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O BURACO, O DISCURSO E O GOZO
João Henrique Gondim
Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.
(SARAMAGO, 1995, p. 262)
E no começo era o buraco. Um buraco na lógica, no humano, em algum lugar.
Um buraco raramente sabido (o saber é confrontado ante o buraco). Eventualmente
desconfia-se de sua existência, usualmente tenta-se negá-lo. Algumas tentativas de
nomeá-lo (o vazio, o impossível), como nomear o inominável ? Outros buscam suprilo ou fazem vista grossa. Há os que visam tapar o buraco desesperadamente com o
que primeiro lhe aparece pela frente, um Deus, drogas, um time de futebol etc.
Quantas vezes um esportista ao ser questionado sobre o que significa seu esporte
responde, por exemplo : “Aquilo é tudo para mim.” O sedutor discurso da plenitude,
da suficiência, da totalidade, a “miragem do um”, está presente de modo corriqueiro
na cultura sob as mais diferentes formas e tratamentos. Porém, apesar dos tapaburacos, o buraco insiste.
“...não me compreendem, não sou a boca para esses ouvidos.
Será preciso, primeiro, partir-lhes as orelhas, para que aprendam a ouvir
com
os
olhos?
Será
preciso
retumbar
como
tambores
e
pregadores de sermões quaresmais? Ou acreditarão somente nos que gaguejam?
Possuem alguma coisa da qual se orgulham. Como chamam, mesmo ,
àquilo que os torna orgulhosos? Chamam-lhe instrução e é o que os distingue dos
pastores de cabras.” (NIETZSCHE, 1988, p.33)
Mas que buraco é esse? De onde vem? O buraco é o legado da primeira e
mais importante experiência de nossa vida. A primeira castração do homem, aquilo
que lhe dá a condição de humano, a saber : O encontro do sujeito com a linguagem.
Encontro este que o coloca no campo da representação, melhor dizendo, no campo
da significação, o campo da linguagem; onde, a relação do homem com as coisas
não é mais direta, é mediada. Mais ainda, algo se fez perdido desse encontro. O que
? Este momento anterior, onde ocorre a experiência direta de alguém (que não é
sujeito) com algo que não é nomeável (a linguagem não se encontra disponível).
Neste momento pré-humano, será o paraíso (perdido)? A morte? A pré-vida? Quem
sabe?
A representação de uma coisa, já não é mais a “coisa”. Confundi-las remetenos ao imaginário, dialetizá-las evoca o simbólico. Porém, o buraco insiste. A
linguagem não se mostra suficiente para dar conta do significado último das coisas.
Algo está perdido, escapa da linguagem.
A linguagem luta. Uma luta inglória, pois o vazio, o buraco, o espaço perdido
entre a coisa e sua nomeação, é condição do humano. A linguagem luta, é
representação de representação, é representação para outra representação, é nesse
desapego à coisa, ao objeto, que de repente, já não é bem representação de coisa
alguma que não da própria linguagem, circundando, fazendo borda ao vazio. Vazio
este que dá trabalho, angústia, que é seu próprio combustível, fonte de
alimentação.
Já estamos no campo do significante (simbólico), que não é outro que não o da
própria linguagem, referenciado a um campo do vazio, do buraco (real). Como
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nomear o inominável ? Bem, através das bordas, por aproximações, utilizando o que,
apesar das dificuldades e entraves, dispomos, que é a linguagem, via metáforas
(umbigo do sonho, vazio, buraco, impossível) e conceitos ( Lacan utiliza a Letra), os
nomes do real.
Da mesma forma que os variados discursos da plenitude se apresentam na
cultura, o buraco deixa suas marcas. Basta ter olhos atentos para enxergar onde a
“miopia” se faz hegemônica, ter ouvido para escutar onde “canta o galo”, em agravo
aos que fazem ouvido de mercador. Tirando algumas incursões de poucos filósofos,
apenas a psicanálise e a arte tem se dado ao trabalho de encarar com a importância
que merecem as questões suscitadas pelo buraco.
“... de onde se interroga a verdade ? Pois a verdade ela pode dizer tudo que
ela quer. É o oráculo. ... como entrando no cômodo num estalido de espelho, isto
teria talvez podido lhes abrir as orelhas.
Oponho,..., verdade e saber. ... Saber em fracasso, eis aí onde a psicanálise se
mostra melhor. Saber em fracasso como se diz figura em abismo, isso não quer dizer
fracasso do saber.”(LACAN,1971, p.66,67,112)
“...toda a verdade, é o que não se pode dizer. É o que só se pode dizer com a
condição de não levá-la até o fim, de só se fazer semi-dizê-la.”(LACAN,1985,
p.124)
Para os que ainda não deram o real valor ao buraco, para os que o imaginam
como, quando muito, um pequenino buraco que de vez em quando atrapalha um
pouco, para o adeptos do discurso da suficiência, do logos, do semblante, recorro a
uma brilhante metáfora de Nietzsche, um filósofo, onde este apresenta sua
concepção de homem.
“O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem - uma
corda sobre um abismo.”(NIETZSCHE, 1988, p.31)
É um buraco do tamanho de um abismo que a sutileza nietzscheana evoca, e
nos ajuda a ilustrar a tarefa natimorta dos que tentam tapá-lo com uma “pá de
areia”, que o vento, sem muito trabalho, dá o destino merecido: pó disperso. Embora
o pó, assim como um discurso, produza consequências.
As palavras, as metáforas (com força de “dinamite”) de Nietzsche, permitem
uma série de aproximações (no que seus principais conceitos se referem, e, não, no
desenvolvimento dado a estes) ou usos ao discurso psicanalítico. Não se trata de
colocar Nietzsche como um precursor da psicanálise, ele era um filósofo, mas fornece
interessantes “munições” para a psicanálise.
É sem cerimônia que a psicanálise utiliza os significantes sejam de um texto
filosófico, sejam da literatura, da pintura, da música, etc., para ilustrar as suas
próprias articulações, como hoje em dia um músico “rapper” ou “tecno” utiliza o
“sampler” para reenviar um trecho de uma música anterior para uma nova música
num outro contexto. Não se trata de “psicanalisar” um texto literário, uma letra de
música, ou de tentar supor alguém como um precursor da psicanálise ou
equivalente. A psicanálise com suas próprias ferramentas vai ao mundo buscar
elementos para trabalhar, pois o inconsciente, o real, a letra, a escrita, deixam
marcas, rastro, deixam sua assinatura onde quer que o humano se apresente.
O homem enquanto corda, ponte sobre um abismo. O homem não somente
como corda, ponte, mas a metáfora com todos seus elementos; ou seja,
além/aquém (a psicanálise não dá um sentido, meta ou forma para o homem) mas
referenciado ao animal/instinto, e, também, além/aquém mas referenciado ao super-
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homem/falo. O homem não somente como instinto, falo, mas a eles se refere, se
posiciona. Há também o abismo/buraco/vazio/real que apesar das aparências,
sustenta, suporta, referencia o tensionamento, a tecitura, a forma desta
corda/ponte/linguagem/semblante. Uma corda sobre um abismo; a corda, acordo,
que quando falha cai no abismo, “cai na real”.
E o gozo? Temos o gozo fálico. Para o homem e para a mulher, numa
perspectiva imaginária, o gozo de quem “tem” a “força”, o “poder”. Na verdade, a
ilusão de deter o falo, de não se submeter a castração. O gozo que busca satisfazer
a demanda de um discurso da plenitude, da totalidade, da completude, a “miragem
do um”. Este discurso se apresenta de modo hegemônico na cultura. Basta ligar um
televisor para se deparar com ele facilmente, dado a abundância com que é
recorrente, seja na publicidade, esporte, cinema etc.
A ciência também se deixa seduzir pelo “canto de sereia” do gozo fálico; como,
por exemplo, no campo jurídico, onde se pressupõe a “plenitude lógica do
ordenamento jurídico”, ou seja, mesmo que determinado fato não seja previsto
expressamente por uma lei, o Juiz de Direito utilizará de outras fontes da norma
jurídica, como o costume, a jurisprudência dos tribunais, a doutrina e os princípios
gerais do direito, para dar sua prestação juridicional. No entanto, conforme adverte
Vasconcelos : ”A contradição se instala quando os reiterados propósitos de pureza
científica se chocam com a manifesta admissão de elementos extra-jurídicos, estes
impostos pela inarredável necessidade de apoiar as fontes jurídicas, de fundamentálas e de legitimá-las”.(VASCONCELOS, 1978, p.238) Ele acrescenta ainda: ”Já
advertia Cícero que, para explicar a natureza do direito, tornava-se imprescindível,
antes, conhecer a natureza do homem. A impureza das ciências humanas decorre do
simples fato de ser o homem, seu autor e objeto, um ente impuro, ou melhor,
incompleto”. (VASCONCELOS, 1978, p.238)
O gozo fálico, então, é o gozo da linguagem, do que vem no lugar do buraco,
mesmo que provisoriamente, alienadamente, imaginariamente. Inúmeros são os
exemplos deste exercício de “obturação do real”, porém, o buraco insiste.
“... o de que se trata é de o amor ser impossível, e a relação sexual se abismar
no não-senso...”(LACAN, 1985, p.117-118)
Diante dessa insistência do buraco, para uma melhor articulação com o desejo,
o qual, sem dúvida, é faltoso e não pleno, Lacan introduz o conceito de gozo do
Outro.
Lacan fala que a mulher experimenta um outro gozo, além do gozo fálico. Um
gozo a mais, suplementar, sobre o qual ela provavelmente nada sabe, a não ser que,
quando ocorre, ela o experimenta. Freud já levantava a questão: O que quer uma
mulher ? Ela ou quem quer que se situe nesta posição feminina, afinal, nos diz
Lacan : “A todo ser falante ... é permitido ... inscrever-se nesta parte.”(LACAN, 1985,
p.107)
O gozo fálico, gozo da linguagem. Já o gozo do Outro, gozo do corpo, para
além do falo; gozo feminino, místico, um gozo onde o saber e a fala fracassam.
“Aí há um furo, e esse furo se chama o Outro ... o Outro enquanto lugar onde
a fala, por ser deposta ... funda a verdade.” (LACAN, 1985, p.155)
O Outro (grande Outro) que dá nome ao gozo, fornecedor de significantes,
também é faltoso. O buraco do Outro. Não são dos significantes do Outro que se
goza, como no gozo fálico. É da falta no Outro, o buraco, o impossível, o real.
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Retomando a questão, como nomear o inominável ? Como saber, falar do gozo do
impossível ? Saber, não se sabe. Falar, tenta-se. Experimenta-se, gozando em letras.
A lógica da psicanálise fundamenta-se não apenas na divisão do sujeito, mas
também na marca, rastro, na assinatura da escrita do inconsciente, cuja letra faz
borda e suporte deste vazio/buraco/abismo que rompe com as construções do
semblante, redimensionando o lugar da verdade para o sujeito.
Diante disto, o analista, ao ocupar seu lugar, não pode furtar-se a sustentar um
discurso que não seja do semblante. O discurso que conta com o buraco.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
2. NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra Um livro para todos e para ninguém, São
Paulo, Círculo do Livro, 1988.
3. LACAN, J. De um discurso que não seria do semblante. Seminário inédito, 1971.
4. LACAN, J. O Seminário: Livro 20: mais, ainda , Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985,
pag.124.
5. VASCONCELOS, A. Teoria da norma jurídica, Rio de Janeiro, Forense, 1978.
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