NORMATIVIDADE DO PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL* Luiz Augusto da Cunha Pereira “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.1 Da análise etimológica do vocábulo preâmbulo, constata-se que ele revela “o que está na entrada”, “pórtico”, significando “algo que precede, que vem antes”, sendo fruto da junção latina do prefixo pre e do verbo ambulare2. Possui como finalidade, pois, ser a passagem, a entrada, o início do corpo constitucional, trazendo uma síntese dos princípios agasalhados. A análise histórica permite constatar que a Constituição dos Estados Unidos, do ano de 1787, já possuía preâmbulo. Porém, maior relevância ele adquiriu com a Constituição Francesa de 1946, uma vez que ela inicia seu conteúdo com a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Diversas outras constituições, conforme aponta Jorge Miranda, também abrem seu corpo através do preâmbulo: Suíça (1874), Alemanha de Weimar (1919), Irlanda (1937), Japão (1946), Grécia (1975), Espanha (1978), Peru (1979), antiga Alemanha Ocidental (1949) e Alemanha Oriental (1968, com as emendas de 7 de outubro de 1974), Polônia (1952), Bulgária (1971), Romênia (1975), Cuba (1976), Nicarágua (1987), Moçambique (1978), São Tomé e Príncipe (1975), Cabo Verde (1981). No Brasil, todas as constituições foram precedidas de preâmbulo, apresentando princípios fundamentais do ordenamento, destacando-se os das de 1 2 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dicionário Silveira Bueno. 1824 e 1937, bastante extensos, exatamente na busca de exaurir os objetivos dos constituintes3. No tocante à força normativa do preâmbulo constitucional, as opiniões na doutrina são divergentes. Dissentem autores nacionais e estrangeiros a propósito do tema. São três as principais vertentes teóricas sobre o assunto. A primeira admite a igualdade entre o preâmbulo e demais normas constitucionais, o que se denominou tese da eficácia idêntica4. Aderiram a essa vertente autores como Carlos Ayres Britto, Walber Moura Agra, Tupinambá Nascimento, Pinto Ferreira. A segunda, a tese da irrelevância jurídica, advoga a ausência de qualquer comando cogente no preâmbulo, colocando-o como parte da política ou da história e fora do direito. Atualmente, poucos são os doutrinadores que a sustentam, mormente à vista de sua clara incongruência com o Direito Constitucional Moderno. A terceira intitula-se tese da relevância específica ou indireta, participando o preâmbulo das características jurídicas da constituição, mas não se confundindo com o articulado no seu corpo. Defendem-na Henry Campbell Black, Jorge Miranda, Alexandre de Moraes, J.J. Gomes Canotilho. Conforme se vê, inexiste convergência de concepções, pois a classificação varia entre a normatividade absoluta, em par de igualdade com as demais normas constitucionais, e a irrelevância para o Direito, despida de obrigatoriedade e vinculação na aplicação. Alinhamo-nos à primeira vertente, posicionamento também de Georges Burdeau, Roger Pinto, Lafferrière, Schmitt, Nawiaski, Paolo Biscaretti di Ruffia, Giese, que julgam possuir o preâmbulo constitucional força normativa em igualdade com a própria constituição.5 3 Esclarece-se, contudo, que apenas a Emenda 01/69, para os que a vêem como constituição autônoma, não teve preâmbulo, mas sim uma introdução com considerações técnicas. 4 Para o nome atribuído às teses, ver: BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 5ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, pág. 66. O referido autor, contudo, não nos remete à doutrina do constitucionalista Jorge Miranda, a despeito do STF, pelo voto do Ministro Carlos Veloso na Adin 2.0765/AC, ter utilizado exatamente os mesmos nomes e tê-los atribuído ao jurista português. 5 Em sentido contrário defendem ainda Paulo Bonavides, Hans Kelsen, Vital Moreira, Celso Bastos, Ives Gandra. 2 O incontestável caráter principiológico do preâmbulo adquiriu também indubitável normatividade, assim como os demais princípios constitucionais, desde o declínio do positivismo jurídico com seu formalismo e dogmatismo excessivos. O retorno dos valores, finalidades e interesses, expressos em princípios, como vigas mestras da convivência social, coadunam com o posicionamento ora defendido, de plena normatividade dos princípios preambulares. O positivismo jurídico, a despeito de ser a solução mais fácil para o intérprete, desconsidera dimensões fundamentais e não encontra a essência do Direito. Acreditamos que o preâmbulo da Constituição Federal, porquanto derivado da mesma manifestação constituinte originária, dela faz parte e não se distingue nem pela origem nem pelo conteúdo, possuindo, pois, normatividade semelhante às demais normas principiológicas do corpo constitucional. Não há como negar força de norma jurídica àquele texto que exatamente introduz e esteia as demais normas constitucionais, sob pena de se dizer que estas últimas também não se encontram entre as normas jurídicas. Walber de Moura Agra, em seu Manual de Direito Constitucional, muito bem expôs: “O preâmbulo constitucional tem natureza jurídica definida, ou seja, faz parte da Constituição, com força normativa, tendo ainda a função de servir à interpretação das normas constitucionais restantes. A conclusão mencionada se deve à tese defendida por Pontes de Miranda de que na Constituição não existem palavras inúteis. O preâmbulo concebe as diretrizes filosóficas e ideológicas que serão confirmadas ao longo da Lei Maior. Quem discorda dessa assertiva afirma que sua função é meramente de cunho religioso, moral ou ideológico. Ora, ao longo do Texto Constitucional vamos encontrando inúmeras premissas religiosas, morais ou ideológicas, que não são destituídas de valia jurídica, como, por exemplo, o de a pessoa ter acompanhamento religioso em instituições civis e militares de internação coletiva , o que sinaliza uma orientação de natureza religiosa.(...) O preâmbulo, ao condensar os princípios que serão depois explicitados, exerce uma influência determinante na interpretação constitucional, funcionando como instrumento para manter a coesão 3 sistêmica da Carta Magna, evitando antinomias que acarretariam a fragilidade da concretude normativa”.6 O Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto escreveu: “A única parte da Constituição Positiva em que o Poder Constituinte pode falar sobre si mesmo, pode se auto-referir, é o preâmbulo de sua obra normativa. Aqui, sim, por se tratar de uma ante-sala ou de um prefácio do corpo de dispositivos da Constituição, é o espaço possível para o Poder Constituinte projetar, de fora para dentro da Magna Carta, a diferença entre ele e o Poder Constituído. É o momento, o momento certo, o único momento logicamente possível para o povo dizer que se reuniu em Assembléia Constituinte, assumiu sua natureza constituinte, como condição lógica de elaboração constitucional.”7 (marcação no original) Conforme dito, compreendemos que não há como negar valia jurídica às diretrizes do preâmbulo sem correr o risco de esta negativa atingir todas as normas constitucionais. Ademais, a justificativa de que o preâmbulo abarca apenas indicações religiosas, morais e políticas não suporta ao argumento de que a Constituição Federal, em si, possui normas do mesmo jaez e com normatividade indiscutivelmente reconhecida. Com relação ao entendimento de que o preâmbulo não possui normatividade absoluta, mas serve como “elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem”8, não vemos como concordar. Inicialmente, porque inexiste razão lógica ou jurídica para abrandar a normatividade do preâmbulo. Além disso, se nos afigura impossível que o preâmbulo, se despido de qualquer valia jurídica, possa ser elemento de interpretação ou integração da Constituição Federal, que se embasa, assim como o próprio preâmbulo, muito mais em princípios do que em regras. Como conceber que o pilar de interpretação, o conjunto de princípios fundamentais, não seja normativo, mas atribua normatividade às normas jurídicas constitucionais? Como é possível que o balizador do “roteiro básico” constitucional não tenha valia jurídica? Existe um contra-senso. 6 AGRA, Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pág.102/103. 7 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, pág. 41. 8 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14ª edição. São Paulo: Atlas, 2003,pág. 49. 4 Acreditamos, pois, que os defensores desta teoria incidem em contradição, uma vez que aceitam ser o preâmbulo proclamação de princípios, mas lhe retiram o caráter de norma constitucional, não permitindo que prevaleça sobre texto expresso da Constituição Federal. Eis algumas passagens que permitem identificar a mencionada contradição: “O preâmbulo, portanto, por não ser norma constitucional, não poderá prevalecer contra texto expresso da Constituição Federal, e tampouco poderá ser paradigma comparativo para declaração de inconstitucionalidade, porém, por traçar as diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas da Constituição, será uma de suas linhas mestras interpretativas”.9 “O preâmbulo não é um conjunto de preceitos, mas de princípios. Tais princípios exercem uma força centrípeta sobre as demais normas da constituição, projetando sua relevância no nível da interpretação. Não criam direitos nem deveres e só se prestam ao mister interpretativo se tomados em seu conjunto, quando comparado às demais normações constitucionais”.10 Pergunta-se: se o preâmbulo exatamente repete princípios consagrados na Carta Magna, porque possui essa normatividade e o preâmbulo não? Qual a razão da distinção se ambos são manifestações do Poder Constituinte? Poderia o constituinte, a seu bel prazer, acrescentar na Constituição do país trecho simplesmente e apenas “político”, que não adquirirá normatividade alguma? Outros doutrinadores também expõem a contradição existente na tese de ineficácia do preâmbulo. Paulino Jacques, por exemplo, afirma que “o preâmbulo não tem força normativa, mas vale como informador da Constituição”. Já Sérgio Luiz Souza Araújo concluiu que “todo o texto constitucional há de ser interpretado em íntima conexão com as ideologias perfiladas no preâmbulo”. Reitera-se o questionamento: como é possível que o informador da constituição, o perfilhador, não tenha igual normatividade ao texto que informa, perfilha? Como é possível que um texto normativo se embase em algo sem qualquer valia jurídica? 9 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14ª edição. São Paulo: Atlas, 2003, pág. 49. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 5ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, pág. 66. 10 5 Não coadunamos, pois, com os que entendem que o preâmbulo é mera ideologia e fruto de conveniência política do constituinte. Acreditamos que se trata de uma parte importantíssima da Constituição Federal, tão relevante como as demais, abarcadora dos princípios fundamentais do Estado. O preâmbulo não se resume a simples introdução literária. Ele é composto por normas constitucionais autônomas, com relevância jurídica e normatividade, constituindo direitos e deveres, devendo, pois, ser obedecido e respeitado. A norma jurídica que o desrespeitar deve, desse modo, ser declarada inconstitucional. O Supremo Tribunal Federal e a normatividade do preâmbulo Após a Constituição Federal de 1988, os debates sobre a normatividade do preâmbulo levaram o Supremo Tribunal Federal a enfrentar a questão no julgamento na Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão n.º 2076-5, do Estado do Acre 11. A referida ação teve como requerente o Partido Social Liberal (PSL) e como requerida a Assembléia Estadual do Estado do Acre que, quando da elaboração e promulgação da Constituição Estadual, omitiu a súplica preambular da Constituição Federal “sob a proteção de Deus”. Defendeu o partido, além de sua legitimidade ativa, nos termos do art. 103, VIII da CF/88, e existência de ofensa ao preâmbulo da Constituição Federal, assim como aos artigos 25, da própria Lei Fundamental, e 11, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O eminente Ministro Carlos Velloso, relator da ação, invocando os ensinamentos do jurista mineiro Raul Machado Horta, elencou as normas que, a seu ver, seriam fundamentais da Constituição Federal, como, por exemplo, as que definem a forma republicana, a autonomia dos entes federados, o regime 11 EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS. Constituição do Acre. I. - Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP (RTJ 147/404). II. - Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. ADI 2076 / AC – Relator: Min. VELLOSO Julgamento: 15/08/2000 Tribunal Pleno DJ DATA-08-08-2003 6 democrático, o sistema representativo. Teceu considerações com base na doutrina de Jorge Miranda, sobre as teorias acerca da normatividade do preâmbulo constitucional, para concluir que o preâmbulo não se situa no campo do Direito, mas no campo da política, não possuindo, pois, relevância jurídica. Para o constitucionalista Jorge Miranda, o preâmbulo é a “proclamação mais ou menos solene, mais ou menos significante, anteposta ao articulado constitucional, não é componente necessário de qualquer Constituição, mas tão somente um elemento natural de Constituições feitas em momentos de ruptura histórica ou de grande transformação político-social” (Jorge Miranda, Estudos sobre a Constituição, pág. 17, citado na ADI 2076-5/AC). Algumas considerações são necessárias. Não entendemos a razão pela qual o preâmbulo é visto como “mais ou menos solene, mais ou menos significante” se também é fruto da Assembléia Constituinte e da vontade do povo. De igual modo, vincular o preâmbulo à ruptura social não é razoável. Inicialmente, porque, nem sempre, conforme a história tem demonstrado, as constituições são frutos de ruptura social e os preâmbulos quase sempre estão presentes. Ademais, a depender da compreensão do intérprete, pode-se chegar à conclusão que toda Constituição é fruto ou leva à ruptura social e histórica, o que jogaria por terra toda a vinculação realizada pelo constitucionalista português. O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal foi unânime, devendo-se considerar que não participaram do julgamento o Ministro Gilmar Mendes, impedido, e o Ministro Moreira Alves, ausente justificadamente. Proferiram votos escritos, além do relator, os Ministros Marco Aurélio, reiterando o entendimento de que o preâmbulo não integra a Constituição, e Sepúlveda Pertence, quem, a nosso ver, deu melhor solução à lide. Não se critica o entendimento do STF de que é dispensável na Constituição Acreana a repetição da invocação de Deus, existente na Constituição Federal. Mesmo porque, nos termos bem expostos pelo Ministro Sepúlveda Pertence, a locução “sob a proteção de Deus” não é norma jurídica, independentemente de onde esteja, quer no preâmbulo, quer na Constituição em si. Vale transcrever parte do voto do julgador: 7 “(...) independentemente da douta análise que o eminente Ministro-Relator procedeu sobre a natureza do preâmbulo das constituições, tomado em seu conjunto, esta locução “sob a proteção de Deus” não é norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar obrigação para a divindade invocada. Ele é uma afirmação de fato – como afirmou Clemente Mariani, em 1946, na observação recordada pelo eminente Ministro Celso de Mello – jactanciosa e pretensiosa, talvez – de que a divindade estivesse preocupada com a Constituição do Brasil. De tal modo, não sendo norma jurídica, nem princípio constitucional, independentemente de onde esteja, não é ela de reprodução compulsória pelos Estados-membros (...)”. Conforme anteriormente mencionado, discordamos é do entendimento de que o preâmbulo não possui força normativa. Filiamo-nos à teoria da eficácia idêntica, pela qual o preâmbulo em nada se distingue da própria Constituição. Resta flagrante no voto do Min. Carlos Velloso, com a devida vênia, o contrasenso da tese de ineficácia do preâmbulo: “(...) O que acontece é que o preâmbulo contém, de regra, proclamação ou exortação no sentido dos princípios inscritos na Carta: princípio do Estado Democrático de Direito, princípio republicano, princípio dos direitos e garantias, etc. Esses princípios, sim, inscritos na Constituição, constituem normas centrais de reprodução obrigatória, ou que não pode a Constituição do Estadomembro dispor de forma contrária, dado que, reproduzidos ou não na Constituição estadual, incidirão na ordem local (...)”. Diante do exposto, criticamos o posicionamento assumido pelo Supremo Tribunal Federal, pois entendemos que o correto, coerente e pacificador do Direito Constitucional, além de respeitador do Poder Constituinte, seria reconhecer a normatividade plena do preâmbulo constitucional. • Luiz Augusto da Cunha Pereira - agosto 2.006 8