Eu sou contra a “Super-Receita” Em entrevista concedida ontem (4/12) ao Unafisco Sindical São Paulo, o jurista Ives Gandra da Silva Martins analisou o projeto da “Super-Receita” e revelou aspectos inéditos e prejudiciais do PLC20. Inconstitucionalidades, filosofias distintas e concentração de poder são os três principais elementos que, segundo o renomado jurista, formam a sua convicção contrária à “Super-Receita”. Trechos da entrevista: - O argumento é forte: o artigo 163 da Constituição declara que matéria concernente a finanças públicas tem que ser aprovada por lei complementar e, a rigor, a “Super-Receita” está sendo veiculada por legislação ordinária. - São duas as inconstitucionalidades, a referente a finanças públicas e a parte referente ao artigo 194, que declara, no inciso 7, o caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do governo. - O que eu considero, porém, como o pior aspecto é tornar o ministério da seguridade sem importância, ou seja, o Ministério da Previdência sem importância, quando, na verdade, se trata de um ministério de importância monumental. - As filosofias da Previdência e da Receita são diferentes. Qual a filosofia da Previdência? A filosofia da Previdência relaciona-se à seguridade, à assistência social, etc., não só no que diz respeito aos aspectos previdenciários, mas à extensão da seguridade social para outras ações sociais. Muitas vezes, é sua função fazer parcerias, por exemplo, com estímulos ao terceiro setor. E qual é a função do Ministério da Fazenda? O aspecto social não é importante para sua administração. A função do Ministério da Fazenda é administrar o orçamento e gerar receita para que o governo possa trabalhar. - Passo, agora, ao terceiro elemento, que é a concentração de poder. A superconcentração num único órgão também distanciará o secretário da Receita Federal do contribuinte. Porque ele terá que administrar uma megaestrutura, como será a Secretaria da Receita Federal, com poderes fantásticos, o que fará com que o contribuinte fique cada vez mais distante da administração. - É evidente que quanto maior a estrutura, menor o contato do contribuinte diretamente com a administração superior. E nós corremos o risco de cair naqueles sistemas ditatoriais da Alemanha do Hitler, da União Soviética do Stalin e de todos aqueles em que o cidadão nunca chegava a dialogar com o topo da administração. - Hoje o mundo inteiro está demonstrando que quanto mais o contribuinte e a administração se aproximam, mais fácil é evitar a sonegação, dando-se orientação e percebendo a seriedade da relação fisco-contribuinte. Ora, o projeto vai na contramão da história. - Enquanto os outros países terão agilidade, nós teremos um mastodonte para administrar todo o sistema tributário nacional. Leia a íntegra da entrevista: DS São Paulo - O Conselho Federal da OAB concluiu que o projeto de lei ordinária que visa instituir a “Super-Receita” é inconstitucional, pois matérias envolvendo finanças públicas e de gestão patrimonial orçamentária e financeira só podem ser tratadas por meio de lei complementar. O senhor concorda com esse parecer? Ives Gandra -Eu sou contra a Super-Receita, mas tenho argumentos também de outra natureza, que não são exclusivamente constitucional. Entendo que o argumento é forte: o artigo 163 da Constituição declara que matéria de finanças públicas tem que ser aprovada por lei complementar e, a rigor, a “Super-Receita” está sendo veiculada por legislação ordinária. Portanto, embora não seja uma tese pacífica no campo da interpretação do Direito, é uma tese consistente. O artigo 163 da CF declara que matéria de finanças públicas tem que ser aprovada por lei complementar. Mas o argumento que me parece mais importante, o argumento que teria que ser colocado é o que, de certa forma, a meu ver, fere outros artigos, por exemplo, o artigo 194 da CF, que declara o seguinte: a receita própria da Previdência deve ser examinada pela Previdência. No momento em que se cria um organismo de “Super-Receita”, criam-se problemas operacionais impressionantes porque, a rigor, transfere-se elemento fundamental do Ministério da Previdência para o Ministério da Fazenda. Quem é que pode fazer política de seguridade social, terceiro setor, conceder estímulos, etc., senão aquele que está diretamente ligado à seguridade social, o Ministério da Previdência? No momento em que se cria a “Super-Receita”, automaticamente está se tirando do ministro da Previdência sua possibilidade de fazer a própria administração. Ele fica subordinado ao secretário da Receita. Do ponto de vista operacional, minha primeira reação também é contrária e não só no aspecto constitucional. Nesse aspecto, a meu ver, são duas as inconstitucionalidades, a referente a finanças públicas e a parte referente ao artigo 194, que declara, no inciso 7, o caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do governo. Então, a gestão dos recursos pelo artigo 194, uma gestão quadripartite, teria que ser feita pela Previdência Social. No momento em que se cria a “Super-Receita”, será apenas a “SuperReceita” que administrará a arrecadação e fará as normas para executar sua tarefa. Então, além da inconstitucionalidade do artigo 163, eu vejo inconstitucionalidade no 194, inciso sétimo. O que eu considero, porém, como o pior aspecto é tornar o ministério da seguridade sem importância, ou seja, o Ministério da Previdência sem importância, quando, na verdade, se trata de um ministério de importância monumental. A meu ver, não se cuida apenas de uma inconstitucionalidade evidente, como a do artigo 194, inciso sétimo, ou uma inconstitucionalidade teórica, mas razoável em relação à interpretação, como a do artigo 163. Considero que esse aspecto operacional inviabiliza a administração. As filosofias da Previdência e da Receita são diferentes. Qual a filosofia da Previdência? A filosofia da Previdência relaciona-se à seguridade, à assistência social, etc., não só no que diz respeito aos aspectos previdenciários, mas à extensão da seguridade social para outras ações sociais. Muitas vezes, é sua função fazer parcerias, por exemplo, com estímulos ao terceiro setor. E qual é a função do Ministério da Fazenda? O aspecto social não é importante para sua administração. A função do Ministério da Fazenda é administrar o orçamento e gerar receita para que o governo possa trabalhar. Ora, a visão filosófica dos dois ministérios são completamente diferentes. Um é o de dar viabilidade orçamentária, que é o Ministério da Fazenda. O outro é fazer política social, através da previdência e assistência social. DS São Paulo - O senhor considera a “Super-Receita” uma concentração de poder? Ives Gandra – Passo, agora, ao terceiro elemento, que é a concentração de poder. Primeiro a inconstitucionalidade, segundo o aspecto da inviabilidade de fusão de dois ministérios com filosofias diferentes, o elemento principal do ministério social sendo passado para um ministério cuja função é administrar o orçamento. E o terceiro é a superconcentração num único órgão, que também distanciará o secretário da Receita Federal do contribuinte. Porque ele terá que administrar uma megaestrutura, como será a Secretaria da Receita Federal, com poderes fantásticos, o que fará com que o contribuinte fique cada vez mais distante da administração. É evidente que quanto maior a estrutura, menor o contato do contribuinte diretamente com a administração superior. E nós corremos o risco de cair naqueles sistemas ditatoriais da Alemanha do Hitler, da União Soviética do Stalin e todos aqueles em que cidadão nunca chegava a dialogar com o topo da administração. Eu tenho impressão que haverá o problema do distanciamento, quando hoje o mundo inteiro está demonstrando que quanto mais o contribuinte e a administração se aproximam, mais fácil é evitar a sonegação, dando-se orientação e percebendo a seriedade da relação fisco-contribuinte. Ora, o projeto vai na contramão da história. Essa é a razão, esses são os três argumentos: artigos inconstitucionais por violarem as normas dos arts. 163 e 194, inciso sétimo, o problema de dois ministérios com filosofias diferentes, sendo um com filosofia de administrar o orçamento e outro de gerar políticas sociais e por fim, esse outro elemento, que é gerar um megainstrumento, concentrado pelo secretário da Receita Federal e que poderá, evidentemente, trazer problemas sérios, pois o contribuinte ficará distanciado do governo. DS São Paulo - Além desse distanciamento, o senhor, que estuda a legislação em matéria tributária há muitos anos, vê outras conseqüências da “Super-Receita” para o contribuinte? Ives Gandra – Trará problemas sérios porque a impressão que eu tenho é que o direito de defesa ficará mais complexo, a ação dos auditores ficará condicionada ao formalismo e não à realidade, podendo gerar, dentro da administração tributária, autêntico regime militar. Isso porque nas Forças Armadas as exigências de hierarquia e disciplina representam a essência, no exercício de sua atividade. Em relação à administração pública civil, se nós admitirmos como eles estão desejando a “Super-Receita”, evidentemente, o poder vai ficar mais distante e os servidores serão obrigados a seguir rigorosamente. Não terão a flexibilidade, em termos de ação, no que diz respeito à lei, porque muitas vezes há de prevalecer orientações contra a Constituição, em atos editados pela Receita. Creio que por qualquer prisma que se examine, estaremos longe da modernidade. Os países estão começando a fazer política tributária especificamente sobre as pessoas, de forma a exonerar e de certa forma a dar estímulos fiscais, para que o contribuinte cumpra suas obrigações. Isso já acontece em Portugal e está começando a ocorrer em outros países, mas com a “Super-Receita”, nós caminharemos para trás. Enquanto os outros países terão agilidade, nós teremos um mastodonte para administrar todo o sistema tributário nacional. DS São Paulo - O senhor acredita que o projeto da “Super-Receita” fere o princípio constitucional do concurso público devido à fusão de carreiras? Ives Gandra – Na prática, o concurso para auditor-fiscal é muito mais complexo do que o concurso para técnico em tributação, que entendo ser um concurso extremamente importante, mas há um grau de dificuldade maior no concurso para os AFRFs em relação aos técnicos e, tranqüilamente, em relação aos agentes fiscais da Previdência. Ora, nós teremos basicamente dois segmentos da Receita e um da Previdência que serão equiparados, nada obstante com exames de habilitação diversos. O concurso público de uns foi muito mais difícil que o concurso público de outros, embora nesse particular eu não vejo inconstitucionalidade. Mas vejo irracionalidade na equiparação porque teoricamente quem fez um concurso mais difícil passou a estar mais bem preparado do que quem fez um concurso mais fácil. Por este prisma, sem haver inconstitucionalidades, eu reconheço, entretanto, que isso possa trazer problemas. DS São Paulo - Um dos argumentos dos defensores da fusão dos fiscos é a ação integrada entre Receita Federal e a Previdência Social. No entanto, isso já está garantido pelo decreto nº 5.644/05. Em sua opinião, o que está por trás do empenho do governo em aprovar a “Super-Receita”? Ives Gandra – Eu prefiro não fazer análise da intenção do governo. O que está por trás eu não sei. Eu posso, sim, sentir que há uma tentativa de se criar uma megaestrutura com um controle maior sobre a sociedade. Agora, esse controle pode ser feito por meios legais ou ilegais. Além disso, não há como equiparar “batatas” com “mandiocas”. Embora com semelhanças, são produtos diferentes. Eu não vejo a possibilidade de se levar em consideração esses fatores para justificar, dizendo: “teremos eficiência de arrecadação, controlaremos melhor”. Poderão controlar melhor como poderão controlar pior, porque haverá quadros diferentes, com formações distintas, atuando um ao lado do outro. Na parte salarial serão equiparados, porém na parte de formação necessariamente haverá um período de dura adaptação que poderá ser longo. ---------------------(*) Ives Gandra da Silva Martins é advogado, doutorado em Direito, especialista em Direito Tributário (USP), professor de Direito Econômico e Direito Constitucional e autor de inúmeros livros.