido diz respeito a questão do que já foi chamado de perda do
sentido de continuidade histórica. Este sentimento denota uma vinculação dos indivíduos
205
ao momento presente, mas escassamente projetando sua visão em função do passado. A
conexão com o argumento do parágrafo anterior se estabelece quando percebemos que o
futuro de uma sociedade projetada segundo conceitos libertários pode ver-se gravemente
atingida quando os indivíduos restringem seus horizontes a uma percepção
predominantemente narcísica da vida. A erosão do espaço público e das liberdades torna-se
mais do que um mero risco nestas circunstâncias, uma vez que a cultura do narcisismo
tendo a uma sobrevaloração das instâncias de maximização do próprio prazer e bem-estar,
momento no qual demonstra conexão com a filosofia benthamita do utilitarismo em seu
matiz clássico.
A cultura narcísica não é vista nestas linhas como, em si, malévola. Contudo, o
equilíbrio entre a percepção individual da busca dos próprios interesses carece de certa
matização. Trata-se de que a adoção de uma filosofia deste gênero levada ao limite de sua
argumentação não favorece o estabelecimento de diálogo profícuo entre a liberdade e a
igualdade. Portanto, se uma sociedade aberta requer tal diálogo há também de ocupar-se
com o equilíbrio do discurso privado projetado na esfera pública atualmente dominante
sobre a prevalência dos interesses privados de maximização do bem-estar. O ponto central
da argumentação sobre o assunto na sociedade aberta indica existir um certo nível de
igualdade da qual depende o próprio sucesso da liberdade (1991, p.206). Este é um valor
que pode ser classificado como o maior dentre todos, excetuado, claro esteja, o pressuposto
de todos os demais, a vida.
A atualização do diálogo entre as categorias igualdade e liberdade em Bobbio nos
remete a já comentada categoria de igualdade formal. Neste sentido outro clássico do
pensamento político, della Mirandola, revela-se útil. Sua valia revela-se por argüir que
mesmo o homem sendo o verdadeiro centro produtor e destinatário da cultura, em nenhum
caso seria possível concluir que dentre eles existiria algum com capacidade para afirmar-se
206
hierarquicamente do ponto de vista axiológico perante os demais. Este é argumento que
pertence a uma tradição política que viria a permitir seu aproveitamento por Bobbio, pois
confirma a expectativa da criação de uma sociedade livre a partir de bases relativistas do
ponto de vista moral. Ao retomar aspectos dessa tradição, o autor conclui sobre a
necessidade primordial de igualdade formal no bojo de uma sociedade aberta, embora ela,
por si só, não venha, ao final, mostrar-se suficiente.
De qualquer forma, é conveniente recordar que esta linha de raciocínio remonta ao
menos a Aristóteles. Em sua narrativa, remete a Faleas de Calcedônia para quem as posses
dos cidadãos deveriam ser igualadas. O argumento particular de Aristóteles que interessa
ao desenvolvimento dessas linhas é de que a desigualdade de propriedade não é a única a
gerar revoluções (1991, pp. 84-85), conflitos políticos graves ou, mesmo, instabilidades
que possam ser consideradas alheias tanto aos interesses individuais como comunitários.
Estas disputas e conflitos também podem ser engendrados pelo interesse em obter
honrarias, desde logo, uma vez que as demandas por necessidades básicas encontrem-se
satisfeitas. Estas linhas, no entanto, guardam certa distância no que tange a serem
classificadas como devedoras do pensamento dos dois últimos filósofos mencionados,
senão no que tange a retomada do tema. De qualquer sorte, cabe introduzir a idéia de
matização das desigualdades extremas como forma de que o sistema social, político e
jurídico encontre o caminho da estabilidade institucional.
Segundo a perspectiva apresentada a relação entre igualdade e liberdade permite
dupla consideração. O primeiro aspecto a considerar diz respeito a que um dos pontos
aceitáveis da vaga teoria aristotélica sobre a igualdade é que o tratamento entre os iguais
deve ser igualitário, e desigualitário entre os desiguais. A vagueza fica por conta da falta de
critérios precisos para estabelecer a diferenciação entre iguais e desiguais. Isto sugere duas
interpretações bastante díspares.
207
Uma das leituras possíveis que a assertiva permite é que ela é mantenedora do
status quo, uma vez que pode recomendar o tratamento igual dos desiguais no sentido de
que aqueles que desfrutam das benesses sociais continuem obtendo tais favores
diferenciados. Uma segunda leitura tem sentido oposto. Privilegia a alteração das
condições individuais, levando em consideração o entendimento de favorecer aos desiguais
que se encontram em pior situação. Para isto seria empregado o redistributivismo. Esta é
uma possibilidade de entendimento sobre a máxima aristotélica de reservar tratamento
desigual aos desiguais, mas favorecendo os mais desfavorecidos.
A perspectiva que tem maior possibilidade de inserir-se na sociedade aberta é,
desde logo, a segunda. Isto se deve a que ela caracteriza-se por abrir espaços a que as
posições sociais sejam alteradas. Contudo, assumir esta posição não implica de forma
alguma aceitar versões extremadas de um redistributivismo que horizontalize a todos
quanto a uma mesma posição de riquezas materiais.
O segundo ponto implica levar em conta o reverso da igualdade, isto é, a
desigualdade. Seu acirramento pode gerar conflitos, algo já detectado na visão aristocrática
de Aristóteles. A experiência histórica ensina em que medida as limitações artificiais
propostas à desigual formação humana descompensaram os sistemas políticos livres. Esta
liberdade não encontra ressonância com uma perfeita idéia de igualdade material e esta,
por sua vez, não encontra sustentação na filosofia de Bobbio nem nos argumentos
apresentados como delineadores da sociedade aberta. Igualmente parece difícil encontrarlhe maior subsídio na filosofia aristotélica, em que pese da platônica possa dizer-se algo
bastante distinto. Isto sim, a igualdade formal encontra amplo espaço na teoria bobbiana
tanto quanto na concepção de sociedade aberta apresentada.
Este é um inevitável traço da verticalização predominante necessariamente
controlada que deve inspirar as estruturas políticas que medeiam a vida social. Ressalte-se
208
o papel de estruturas eminentemente verticais, em contraposição a outras áreas do globo
onde a retórica aponta para a horizontalização. Uma das conclusões que se deve extrair
dessa contraposição permeada por valores relativistas, é que não existem quaisquer entes
ou concepções ideiais dotadas de valores transcedentes de forma tal que possam ascender
ao absoluto domínio de campos do saber legitimatórios da dominação por via do exercício
do poder.
Mas se não há alguém ou alguma estrutura ideal dotado desta característica, a
conseqüência direta para uma concepção da desigualdade é que ela será concebida de
forma relativa. Nestes termos a proposta de Vieira converge com a da sociedade aberta
aqui delineada, vale dizer, que
[...] é necessário haver um equilíbrio de recursos entre os diversos
membros desta sociedade e, portanto, um mínimo de igualdade social. Isto
certamente não exclui o mercado, mas apela para a sua correção,
principalmente no que se refere à distribuição de riquezas por ele
gerenciadas” (VIEIRA, 1999b, p.2).
Esta idéia em muito se aproxima da de Dworkin, segundo quem o conceito de boa
sociedade implica que exista uma
“concepção de igualdade endossada pela sociedade, não apenas como uma
preferência que algumas pessoas possam ter [...] mas como uma questão de
justiça que deve ser aceita por todos porque está certa” (DWORKIN, 2005,
p.20).
A idéia exposta por Dworkin e Vieira tem como eixo a necessidade de uma visão
em certo modo contratual da sociedade, de que exista o compartilhamento de alguns
valores fundamentais, tal como o conceito de justiça que, ao fim e ao cabo, justificam a
pacífica vida em comum assentada em instituições legítimas. Por seu turno, Vieira ainda
esclarece que há uma visão de equilíbrio necessária de ser levada em consideração.
Segundo ele o termo é empregado em diversos sentidos, e não apenas no finananceiro.
Além deste, compreende também aspectos educacionais, relativos à informação, à
liberdade de organização e poder político (Cf. 1999b, p.02).
209
A ampla perspectiva do conceito de equilíbrio com que trabalha Vieira encontra
amplo eco na concepção de sociedade aberta aqui esboçada. Notavelmente no que tange a
um certo mínimo de rendimentos que sirvam de esteio para que as relações sociais possam
desenvolver-se harmoniosamente, como, de resto, até pró-homens da democracia liberal no
sentido anglo-americano como Dworkin (2005, p.04) até neoliberais como Friedman
(1988) e Hayek (1985) reconheceram. Isto não contradiz a sociedade de mercado, como
menciona Vieira. O que propõe é apenas corrigir suas distorções, “principalmente no que
se refere à distribuição de riquezas por ele [livre mercado] gerenciadas” (Ib.). A área de
convergência argumentativa também abrange a questão educacional.
Quando Vieira aborda a necessidade de que sejam garantidos níveis mínimos
implicitamente o princípio que está sendo aceito é de que se está projetando a tutela da
igualdade de oportunidades. Em outros termos, que existe o firme propósito de que a
possibilidade dos diversos indivíduos e grupos sociais possam avançar rumo a melhores
posições sócio-econômicas deve encontrar não apenas uma base discursiva e legal-formal,
mas também, e principalmente, uma base material.
Nestes termos, é indesmentível a necessidade da recuperação e posterior aplicação
da rawlsiana teoria da equiparação no ponto de partida. Isto tem como propósito oferecer
concretas perspectivas e fundadas esperanças a todos quanto disponham de vontade e
empreendedorismo com o escopo de preparar-se intelectualmente. Ao oferecer tais
possibilidades a sociedade investe na formação de capital humano dos atores sociais que na
seqüência intervirão no desenvolvimento da sociedade aberta segundo os termos de
eqüidade nos quais deve encontrar inspiração.
Oferecer concretamente a igualdade de oportunidades equivale na órbita pública ao
reconhecimento positivo de que os planos individuais são valorosos e de que os indivíduos
devem encontrar meios materiais para levá-los a termo. Portanto, é a própria necessidade
210
de afirmação das individualidades e, por conseguinte, do respeito público e eficaz à
pluralidade, o que convida a que o valor do trinômio pluralidade-liberdade-igualdade seja
reconhecido.
Portanto, a concepção de projetos democráticos em sociedades individualistas como as
que vicejam em nossos dias – característica social que não se espera que vá diluir-se na
constituição da cultura de uma sociedade aberta – deve propiciar, sem embargo, um
contínuo debate entre narcicismo, liberdade, igualdade e pluralismo. A finalidade disto é
fazer com que estas categorias possam encontrar um equilíbrio, de sorte a que de seus
inevitáveis confrontos não advenham embates cujo prejuízo para a democracia possam ser
nefastos.
Não obstante, o problema se cinge em admitir os pontos ótimos que devem ser
alcançados em todas estas categorias supracitadas. Sem embargo, os limites desta
dissertação alcançam apenas a proposição do problema e das categorias. Transcende os
limites desta dissertação a análise de dados empíricos sobre a questão e a proposição de
critérios concretos para sua abordagem.
Mas se logo acima o diálogo que foi ensaiado deu-se entre narcisismo, liberdade,
igualdade e pluralismo, agora o que cabe sublinhar no item subseqüente é o grande papel
reservado na sociedade aberta à cultura dos valores democráticos.
4.6 – A sociedade aberta e os valores subjacentes a uma cultura da democracia
O argumento central sobre o qual este item irá debruçar-se refere-se aos alicerces
da sociedade aberta. Sua construção, como viemos alinhavando em momentos anteriores,
demanda a articulação de uma série de categorias, assim como, após edificada, uma outra
série de ponderações sobre os valores em jogo deve ser levada a termo com vistas a mantê-
211
la operativa.
A sociedade aberta aqui delineada contempla, por definição, valores plurais. Seu
pressuposto é o da convivência de homenss díspares segundo termos que consagrem uma
mínima harmonia dos interesses individuais que, não obstante, encontram uma projeção
coletiva. É no contexto destes valores que uma cultura democrática deverá encontrar-se
permeada por uma filosofia relativista. Esta, contudo, tem de encontrar um termo médio de
abrangência quanto ao discurso público acerca do tema. Seu grau de influência deve, como
vimos no item anterior, ter uma certa gradação sob pena de que o triunfo do relativismo
desemboque em um individualismo exacerbado e este, por sua vez, coloque as condições
de possibilidade para a decadência ou inviabilização do projeto social da sociedade aberta
em curso.
O relativismo ao operar em uma sociedade aberta nos sugere que a democracia é
um legítimo work in progress. Isto se deve a que a vida moral dos indivíduos e o próprio
jogo político que está posto em um determinado momento histórico sofre contínuas
inflexões das mutantes relações sociais e, ato contínuo, provoca respostas por parte da
estrutura social. Esta articulação provoca inelutáveis reflexos na construção das instituições
públicas realizadas na órbita da política. Este contínuo evolver remete a que nos
certifiquemo-nos quanto a estar lidando com uma sociedade de tipologia racional. No caso
da sociedade aberta a resposta é positiva e, além disto, encontra-se influenciada por
considerações utilitárias e pragmáticas. A primeira dessas influências expressa a originária
e clássica preocupação benthamita pela maximização do bem-estar dos indivíduos. Já a
segunda realiza-se na sociedade aberta uma vez que perpassada pelo realismo políticofilosófico de Maquiavel e Bobbio.
Esta sociedade deve ser tomada em contraposição à de caráter mágico. Nela todas
as mudanças tendem a sofrer vigorosa oposição por parte de quem entende o universo
212
como composto por estruturas moldadas pela natureza, quer sejam elas postas diretamente
pelo mundo natural ou através de sua mera reconstrução à sua imagem e semelhança pelo
mundo da cultura. Neste sentido, a cultura seria uma mera longa manus dos desígnios da
natureza. Esta visão incorpora uma compreensão francamente conservadora, quando não
reacionária, quanto ao desenvolvimento das estruturas e processos sociais. Ao fim e ao
cabo, sua tendência à busca da estabilidade revela aspirar na verdade sociedades
estagnadas.
O modelo de rigidez institucional que esta visão conservadora apresenta inspirada
na concepção dos modelos sociais segundo a influência de moldes da natureza sugere uma
perspectiva acerca da inalterabilidade das instituições. Avessa a mudanças, esta visão tem
seu argumento central em que a natureza cria estruturas perfeitas e, claro, onde resida a
perfeição não cabe ao homem introduzir alterações. Portanto, a perspectiva historicista não
pode ter lugar.
Por outro lado, tendo em vista que a sociedade aberta encontra-se fundamentada
por uma filosofia plural, relativista e democrática, ela caracteriza-se necessariamente por
contínuo processo de mutação. Não poderia ser de outra forma, afinal, por exemplo, como
pensar na liberdade de manifestação de seres diferentes sem que isto acarrete em algum
tipo de discrepância e, por conseguinte, da necessidade de introduzir mudanças?
Algumas linhas atrás foi atribuída à democracia a característica de ser um autêntico
work in progress. Isto se deve a que ela abre espaços a que as interrelações entre seus
membros se dêem de forma bastante ativa. Desta riqueza de contatos entre seres de
perspectivas diversas e culturas diferentes provém novas experiências vitais que não
deixam de carregar cada um dos membros da sociedade de novas leituras sobre diversos
aspectos da boa sociedade. Conseqüentemente, demandas por novas estruturas são triviais.
Em meio a estas articulações e valores de uma sociedade aberta, quando
213
procuramos entender melhor a cultura que subjaz a uma sociedade livre, parece produtivo
retomar a Bobbio. Ele convida a visitar um princípio caro ao republicanismo, a saber, a
virtude cívica, com a intervenção na vida política e dos interesses públicos mais gerais.
Embora possa parecer que a continuidade de alterações a que se vê exposta possa
gerar problemas indesejáveis, fato é que a sociedade aberta não sofre, às últimas, com as
conseqüências da indeterminação do futuro em matéria de moral e de política. Ao
contrário, esta é uma de suas virtudes e condições para implementar e aperfeiçoar uma
série de categorias que lhe caracterizam. Este raciocínio me aproxima de perspectiva
popperiana na qual o autor nega o absolutismo científico. Em sentido inverso isto significa
aceitar o que ele denomina de absolutismo falibilista (1992, p.676), ou seja, que estamos
todos nós sujeitos a comissão de erros e que, portanto, a falibilidade nos desvia da verdade.
Segundo estes termos, as questões morais e, por derivação, as matérias políticas que por ela
são orientadas, devem ser compreendidas segundo os ditames do relativismo quando se
tenha em vista a perspectiva de uma sociedade aberta como a proposta aqui.
Nesta progressão da democracia é perceptível que se encontra exposta a mudanças
de rumo nem sempre previsíveis. Muitas delas, não obstante, são meras adaptações de uma
concepção ideal de democracia aos imperativos da realidade da política de uma sociedade
aberta. Mas ao ter como centro de preocupação o delineamento material da sociedade
aberta duas de suas inspirações teóricas seriam as informações de Sandel e Díaz,
respectivamente. O primeiro sugere, ao descrever a filosofia política em sua versão liberal
que triunfou nos EUA, que “ [...] government should be neutral toward moral and religious
views its citizes espouses [...] government should not affirm in law any particular vision of
the good life” (1998, p.04). A reflexão de Sandel converge essencialmente com uma das
idéias matrizes que inspira estas linhas e que traça o perfil da constituição material de uma
sociedade aberta. Segundo ela o foco não é a moralidade ou eticidade estatal mas, ao
214
contrário, a constituição material encontra-se predominantemente informada pela
moralidade e eticidade predominantes cuja formação resida em seus membros.
Por sua vez, o autor espanhol sublinha a necessidade de que uma democracia esteja
constituída por certas características (DÍAZ, 1990, p.41). Adiante em sua obra lista dez
exigências. As intitula básicas, éticas e políticas. Satisfeitas, reconhecerá a possibilidade de
que se dê a legitimação democrática do Estado de Direito. Apresentadas de forma sumária,
são estas suas exigências: a) reconhecimento e respeito pela vida humana e seu
desenvolvimento; b) liberdade crítica individual, de opinião e expressão, etc.; c)
participação política em liberdade para a tomada de decisões nas eleições que devem ser
periódicas; d) exigência de igualdade, o que implica reconhecimento do sufrágio universal;
e) afirmação da soberania popular e luta contra suas diversas formas de manipulação; f)
regra das maiorias como critério operativo para expressar na prática, em última instância, a
soberania popular; g) reconhecimento dos valores e interesses legítimos das minorias na
medida mais ampla possível em que resultem possíveis de assumir por seu próprio valor
ético e como exigência também de estabilidade e de paz social; h) política de consenso e de
compromissos ou pactos sociais, políticos e econômicos, mesmo que sem violar o sentido
fundamental das decisões da própria Constituição; i) desde esta mesma perspectiva,
reconheça-se em qualquer caso a não realizada ruptura da dualidade entre instituições
políticas e sociedade civil; j) proteção e realização dos direitos humanos (civis, políticos,
sociais, econômicos e culturais) que derivam, em constante desenvolvimento e
aprofundamento, das exigências anteriores e das necessidades individuais e coletivas
expressas em liberdade” (Cf. 1990, p.51-52). Esta lista oferece um grande potencial para o
desenvolvimento material de modo exemplificativo, e não exaustivo e analítico, do
conteúdo da sociedade aberta aqui proposta.
Logo após ter sublinhado como as articulações sociais se mostram operativas no
215
sentido de introduzir demandas e, por conseguinte, alterações sociais, e logo após haver
listado as exigências de Díaz, cabe agora deter-nos, ainda que brevemente, sobre como se
estabelece a relação entre a democracia e o conceito de Estado de Direito. Entre nós Vieira
afirma que a expressão Estado de Direito tem sido mais do que um poderoso instrumento
para o desenvolvimento das instituições democráticas. Sustenta que ela tem sido bastante
eficiente no auxílio à derrubada de regimes autoritários nas últimas décadas (1999b), como
veremos logo nos parágrafos subseqüentes a esta argumentação.
Sem embargo, parece que há algo mais a acrescer a este argumento de Vieira. Mais
do que Estado de Direito, parece apropriado falar das conexões que se estabelecem entre o
Estado “democrático” de Direito e a democracia. Isto se deve fundamentalmente a que
apenas considerando o Estado de Direito estamos nos referindo a qualquer regime político
dotado de um marco legal. Por outro lado, o Estado democrático de Direito introduz um
importante aspecto qualitativo às instituições puramente jurídicas.
Os conceitos de Estado democrático de Direito e de democracia mantém ligação na
medida em que o regime da legalidade democrática supõe a legitimidade. Este apoio
popular, por sua vez, supõe a intervenção de outras categorias, tais como a liberdade, a
mediação de certo nível de igualdade e, enfim, da consideração de direitos como à
dignidade. Sem elas a legitimação de políticas é dificilmente alcançável. Mas,
historicamente, a relação entre Estado democrático de Direito e democracia não foi sempre
tão direta e bem acabada.
O Estado democrático de Direito, assim como as concepções de democracia e de
mercado (notadamente nos últimos anos), foi expressão incorporada ao vocabulário das
grandes transformações ocorridas na América Latina, principalmente nos anos 70 e 80 e,
no leste europeu, teve lugar em torno do final dos anos 80, ainda que de forma menos
intensa, estendendo-se até o presente momento. Nestas batalhas políticas e econômicas,
216
perpassadas pelos interesses das novas elites em estabelecer seu domínio, o termo Estado
democrático de Direito tem sido predominantemente usado como uma contraposição ao
emprego arbitrário do poder e uma aspiração ao que nesta dissertação é trabalhado como
bom governo. Muito embora a utilização do conceito de Estado democrático de Direito seja
algumas vezes confusa, ela não é totalmente arbitrária. Tem como base o ideal de que o
governo das leis, fundado na razão e na liberdade, é manifestamente superior ao governo
dos ditadores, dos grupos que dirigem um partido único ou ainda seguindo outras formas
opressivas de exercício do poder.
Uma das categorias que permeiam o Estado democrático de Direito, como
anunciado linhas acima, é a liberdade. Em uma de suas conexões com a democracia na
órbita da política internacional, um dos aspectos assinalados por Pipes é de que ela não
pode ser entendida segundo os termos que os EUA propõem em vários tratados
internacionais, isto é, como sinônimo de democracia. A restrição do autor a esta idéia é de,
supostamente, nas democracias os cidadãos podem gozar de amplos direitos, como
menciona Díaz na referência feita em parágafos anteriores, que vão desde liberdades legais
às econômicas mas que, ao fim e ao cabo, podemos nos deparar com circunstâncias em que
não estejam habilitados a escolher seus governos (Cf. PIPES, 2001, p. 336).
À luz do esgrimido no parágrafo anterior, e considerando com Pipes que as
liberdades que não podem ser associadas de forma indelével à existência de um sistema
democrático, acresceria algumas ponderações sobre a relação entre democracia a liberdade.
Embora seja possível concluir que pode falar-se em liberdades legais e outras de ordem
econômica, por outro lado, não parece minimamente coerente supor pensar na existência
de liberdades em contexto dissímile ao de uma democracia. Para ilustrar a questão
retomemos as dez exigências formuladas por Díaz, cuja órbita é eminentemente política.
Não é factível pensar que a democracia possa ter lugar sem que implique na livre escolha,
217
por exemplo, de seus governantes. Por conseguinte, as liberdades, conforme a concepção
teórica desta dissertação, encontra ponto de convergência com um Estado democrático de
Direito.
Este perfil material da sociedade aberta pode entrar em dramático conflito com a
teoria da democracia. Bobbio fala expressamente de uma “[...] inevitável contaminação da
teoria quando forçada a submeter-se às exigências da prática [...]” (2000a, p.20). A
destacada interinfluência entre teoria e prática democrática e as limitações que a segunda
impõe à primeira, se torna patente na afirmação da superioridade da democracia por
Bobbio, mesmo nessas circunstâncias conflitivas.
Neste sentido o autor sustenta que a existência de “[...] diversos graus de
aproximação com o modelo ideal (de democracia), mas mesmo a democracia mais distante
do modelo não pode ser de modo algum confundida com um Estado autocrático e menos
ainda com um totalitário [...]” (2000a, p.50). Assim, qualquer “contaminação” da teoria
pela prática não passa de uma má percepção do fenômeno político tal qual ele se apresenta
em um sistema democrático. Este comentário deve ser compreendido dentro de certas
limitações, notadamente que não se trata de enfrentar qualquer conceito apriorístico de
democracia à prática histórica concreta aceita por uma sociedade.
Neste sentido percebe-se a importância de um dos argumentos nucleares deste item,
qual seja, o de que a sociedade esteja permeada por uma cultura democrática. Sua
constituição será abordada no item subseqüente, advertindo-se, de antemão, que possui
uma intrínseca ligação entre relativismo de valores e a intervenção na esfera dos assuntos
públicos.
218
4.7. Relativismo filosófico e legitimação política da esfera democrática
Ao final do item anterior mencionava que Bobbio propõe-se a questão espinhosa da
teoria enfrentada e sucumbindo às exigências da prática. Nesta matéria ele sintetiza a
relação entre realismo e convicção pragmática no mundo da política. Parece bem melhor
seguir tal trilha da “contaminação” da realidade do que a luxuriosa construção do “ideal”, a
qual vários pensadores entregaram alguns dos melhores anos de suas vidas ao longo da
história. Igualmente, tentaram contaminar a teoria.
Estas reflexões fazem lembrar a máxima de Gordon, amigo do doutor Jivago, da
obra de Pasternak. Bobbio argumenta que na história aconteceram mais vezes que aquilo
“[...] que foi concebido como nobre e elevado tornou-se matéria bruta. Assim a Grécia
tornou-se Roma, assim o iluminismo russo tornou-se a revolução russa [...]” (2000a, p.34),
e a literatura o apóia. Segundo o turinês, assim como Popper, tanta nobreza de princípios
redunda inexoravelmente em graves problemas quando adentram no mundo da realidade
política. Em termos históricos, observa-se a forma como a ditadura romana acabou
transformando-se na ditadura tirânica dos modernos. Historicamente, este bem pode ser
entendido como um momento inspirador do ceticismo de Bobbio quanto aos métodos e
discursos autoritários e ditatoriais para alcançar metas libertárias (2000b, p.297), assim
como todas as filosofias potencializadoras de uma leitura absolutista dos valores e do
mundo.
Em um contexto marcado pelo antiabsolutismo, pelo antiteologismo e eivado de
relativismo, Bobbio admite a existência de ao menos um paradoxo no pensamento político
moderno. Trata-se de que o superestímulo à participação política e a efetiva
correspondência do cidadão pode conduzir a uma união simbiótica entre a vida política
(pública) e o indivíduo (privado), de modo que o espaço público termine por colonizar o
espaço privado, politizando todos os âmbitos da vida humana (2001a, p.87-88). O grande
219
paradoxo da virtude, identificada pelo pensamento político moderno como a participação
política, desemboca no risco eminente de que o espaço privado da vida seja invadido pelas
questões públicas. No contexto destes argumentos Bobbio interpreta e identifica a filosofia
política rousseauniana como uma das origens do “homem total”. Este homem é intimado a
participar da manhã à noite dos assuntos públicos como forma de afirmar-se como cidadão.
Em sua análise de Rousseau, Bobbio diz que para o genebrino “[...] o cidadão total
nada mais é que a outra face igualmente ameaçadora do Estado total [...]” ( 2000a, p.55).
Aqui o filósofo sustenta que “[...] o cidadão total e o Estado total são as duas faces da
mesma moeda [...] têm em comum o mesmo princípio: que tudo é política, ou seja, a
redução de todos os interesses humanos aos interesses da pólis, a politização integral do
homem, a resolução do homem no cidadão, a completa eliminação da esfera privada na
esfera pública [...]” (Ib.). O turinês, buscando argumentos em Dahrendorf, retoma a questão
em outro artigo.53 A partir dos argumentos esgrimidos nestes dois últimos parágrafos se
torna possível observar uma das características fundamentais do totalitarismo contra o qual
as instituições democráticas sempre envidam seus melhores esforços.
Dentro de um contexto político e ideológico fundado no relativismo é necessário
assumir a importância da análise das múltiplas acepções que a categoria democracia goza
conjugadamente ao termo acima. Assim, uma das perguntas que resta por contestar é qual
destes possíveis significados de democracia interessa aqui. Primeiramente, ao afirmar a
necessidade lógica do utilitarismo-relativismo como elemento primordial de uma sociedae
aberta, põe-se sólida base para colocar em bom rumo o debate.
Do ponto de vista histórico-evolutivo as instituições políticas foram compostas por
fundamento utilitário-relativista que, em sua ótica material, propôs alguns elementos
bastante alvissareiros. Um deles foi o reconhecimento da necessidade de maximizar o bem53
Para analisar outros aspectos do tema ver BOBBIO (2000a, p.88).
220
estar dos indivíduos e, nesta medida, prenunciava a igualdade entre os seres humanos. Que
este argumento fosse transposto de forma efetiva para a esfera política não tardaria, o que
redundou na exigência do direito de voto a cada um dos indivíduos que compunham a
sociedade. Contudo, como recorda Bobbio, esta exigência já não se mostra plenamente
satisfatória em nossos dias, uma vez que as exigências da democracia se tornaram bastante
mais amplas e também complexas (ver 2001a, p.25).
Uma moderna abordagem da categoria democracia, em sua contextualização com
os valores das sociedades complexas ocidentais contemporâneas, interage com a de
relativismo e utilitarismo, e isto demanda um alto grau de integração entre o exercício do
poder formal (instituições e autoridades) e sua fonte material de poder (a cidadania). Esta
relação encontra reflexo na exigência de que o problema da liberdade não permaneça mais
adstrita a uma relação abordagem em termos de sua tutela pelo Estado através da repressão,
seja através de sua concepção ideal positivada na norma jurídica ou através da função de
polícia judiciária. Nos termos propostos por Bobbio a liberdade deve vir a ter como
referencial o conteúdo que uma determinada sociedade civil historicamente considerada
lhe empreste (ver 2000b, p.341).
Neste sentido a idéia é reforçada quando Bobbio recorre a argumento constante na
obra de John Stuart Mill. Nela está presente a oposição entre autocracia e democracia.
Sobre a relação de ambas dizia Mill que enquanto a primeira delas necessita de cidadãos
passivos, a segunda sobrevive e prospera apenas se puder contar com cidadãos ativos, idéia
esta plenamente compartilhada por Bobbio (ver 2000b, p.398-399).
Esta atividade cidadã caracteriza os momentos históricos em que a liberdade, a
democracia e o relativismo tiveram e tem lugar. Nos períodos de transição quando todavia
não encontraram sua afirmação, o poder inclina-se à concentração. Nesse sentido pode ser
classificado como conservador e, não raro, valendo-se de um forte aparato burocrático.
221
Vencido tal momento e afirmada a democracia e o relativismo adentra-se em um outro
novo momento libertário. Enquanto a primeira fase caracteriza-se por baixos níveis de
legitimidade do poder, a segunda, libertária, vê seus níveis de legitimidade varias de
médios a ótimos. Como assinala Vieira, frente ao caos o conservador quer ordená-lo
(1999a, p.97), mas ao avocar para si esta tarefa o que termina por fazer é promover a
centralização contínua de poderes.
Dentro deste contexto, neste momento em que a legitimidade é baixa, existem
personagens à deriva que precisam do apoio da esfera política soberana, genuinamente
cidadã. Bobbio apresenta a questão da legitimidade do poder de forma aberta em um de
seus melhores artigos sobre a questão, Sobre o princípio de legitimidade, o qual passarei a
considerar na seqüência desta dissertação em diversos momentos.
A democracia em Bobbio também pode ser definida de forma negativa. Segundo
ele, trata-se da antítese democracia/ditadura. Similar contraposição teórico-filosófica
também se apresenta nas categorias autonomia/heteronomia de Kant e que de certa forma
reaparece na filosofia jurídica de Kelsen, cuja teoria, para muitos, encontra-se perpassada
pela filosofia neokantista. A vantagem do tratamento de quaisquer matérias por antítese é
que um dos dois termos acaba sendo utilizado para jogar luz sobre o outro (1987b, p.9-10).
Segundo este modelo, a ditadura apresenta-se como politicamente indesejável por
encontrar-se desprovida de legitimidade. Assim, joga claridade sobre a categoria de
democracia, regime no qual os graus de legitimidade são convergentes com níveis mínimos
que permitam classificá-la como desejável em um regime aberto.
A ditadura é entendida como antípoda lógica às políticas proclives à defesa das
maiorias que em algum regime político pode encontrar suas liberdades e direitos violados.
A ditadura “[...] ainda que socializante, termina sempre, no que diz respeito à massa
222
oprimida, em nada mais que uma mudança de patrão [...]” (1983, p.77).54 A este respeito é
válido recordar a máxima de Marx ao referir-se à filosofia de Hegel. Sustentava o filósofo
de Trier que agora cabia aos filósofos efetivamente transformar o mundo. Na reflexão de
Bobbio, com idêntico precedente em Jefferson, não cabe empreender batalhas, suportar
perdas para, logo, sucumbir a um novo tirano. Em termos bobbianos, à democracia espreita
muito mais do que uma “mudança de patrão”, isto sim, o autor tem em perspectiva a
alteração qualitativa do regime político.
Precisamente nesse momento intervém uma variável importante em seu
pensamento, talvez até mesmo sendo possível classificá-la como central é o da paz. Este
problema, segundo Bobbio, sobrevém no ano de 1964. Naquele momento desenvolvia um
curso sobre guerra e paz, com a obsessão que dizia sentir pelo tema do perigo que a
humanidade corria por conseqüência da criação das armas nucleares, tema este que, aliás,
infelizmente, como expressam Manero e Atienza, volta a tornar-se sombriamente atual
(1995, p.236).
Uma das vantagens da democracia é sua tendência a interiozar, institucionalizar e
explicitar regras para a mediação dos conflitos e, por conseguinte, para o asseguramento da
paz. Para Bobbio, a paz é a antítese de guerra, e a democracia é a anteposição conceitual de
regimes políticos fechados e autoritários que tendem a manter relações conflitivas e
antipacifistas. Em uma democracia é o direito que deve assumir a função de construtor de
um Estado em que a paz seja tomada como um valor basilar, muito embora não eliminador
de conflitos. Esta concepção se aproximaria perigosamente dos desígnios totalitarizantes
dos Estados absolutos (1990c, p.107). Neste particular Bobbio consagra uma visão do
54
É interessante notar como esta referência de Bobbio assemelha-se a de Jefferson, quando este
revolucionário norte-americano fazia menção à necessidade de proceder à defesa das liberdades na
América, livrando-se de quaisquer tipos de líderes autoritários, quer de um só ou de um grupo deles,
mais ou menos amplo, pois a Revolução não tinha por finalidade manter a nação sob a tirania, de um ou
de muitos.
223
direito como elemento procedimental e não substancial (Ib).55
Esta questão da guerra se apresenta para Bobbio como “[...] o problema dos
problemas, cuja solução libertará de uma vez por todas a humanidade dos males que a
afligem [...]” (2000b, p.517). Esta abordagem permanece algo alheia ao que se possa
entender como formadora de uma concepção filosófica da história por Bobbio, a qual não
se caracteriza por oferecer qualquer espécie de solução definitiva para os problemas
humanos. Logo a seguir, sem embargo, como que para minimizar a declaração feita,
sustenta então que mesmo na hipótese de que fosse logrado tão nobre objetivo, outros
problemas se apresentariam. Eles “[...] não menos graves e nem menos difíceis [...]”
(2000b, p.518), perturbariam a humanidade, algo que já assinalava como sendo “[...] a
justiça social, a superpopulação, a fome, a liberdade [...]” (Ib.).
Ainda que devidamente sopesada a impossibilidade manifesta da eliminação
completa dos males, por muito criativos e empreendedores que se apresentem os homens
em seus mais benevolentes misteres, a realidade aponta para caminho inverso. Estes
objetivos são comumente visados por regimes ditatoriais antes do que por regimes
democráticos. Quando frágeis, dentre estes últimos percebe-se arquitetura que não apenas
favorece como estimula fortemente a instauração de crises políticas graves e de difícil
solução senão através da ruptura institucional, isto sim, nunca no âmbito interno. Aqui
surge uma das grandes vantagens da democracia, qual seja, a de que oferece amplas
condições para a superação pacífica de crises políticas, sejam elas mais ou menos graves.
Daí que para Bobbio o tema da paz, ligado ao da democracia, sempre tenha ocupado um
lugar central na filosofia política e jurídica (ver 2000a, p.11-12).
Bobbio reforça a idéia de que os regimes democráticos não tendem a resolver seus
conflitos de interesse recorrendo ao belicismo ao sustentar que “[...] nenhuma guerra
55
Para uma análise minuciosa da paz em Bobbio ver BOBBIO (1982). Sobre a importância do tema ver
BOBBIO (2000b, p.497, 509-573).
224
explodiu até agora entre Estados dirigidos por regimes democráticos [...]” (2000a, p.50).
Contrariamente à histórica tendência pacifista mantida pelos Estados democráticos estão as
práticas dos Estados totalitários (2000a, p.188). Aqui Bobbio volta a propor a questão da
possibilidade efetiva de que os Estados democráticos coexistam na órbita internacional
com Estados não-democráticos (Cf. BOBBIO, 2000a, p.201).
Na esfera internacional, sem embargo, o italiano se distancia de suas influências
kantianas, posto que assume que nas relações internacionais é impossível eliminar a força
como possibilidade concreta para resolver conflitos (2000a, p.202). Aqui Bobbio assume
de modo quase irresignado o fato de que os Estados se regem pela justiça comutativa
(1987b, p.19-20). Isto se dá sob a égide da inteira soberania de cada parte na defesa de seus
interesses, o que representa, se necessário, até mesmo o uso da força. Esta tese de Bobbio
lembra, de alguma forma, a da supremacia de alguns sistemas de organização políticoinstitucional sobre outros, tal e qual afirmavam, por exemplo, Kant e Locke. O primeiro
inclinava-se pelas instituições republicanas, enquanto o segundo pela Monarquia, ainda
que ambos pelas liberdades.
O argumento de que as sociedades democráticas são propensas ao pacificismo foi
um dos temas que ligaram sua abordagem filosófico-política a sua filosofia jurídica,56 que
nessa última encontra sua expressão quando assinala que o próprio fim mínimo e objetivo
principal do direito é a ordem e a paz social, Bobbio ressaltaria que a resolução de conflitos
é o objetivo mínimo do direito (2000b, p.565; 1998d, p.11; ver VIGO 1991, p.15). A
conexão entre paz e democracia em Bobbio encontra suas raízes no fato de que o direito
também é uma categoria que, por definição, se opõe à guerra.
56
Bobbio estabeleceu uma ponte entre filosofia política e filosofia do direito a partir da consideração da
paz como uma temática essencialmente ligada às ações políticas. Adentrando em suas análises teóricojurídicas, e recorrendo a Thomasius, diria ainda que entre a diversidade da tipologia das normas
jurídicas, que a mais adequada à manutenção da paz são as normas negativas, ou seja, aquelas normas
que impedem a uns praticarem ações danosas aos outros (ver BOBBIO, 1990c, p.372-373).
225
Como diz Bobbio, todo o “[...] processo jurídico é instituído com o objetivo de
fazer vencer quem tem razão, (e) a guerra é de fato um processo que permite que tenha
razão quem vence [...]” (2000b, p.562). Isto lhe permite concluir, ainda que não sem certa
dose de exagero, e pecando por alguma imprecisão terminológica, que “[...] onde avança o
reino do direito, cessa o estado de guerra [...]” (2000b, p.563). Talvez esta leitura possa ser
creditada em boa parte a uma de suas maiores referências filosóficas, Thomas Hobbes, que,
como se sabe, instituiu a sociedade civil através da grande e mitológica figura do Leviatã.
O Estado encontrou tradução na linguagem política hobbesiana como o protetor, garante e
pacificador de um novo status quo, cujo antecedente era marcado pelo estágio de natureza,
onde predominava a lei do mais forte e a agressão era constante.
Sobre este aspecto parece que fica realçada a importância de um dos mais
importantes temas da filosofia jurídica bobbiana, qual seja, o do elemento definidor do
direito. Nesta relação conceitual entre guerra e paz nosso autor deixa claro que o avanço
dessa última significa necessariamente a existência (ou progressiva institucionalização) de
uma autoridade última que dispõe de um poder expecífico dotado de força eficaz para
impor-se (2000b, p.563; 2000b, p.570) à desordem e ao caos. Exemplos históricos, como o
da Alemanha nacional-socialista não podem ser olvidados. Foi um tipo de Estado que
desfrutou de um ordenamento jurídico bastante estruturado mas que, não obstante, foi
dirigido a potencializar um dos maiores genocídios presenciados pela humanidade através
da promoção de uma guerra em escala mundial.
Assim, mesmo no âmbito de uma sociedade aberta, democrática e relativista, a paz
emerge como um dos valores inegociáveis. Será que por este motivo pode ser assumido
que há uma contradição em termos quando afirmamos anteriormente que vivemos em uma
sociedade permeada pelo relativismo? A resposta é negativa. A sociedade aberta, como de
resto qualquer outra sociedade, requer a afirmação da paz, o combate à desordem e ao
226
caos. Estas são condições indispensáveis para a existência de quaisquer outros valores que
a sociedade tenha em mente tutelar.
Neste momento surge uma interessante questão da escala de prioridades axiológicas
em Bobbio. Logo após deixar claro que a paz é um valor básico em seu esquema filosófico,
sustenta au pasant que sua defesa alicerça-se na existência de uma ordem jurídica
eficiente. Contudo, ela não tem necessária ligação com o grau de justiça de que suas
normas jurídicas estejam compostas.57 Para obter a paz, diz ele, “[...] basta con que exista y
sea respetada (a norma jurídica) [...]” (1990c, p.107). Assim, a ordem e, por conseguinte, a
paz, operam em Bobbio como elementos primordiais, acima de considerações da justiça do
esquema jurídico que as mantém.
Este tema encontra conexão com outro aspecto relevante na teoria política
bobbiana, qual seja, o da visibilidade do poder (Cf. 2000a p.21). Isto ocorre na medida em
que admite que a paz é a condição necessária para a realização de todos os demais fins aos
quais possa propor-se a sociedade aberta através do direito (2000b, p.520). Este deve ser
compreendido como um elemento indissolúvel da categoria democracia, posto que sua
negação implica na caracterização da política feita entre elites, e voltada para elas, ou,
entre outros atores e a elite, mas voltada mascaradamente apenas para os interesses desta
última. Para estes fins pode valer-se de meios não tornados públicos, visando resultados
comumente pouco claros e muitas vezes plenamente alheios aos interesses públicos.
57
Sobre a relação meramente eventual entre o conteúdo das normas jurídicas e o conceito de justiça ver
BOBBIO (1990c, p.300).
227
CONCLUSÕES
Nestas linhas finais deve ficar claro que a defesa da sociedade aberta não pode
ser idéia próxima à outra que sustente que os indivíduos desta sociedade gozem de
imunidades frente às ameaças que rondam a democracia. Muito embora não tenhamos
chegado ao ponto final da evolução dos sistemas políticos, talvez possamos ter-nos
deparado com um de nível bastante bem calibrado, satisfatório quanto aos valores
mais apreciáveis e que o homem médio se disponha a defender.
O resultado da evolução dos sistemas democráticos foi o considerável sinal de
decrepitude de suas opositoras. Contudo, os fatos tampouco indicam que as
democracias tenham atingido um nível qualitativamente apreciável quanto às suas
instituições. Isto é atestado pela crise das democracias algo que, contudo, não
impediu que, como atesta Huntington (1997, 1991)58 e reconhece Bobbio (2000a,
p.191), os sistemas democráticos crescessem exponencialmente no mundo, em que
pese os “profetas de desventuras”. Estes “[...] haviam descrito minuciosamente a
implacável máquina para a eliminação da democracia em que se converteu o mundo
moderno [...]” (REVEL, 1984, p.11). A dinâmica interna dos processos andou
exatamente em sentido contrário.
Isto abriu espaço para considerações sobre as categorias fundamentais de uma
sociedade aberta, aqui representada como um elo superior na cadeia evolutiva das
instituições libertárias. Um dos problemas centrais com os quais a pesquisa se
deparou foram os contínuos déficits apresentados nos regimes democráticos, as faltas
58
O autor reconhece que entre 1974 e 1990, mais de 30 países no Sul e Leste da Europa, América
Latina, Leste da Ásia e África transitaram de regimes autoritários ou totalitários para regimes
democráticos (HUNTINGTON, 1991. Apud VIEIRA, 1999b, p.01).
228
graves em que suas instituições incorrem, a ausência de mecanismos de fiscalização e
correção mais eficientes. Este quadro demanda duplo e paralelo esforço. O primeiro é
pela manutenção das instituições democráticas em funcionamento e, o segundo, o de
aperfeiçoá-las, promovendo o que Bobbio denominou de alargamento.
Os déficits democráticos convidam a pensar sobre possíveis retrocessos
sistêmicos nos esquemas tradicionais de vida política em liberdade. A estabilidade de
cada tempo histórico encontra boa representação através da esperança em uma vida
melhor, e que seja capaz de suscitar isto na imaginação dos contemporâneos tanto
quanto, em perspectiva e estruturadamente, para as próximas gerações. Esta tese
encontra fundamentação no estudo de Dahl. Como conclusão de seu estudo o autor
deparou-se com a realidade de que diversos países pobres, alguns como a Nigéria à
beira da guerra civil e situações típicas de ruptura das instituições, eram aqueles que
apresentavam mais elevados índices de esperança no futuro (1997, p.107). Isto revela
uma certa peculiaridade na leitura da política, qual seja, a de que existem situaçõeslimite de desespero onde a esperança reside na mais completa transgressão ou ruptura
da ordem com vistas a algo totalmente novo.
Relativamente à democracia um dos nossos graves problemas é identificar
qual esperança os claudicantes regimes democráticos podem oferecer aos seus
cidadãos. Uma resposta provisória é que as democracias têm permanecido adstritas ao
campo retórico-formal, permitindo que sobrevenha uma grande disfunção sistêmica
ao ser contraposto à realidade dos fatos. A resposta positiva é abandonar este campo
rumo a uma concepção material.
Por seu turno, a manutenção de uma saudável sociedade aberta depende de
que se encontre estruturada sobre algumas categorias. Entre elas, a liberdade, a
desigualdade (devidamente matizada pela igualdade) e a democracia. Ao tê-las como
229
fundamentos teóricos é possível perscrutar os paradigmas que orientam uma
sociedade aberta estável ou, em outros termos, uma sociedade onde os valores
individuais são eficientemente tutelados pelo Estado através de um aparato políticojurídico legitimado. Esta sólida base tem suficiente força sempre que enraizada em
uma cultura democrática da sociedade, que é tema que perpassa o segundo capítulo.
A cultura da democracia presente na idéia acima envolve o tecido social que
avoca para si o papel de repelir os freqüentes ataques às liberdades individuais
promovidos pelas autoridades políticas, desde períodos mais remotos até os Patriot
Acts dos nossos dias nos EUA, que turvaram o ambiente político de um dos berços da
democracia ocidental contemporânea. O mencionado avanço qualitativo das
democracias vê-se comprometido pela ação corrosiva de políticas como estas, que só
fazem minar ainda mais a confiança no potencial do desenvolvimento da cultura
democrática.
Muito embora hodiernamente observe-se a intervenção de fatores restritivos
ao alargamento das instituições da democracia tais como os arrolados no decorrer da
pesquisa e do parágrafo anterior, creio que eles não têm suficiente força para impedir
a proposição de um satisfatório e estável desenho das instituições democráticas,
indefectível componente de uma sociedade aberta. Esta abordagem converge com a
crença de Bobbio no potencial democrático. O alargamento da democracia é resultado
derivado mas de importância extrema. Ao projetar futuro alvissareiro possibilita
nutrir, por derivação, esperança sustentada quanto ao futuro da democracia, ela que é
elemento fundamental para a manutenção de qualquer regime político.
Esta pesquisa não propõe uma aposta fechada sequer quanto ao êxito da
sociedade aberta das instituições democráticas. Assim como Bobbio, a única aposta
seria é a de preocupar-nos com o esforço de preservar e alargar as estruturas
230
democráticas existentes, isto sim, considerando as condições de incerteza em que se
insere. Neste ponto o ceticismo de Bobbio aliado à leitura popperiana abre caminho a
não crer na indefectibilidade do advento de uma futura e estável democracia. Ao
contrário, daqui extrai-se um alerta para a necessidade de que ela seja permanente e
muito atentamente acompanhada.
Ainda que uma categoria tão fundamental como a liberdade nutra estreita
relação com um futuro aberto e incerto no marco de uma sociedade aberta e que, por
isto, demande ter claras fronteiras conceituais e de aplicação, isto apenas reitera que
este tipo de sociedade precisa de mecanismos de proteção. Isto implica uma
concepção de limitação às liberdades perante outros valores, o que, na órbita jurídicoconstitucional, pode dar lugar à questões como a dos conflitos de Direitos
Fundamentais.
Ao ser abordado no quarto capítulo este tema estabelece diálogo com
relevante assunto: a tolerância. Muito embora limitada, a liberdade suportará
demasiada estreiteza. Seu contínuo estreitamento ou, o inverso, o constante
alargamento das exceções que incidem sobre a categoria em questão, tem o poder de
gerar grave involução no sistema das liberdades e fazer com que um dos mais amplos
e generosos valores presentes na sociedade aberta na prática se veja comprometido.
As fronteiras da liberdade na sociedade aberta devem erigir-se como terreno
intransponível quando os alicerces da democracia encontrem-se sob ataque e postos
em xeque por concepções políticas que lhe ameacem. Estas considerações levam a
inclinar-me por denominar a isto de direito de resistência contra todos os
vilipendiadores das liberdades, direito a ser exercido em comunidade. No bojo da
sociedade aberta proposta a tolerância não tem lugar quando a opção ao poder
estabelecido é a não tolerância. Mas não se trata de disponibilizar o sintético
231
argumento da intolerância com os intolerantes. Trata-se de aproveitar o ensinamento
da Lei Fundamental de Bonn (ver art. 18) e restringir direitos àqueles que valem-se
das liberdades para abusar de seu uso. Hão de ser restringidas as liberdades dos que se
apresentam como seus inimigos, não permitindo um uso ilegal ou auto-destruidor do
sistema político-jurídico de uma sociedade aberta. Daqui que o direito de resistência
que, individual ou coletivamente exercido, deva ganhar preeminência em face aos
valores socavadores das liberdades praticados pelos intolerantes. Considerando que
partimos de uma teoria liberal do poder, e que este é sempre detido pelo povo e em
seu nome exercido, eis que quando se dá seu exercício de forma ilegítima, abre-se a
brecha para considerá-lo como anti-jurídico. Entre nós Maria Garcia é uma das que
refletem acuradamente sobre o tema (1994).
Nestes sérios momentos de ataque aos fundamentos da democracia e aos
valores da sociedade livre surge um importante problema teórico. Abrangente, e
ocupando-se das formas de ação e dos limites que têm de ser impostos ao Estado no
tange a sua ação interventora-assecuratória da sociedade livre, este problema dos
limites permanecerá em aberto para posteriores estudos.
Outro argumento que explica parte desta pesquisa e que compartilho com
Bobbio é o das incertezas geradas pela política e que em seu âmbito tem lugar, idéia
esta que ocupa lugar de relevo nesta pesquisa sobre a sociedade aberta. Bobbio
colabora com sua referência certeira de que, à ciência certa, não se sabe qual será o
porvir da democracia (2000a, p.30). Aqui tanto a incerteza como a ameaça que esta
potencialmente introduz. No mesmo sentido a pesquisa valeu-se de sua leitura no
trecho em que mesmo demonstrando sua visão cética, não se deixa levar por um
fatalismo-niilista. Explicita sua convicção de que não se pode esperar a concretização
de “[...] uma visão catastrófica do futuro da democracia. Nada disso [...] mesmo num
232
país de democracia não-governante e mal governante como a Itália, a democracia não
corre sério perigo” (Op. cit., p. 49). Era a análise das circunstâncias políticas de seu
país que lhe permitiram a posteriori alargar tal área de abrangência para extrair
conclusões mais amplas na área da filosofia política quanto ao tema abordado.
No que tange à inquietude com a democracia atual encontro outro aspecto
onde o pensamento de Bobbio parece promissor, é o tratamento que reserva ao
alargamento da democracia. A análise aqui desenvolvida parte do pressuposto de que
existem muitos e concretos motivos para que nos preocupemos não apenas com as
instituições da democracia que temos como com a necessidade de promover avanços.
Estes devem ser de duas ordens. A primeira delas puramente quantitativa, onde o foco
é a expansão do campo de cobertura físico-espacial dos sistemas políticos que tenham
como vetor valores que tendam à instituição das liberdades. A segunda é de ordem
qualitativa, e nela o apelo diz respeito ao incremento de suas instituições. Uma vez já
existentes, aqui o desafio é de enfrentar as constantes demandas de sua base cidadã
por aperfeiçoamentos institucionais de modo a melhor responder aos reclamos dos
indivíduos, tanto de ordem puramente política como político-administrativa e, não
menos raramente de prestação de serviços por parte da máquina pública em paralelo
com demandas por eficiência nos gastos e diminuição na arrecadação de tributos.
Nesta segunda perspectiva do que se trata é de aproximar a cultura política daquilo
que proponho sob a nomenclatura de sociedade aberta.
Esta sociedade é uma democracia cujo conteúdo expressa diferentes e
antagônicas versões, até mesmo sobre o que foram ela seja. Desde uma perspectiva
histórica, sublinhe-se que nenhuma das características apontadas acima foram
predominantes no período posterior a Segunda Grande Guerra Mundial. Na órbita da
233
prática política,59 destacadamente em Estados da antiga Cortina de Ferro foi
desenvolvida a concepção da democracia com conteúdo manifestamente antagônico
ao das concepções dos estados liberais do hemisfério ocidental. Uma pequena mostra
do debate deste tema foi exposta no primeiro capítulo.
Cabe ressaltar que para cumprir os fins a que esta pesquisa se propôs não foi
assumido como pressuposto a atribuição de qualquer sentido a história. Sobre isto
diria Bobbio que tampouco acreditava ser possível tirar qualquer conclusão (2000b,
p.349).60 Ao contrário, a marca da história (e da filosofia que se faça sobre ela) é a
instabilidade, e este é um dos pontos mais instigantes desta pesquisa. Em que pese a
reflexão de Bobbio, o que sim me parece ser de ciência certa é que a articulação entre
política e direito que busquei apresentar logo no primeiro capítulo desta pesquisa é
que irá ditar, seja em que sentido for, como esta história um dia estará constituída e
como estarão politicamente articulados os indivíduos que continuarão a dar-lhe o
rumo.
Uma filosofia da história bastante abrangente da totalidade é própria de
contextos filosóficos como o hegeliano mas, de forma alguma, próximas ao
pensamento libertário que aqui sustento deve enraizar-se na concepção de uma
sociedade aberta. Ao contrário, minha proposição encontra-se muito estreitamente
vinculada às fontes teóricas que sufragam, a exemplo de, primariamente, Kant, e,
após, Popper, os discursos em prol das concepções que postulam o livre e autoreferente desenvolvimento dos indivíduos e de seu contexto social como um dos
pressupostos para a sociedade livre. Neste particular detecto proximidade a
59
Há que considerar que as diferenciações quanto a categoria democracia não tem origem neste
momento. Do que se trata é, apenas, de ressaltar um momento histórico onde esta diferenciação ficou
bastante evidente desde o ponto de vista da prática política.
60
Em outro artigo o turinês reforça sua perspectiva sobre a história ao sustentar que “[...] não sabemos
onde vai dar a história humana em seu todo” (2000b, p.425).
234
argumentação desta dissertação e a de Bobbio.
Mesmo que em alguns momentos não o faça explicitamente, o approach do
turinês evidenciar ser mais devedor de pensadores da linhagem kantiano-popperiana
do que com a tradição de filósofos da história totalizantes, ainda quando
reconhecidamente brilhantes, como é o caso do supracitado Hegel. Este veio
hermenêutico abriu a possibilidade da leitura de uma filosofia jurídico-política
voltada a uma sociedade consagradora dos valores libertários, dotada de tolerância.
Tal sociedade é firme na defesa dos valores que lhe servem como fundamento,
repelindo os discursos que lhe solaparam a legalidade democrática. Este contexto se
apresenta perpassado por uma concepção política cética quanto aos rumos das
instituições e da cultura democrática que lhe sustenta, consoante destacado no
segundo capítulo desta pesquisa.
Segundo minha elaboração, a sociedade aberta tem como um de seus objetivos
centrais a tutela das diferentes Weltanschauung61 dos indivíduos que a compõem
assim como do espaço público em que eles procuram coordenar suas vidas. Neste
momento o pluralismo emerge com força como um de seus maiores valores. Em aras
de realizar estes valores, a concepção filosófica de pluralismo de que me valho deita
raízes remotamente no pensamento de Protágoras, segundo quem o homem ocupará o
centro de interesse do estudo da filosofia. Uma vez aceita a idéia de que o homem
individualmente ocupa tal posição central, então sua organização política deve
envidar os melhores e mais concatenados esforços para que seja possível a realização
dessas diferentes e valorosas concepções de vida e de bem viver ideadas pelos
partícipes de uma dada sociedade.
Não obstante a sociedade aberta preocupar-se com a realização na esfera
61
Segundo a tradução usualmente empregada na filosofia trata-se de “cosmovisão”.
235
pública dos valores que cada indivíduo cultiva, ela encontra limitação na órbita de
proteção que deve ser reservada a cada um de seus membros. No instante em que as
esferas protegidas de cada um de seus membros se deparam com igual esfera livre de
seus demais concidadãos ali será observável o momento da limitação à sua
determinação volitiva particular. Esta determinação apenas pode ser limitável quando
de seu exercício advenham consideráveis riscos para a auto-realização das demais
esferas privadas, segundo as diversas dimensões que esta comporta62. Esta é uma das
conclusões alcançadas através das análises propostas no terceiro capítulo, onde a
sociedade aberta aparece dotada não apenas de um mecanismo político chamado bom
governo como também por uma economia de mercado. Este é o eixo institucional
binário, político e econômico, sobre o qual os valores da sociedade aberta podem
consistentemente desenvolver-se.
O desenvolvimento institucional da sociedade aberta a partir de uma
perspectiva realista inspirada na filosofia jurídico-política de Bobbio permite duas
leituras. A primeira delas é de que ao referir-me a Bobbio como cultivador de uma
filosofia de cunho francamente antideterminista e à obra de referência de Popper e
Lorenz, Die Zukunft ist Öffen,63 tenho elementos para concluir sobre a sociedade
aberta. Neste tipo de sociedade o futuro não pode pertencer a nenhuma categoria
predeterminada, exceto aquela que direcione esforços a garantir a que este futuro
permaneça constantemente aberto às reavaliações de seu tempo histórico com o
objetivo de continuar aperfeiçoando suas instituições. Neste ponto retomo a idéia de
Popper que destaca a ligação do liberalismo com a concepção de que este sempre
62
Postergo para outra pesquisa a importante análise sobre a hierarquia dos valores individuais e qual a
mensuração que pode ser feita desses “altos riscos”. Cumprida esta tarefa será possível determinar com
maior grau de precisão os limites garantidos a cada esfera individual de liberdade quando elas tendam a
oferecer graves danos a outras esferas individuais ou coletivas de liberdades.
63
Segundo uma tradução literal, o título seria: “O futuro está aberto”.
236
busca a introdução de melhorias, tanto no campo da legislação como no da política
(1992, p.689). Neste particular, minha concepção de sociedade aberta é tão devedora
de Bobbio, naquilo que considero ser sua procedência liberal, como da leitura de
Popper sobre o liberalismo realizada logo acima.
Nestas linhas valho-me de uma filosofia sobejamente anti-determinista como
a de Bobbio. Através dela obtenho dados para instrumentalizar a concepção de que o
futuro aberto anunciado pelos dois filósofos germanófonos é um elemento articulador
não apenas necessário como indispensável para uma sociedade do tipo proposto. Fora
admitida a determinabilidade do futuro político, contrario sensu, ele estaria
caracterizado pela inviabilidade de que os indivíduos o edificassem consoante seus
únicos valores e visões de mundo. Em suma, em qualquer leitura que se faça, o
determinismo filosófico inviabiliza a autonomia política. Conforme a sociedade
aberta, portanto, a autonomia política pressupõe o indeterminismo e o relativismo em
matéria filosófica e política.
Esta primeira leitura enseja uma segunda. Esta última diz respeito à crise das
democracias contemporâneas e de suas perspectivas. A sua falta de boa saúde não
permite extrair rapidamente a conclusão sobre sua decrepitude ou, ao menos, que seu
sepultamento é iminente, como advertido por Bobbio (2000a, pp.19, 50). Ao abordar
a democracia desde uma perspectiva cético-realista, aproveito de Bobbio sua
confiança na razão humana para tangenciar obstáculos que, ao menos aparentemente,
são duramente superáveis. Esta crença no potencial emancipatório dos indivíduos, em
que pese partindo de uma visão cético-realista da democracia, perpassa uma
sociedade aberta, e o faz precisamente por fornecer o grau necessário de ânimo
político para a defesa de suas instituições, para o que se recupera aqui a categoria
activae civitatis bobbiana que atravessa os capítulos segundo, terceiro e quarto deste
237
trabalho.
As considerações do parágrafo acima me remetem uma vez mais a acentuar a
necessidade de uma concepção filosófica indeterminista. Isto se deve a que seu
potencial emancipatório não me parece materializável ali onde as concepções
filosófico-políticas vigentes avalizem instituições de tipo não transparentes e não
abertas à cidadania. Situação inversa é aquela em que os indivíduos podem dar vazão
às suas intrínsecas pulsões, vale dizer, tentativas de realizar a si próprios projetando
seu íntimo querer em um espaço público que lhe seja receptivo. Nestas circunstâncias
o futuro permanece aberto às construções políticas de cada período. Esta é a
característica maior de uma sociedade aberta em oposição àquelas influenciadas pelas
concepções de máxima engenharia social, que ao invés de ofertar parâmetros
procuram determinar a idéia de um bem final que se deva alcançar.
Aberto o caminho do espaço público para a projeção do indivíduo, a razão
humana pode intervir com chance de continuamente recriar parcelas consideráveis
das esferas de autonomia dos membros que compõem uma sociedade aberta.
Aplicado este potencial emancipatório da razão humana à seara política, a categoria
democracia apresenta-se dotada de um papel relevante. Ele está presente na
aglutinação política em torno do projeto de tutela às liberdades, seja no momento em
que se encontrem ameaçadas ou quando se tratar do propósito de expansão das
liberdades.
Por sua vez, os regimes politicamente fechados sabidamente encontram-se
intrinsecamente destituídos de virtudes republicano-libertárias, e neles o potencial
racional-emancipatório de leitura kantiana não pode mesmo ter lugar. Sendo assim,
seria mesmo possível assumir como bom um sistema que priva de liberdades seus
cidadãos imotivadamente, sem quaisquer limites como os apontados em momento
238
anterior nesta pesquisa? Aqui o argumento remete uma vez mais ao problema da crise
das democracias que sempre depararam-se com a realidade dos avanços de ações
inescrupulosamente interventoras do Estado sobre as liberdades individuais.
É necessário contínuo cuidado com estas liberdades por força de que
conceitualmente o Estado encontra-se constituído por relações de poder que
desembocam em uma superfície legal. O ponto, entretanto, é que estas relações são
tendentes à amalgamar e englobar crescentes doses de poderes não outorgados e
positivá-las em produção jurídica não legitimada pela cidadania. A relação entre
poder e direito que foi estabelecida no primeiro capítulo desta dissertação teve grande
importância para que fosse possível chegar a algumas reflexões conclusivas neste
trabalho. A relevância da relação apontada a sustento fundamentalmente a partir de
uma análise culturalista do direito em que sobressai a origem do Direito. Havida esta
como certa, passo seguinte é fixar que existem grupos sociais que, enlaçados nas
tarefas legislativas, mutuamente influenciam na defesa de interesses que serão
traduzidos do ponto de vista legal naquilo que usualmente
é denominado de
ordenamento jurídico.
As relações entre poder e direito em uma sociedade aberta têm algumas
peculiaridades. Para ressaltar quão fundamental são elas, assim como sua
repercussão, há que examinar em que termos ambas concepções operam em uma
sociedade deste tipo. Para fazê-lo dificilmente seria mais feliz do que valendo-me
inicialmente das palavras de Ripert. Segundo o autor, “quando o poder político
manifesta-se em leis que não são mais a expressão do direito, a sociedade encontra-se
em perigo” (apud Grossi, 2004). Não houvessem outros argumentos, apenas este de
Ripert já poria a questão em seus justos termos. Precisamente este trecho me empresta
argumentos na medida em que leio sua utilização da palavra direito como correta
239
expressão de um direito legitimado. Ele deve perpassar sua relação com um conteúdo
político positivo ou, assumindo a idéia em outros termos, que um conteúdo legal não
iníquo encontra seu fundamento na vontade popular.
Esta é uma das bases de uma sociedade livre que no decorrer do terceiro
capítulo foi retomada em diálogo com algumas categorias do pensamento de Dahl.
Quando uma concepção de direito como esta se distancia através da ilegitimidade de
conteúdo e/ou procedimentos da política, eis que tal hiato tem força suficiente para
gerar instâncias políticas nocivas à sociedade. Os termos em que isto ocorre foram tão
sintética quanto afortunadamente propostos por Ripert. Portanto, a sociedade aberta
não pode desconsiderar este fundamento de legitimidade que essencialmente tem de
lhe perpassar, pois ela se constitui e se desenvolve no âmbito das liberdades (e de seu
suporte), e esta supõe tolerância, respeito ao pluralismo e, por conseguinte, que
encontre-se marcada pelo privilégio ao diálogo.
Em um arranjo social deste tipo, a relação entre poder e direito ganha ainda
maior destaque. Este tipo de sociedade pede uma cultura política de proteção aos
direitos na vida política e às liberdades individuais e coletivas. Como artífice e
intermediadora dessas relações estão as estruturas de poder que se desenvolvem na
esfera da política. E é nela que algumas características da sociedade aberta, como o
respeito ao pluralismo e a tolerância, não podem deixar de fazer-se presentes.
Em que pese casos concretos possam expor esta conexão de modo bastante
claro, isto não bastaria para que a tarefa desta pesquisa fora dada por conclusa e, logo,
por delineado o perfil de sociedade aberta. Outra conclusão a que chega esta pesquisa
é que neste tipo societário o conjunto assecuratório positivo das liberdades tem de
transcender os limites da retórica. Não são suficientes as afirmações e a observação
empírica da relação entre política e direito. É indispensável que dentro dessas
240
relações sejam observadas que as matizações sobre a categoria desigualdade desçam
da retórica ao mundo concreto e tornem-se operantes como limitadoras dos
infortúnios sociais invulgarmente gerados pela sociedade de livre mercado liberal.
Ao ponderar sobre o papel da desigualdade e suas matizações segundo a
igualdade brota a algo nebulosa idéia de “social-igualitarismo” de Bobbio.
Interpretação razoável é de que a relação que se estabelece entre estas categorias em
uma sociedade livre contempla as principais artérias de uma democracia
potencialmente exitosa. Aqui está um dos motivos pelos quais reputo apropriado
emprestar de Bobbio a categoria igualdade, uma vez que ela apenas subsiste em seu
pensamento como sustentáculo contra os avanços desestabilizadores da desigualdade
social. Esta categoria é que atuará no esquema deste trabalho como o pilar articulador
e fomentador da manutenção da dinâmica das relações sociais, estáveis e motivadas
para o desenvolvimento em todas as esferas, institucionais, econômicas, jurídicas e
políticas.
Ao realçar as relações entre as categorias acima, principalmente no que tange
ao processo de formação das estruturas da sociedade aberta, tenho entre meus
objetivos oferecer argumentos para fortalecer o entendimento de que a cultura
democrática não apenas é uma condição para seu erguimento e manutenção como, em
certos casos de sociedades dos nossos dias, mas principalmente para que se promova
o alargamento de suas instituições democráticas. Como visto no segundo capítulo,
apresentam estas sociedades apresentam como temas centrais de contínuo debate as
categorias liberdade e desigualdade, segundo preceitos republicanos. Tais preceitos
caracterizam-se segundo uma linha ampla mas congruente de valores. Entre eles cabe
destacar a transparência na gestão da res publica, a meritocracia, devidamente
matizada por uma concepção restrita de igualdade de oportunidades que devem guiar
241
o estabelecimento de suas políticas pública, todas elas sintetizando uma concepção de
justiça.
A construção dessas categorias é devedora de uma interação com outras
presentes na filosofia bobbiana, dentre as quais algumas de cunho marcadamente
weberiano tais como as de legitimidade e legalidade. Esta relação é destacada logo no
primeiro capítulo, e tem lugar em uma sociedade aberta por força de que depende
estruturalmente destas duas categorias do ponto de vista político. Uma sociedade
aberta não pode em qualquer hipótese menosprezar o papel da sustentação política
dos indivíduos que compõem sua formação social. Ao prestar seus serviços os
dirigentes hipotecam seu futuro político, e em prazo nem sempre previsível, até do
próprio regime que conduzem.
Segundo este desenho institucional a legalidade serve ao conjunto de
indivíduos como mecanismo assecuratório contra abusos de autoridades públicas ou
ingerências privadas que avançam sobre os direitos fundamentalmente postos como
alicerces para convivência em uma sociedade aberta. Ela também serve ao Estado de
corte democrático para agir segundo as mais precisas orientações políticas emanadas
da sociedade que lhe outorgou poderes, instante no qual a legalidade estabelece
indelével ponto de contato com a legitimidade em uma sociedade aberta. Aqui é
oferecido ao ente estatal um marco jurídico regulatório dotado da característica da
transparência, a qual lhe servirá como instrumento paradigmático e eficaz para
cumprir suas funções.
Ao fazer referência ao Estado de corte democrático, cabe acrescer que no
espectro de uma sociedade aberta deva encontrar-se uma estrutura político-jurídica
marcada por dois elementos. O primeiro é o Estado de Direito. Em segundo, e talvez
mais importante, pelo que Elias Díaz (1979) intitula de Estado Democrático de
242
Direito. É a partir desta perspectiva teórica que o legal, e fundamentalmente legítimo,
exercício do poder põe a si mesmo como conditio sine qua non para a garantia das
liberdades fundamentais (ver BOBBIO, 2000a, p.33). Nesta abordagem, a
legitimidade tem precedência sobre a legalidade no que tange à formação política da
sociedade aberta. Considerando que uma das categorias centrais da sociedade aberta é
a liberdade, ela deve ser compreendida como precedente lógico-político da
articulação jurídica. Contudo, será nesta dimensão que encontrará eficaz mecanismo
de garantia. Estas instâncias libertárias têm lugar quando perceptível uma alta
convergência do conceito de legitimidade com o de legalidade ou, ao menos, quando
seu hiato atinge escala minimamente aceitável.
No âmbito da relação entre legalidade e legitimidade é mister ressaltar que
nem tudo que é legal é tema que pode ser havido como legítimo. Por outro lado, ali
onde encontramos legitimidade, o poder político dispõe de condições para ser
operado dentro de bases de respeito à autonomia e à dignidade humana, pilares da
liberdade acima referida como central em uma sociedade aberta. Daqui brota a
existência de algo que intitulo como conteúdo mínimo de liberdades para que o poder
possa ser exercido democraticamente e, do ponto de vista da eficiência, a contento.
Não obstante exista um grau de liberdade necessária para o exercício do
poder64, uma outra liberdade, a do conjunto de cidadãos, não pode ser mascarada a
pretexto da realização daquele primeiro mister em níveis ultraegoísticos. Em que pese
aceite premissas e conclusões liberais, o desenho institucional proposto nestas linhas
não destitui de importância as referências da vida em comunidade. De qualquer sorte,
vislumbrar tais liberdades não constitui obstáculo para que os responsáveis políticos
se submetam ao estrito dever de transparência nas decisões públicas. Acerca disto não
64
Discricionária até certo ponto, mas sempre fundamentada e seguindo os preceitos da ordem
democrática vigente, sempre e quando a perspectiva for de um governo deste tipo.
243
há escassez de discursos mistificadores.
A liberdade aqui considerada encontra única garantia em seu respeito efetivo,
e não apenas pela esfera privada como também, e principalmente, pela esfera pública.
A esta última cumpre a tarefa de fixar os limites e as condições para que se
relacionem os entes privados e a esfera pública com eles. Esta tarefa é o que se pode
denominar controle do poder (Cf. BOBBIO, 2000a, pp.41, 48). Este controle do poder
deve ter lugar na medida em que os responsáveis políticos têm em suas mãos a grande
máquina de criação das normas jurídicas e, por conseguinte, de aprovar projetos que
tenham em seu bojo matérias nas quais o interesse público possa não encontrar muito
clara expressão. Daí a importância de que goza em uma sociedade aberta o referido
conceito republicano de transparência, que deve ser conjugado em uma sociedade
aberta juntamente ao bobbiano activae civitatis, ambos controladores daqueles que
exercem o poder político.
Ao longo do desenho do perfil da sociedade aberta advém outra idéia
compartilhada com Bobbio. Trata-se de que o “[...] conteúdo mínimo do Estado
democrático não encolheu a garantia dos principais direitos de liberdade [....]” (Op.
cit., p.50). Esta é uma leitura importante para a conclusão do que é uma boa e aberta
sociedade. Ampliando a percepção bobbiana, ainda que dentro da perspectiva liberal,
creio que o Estado cede espaços em diversas áreas. Contudo, em outras como a tutela
aos direitos, deparamo-nos com uma onde não apenas não lhe pode ser permitida a
delegação de poderes como, ao contrário, lhe incumbe aperfeiçoar os mecanismos de
controle e tutela. Assim, a sociedade livre deve empregar seus melhores esforços para
que o Estado Democrático de Direito continue a ocupar-se desta tarefa de forma mais
efetiva e eficiente contando com sua ação fiscalizadora. Postos estes elementos, abrese um veio para uma promissora análise no quarto capítulo.
244
Uma das análises que é repercutida nessas linhas conclusivas diz respeito à
existência de um firme nexo entre as categorias pobreza e democracia. Este nexo
começa a ser progressivamente mais aceito em nossos dias até mesmo pelos
organismos internacionais mais reticentes, qual seja, o de que a pobreza induz à
reprodução da pobreza, em um círculo vicioso cuja interrupção sugere intervenções
exógenas firmes. Um mecanismo de reprodução como este em boa parte tem origem
na deficitária capacidade de articulação política entre as camadas populares mais
empobrecidas. Aqui a conexão entre pobreza e a necessidade de níveis mais
abrangentes de democracia. Esta seria a fórmula política para inverter o vetor dos
processos de depauperação e, por conseguinte, atacar uma das forças que fomentam
as crises das democracias. A sociedade aberta aqui apresentada não pode ser
formulada satisfatoriamente nestes termos, mas sim quando níveis médios de
democracia e de inserção social encontrem-se objetivamente materializados nas
políticas públicas.
Admitindo a hipótese de que esses elementos citados no parágrafo anterior
não se intercruzem, o que parece certo é que de um contexto de pobreza e de efetivo
combate às suas condições originárias emergem condições concretas para que a
democracia possa legitimar-se e a sociedade aberta afirmar-se. Segundo terminologia
mais aproximada à teoria política é possível dizer que os processos democráticos não
se afirmam através da ampliação de áreas de confronto. Ao contrário, a democracia,
muito embora suponha o conflito, vive e sobrevive em (e de) árdua tarefa cotidiana de
restringir as áreas de fricção e tensão ao menor âmbito possível, preservadas as áreas
de interesse abertamente irreconciliáveis.
Não obstante o emprego dos melhores esforços as áreas de conflito ressurgem
na sociedade e a vida do responsável político é a de repetir o mito de Sísifo. Isto
245
ocorre porque o sistema democrático se alimenta de demandas. São elas que oferecem
a base de legitimação política, e desde esta perspectiva de barganha o fazem em dois
momentos diferentes. Um deles tem lugar quando o indivíduo exerce sua liberdade de
expressar-se e através dela expor suas demandas, e as fazer chegar aos órgãos
responsáveis. O segundo momento ocorre quando os responsáveis analisam as
demandas e lhes respondem. Aqui temos a efetivação da segunda etapa legitimatória
da política.
Enfrentadas estas circunstâncias de forma bem coordenada pelos responsáveis
políticos é perceptível que em uma sociedade aberta sua atuação venha a estar
destinada a forjar novas áreas de convergência entre aqueles indivíduos que se
expressam livremente na esfera pública. Sem embargo, estes consensos são
provisórios, e introduzem a categoria legitimidade, a qual mostra ser indispensável
para a sobrevivência de uma sociedade aberta no decorrer deste trabalho.
A legitimidade do sistema político também pode ser mensurada através de sua
capacidade para enfrentar graves problemas tais como o do aprofundamento das
desigualdades e o do acesso às oportunidades. Através da ponderação destas
categorias torna-se viável uma melhor aproximação ao nível de igualdade que deva
introduzir no sistema. Levada a bom termo esta tarefa, advém um evidente ganho
político, qual seja, o do aumento do grau de legitimação popular, o qual é
indispensável quando se trata de uma sociedade livre. Desde logo, mesmo em uma
sociedade deste tipo existem interesses bem articulados e poderosos de elites e
oligarquias do poder, predominantes em um passado nem sempre muito distante e que
todavia permanecem atuantes na defesa de interesses setoriais e valores tradicionais.
Agindo nas sombras do discurso político que legitima uma sociedade aberta, estas
elites não têm força efetiva para relegar os interesses majoritários a plano secundário.
246
Estes foram legítima, democrática e dialogicamente construídos dentro do sistema no
qual estão inseridas essas elites.
Para que os princípios desta sociedade consigam submeter as ações da
organizada elite aos interesses públicos há que considerar a dependência visceral da
articulação entre a esfera legislativa e a teoria da representação política. Um
descolamento consistente entre ambas inviabiliza o projeto de autonomia individual
no bojo de uma sociedade aberta. Por outro lado, não há que negar a força que a
transação e o estabelecimento de um novo consenso desfruta neste processo
dialogicamente construído. O diálogo é o mecanismo indispensável de permanente
adaptação e realinhamento do sistema. Ele introduz, mesmo que provisoriamente, um
novo consenso e qualitativamente considerável, posto que legitimado. Enfim, ele é
que permite o avanço estável e continuado das instituições.
A consolidação deste tipo societário depende da formulação de políticas que
consagrem uma firme tendência a assegurar à mais amplas camadas da população um
maior e mais eqüânime acesso às oportunidades sociais. Este é o fator que une ou
esgarça um tecido social. Não obstante, sublinhe-se, a desigualdade aqui é ponderada
como um valor promissor, mas entendida em perspectiva. Esta matização implica
afirmar o acesso às oportunidades de forma equânime sem que isto ofenda a
desigualdade de méritos ou aquela que as preferências pessoais introduzam frente às
demandas expressas através da estrutura social. É necessário deixar claro que por
oportunidades sociais aqui se entendem políticas consagradoras de valores que vão
desde a obtenção de renda até a consideração pelo transcendental tema da educação.
Suponho o reconhecimento legal (e moral, no que couber nestes princípios) das
características e valores individualmente preservados e, last but not least, de uma
genérica e bem acabada compreensão da igualdade de tratamento a todos.
247
Neste sentido várias são as categorias bobbianas que se demonstram dotadas
não apenas de acuidade, utilidade como de atualidade. A tríade de categorias
analíticas anunciada no título dessa dissertação serve como parâmetro para discutir e
dotar o debate dos fundamentos necessários, embora não suficientes, para a
elaboração dessas políticas que se demonstram necessárias para a instrumentalização
de uma boa e livre sociedade democrática. Desde logo, o objetivo dessas linhas não
foi o de sugerir políticas públicas aplicadas deste gênero. Esta é uma tarefa a ser
desenvolvida por linhas de pesquisa complementares a esta dotadas de metodologia
diversa, que contemplem, por exemplo, importantes pesquisa de campo. Ao contrário,
nestas conclusões o que vale sublinhar é o desiderato de colocar parâmetros para a
análise de alguns dos termos morais que envolvem esta discussão para que, a partir
deles, o esforço de pesquisa aqui realizado possa ser retomado no âmbito da
estruturação de políticas públicas positivas adequadas à instrumentalização de uma
sociedade aberta.
A introdução da categoria igualdade como um dos referenciais analíticos da
pesquisa propiciou debate com um dos problemas centrais em Bobbio, isto é, o de
qual seria o seu mais apropriado entendimento e em que limites deve ser aceita em
uma sociedade aberta. A categoria igualdade transita através de várias das
interpretações bobbianas e de forma discrepante, e isto tem transcendência ao
procurar aplicá-la para realizar a aproximação do que seja uma boa sociedade e como
ela pode organizar-se. A leitura que se sugere faz com que a categoria trabalhada
apareça dotada de grau de relativa afirmação, isto é, quando se tenha como referencial
o papel que desempenha no pensamento da esquerda tradicional.
A igualdade desenhada nessas linhas é a afirmação axiológica da intrínseca
necessidade de respeito à dignidade do ser humano. Esta deve ser entendida não como
248
uma categoria filosófica redutível a uma individualidade de cunho metafísico mas sim
inserida em um conjunto de relações sociais onde outros indivíduos podem, embora
muito pontualmente, oferecer limites ao exercício de sua esfera privada. A partir desta
assertiva creio poder oferecer uma idéia mais precisa sobre um limite moral ou
substantivo considerado seguro sobre como a sociedade aberta recepciona a
igualdade.
Sustenta-se que a boa e livre sociedade está inspirada em valores políticojurídicos liberais e que, portanto, permanece atrelada à tríade de categorias
centralmente trabalhadas nesta pesquisa. A proposta dessas linhas é de que esta
sociedade marcada pela liberdade encontre-se também perpassada pela idéia de
democracia material. Esta idéia tem como substrato a categoria igualdade, mas
entendida nos termos em que foi operacionalizada no terceiro capítulo assim como no
parágrafo anterior. Em síntese, que ela deve encontrar-se devidamente matizada pela
idéia de preservação das instituições da sociedade de livre mercado.
Uma limitação deste gênero encontra razão de ser em que esta sociedade de
livre mercado se insere positivamente em um contexto de defesa dos interesses
econômicos individuais e coletivos. Ainda assim, ela toma como uma de suas
preocupações a tutela das liberdades individuais. Esta é realidade historicamente
observável. Neste tipo de sociedade as liberdades desfrutaram das melhores
condições históricas para florescer frente ao constante avanço transgressor por parte
do Estado e de agentes que operam sob seu escudo protetor. Contudo, disto não se
depreende que a sociedade de livre mercado encontre-se isenta de distorções. Ao
contrário, mesmo as liberdades tendo florescido em seu bojo, devido ao fato de esta
encontrar-se em permanente contato com um incerto devir, estas distorções são
continuamente introduzidas por diversos fatores. Ativa frente aos desafios, a
249
sociedade aberta estimula as correções necessárias, e esta é uma de suas grandes
virtudes.
Em conexão com este tema, no terceiro capítulo foi abordada a categoria
analítica bom governo. Algo a que ter atenção é que as instituições de uma sociedade
aberta de corte democrático devem necessariamente apresentar-se de forma
transparente. Mas qual o significado prático disto? Primeiramente, cabe notar que sua
ausência denota a fatídica existência de um lado obscuro do poder, onde as elites e os
interesses antirepublicanos operam à mancheia, atentos a fomentar os programas
antilibertários que a lide com a máquina do poder lhes permite. Esta é uma
perspectiva que a proposta de uma sociedade aberta não apenas não contempla como
francamente repudia. Em segundo lugar, ao falar de transparência há que referir-se
apenas aos graus com que ela se apresenta. Eles serão definidores da capacidade de
que disponha o organismo político instituído para estruturar a vida da sociedade livre
de forma sustentada. Conforme eles se apresentem mais elevados, nos depararemos
com sociedades mais desenvolvidas do ponto de vista da tutela das categorias básicas
da sociedade aberta.
Neste momento duas observações têm de ser feitas. A primeira delas diz
respeito à relação da decepção contemporânea do cidadão com a política.
Temerariamente para a sociedade livre isto se oferece de forma crescente. A segunda
observação diz respeito ao tipo de sociedade em que os cidadãos estão inseridos
majoritariamente, e que são de tipo complexo. Este é um empecilho real para que o
nível de intervenção na vida pública possa ser mais elevado. Assumindo o
pressuposto de que seja certo tratar-se de um óbice, não menos o é que não se trata de
um invencível. Mesmo uma concepção realista da sociedade aberta, perpassada por
certo veio cético, não deve abrir mão de um horizonte em que se dê uma progressiva
250
intervenção de seus cidadãos. Os mecanismos para tanto são diversos, entre os quais
o aperfeiçoamento da cultura política e das instituições que constituam um cenário de
efetiva representação da sociedade civil.
A sociedade aberta delineada encontra-se traspassada por demandas de
origens diversas e por conteúdos não menos plurais. Esta é uma realidade política que
introduz não apenas conflitos de interesse como, por outro lado, a expressão do
processo de legitimação oferecido por todos aqueles que se têm como partícipes
ativos da órbita política. Em qualquer regime plural a realidade da vida não pode
distanciar-se do debate entre concepções diversas. Esta é uma composição que o
quarto capítulo desta pesquisa procurou deixar entrevista, ensejando seu
desenvolvimento para trabalhos acadêmicos que assinalam à uma linha evolutiva de
estudos de pós-graduação.
Admitindo-se a pluralidade e os conflitos inerentes à sua existência, ao somarse o esquema da sociedade de mercado às categorias da sociedade aberta me deparo
novamente com problemas atinentes a tensões nas relações sociais. Um dos eixos da
proposta desta pesquisa é minorar uma dessas fontes de tensão, qual seja, os altos
graus de desigualdade que caracterizam muitas das democracias ocidentais. Não
obstante, isto não deve sugerir nem mesmo remotamente que este trabalho encontre
filiação em uma linha doutrinária igualitária, senão quando devidamente matizada.
Tendo em conta o esgarçamento que um alto nível de tensão nas relações sociais tem
potencial para provocar, é imperativo concluir que os efeitos adversos do
desigualitarismo sugerem a adoção de políticas públicas que não apenas minorem
estas conseqüências como lhe ataquem as causas. Contudo, isto não equivale a abrir
mão da sociedade de mercado e de suas variáveis. Ao contrário, do que se trata é de
alterações intra-sistêmicas que a tornem mais eficiente seguindo um modelo de
251
desenvolvimento econômico-político que condicione as instituições à atuações que
respeitem as categorias centrais trabalhadas nesta pesquisa.
Em um contexto social de aceitação de categorias perpassadas pelo
relativismo filosófico é que se afirma a proposta de mitigação das desigualdades
como uma das vias de dotá-la de eficiência. Esta sociedade desigual está informada
pelo entendimento principal de que cumpre função importante no processo de
desenvolvimento, em oposição a políticas exacerbadamente igualitárias, que tenderam
historicamente à estagnação, posto que não são estimuladoras do processo da
laboriosidade e da engenhosidade humanas.
No mesmo sentido apontado anteriormente, estas linhas não se ocupam com a
busca de um estágio de idealidade política que deva ser entendido como imutável. O
vínculo com uma abordagem realista (e aqui as referências teóricas de Maquiavel e
Bobbio, por exemplo) conduz esta pesquisa a um único porto. Este local é o da
aceitação da desigualdade como uma categoria central na estruturação da sociedade
aberta. Ela é a prova de que os projetos individuais foram diferenciados, pois também
os resultados – desigualdade – o foram. Contudo, é necessário considerar as
matizações para o estabelecimento de uma sociedade equilibrada e dotada de
aceitável nível de convergência social.
Uma das conclusões desta pesquisa é o ainda pouco descrédito concedido aos
sonhos de contemplação estética na seara da política. Estes, sabidamente, não
oferecem horizonte alvissareiro. Há o aprisionamento do que de mais essencial e
distintivo há no ser humano, a dignidade de ser livre. O que possa aparentar ser
indesejável, tal como a tensão das relações em uma sociedade aberta e da economia
de mercado que lhe constitui, na verdade fornece aos indivíduos tanto o combustível
necessário para a laboriosidade como as recompensas desta derivadas. Por outro lado,
252
também é certo, lhe entregam a fatura pela inserção em uma sociedade que muito lhes
oferta. Estas faturas também são objeto dos quais as políticas públicas têm de ocuparse com vistas a minimizar seu impacto, mas com o cuidado de não eliminar tais
faturas, pois o sistema tem nelas um de seus alicerces para que continue gerando
benefícios.
Dentro da perspectiva da sociedade aberta observa-se um alto e pró-ativo grau
de comunicação entre os valores individuais, de sorte que a articulação entre os
interesses tem suficiente poder persuasivo para demover eventuais grupos renitentes.
Acerca da inserção da estrutura comunicativa na sociedade aberta ganha destaque o
aspecto de que muito embora nem todo diálogo seja racional, toda possibilidade de
diálogo
frutífero
implica
que
esteja
constituído
pela
racionalidade.
Exemplificativamente, na prática política e filosófica de seu tempo Bobbio não
desistiu de promover a aproximação entre os diferentes e ressaltar que a democracia
tem como um de seus grandes trunfos a promoção da alternância no poder, cuja
realização tem no diálogo uma de suas peça-chave. Isto se evidencia através da
considerável vantagem de não provocar a fratura do sistema político nem
derramamento de sangue. Neste sentido Popper reafirma a idéia ao dizer que a grande
tradição do racionalismo ocidental é levar adiante batalhas com palavras em lugar de
fazê-lo através das armas (1992, p.693). É discutível se a idéia tem abrangência tão
ampla como sugerida por Popper, e se nela não estaria incluso um
superdimensionamento com que o mundo ocidental tratou na prática estes valores
pacíficos. Em síntese, cabe questionar se não há em suas palavras um certo laivo do
que denominaria ocidental-axio-centrismo. Para minha pesquisa é extremamente útil
uma concepção de racionalismo ao qual poder atrelar, à seqüência, a de diálogo. Isto
é indispensável em uma sociedade caracterizada pelo mais absoluto respeito à
253
pluralidade como a que proponho.
Uma dessas batalhas práticas que o racionalismo pacífico têm a desenvolver, e
ganhar, é a que se dá contra os sistemas desprovidos de um arranjo social, político e
jurídico que se encontrem perpassados pela prevenção ao aumento desproporcional
das desigualdades. Em conjunto com este, outras tarefas de ponta são as de encontrar
mecanismos que coloquem marcos para o desenvolvimento econômico e que em
paralelo mantenham-se atentas ao sentido da vida em comunidade.
A articulação dessas tarefas deverá permitir que um sistema de sociedade de
mercado opere segundo níveis mais avançados de desenvolvimento econômico e
humano do que se abandonado aos seus mecanismos endógenos de funcionamento.
Isto torna patente que esta concepção de sociedade aberta não opta pelo
extremismo
que
algumas
versões
desigualitaristas
ensaiaram,
ainda
que
brilhantemente, como a de Hayek. Como se depreende dessas linhas, tampouco há o
posicionamento entre os seus antípodas, quer na órbita econômica como na política.
Ao contrário, não há o convite ao ataque às concepções econômico-morais de fundo
do igualitarismo. A perspectiva é de que a adoção de uma sociedade igualitária in
extremis encontra indivíduos desconectados da prática de valores ínsitos à
desigualdade, tais como a retribuição pelo mérito e nesta condição, partícipes do
desenho de uma sociedade tendente ao fracasso em todas as esferas. Na concepção
social defendida aqui a desigualdade aparece com a categoria liberdade como seus
autênticos e genuínos pilares.
Liberdade e desigualdade têm seus conteúdos orientados a sustentar um tipo
de sociedade em que prevalecem os interesses individuais de forma articulada cuja
transcrição política ordinária é a democracia. Esta é uma categoria analítica
instrumental para a formação da sociedade aberta, algo mais do que uma abordagem
254
meramente instrumental da democracia permite vislumbrar. Portanto, a sociedade
aberta aproveita a concepção bobbiana de alargamento das instituições democráticas.
Ao fim e ao cabo, no contexto da sociedade aberta apresentada o Estado
aparece como mediador de relações complexas e não como potente interventor na
esfera das vidas privadas ou das relações públicas que se põem entre seus cidadãos. A
teoria liberal que permeia a argumentação desta pesquisa indica que sua atividade dáse nos limites em que a articulação legítima dos interesses privados e os da economia
de mercado devem propor-lhe. Na prática isto é possível remetendo a ação do Estado
à sujeição e detalhado exame do grau de eficiência de que suas ações estão
compostas. Para tal encontram-se os mecanismos políticos (legitimidade) e jurídicos
(legalidade), duas formas bastante eficientes para exercer o controle do poder através
da cidadania (activae civitatis), que encontra tradução na idéia de liberdadeparticipação, como diz Garcia (1994, p.259). Esta concepção indica o quão salutar
para as instituições de uma sociedade livre resulta a idéia de um transparente governo
recomendada por Bobbio.
Muito embora a transparência constitua um firme dique contra muitos vícios
políticos, os indivíduos da sociedade aberta estão comprometidos com um futuro
incerto, posto que aberto. Não obstante, estão ligados axiologicamente à necessidade
de manter os fundamentos da liberdade e da tolerância, da desigualdade – ainda que
de forma matizada –, e com a construção de estruturas que do ponto de vista material
possam genuinamente ser reputadas como democráticas. Em todo momento, seguir a
trilha da humanidade que nos é intrínseca sempre representou valer-nos da razão para
enfrentar o incerto porvir. Mas para almejar grau aceitável de estabilidade nas
instituições a intervenção humana tem de calibrar o grau de suas limitações
cognitivas, notavelmente no que diz respeito a sua capacidade de planejamento e
255
execução de tarefas.
Esta proposta de sociedade aberta reside na conjugação de partes de todos
estes elementos. Trata-se de renovar chamado ao espírito moderno quando
preocupado com a ilustração de seus membros, invocando-os à ocupação do espaço
público no marco da legalidade e, assim, da transferência de legitimidade ao processo
político de forma reflexiva. Parte da preocupação e da conclusão desta pesquisa estão
dirigidas pelo valor da vocação pós-moderna ao reconhecimento da pluralidade e da
tolerância. Disto deriva logicamente que se atribua validade aos diferentes discursos
de seus membros e, nesta medida, estabelece-se um ponto de conexão com a
sociedade aberta plural, conforme visto no quarto capítulo.
Sopesadas as deficiências e limitações deste trabalho, é possível dizer que
estas são as linhas gerais da constituição de uma sociedade aberta. Nela as liberdades
individuais soam como valores fundamentais. Tornar efetivo o escopo de sua
proteção implica ações de dupla ordem, isto é, tanto a partir de iniciativas individuais
como coletivas. Em qualquer dos casos, o papel que as instituições livres e sólidas
adquirem revela-se fundamental. Em ambas hipóteses a sociedade aberta potencia o
desenvolvimento da principal de suas estruturas, o ser humano.
256
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INTRODUÇÃO Nesta dissertação o referencial teórico de