Programa Intensivo de Formação de Formadores em Práticas Restaurativas.
Lições aprendidas
Cláudia Machado*
Lisiane Costa dos Santos**
O objetivo do Programa Intensivo de Formação de Formadores em Práticas Restaurativas,
realizado em 2007, sob a coordenação de Dominic Barter, foi de formar um grupo de pessoas
articuladas e apoiadas por um conjunto de instituições, sendo que cada participante estava vinculado
a uma instituição governamental ou não-governamental. Essas instituições abriram as suas portas ao
dar início à aplicação das práticas restaurativas, apresentando condições de promover capacitações
para novos coordenadores de círculos restaurativos, a realizarem-se tanto junto à respectiva, a
outras ou, até mesmo, à comunidade, de modo a viabilizar um processo de expansão autosustentável dessas ações em Porto Alegre.
Compomos um grupo de pessoas de diferentes áreas de formação acadêmica e atuação
profissional, assim como de diversas faixas etárias e, principalmente, de diferentes concepções de
mundo. Nos encontros e em outros momentos, estas áreas – Serviço Social, Psicologia, Pedagogia,
Ciências Jurídicas, Educação Física e algumas ainda em formação – interagiam entre si com o
objetivo de absorver conhecimentos e novas experiências. A diversidade de experiências de visão
de mundo fez com que o grupo crescesse intelectualmente, justamente porque o que nos unia era a
vontade de aprofundar nossos estudos sobre práticas restaurativas.
As atividades presenciais da formação foram distribuídas ao longo de dez encontros, das 9h
às 18h, durante os meses de agosto a novembro. Sentados em um círculo de cadeiras, iniciamos
com a apresentação de todos do grupo. Desde o início, foi esclarecido que trabalharíamos com
nossos próprios conflitos, e não com situações ficcionais, pois, como futuros coordenadores de
círculo restaurativo, teríamos a responsabilidade de oportunizar a possibilidade de colocação de
elementos separados em concerto. Seríamos a pessoa que facilitaria esse processo e, a partir da
nossa própria experiência, estaríamos multiplicando esse saber em nossas instituições.
Realizaríamos isso junto com auto-supervisão e apoio mútuo, estabelecendo o vínculo entre o
grupo.
Nossa cultura, geralmente, associa as conseqüências de nossas ações com algo perigoso,
podendo daí emergir certo afastamento, que pode dar-se através da punição ou impunidade,
contudo, o resultado é o mesmo em termos de responsabilidade. O círculo restaurativo é um espaço
*
Pedagoga e Mestre em Educação.
Assistente Social.
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de diálogo e de resolução não-punitiva de conflitos, em que, não se focalizam as pessoas, e sim a
causa que provocou a divergência. Dessa forma, o coordenador, com sua profunda compaixão, não
vai fazer nada, justamente porque possui uma atividade de somente facilitar a comunicação.
O foco, no círculo restaurativo, é o encontro entre aquele que praticou o ato que gerou o
dano (ofensor-autor) com aquele que recebeu esse ato (receptor-vítima), bem como com as demais
partes indicadas, diretas e indiretas, envolvidas no caso. O valor desse encontro está calcado em sua
autenticidade, primeiramente ao não impedir, depois ao acolher e apoiar o pensar sobre a ação e
suas conseqüências. O êxito do círculo não depende ou é determinado pelo coordenador, mas sim
pela satisfação dos envolvidos, que devem estar conscientes e alinhadas com os princípios das
práticas restaurativas.
Das lições apreendidas, destacaríamos os cinco pré-requisitos para a realização de um
círculo restaurativo em uma comunidade: titulação com os poderes estruturais da instituição ou da
comunidade para captação de seu apoio para trabalhar nesse paradigma diferente (dialogar com os
poderes); negociação do tempo nos encontros; negociação do espaço de realização; criação de
formas de acesso para as pessoas ao círculo restaurativo; ampla divulgação das idéias e dos
resultados. O círculo restaurativo é uma resposta da comunidade organizada para que as relações
sejam restauradas. Voluntariedade como escolha a partir de oportunidades que podem surgir no
círculo restaurativo.
A formação teve especial significado para nós, pois tomamos conhecimento do histórico de
Justiça Restaurativa no mundo e no Brasil, dos princípios e valores que a norteiam, das habilidades
do coordenador e das etapas do processo restaurativo (pré-círculo, círculo, pós-círculo). Também
realizamos exercícios de escuta, recebemos indicação de leitura para aprofundar nossos estudos e
desenvolvemos a capacidade de definir necessidades e sentimentos. Ao final de cada encontro,
tínhamos sempre uma atividade a ser desenvolvida e relatada ao grupo, como, por exemplo, a
realização de um pré-círculo em nossa instituição apoiadora, com o intuito de podermos estar
alinhados aos princípios das práticas restaurativas. Utilizávamos nossas anotações como um diário
de nossas conquistas e dúvidas. Era uma formação vivencial, que exigia nosso envolvimento
profissional e pessoal. As lições apreendidas, infelizmente, não podem ser ensinadas, todavia
podemos possibilitar essas vivências e deixar que cada um tire suas próprias conclusões, pois a
realização do círculo restaurativo não trata de voltar ao que era antes do dano, já que é sempre algo
novo.
O último encontro da formação constituiu-se do planejamento e execução do workshop
sobre práticas restaurativas na comunidade. Seu objetivo era de formar coordenadores de círculos
restaurativos, tendo, como público-alvo, profissionais de diferentes áreas e pessoas da comunidade
interessadas na resolução de conflitos e enfrentamentos das situações de violências envolvendo
crianças e adolescentes. Constitui-se em um evento de um só dia, que, além de sensibilizar as
pessoas para os valores e princípios da Justiça Restaurativa, permitiu a experiência das dinâmicas
próprias do círculo restaurativo, em que se buscou compreender que os papéis, como novos
conceitos, não são sinônimos nem rótulos. Para essa atividade, sob a coordenação atenta de
Dominic, fomos organizados em grupos com a tarefa de desenvolver uma apresentação teórica e
vivencial. Muitas emoções surgiram. Entre elas, o medo, a alegria e a insegurança. No final, no
entanto, houve uma avaliação muito positiva dos participantes, que não deixaram o workshop em
momento algum. Tivemos, portanto, muito a celebrar no encerramento dessa atividade.
Com o complemento da formação, desejamos ressaltar que estamos, em primeiro lugar,
mobilizando nossas forças para implementação das práticas restaurativas em nossas instituições
apoiadoras e planejando a promoção das capacitações de novos coordenadores de círculos
restaurativos. Para que nossos compromissos se concretizem, formamos uma comissão para
sistematizar a formação. Essa comissão tem como meta organizar um Manual de Práticas
Restaurativas, que, caso fique com a qualidade que pretendemos, será divulgado. O nome não é
definitivo, mas com certeza será em parceria com o “Projeto Justiça para o Século 21”.
Essa formação de coordenadores proporcionou-nos a vivência dos valores e princípios
fundamentais das práticas restaurativas, através da participação, pois todas as contribuições eram
consideradas valiosas: o respeito, por entendermos que todos tínhamos valores iguais e inerentes,
independentes de nossas formações acadêmicas ou áreas de atuação; a honestidade, traduzida nos
relatos sobre a experiência obtida com relação ao seu processo durante o curso, expondo seus
sentimentos e valores morais; a humildade de aceitarmos nossa condição de vulnerabilidade,
comum a todos; a possibilidade de empatia e de cuidados mútuos; a interconexão pelo
reconhecimento dos laços que unem os envolvidos em solucionar conflitos de forma pacífica,
existindo uma responsabilidade compartilhada, que objetivou nosso crescimento como futuros
coordenadores; o empoderamento do ato de reconhecer que seríamos capazes de multiplicar nossos
saberes através da concretização dos círculos restaurativos; e, finalmente, com destaque, a
esperança de que, não importa quão intensa foi a nossa perda ou dor, é sempre possível que
encontremos forças para promover a cura e a mudança para que possamos conviver de forma mais
solidária em nossa sociedade.
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