A VOCAÇÃO DE SER “ANJO BOM”: REFLEXÕES SOBRE ÉTICA E MORAL Prof. Dr. José Lisboa Moreira de Oliveira Universidade Católica de Brasília Infelizmente, mesmo com tantas evidências de falta de ética e de comportamentos antiéticos ainda existem pessoas que acreditam, mesmo no ambiente acadêmico, ser desnecessário estudar essa questão. Com frequência se ouve estudantes universitários afirmando que o estudo da Ética é uma bobagem, uma perda de tempo, ou as duas coisas juntas. Todavia, como nos mostram os fatos da vida e as pesquisas feitas por pesquisadores competentes, hoje, mais do que nunca, é urgente não só o estudo e a compreensão da Ética, mas a sua prática. No atual momento “há uma constatação indiscutível, de aterradora crise ética e moral em todas as partes, atingindo o coração da humanidade” (BOFF, 2003, p. 9-10). Por essa razão, continua Boff, é urgente encontrarmos “pontos comuns que orientem algumas práticas salvadoras” (Ibid., p. 10). Assim sendo, o nosso comportamento não deverá ser aquele da avestruz, tentando se esconder ou negar essa crise, mas encarála de frente, buscando juntos caminhos mais humanos a serem percorridos. De fato, há por toda parte uma sensação de que o futuro da humanidade depende de uma prática ética. Tem-se a impressão de que pesa sobre a Terra uma grande ameaça “por causa da atividade humana altamente depredadora de todos os ecossistemas” (Ibid., p. 13). Não se trata, pois, de uma ameaça externa, de um grande meteorito que se aproxima do nosso planeta, mas de uma gigante irracionalidade que, se não for invertida, poderá, em pouco tempo, levar à extinção do próprio ser humano. Oliveira e Borges (p. 33-47) falam de uma “surdez contemporânea” que é “o sentimento geral de asfixia cultural, sob o qual o homem do novo milênio se vê distraído e amorfo diante da fragmentação do tempo e da afirmação do instante, do desvanecimento das esperanças e da extinção dos sentidos utópicos” (Ibid., p. 43). Vivemos sob a ditadura da hegemonia cultural norte-americana, extremamente narcisista que reduz a coletividade àquilo que é proclamado pela mídia. Somos repetitivos, sem criatividade e sem originalidade. Criamos falsas necessidades, cultivamos a banalidade, refugiamonos nas correntes míticas e religiosas de alienação que nos deixam alheios aos problemas e situações da realidade. Procuramos cada vez mais consumir porque isso cria a sensação de afirmação do indivíduo e a falsa ideia de que somos gente que conta. Enquanto isso aumenta cada vez mais a perda de sentido da vida. Isso tudo faz com que nossos ouvidos não escutem a voz da Mãe Terra que grita desesperadamente por socorro. Nesse texto queremos refletir sobre essa realidade, desejando que, a partir do conhecimento e dos saberes adquiridos, sejamos capazes de participar de iniciativas que contribuam efetivamente para a reversão do processo. De fato, como explicam Oliveira e Borges (p. 33), nós só temos dois caminhos: a busca desesperada de alternativas individualistas de sobrevivência ou a busca coletiva de soluções para a crise, sendo que a alternativa isolada é desprovida de sentido histórico e pouco significativa. Nossa reflexão e nossos estudos visam acima de tudo levar-nos a uma inquietação positiva que nos desinstale e nos desperte para práticas mais éticas. Visam ações concretas que, de fato, ajudem a mudar a atual situação e garantam para nós, para os nossos filhos, netos e bisnetos, e para as futuras gerações, uma vida de qualidade, fruto de um autêntico desenvolvimento sustentável. Isso porque nós somos os únicos guardiões de nós mesmos. E as únicas possibilidades ou não de futuro para a Terra e para a humanidade estão em nossas próprias mãos. Portanto, “o esgotamento natural das condições de vida requer uma releitura do lugar ocupado pelo homem e o obriga a repensar o futuro” (Ibid., p. 47). Nesse estudo buscaremos a compreensão da etimologia da Ética e veremos os seus diversos conceitos, bem como o conceito de Moral. Falaremos da relação e da distinção entre Ética e Moral, do objeto e do objetivo da Ética e concluiremos abordando a questão do sujeito da Ética e da interação que se verifica entre Ética e Cultura. Nosso objetivo é propor uma prática, pois, como nos lembra Boff (Ibid., p. 39-41), de nada adiantaria conhecermos a teoria se os nossos hábitos, começando por aqueles familiares, continuassem prolongando a grave crise atual de valores e de visão mais humanitária e generosa da vida. Se, como afirma esse teórico (2003, p. 41), a “crise de ótica” gera “uma crise de ética”, é também verdade que a falta de práxis ética gera a ignorância ética, a visão distorcida daquilo que realmente seja a ética. Nosso estudo irá nos permitir descobrir uma verdadeira tradição ética presente “na experiência humana de ontem e de hoje, nos acontecimentos construtivos e felizes e nos acontecimentos trágicos de ódio, guerras e morte” (PEGORARO, p. 188). Mas o conhecimento dessa tradição nos dirá que, a partir das experiências passadas, “somos desafiados a construir os caminhos éticos de hoje” (Ibidem). Não podemos delegar essa responsabilidade a ninguém, uma vez que cada um e cada uma de nós é responsável por aquilo que acontecer ou deixar de acontecer. Aliás, afirma muito bem Boff, a responsabilidade “revela o caráter ético da pessoa. Ela se percebe co-responsável junto com as formas diretivas da natureza pelo futuro da vida e da humanidade. Ao assumirmos responsavelmente nossa parte, até os ventos contrários ajudam a conduzir a Arca salvadora ao porto” (2003, p. 52). 1. Etimologia e conceitos de Ética e de Moral a) A etimologia das palavras Vamos iniciar nosso estudo procurando conhecer a etimologia da palavra. Ética vem do grego ethos. Os gregos costumavam escrever tal palavra de duas formas diferentes: ηθοσ e εθοσ (BOFF, 2003, p. 37-39). Num primeiro momento pode nos parecer que não haja nenhuma diferença para o significado da palavra. Na realidade, porém, existe, sim, uma grande diferença. Na primeira forma, escrita com eta (η), ou e longo, o significado é de morada humana e também de modo de ser, relacionado com o perfil de uma pessoa, com o seu caráter, o seu jeito ou maneira de agir. Na segunda forma, escrita com épsilon (ε), ou e curto, a palavra significava costumes, usanças, hábitos e tradições. Alguns autores (DE FINANCE, p. 7-10) chegam a pensar que o termo “ética” seria indo-europeu, portanto anterior ao grego. Ele viria de suedd (sue + dh), com o senti- do genérico de colocar, fazer, realizar uma ação própria. Talvez a sua raiz mais antiga seja o sânscrito syadha que significaria costume, função. O termo latino ethica que deu origem ao português ética vem do plural grego ηθικα (éthica). Foi usado pela primeira vez por Aristóteles, ou por seu editor, em suas grandes obras, mas para referir-se aos costumes e tradições (Ibid., p. 7-8). Na base do ethos grego estava, antes de tudo, a experiência da morada humana. Porém, essa não era entendida apenas como construção física, mas numa perspectiva existencial. Isso significa que, para os gregos, o ethos significava também a teia ou rede de relações que se dava entre o meio físico e as pessoas e entre essas últimas. Todavia, como nos recorda Boff (2003, p. 38-39), para que uma morada seja de fato morada é indispensável organizar tanto o seu espaço físico como o seu espaço humano. Assim sendo, para os gregos, ethos, escrito com a e longa, significava os critérios e os princípios inspiradores que favoreciam o fluir de tudo, de modo que todas as realidades estivessem de acordo com os desejos de todos. Mas, como sabemos, os moradores de uma casa “têm costumes, tradições, hábitos, maneiras e usos de organizar as refeições, os encontros, as festas, os estilos de relacionamento, que podem ser tensos e competitivos, ou harmoniosos e cooperativos” (Ibid., p. 39). A esse aspecto da moradia os gregos chamavam de ethos, com épsilon ou e curta. Mais tarde os latinos vão chamar a isso de mores, de cujo termo deriva a palavra portuguesa moral. A partir do conhecimento da etimologia da palavra, podemos definir a Ética como as concepções de fundo acerca da vida, do universo, do ser humano e de seu destino, a partir das quais estatuímos princípios e valores que vão orientar tanto a vida das pessoas como das sociedades. Desse modo, ética se difere de moral (ethos escrito com épsilon, mores em latim), uma vez que essa última diz respeito à ação prática, concreta, das pessoas expressa através dos costumes, dos hábitos e dos valores estabelecidos por uma determinada cultura. Tendo presente essa diferença, podemos afirmar que uma pessoa é ética quando ela se orienta e age a partir de princípios e convicções e uma pessoa é moral quando age de acordo com os costumes, hábitos e valores estabelecidos por sua cultura ou pela cultura da qual ela participa. A consequência disso é que uma pessoa pode agir de forma moral, seguindo as leis, os costumes, as tradições e os hábitos de uma cultura e não ser ética, uma vez que não segue convicções e princípios. É o caso, por exemplo, de uma pessoa que usa o cinto de segurança apenas por conveniência, para não ser multada, mas não por ter a convicção de que isso é fundamental para a sua segurança e a dos outros. Do mesmo modo, podemos afirmar que um ato pode ser moralmente válido ou inválido (segundo os padrões e normas estabelecidos pela cultura ou sociedade), mas nem por isso ele é eticamente válido ou inválido. Tomemos como exemplo o caso de uma pessoa que realmente está com fome, não tendo culpa disso, e entra num supermercado para pegar um pouco de comida. Esse ato pode ser considerado moralmente grave e a pessoa ir parar na cadeia. Do ponto de vista ético ele pode ser considerado normal, uma vez que comer para manter-se vivo é um direito de todo ser vivo. As considerações feitas nos mostram que tanto o termo grego como o latino, usados para designar a ética, estão intimamente relacionados com a ação. O próprio Aristóteles já fala dessa relação da ética com a πραξισ (práxis), distinguindo essa última da τεορια (teoria), isto é, da pura especulação. Distingue a práxis também da ποιειν (poiéin), ou seja, da pura atividade, da pura produção, do resultado da ação. Para Aristóteles, a práxis, com a qual a ética se relaciona intimamente, é o agente em seu ato. A ética seria a consideração do agente, do ser humano, em ato (DE FINANCE, p. 7-9). b) Os conceitos de Ética Podemos então concluir que a ética é o cultivo da arte do viver bem, mas igualmente a reflexão sobre a convivência humana, sobre o modo de se viver como se deve. É o conjunto de princípios e de convicções que leva o ser humano a ser o que deve ser e a fazer o que deve ser feito, a fim de atingir o seu valor supremo, ou seja, realizar o que é próprio de sua natureza e, assim, justificar a sua existência. Nesse sentido a ética não é uma técnica de felicidade, mas o cultivo daquilo que convém ao ser humano. É o cultivo da humanidade, enquanto qualidade inerente e exclusiva dos seres racionais. A pessoa ética não age “para ser feliz”, mas age “para ser humana”, embora ela também tenha a convicção de que esse tipo de agir humano leva à verdadeira felicidade (Ibid., p. 10-14). A partir disso a Ética pode ter ainda mais três significados. É a ciência ou filosofia da ação humana, a ciência da moral, estudando e refletindo sobre o comportamento humano ou sobre uma sua forma específica (VÁZQUEZ, p. 22-29). O segundo significado, elaborado a partir do primeiro, seria o de descrição dos princípios e das convicções que estariam por trás dos costumes e dos modos de agir das pessoas ou de uma determinada sociedade. Por fim o terceiro significado, que supõe os outros dois, seria o de teoria acerca do comportamento moral das pessoas em sociedade (Ibid., p. 14-22). Pode-se então afirmar que, enquanto ciência, a Ética é normativa dos atos humanos, seguindo a luz natural da razão. Sabemos que o ser humano, se quiser continuar sendo humano, não pode deixar de interrogar-se sobre o que deve ser e sobre o que deve fazer para que a sua vida tenha sentido. Assim sendo, a Ética, como ciência, é uma reflexão científica sobre o significado e sobre o valor da vida. Por isso ela é eminentemente uma ciência humana. E como tal se relaciona com todas as outras ciências que estudam as relações e os comportamentos humanos (psicologia, filosofia, sociologia, antropologia, direito etc.). Todavia, somos sempre convidados a evitar todo tipo de reducionismo. A Ética não pode ficar reduzida a apenas um elemento de outras ciências. Esse risco acontece, por exemplo, quando nos cursos ou faculdades a reflexão ética fica limitada ao aspecto deontológico, à ética aplicada ou, pior ainda, ao simples comentário ao código de ética de uma profissão. Por outro lado, a Ética não pode pretender que toda a ciência e todas as ciências dependam exclusivamente das suas determinações. É o que acontece, por exemplo, quando visões éticas determinadas por ideologias ou confissões religiosas, querem a todo custo impedir pesquisas científicas. Sem dúvida alguma a ética tem um papel decisivo e fundamental para a ciência. Mas o melhor caminho não é o do conflito e da discussão. Se, por um lado, a ciência não pode se armar contra os argumentos da ética, por outro essa não pode se apresentar à ciência com respostas prontas. É indispensável o diálogo, de modo que se possa chegar a um consenso sobre pontos essenciais. Assim sendo, a ética precisa concordar com o fato de que a pesquisa científica é livre e de exclusiva competência do pesquisador. Esse, por sua vez, se compromete a apresentar corretamente os resultados de sua pesquisa e a submetê-los à crítica da comunidade científica (PEGORARO, p. 159-185). Esse diálogo se constrói a partir do questionamento sobre a destinação de toda a pesquisa científica. Ela realmente beneficiará a vida e todas as vidas? Não haverá, por acaso, uma enorme distância entre os gastos com determinada pesquisa e os seus resultados concretos para toda a humanidade? Quem realmente sairá ganhando? Por isso, além da relação entre custo e benefício é indispensável que a pesquisa tenha presente não somente o nível pragmático da vida, mas também as diversas dimensões do humano. Portanto, uma abertura para a transcendência, ou seja, a aceitação dos limites tanto da pesquisa como do próprio pesquisador. Os limites podem ser tanto de ordem técnica como de ordem antropológica. E cabe a ética propor com frequência tais perguntas, mesmo que isso incomode (MOSER, p. 249-262). Por esse motivo, para que as pessoas sejam éticas elas precisam ter consciência crítica. De fato, somente a consciência crítica “faz com que a pessoa consiga substituir explicações mágicas, por análise da realidade; adquira segurança na argumentação, seja capaz de dialogar, em vez de polemizar; tenha receptividade diante do novo, mas sem rechaçar o antigo; assuma suas responsabilidades” (Ibid., p. 365-366). c) Os conceitos de Moral A partir dessas considerações é possível falar da relação e da distinção entre ética e moral. Alguns teóricos afirmam que ética e moral são equivalentes, sobretudo depois que autores latinos traduziram o termo grego éthica pelo latim moralia e deram a esse termo um significado relacionado com costumes e hábitos. Todavia, como já vimos antes, embora exista uma relação entre ambas, elas se distinguem em suas essências. A ética, como já foi dito, é o cultivo da arte do viver bem, e, igualmente, a reflexão sobre a convivência humana, sobre o modo de se viver como se deve. Além disso, ela é a teoria, a investigação e a explicação acerca de um tipo de experiência humana ou forma de comportamento humano. Assim sendo, ela é uma reflexão sobre a moral. Essa, por sua vez, é o conjunto de normas, aceitas livre e conscientemente, que regulam o comportamento individual e social das pessoas (VÁZQUEZ, p. 63). Na moral nós temos dois elementos: o normativo e o factual. No seu aspecto normativo a moral compreende as normas, as regras e os imperativos que propõem como as coisas devem ser. Enquanto realidade factual a moral considera os fatos, ou seja, os atos humanos em si, os quais podem se realizar efetivamente, independentemente do que deveriam ser, conforme a proposta da moral normativa. Porém, os dois elementos não podem ser visto de maneira separada, mas numa constante interação. De fato o normativo, quando postula ou determina um tipo de comportamento, leva em consideração atos concretos, fatos, possíveis de serem realizados, e, por isso, objeto de uma exigência. Ou seja, o normativo, na verdade, aponta para um comportamento concreto, efetivo. Por sua vez a moral factual pede a norma, uma vez que ela só pode ser avaliada à luz de algo que se julga como dever, como ação a ser cumprida, mesmo que na realidade isso não aconteça. Portanto o normativo e o factual não são coincidentes, mas convivem numa relação mútua. O normativo, para ser realizado, precisa ter como referência uma ação factual. Essa, por sua vez, só adquire pleno significado moral quando pode ser referida a uma normativa, mesmo quando não é o cumprimento da norma. Não existem normas sem indicativos concretos e não existem ações morais sem referências às normas (Ibid., p. 63-65). Essas reflexões nos levam a falar da relação e da diferença entre moral e moralidade. A moral, já foi dito, é o conjunto de normas e imperativos que regulam a vida de um determinado grupo social ou cultural. A moralidade, por sua vez, é o conjunto dos atos concretos através dos quais o grupo ou sociedade traduz no plano prático as indicações da moral. Dito de outra maneira, a moral é o ideal e a moralidade é o real. A moralidade seria a moral em ação, a prática da moral ou moral praticada. A moral precisa ser transformada em moralidade para que efetivamente ela aconteça. Mas pode acontecer que a moralidade, ou seja, a prática, não corresponda ao que prega a moral ideal. Neste caso verifica-se então aquilo que se costuma dizer: “na prática a teoria é outra”! Voltando à relação entre ética e moral, podemos concluir que a moral é o que fazer em cada situação. A ética é a reflexão sobre esse fazer para verificar se isso é bom, ou seja, de acordo com a condição humana. Deduzimos então que a moral é anterior à ética. A história e a antropologia nos informam que desde as suas origens os seres humanos foram estabelecendo entre si regras para uma convivência pacífica. A ética, enquanto reflexão sobre essas regras de convivência surgiu apenas há pouco mais de dois milênios. Hoje podemos dizer que a moral supõe a ética, mas essa não necessariamente cria a moral. A ética pode influenciar a moral, mas não determiná-la. De fato, como mostra a história da ética, as respostas dos seres humanos e das culturas podem variar de acordo com os tempos, lugares e situações. Por isso permanecem vários desafios para a ética: definir a sua essência, a responsabilidade dos sujeitos, a liberdade de decidir e de agir, a vontade de agir eticamente, a relação entre obrigatoriedade ética e realização da moral, a validade dos juízos morais, a relação entre vontade e liberdade do indivíduo e o empreendimento coletivo. 2. Objeto e objetivo da Ética Depois de termos compreendido o significado da ética e da sua relação com a moral, podemos agora falar do objeto e do objetivo da ética. No tocante ao objeto, penso que já tenha ficado claro para nós que ele tem a ver com os atos humanos conscientes e voluntários que afetam os outros indivíduos e os grupos sociais aos quais as pessoas pertencem. Atos voluntários porque todo ato realizado sob qualquer tipo de pressão ou coação não tem valor moral. Do mesmo modo ao se falar de atos conscientes entende-se dizer que uma ação humana só tem valor moral quando o sujeito tem plena consciência daquilo que está realizando. Portanto, o objeto da ética é o comportamento moral do ser humano, visto individualmente e em sociedade, considerado na sua totalidade e na sua diversidade. “A ética parte do fato da existência da história da moral, isto é, toma como ponto de partida a diversidade de morais no tempo, com seus respectivos valores, princípios e normas. Como teoria, não se identifica com os princípios e normas de nenhuma moral em particular e tampouco pode adotar uma atitude indiferente ou eclética diante delas. Juntamente com a explicação de suas diferenças, deve investigar o princípio que per- mita compreendê-las no seu movimento e no seu desenvolvimento” (Ibid., p. 22). Por esse motivo o objetivo da ética é fundamentar ou não, justificar ou não certa forma de comportamento moral. Procura situar a moral efetiva (concreta, real) de um grupo social ou indivíduo, no seu devido lugar. Fazendo isso a ética rejeita o comportamento egoísta como moralmente válido, evitando que a moral seja reduzida ao que satisfaz o interesse pessoal. Cabe, pois, a ética explicar, esclarecer e investigar determinadas realidades do comportamento moral, elaborando conceitos e princípios, e prescrevendo ou recomendando atitudes que melhor respondem à condição humana. Dessa maneira a ética avalia se existe ou não progresso moral nas pessoas e nos povos. Isso porque “o comportamento moral não é a manifestação de uma natureza humana eterna e imutável, dada de uma vez para sempre, mas de uma natureza que está sempre sujeita ao processo de transformação que constitui precisamente a história da humanidade” (Ibid.: 28). Percebe-se, então, que o objetivo da ética não é apenas descrever práticas morais e nem formular juízos de valor sobre essas práticas. Sua finalidade é refletir sobre as diversas morais e sobre as mudanças que ocorrem nos comportamentos morais, buscando levar as pessoas e os grupos a se interrogarem sobre suas ações e comportamentos. Com isso ele pretende contribuir para que o ser humano e toda a humanidade caminhem sempre mais na direção da verdadeira felicidade e do verdadeiro bem comum. 3. Sujeito da Ética Uma vez esclarecidos o objeto e o objetivo da ética, podemos nos perguntar acerca do seu sujeito (VÁZQUEZ, p. 109-132). Quem é o sujeito da ação ética? Existem dois tipos de sujeitos: a pessoa humana e a comunidade. Enquanto indivíduo o sujeito da ética é o ser humano no qual subsiste a natureza humana à qual os seus atos são atribuídos. Enquanto comunidade o sujeito da ética é um grupo, entidade ou sociedade de pessoas que refletem sobre a ética ou a praticam. Numa universidade, por exemplo, o sujeito coletivo da ética pode ser o Comitê de Ética na Pesquisa. Mas podem ser também sujeitos coletivos éticos estados, igrejas, associações, organizações e entidades diversas. Basta que realmente reflitam e proponham princípios e indicações para o comportamento humano e sejam capazes também de praticar ações éticas. Ao dizermos que o sujeito da ética é o ser humano no qual subsiste a natureza humana queremos chamar a atenção para a possibilidade de que uma pessoa, por razões diversas, fique realmente desprovida da sua verdadeira condição humana. Por isso costuma-se dizer que o indivíduo-sujeito da ética precisa ter quatro características básicas: a) Antes de tudo deve ser um sujeito portador de consciência crítica, ou seja, capaz de não se deixar manipular, de conhecer todos aqueles pressupostos indispensáveis para salvaguardar a dignidade e a integridade dos seres vivos, de fazer discernimento e de estabelecer limites quando for preciso (MOSER, p. 353-356). Consciente é o sujeito que conhece bem a situação, compreende as formas ampliadas e sofisticadas de dominação que estão ao seu redor, bem como a força e a capacidade que ele e seus semelhantes possuem para resistir e lutar contra possíveis obstáculos. Ter consciência crítica é também ser portador de conhecimentos e de saberes que facilitem a mobilização do sujeito e lhe possibilitem ações de libertação. b) Em segundo lugar deve ser um sujeito elícito (do latim elicere, fazer sair), ou seja, dotado de vontade, capaz de fazer sair de si a decisão de praticar ou não determinado ato. Como sabemos, a vontade é a faculdade humana de desejar (DE FINANCE, p. 162-167). Não adianta o sujeito ter consciência crítica se ele não tem vontade, desejo de agir. Assim sendo, é preciso que a pessoa deseje, aspire, sonhe com a realização de algo para que isso realmente possa acontecer. Hoje a situação do mundo e do planeta pede de cada um de nós opções sérias que exigem boa vontade para renúncias e sacrifícios. Impõe-nos virtudes indispensáveis e urgentes: “a busca do bem comum, a autolimitação e a justa medida, todas elas expressões da cultura do cuidado e da responsabilidade” (BOFF, 2003, p. 68-69). Sem vontade e desejo isso não é possível. c) Em terceiro lugar, precisa ser um sujeito livre, isto é, capaz de agir por si mesmo, sem ser pressionado por nada e por ninguém. De nada serviria a vontade e o desejo se a pessoa não tivesse suficiente liberdade para executar a ação a partir dela mesma. De fato, a liberdade é a autodeterminação do eu que possibilita ao ser humano o maior número de escolhas possíveis (MORIN, p. 107). Por isso ela é incompatível com qualquer determinação externa ao sujeito, seja da natureza como da sociedade. Portanto, trata-se de um sujeito autônomo (do grego autós + nômos), capaz de dar a si mesmo as próprias leis. “Somente há responsabilidade moral se existe liberdade. Até que ponto, então, pode-se afirmar que o homem é moralmente responsável por seus atos, se estes não podem ser determinados?” (VÁZQUEZ, p. 118). d) Por fim, em quarto lugar, um sujeito responsável que escolhe, decide, age conscientemente e assume a responsabilidade dos seus atos. “Responsabilidade é a capacidade de dar respostas eficazes (responsum em latim, donde vem responsabilidade) aos problemas que nos chegam da realidade complexa atual” (BOFF, 2003, p. 51). Portanto, sujeito responsável é aquele que não ignora nem as circunstâncias e nem as consequências dos seus atos. A causa dos seus atos precisa estar nele próprio e não em outro agente, pois a responsabilidade supõe conhecimento e liberdade (MORIN, 100). “A responsabilidade moral exige a ausência de coação externa e interna ou, então, a possibilidade de resistir-lhe em maior ou menor grau. Pressupõe, por conseguinte, que o agente aja não como resultado de uma coação irresistível, que não deixa ao sujeito opção alguma para agir de outra maneira, mas como conseqüência da decisão de agir como queria agir quando poderia ter agido de outra maneira” (VÁZQUEZ, p. 118). Portanto, não basta ser livre, com a possibilidade de muitas escolhas. É preciso que a pessoa assuma a responsabilidade pelo que faz. Podemos, então, concluir que uma determinada pessoa pode se encontrar em uma situação em que não possa ser considerado sujeito dos seus atos. Se lhe falta a consciência crítica, a vontade, a liberdade e a responsabilidade ela deixa de ser sujeito. A experiência nos mostra que no atual contexto social, político e econômico a maioria da população do mundo encontrase impossibilitada de realizar-se humanamente. Ela não tem acesso a uma educação de qualidade, aos bens indispensáveis para viver dignamente. Além disso, hoje o grau de liberdade das pessoas é determinado histórica e socialmente, pois a sociedade exige dos indivíduos certas pautas de comportamento e limita as possibilidades de ação. Como observam Oliveira e Borges, “mercantilizados e cheios de novas necessidades, os seres humanos veem-se enredados numa crise sem precedentes, pois a realização dessas necessidades aparece cada vez mais como algo impossível do ponto de vista ambiental e social” (p. 34). Por essa razão é possível afirmar que muitos seres humanos terminam impedidos de serem sujeitos da ética. Assim sendo, a tarefa da ética não será emitir juízos de valor em nome de uma moral absoluta e universal, mas tentar refletir sobre a pluralidade de comportamentos morais, buscando contribuir para que as ações dos seres humanos efetivamente colaborem para o verdadeiro bem de todas as pessoas e do planeta. Todavia, isso não significa a justificação de qualquer comportamento ou atitude. Ética, moral, consciência crítica, vontade, liberdade e responsabilidade devem andar juntas. O desafio, sem dúvida alguma, é manter o equilíbrio entre determinismo absoluto e libertarismo, ou seja, manter a dialética entre necessidade e liberdade (VÁZQUEZ, p. 120-132). De fato, alguém pode usar a desculpa da necessidade para justificar um determinado tipo de comportamento. Pode afirmar que agiu daquela maneira forçado por uma situação ou por uma necessidade. Do mesmo modo, uma pessoa pode tentar justificar uma atitude ou comportamento a partir da desculpa de que estava defendendo a sua liberdade de agir daquele modo. Assim sendo, “o problema da responsabilidade moral depende, para a sua solução, do problema das relações entre necessidade e liberdade, ou, mais concretamente, das relações entre a determinação causal do comportamento humano e a liberdade da vontade” (Ibid., p. 118-119). 4. Ética e Cultura O que acabou de ser dito aponta para uma questão de suma importância: a relação entre ética e cultura. Ou, se quisermos, para a questão da historicidade da ética (BAUMAN, p. 47-74). Não podemos esquecer que “existe uma estreita vinculação entre os conceitos morais e a realidade humana, social, sujeita historicamente à mudança. Por conseguinte, as doutrinas éticas não podem ser consideradas isoladamente, mas dentro de um processo de mudança e de sucessão que constitui propriamente a sua história” (VÁZQUEZ, p. 267). Por isso é necessário ver a questão ética na sua relação com a cultura ou, melhor dizendo, com as culturas. a) O conceito de cultura Para entendermos melhor essa relação é preciso entender o que é cultura. Essa tem um significado muito amplo. Os antropólogos elaboraram conceitos diferentes de cultura. Chega-se a afirmar que existem mais de 160 definições de cultura (MARCONI; PRESOTTO, p. 21-22). “Para alguns, cultura é comportamento aprendido; para outros, não é comportamento, mas abstração do comportamento; e para um terceiro grupo, a cultura consiste em idéias. Há os que consideram como cultura apenas os objetos imateriais, enquanto outros, ao contrário, aquilo que se refere ao material. Também encontram-se estudiosos que entendem por cultura tanto as coisas materiais quanto as não materiais” (Ibid., p. 22). Penso que a melhor definição de cultura foi dada por Edward Tylor que, aliás, foi o primeiro a tentar defini-la. Para ele cultura “é aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade” (apud ibid., 22). Assim sendo a cultura é a forma ou jeito comum de viver a vida cotidiana de um grupo humano. Inclui, pois, ideias, conhecimentos, filosofias, crenças, ideologias, moral, valores, normas, costumes, leis, atitudes, relacionamentos, padrões de conduta, comportamentos, abstrações, símbolos, compromissos, instituições, técnicas, artes, habilidades, artefatos e tantas outras coisas. A compreensão de cultura nos permite perceber que também a ética é inculturada, ou seja, determinada pela cultura do grupo, embora se fale e se perceba hoje a necessidade de uma ética mundial. Essa relação é percebida mais intensamente quando somos colocados diante do diferente. As pessoas normalmente costumam fazer o que é aprovado por seus semelhantes, isto é, pelos membros do seu grupo cultural. E quando se deparam com dissemelhantes sentem-se inquietas e desaprovadas, reagindo a isso quase que de forma instintiva (BAUMAN, p. 47-49). Isso que acabou de ser dito mostra que a moral e a ética diferem de um lugar para o outro, de um tempo para o outro, de uma situação para outra. Um “eu situado” pode, de repente, ser posto diante de outro eu “diferentemente situado”, enraizado numa outra “polis”, ou seja, numa outra cultura. Para o “eu situado” a pretensão do outro eu, ou a sua diferente ética, pode soar como um ultraje, um insulto. Surge então o desafio da tolerância, da capacidade de conviver numa sociedade pluralista, superando a intolerância e buscando ter visões mais abertas e acolhedoras do diferente (Ibid., p. 49-54). b) Concepções diferentes de bem e de mal A história da ética vai nos mostrar que, ao longo da história da humanidade, sempre existiram imagens e concepções diferentes de bem e de mal. Elas diferem de um lugar para o outro, de uma época para a outra e a pretensão de uma universalidade da ética aparece como uma ilusão. Não existe o ser humano universal, mas pessoas inculturadas, situadas, localizadas. Por essa razão a insistência em padrões universais é vista como intolerância. Se a moralidade só existe, só é concretizada através das qualidades e das capacidades dos indivíduos de uma determinada cultura, a pretensão de uma ética universal é vista como conspiração de quem tem sede de poder e pretende dominar os outros. Essa desconfiança está presente sobretudo hoje, no período da pósmodernidade e se volta especialmente para instituições como as igrejas e os estados. “Sempre que se desce do campo relativamente seguro dos conceitos para a descrição de qualquer objeto concreto que se supõe que os conceitos significam, encontra-se apenas uma coleção fluida de homens e mulheres agindo com propósitos cruzados, carregados de controvérsias internas e notoriamente privados dos meios de arbitrar entre proposições éticas conflitantes” (Ibid., p. 55). Neste contexto de pluralidade cultural é indispensável admitir os limites da universalidade da ética. Mas como evitar que, de repente, um grupo cultural mais poderoso não termine impondo aos outros grupos e aos indivíduos a sua ética? O que fazer para que a construção de um “nós” não signifique o encobrimento e até o sacrifício dos “eus culturais”? Estudiosos da ética propõem então um retorno àquilo que eles chamam de comunidade primeira, de comunidade nativa (Ibid., p. 53-54). Trata-se, segundo eles, de retornar ao mundo humano, ou seja, àquelas estruturas elementares, básicas, comuns à existência humana e que precedem a “moral legislada”. Infelizmente, segundo Bauman, essa reflexão sobre a “comunidade primeira” foi, durante muito tempo, completamente esquecida pela filosofia e pela política. Ela foi tachada de conservadora, nostálgica e romântica, enquanto que a posição contrária era considerada como progressista, científica e moderna. Hoje os fatos estão mostrando que, na verdade, apenas perdemos o bom senso em nome do progresso e da ciência. Para evitarmos a dominação de uma cultura sobre outra é indispensável ver a questão ética na perspectiva do relacionamento do “eu” com “o Outro”. E para construir uma convivência pacífica é necessário criar uma estrutura contínua de diálogo, de conversação, na busca de um consenso sobre os pontos comuns básicos da existência humana. Nesse diálogo a condição dos participantes de “seres não iguais”, ou seja, culturalmente diferentes, precisa estar constantemente alimentada pela condição de “seres para os outros”. É preciso que cada participante do diálogo tenha a vontade e o desejo de superar a solidão, o isolamento e a indiferença, enquanto formas deficientes da condição humana. Além disso, é preciso que cada participante do diálogo tenha plena consciência de que a sua responsabilidade é sempre maior do que a do outro. E o interesse pelo outro não deve ter outro motivo senão o outro como fim em si mesmo (Ibid., p. 58-65). c) Pressupostos para o diálogo ético Além do mais, no diálogo é preciso que estejam presentes alguns pressupostos: o propósito do sacrifício, o princípio da não-reciprocidade e a superação da moral con- tratual. O propósito do sacrifício nada mais é do que a consciência e a disposição para abrir mão de alguma coisa em função de algo bem maior, mais significativo e mais digno do que aquilo que eu queria para mim mesmo. “Ajudar-se mutuamente pode requerer sacrifício, e fazer sacrifício é assunto de moralidade. Não importa se me beneficio do meu sacrifício agora ou no futuro, na vida ou no após-vida. O que importa é que dei minha contribuição para a continuação daquele grupo por cujo sucesso se medem o bem e o certo” (Ibid., p. 67). Isso significa “que a moralidade é uma posição racional a se tomar, uma vez que tem um propósito; e que esse propósito é a autopreservação: sobrevivência ou imortalidade em nível individual ou coletivo. A moralidade ‘faz sentido’. A moralidade é algo ‘para’. Os atos morais são meios para um fim. É o fim que conta. A moralidade é a serva da existência, instruída pela razão que a monitora. A moralidade é o que um ser racional, sendo razoável escolheria” (Ibid., 68). O princípio da não-reciprocidade, por sua vez, significa que a pessoa não espera o resultado da ação das outras pessoas para agir eticamente ou moralmente. Ela, com tranquilidade e serenidade, comporta-se eticamente porque tem consciência e convicção de que isso faz parte da sua condição de ser humano. Dito de outra forma: a pessoa não espera ser reciprocada, isto é, recompensada ou presenteada para agir eticamente. Ela age normalmente, independentemente do fato de ser ou não reconhecida por aquilo que faz. Portanto, a prática da ética não está condicionada pela reciprocidade, como acontece, por exemplo, numa transação comercial ou na prestação de serviços. Nestes dois últimos casos o comportamento moral vai depender da moralidade de ambos os lados, ou seja, espera-se que as duas partes cumpram suas obrigações simultaneamente, conforme foi estipulado no contrato. No verdadeiro comportamento ético a pessoa permanecerá ética mesmo que a outra parte não cumpra o seu dever (Ibid., p. 68-70). Isso significa que o comportamento ético supera, vai além da moral contratual (Ibid., 70-74). Acabamos de ver que a essência de um contrato consiste no cumprimento do dever de ambas as partes, conforme o que foi acordado anteriormente. Mas, neste caso, o que se dá é uma simples convenção jurídica, através da qual cada uma das partes não é obrigada a ir além daquilo que foi definido no contrato. No contrato a pessoa olha em primeiro lugar a ação da outra parte, avaliando se ela cumpriu ou não o que foi estabelecido. E se a outra parte não cumpriu o seu dever a pessoa fica dispensada de cumprir a sua. A ética, porém, vai muito mais além. Como afirma Bauman, ela é endêmica e não-racional, ou seja, ela é natural e não se deixa levar pelo cálculo e por regras previamente estabelecidas. A ética é um apelo à consciência do indivíduo. Ela “apela a minha responsabilidade, e a urgência de cuidar assim elícita não pode ser suavizada e aplacada pela certeza de que outros o façam por mim, ou que já fiz a minha parte seguindo à letra o que outros costumam fazer” (Ibid., p. 73). O comportamento regulado por contrato se atém às regras codificadas formadas por um verdadeiro emaranhado de prescrições e de proibições. O comportamento ético, pelo contrário, segue, segundo Bauman, a condição da anomia perpétua, ou seja, o apelo à minha própria liberdade de agir ou não de forma verdadeiramente humana. Posso inclusive permanecer sozinho na prática da ética, mesmo vivendo com as outras pessoas. Sou por natureza um ser ético porque sou humano. E agir humanamente está no meu próprio DNA, sem necessidade de nenhum tipo de raciocínio e de demonstração. Mas posso decidir não agir humanamente, contrariando a minha própria natureza, a minha própria condição de ser humano. No comportamento regulado por regras morais codificadas a pessoa age apenas para não desobedecer à lei e não ser punido. No comportamento ético a pessoa age por ter a consciência e a convicção de que, para ser verdadeiramente humana, ela precisa agir daquela maneira. Ela age honestamente antes mesmo de qualquer prescrição da sociedade, antes dos legisladores e da palavra dos filósofos. A bondade ética, afirma Bauman, não é uma “bondade codificada”, é algo instintivamente humano que se retira do palco da vida quando os conceitos, os padrões e as regras começam a se apresentar. Enquanto algo profundamente humano a ética, segundo Lévinas (apud ibid., 75) “constitui um escândalo no ser”. Para a pósmodernidade e para o mercado ela é uma “doença”. d) A vocação de ser anjo bom Os pressupostos indicados nos mostram que ser ético é ser curador, cuidador, “anjo bom” para as outras pessoas. No século V a.C. o filósofo Heráclito afirmou que o ethos, a casa, a morada “é o anjo bom do ser humano” (apud BOFF, 2003, p. 33). Para falar de anjo bom ele usa a expressão grega δαιµον (daimon), cujo significado não é demônio, como definimos hoje, mas anjo bom ou gênio protetor. Cabe ao daimon, ao anjo bom, buscar o “bom astral”, ou seja, construir um ambiente que seja realmente habitável. Como anjo bom, cabe, a cada um e a cada uma de nós, estabelecermos um conjunto de relações verdadeiramente humanas, que tornem a nossa morada (casa, rua, município, estado, país, planeta, cosmos) realmente habitável e gostosa. Cabe a cada pessoa a responsabilidade de cooperar para a convivência pacífica e sustentável de todos os seres humanos da Terra. O anjo bom, como gênio protetor e benfazejo “faz das quatro paredes e do conjunto das relações a morada humana, na qual nos sentimos bem, amamos e, se tudo der certo, morrermos tranquilamente” (Ibid., p. 34). Mas para que possamos ser anjos bons é preciso escutar aquela voz interior, “a voz da interioridade, aquele conselheiro da consciência que dissuade ou estimula, aquele sentimento do conveniente e do justo nas palavras e nos atos que se anuncia em todas as circunstâncias da vida, pequenas ou grandes. Todos possuem o daimon, esse anjo protetor que nos acompanha sempre, um dado tão objetivo como a libido, a inteligência, o amor e o poder” (Ibidem). Aqui, portanto, mora o desafio para o exercício da ética. Infelizmente os sistemas que predominam em nossas sociedades favorecem a concorrência, o egoísmo e a indiferença. Não estimulam a escuta da própria interioridade, da própria consciência. Somos a sociedade do barulho, onde é quase impossível silenciar para entrar em si mesmo e escutar os apelos da interioridade e os conselheiros da consciência. E quando ainda escutamos a nós mesmos nos tornamos surdos ao clamor dos demais seres (OLIVEIRA; BORGES, p. 33-47). Isso porque os sistemas são construídos artificialmente e “não raro funcionam como imperativos, quais superegos castradores, mais do que inspiradores de comportamentos criativos” (Ibid., p. 35). Por isso hoje, como o Caim da narração do livro do Gênesis da Bíblia hebraica e cristã, permanecemos insensíveis e indiferentes, mesmo sabendo que somos responsáveis pelo que acontece com os outros. Com frequência escutamos a pergunta: “o que eu tenho a ver com isso?”. Como o Caim da narrativa bíblica – diante da pergunta de Deus acerca do que tinha acontecido com seu irmão Abel que ele mesmo tinha matado – também nós respondemos: “Não sei. Porventura sou eu o guarda do meu irmão?” (Gn 4,9). Comentando esse episódio Lévinas afirma que a “resposta de Caim é sincera. Só que o ético está ausente aí; a resposta nasce somente da ontologia; eu sou eu e ele é ele. Somos seres ontologicamente separados” (apud BAUMAN, p. 83). É a perda do “face-a-face”, o rebaixamento e a destronação da ética. Com isso esquecemos que eu só posso ser inteiro diante do Outro, diante de um Tu. Esse estar diante de um Tu significa que ontologicamente, na essência do meu ser, só posso ser inteiramente humano, totalmente realizado como pessoa humana, se assumo a minha vocação de guarda da felicidade e do bem-estar de todos os outros seres humanos (Ibid., p. 83-92). Portanto, ser uma pessoa ética “significa que eu sou guarda de meu irmão. Mas também significa que eu sou guarda de meu irmão quer o meu irmão veja, quer não seus próprios deveres fraternos da mesma forma que eu vejo; e que eu sou guarda de meu irmão não importando o que outros irmãos, reais ou putativos, fazem ou podem fazer. Pelo menos, eu só posso ser adequadamente seu guarda se ajo como se eu fosse o único obrigado, ou mesmo apto, a agir dessa maneira [...]. Isso é o que conta, quer façam, quer não todos os irmãos do mundo por seu próprio irmão o que eu estou a ponto de fazer [...]. Minha responsabilidade é sempre um passo a frente, sempre maior que a do Outro” (Ibid.: 63). Concluindo: Ética e Utopia Isso tudo pode soar como utopia, mas como afirma Lévinas (apud ibid., p. 90) não há ética sem utopia. Bauman acrescenta que não se trata de uma “fantasia utópica, vagabunda e abstrata”, mas de uma utopia ativa realmente capaz de gerar uma ação. Trata-se daquele horizonte que me anima a caminhar, mesmo que, caminhando, eu nunca chegue a tocá-lo. Esse tipo de utopia nos desperta e nos leva a um confronto corajoso conosco mesmos. Somente a utopia, sempre segundo Bauman, interpretando Lévinas, nos arranca da egolatria, do egoísmo e do egotismo e nos faz agir com sensatez, encarando o outro e tornando-me verdadeiramente humano. De fato somente esse me colocar diante do outro me faz uma pessoa verdadeiramente realizada, pois a autêntica realização da pessoa humana não está no “eu sou eu”, mas no “eu sou para”. Portanto, quem não se torna guarda do outro não só perde a oportunidade de ser ético, mas perde também a oportunidade de ser ele mesmo. Sem responsabilidade não há ética e não há verdadeira realização humana (Ibid., p. 89-96). Não nos esqueçamos de que as leis e as normas são apenas tranquilizantes e segurança para a consciência, uma prevenção para que ela não se sinta culpada. Mas o limitar-se ao cumprimento das leis pode ter um efeito colateral: a perda da autonomia. A pura e a simples prática da lei prometem tudo, mas não a harmonia e a paz de espírito. Por mais paradoxal que seja é a ansiedade ética que produz a serenidade e a realização plena uma vez que é ela a única substância para a felicidade. É o ímpeto de fazer, a busca pela humanização que realiza a pessoa. O simples conhecimento e a pura sensação do dever corretamente cumprido não são suficientes para dar ao ser humano a verdadeira felicidade. “Essa incerteza sem qualquer saída é precisamente a fundamentação da moralidade. Reconhece-se a moralidade por seu sentido corrosivo de não-cumprimento, por sua endêmica insatisfação consigo mesma. O eu moral é um eu sempre perseguido pela suspeição de que ele não é suficientemente moral” (Ibid., p. 93-96). Bauman conclui suas reflexões sobre esta questão indicando os santos como paradigma do autêntico comportamento ético. Na opinião dele os santos são aquelas pessoas que “não se escondem atrás dos ombros largos da Lei” (Ibid., p. 96). Santa é aquela pessoa que sabe, que sente, que age como se não existisse nenhuma lei. Ela sabe que as leis, por mais generosas e humanas que sejam não são capazes de esgotar toda a moralidade e toda a ética. As leis e as normas não levam a consequências radicais do “ser para”, inclusive um fim radical, uma escolha extrema como o martírio. A ética para ser realmente eficaz no mundo de hoje precisa orientar-se pelo comportamento dos santos, por padrões impraticáveis, por metas inalcançáveis que estarão sempre à nossa frente como horizonte para o qual caminhamos. Precisa recusar a autojustificação e cultivar permanentemente a auto-indignação. Precisamos, pois, resgatar o daimon, essa vocação de anjo bom próprio de cada ser humano. A ética precisa estar permeada por esse sentido, possibilitando-nos uma visão e uma prática realmente humanizantes. Esse tipo de ética é “uma afirmação da capacidade humana para além dos requisitos morais racionalizados. Ela parte de uma fé no ser humano. Ela acredita que a essência humana se traduz em noções como cuidado, amor, procura, pertença, integração, interconectividade, afeto, ternura... Esses são os valores hoje evocados diante da maior crise que a humanidade talvez tenha vivido, a crise da sua própria essência, a crise da sua própria existência” (OLIVEIRA; BORGES, p. 17). Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997. BOFF, Leonardo. Ética e Moral. A busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003, 3ª edição. DE FINANCE, Joseph. Etica generale. Cassano Murge (Bari): 1986. MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia. Uma introdução. São Paulo: Atlas, 2006, 6ª edição. MORIN, Edgar. O método 6: Ética. Porto Alegre: Sulina, 2005, 2ª edição. MOSER, Antonio. Biotecnologia e Bioética. Para onde vamos? Petrópolis: Vozes, 2004. OLIVEIRA, Jelson; BORGES, Wilton. Ética de Gaia. Ensaios de ética socioambiental. São Paulo: Paulus, 2008. PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história. Petrópolis: Vozes, 2006, 2ª edição. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, 27ª edição.