Mário de Carvalho nasceu em Lisbo
a
em 1944. Licenciou-se em Direito e vi
u
o serviço militar interrompido pela pris
ão.
Desde muito cedo ligado aos meios
da resistência contra o salazarismo,
foi condenado a dois anos de cadeia
,
tendo de se exilar após cumprir a mai
or
parte da pena. Depois da Revolução d
os
Cravos, em que se envolveu intensamen
te,
exerceu advocacia em Lisboa.
O seu primeiro livro, Contos da Sétima
Esfera, causou surpresa pelo inesperado
da abordagem ficcional e pela peculiar
atmosfera, entre o maravilhoso
e o fantástico.
Um homem é incumbido de transportar uma estranha caixa
contendo uma cabeça. Um excelso professor vê-se condenado a passar
o resto dos seus dias numa prisão deveras invulgar. A história por detrás
da internacionalização de uma das maravilhas culinárias de Portugal.
Quatro professores reformados que o destino uniu num jardim municipal
decidem aliar as suas bibliotecas. Um frequentador assíduo do metro
calha em faltar com a sua palavra, despertando a indignação de um dos
funcionários. Um comandante da Marinha incapaz de aceitar um não.
As memórias da iniciação sexual de um jovem, num tempo em
que os tios tomavam a seu cargo essa tarefa. Sete contos. Sete histórias
que representam a multiplicidade de registos na escrita
inigualável de Mário de Carvalho.
Nas diversas modalidades
de Romance, Conto e Teatro,
foram atribuídos a Mário de Carvalho
os prémios literários portugueses
mais prestigiados (designadamente
os Grandes Prémios de Romance,
Conto e Teatro da APE, o prémio
do Pen Clube e o prémio
internacional Pégaso).
Os seus livros encontram-se
traduzidos em várias línguas.
Obras como Os Alferes,
A Inaudita Guerra da Avenida
Gago Coutinho, Um Deus Passeando
pela Brisa da Tarde ou O Varandim
seguido de Ocaso em Car vangel
são a comprovação dessa
extrema versatilidade.
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www.portoeditora.pt
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789720 046123
ISBN 978-972-0-04612-3
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Desde então, tem praticado diversos
géneros literários – romance, novela, conto
e teatro –, percorrendo várias épocas
e ambientes. Utiliza uma multiforme
mudança de registos, que tanto pode
moldar uma narrativa histórica como
m
u romance de actualidade; um tema dol
ente
e sombrio como uma sátira viva e certeira
;
uma escrita cadenciada e medida
como a pulsão duma prosa
endiabrada e surpreendente.
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Obras de Mário de Carvalho
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A liberdade de pátio
Mário de Carvalho
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A liberdade de pátio
Mário de Carvalho
Publicado por
Porto Editora, Lda.
Divisão Editorial Literária – Lisboa
E-mail: [email protected]
© 2013, Mário de Carvalho e Porto Editora, Lda.
1.ª edição: Setembro de 2013
Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem
transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo electrónico, mecânico,
fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora.
Por vontade expressa do autor, a presente obra não segue as regras
do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
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A cópia ilegal viola os direitos dos autores.
Os prejudicados somos todos nós.
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Índice
Névoas07
A cabeça de Mânlio
09
A liberdade de pátio
13
Esgares27
Os caminhos do sucesso
29
A força do destino
49
O passe social
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Vincos65
Vacilação67
As estátuas de sal
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As estátuas de sal
Uma destas manhãs, um homem já avançado na idade foi
assistir ao funeral de província duma mulher muito mais
idosa. Era um sujeito bem instalado na vida, blazer escuro,
tecido português e corte de alfaiate, mostrando aquela circunspecção de gesto sisudo que faz supor algum mundo.
O funeral arrastava-se, pobre, deslasso e vagaroso, porque os
acompanhantes, na maioria, se moviam com pena e protesto
das articulações. Contra isso, nada valiam o nervosismo e a
impaciência do jovem padre, ainda não acostumado a resolver em quatro tempos as matérias que apenas requeriam um
único.
Às tantas, numa pressa estrídula, parou um táxi à entrada do
cemitério, e ainda não tinha travado já se lhe abria uma porta.
Dele saiu uma mulher que ziguezagueou pelo caminho de saibro e se juntou ao grupo escuro, então suspenso do padre, a
engrolar uma encomendação. O homem de casaco elegante
acompanhou os movimentos da mulher com interesse e franziu os olhos, mas não chegou a tirar as mãos de trás das costas,
onde os dedos apenas se retesaram. Era reformado dos seguros
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e actual gestor de fortunas, mais por sentido lúdico que por
necessidade. Ninguém ali o conhecia ou tinha dele memória.
Por mero acaso soube da morte da velha Emiliana, criada do
monte, e sentiu-se na obrigação de percorrer duzentos quilómetros para estar presente. Para não desmentir o ditado, a
homilia do moço padre, com a pressa, acabou por ser mais
demorada que de ordinário. Oportunidade de o homem olhar
várias vezes para a mulher. Ocasião para este narrador evocar
acontecimentos de há cinquenta anos, numa manhã em que
um juiz desembargador, embaraçado, entrou na sede da polícia
política, à Rua António Maria Cardoso, para se inteirar da prisão do filho.
«Logo o partido comunista», dissera ao pai um agente condoído e bem-falante. Se ao menos fosse coisa de miúdos, passageira, gritona, acriançada… Mas o partido era perigoso, tinha
profissionais, gente que batia os caminhos uma vida inteira,
fanáticos de longo curso, frios, endurecidos, contumazes.
Alarmado, o desembargador mexeu-se, meteu empenhos,
recorreu a colegas, professores, gente «da situação», esperou
em antecâmaras, asseverou que o filho não mais se «meteria
em política», dispôs-se a assumir «todas as responsabilidades». Nunca na vida dera tanta atenção ao rapaz como nesses
dias, nem passara por tanto susto nem por tanta revelação.
Que país era este, que mundo, que juventude? De que profundas é que, de repente, isto saía tudo?
No parlatório de Caxias, cubículo sobreiluminado de azulejos impecavelmente brancos, distinguia-se, para lá dum vidro,
o ar constrangido do velho, muito digno no seu fato de cheviote escuro, mas apavorado, procurando microfones num
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arregalo de olhos, fazendo sinais disfarçados a recomendar
prudência, visivelmente atemorizado com a presença do agente
encarregado da vigilância. Ao desembargador era tão desconfortável o ambiente inusitado, o ribombo das grades, o ar cerrado, como a presença de Noémia (autorizada como «noiva»),
com quem as circunstâncias obrigavam a uma solidariedade
incomodada.
Noémia tinha recrutado Gerardo para o PCP, depois de uma
efervescência de estudantes nos degraus da Faculdade de Letras,
onde se aprovou uma moção sobre democratização do ensino.
A assembleia fora muito convulsa e dividida, com vozes inflamadas a protestar iradamente contra o sentido «pequeno-burguês» e «reformista» da proposta, que nem mencionava «a luta
de classes». Ela começara por lhe dar o braço, num ímpeto, com
determinação, quando desciam a alameda da universidade
numa dispersão revoada. Para Noémia, a aprovação daquela
moção, num grupo apoucado de estudantes, sob os olhares da
maioria que ia e vinha, rotineira e alheada, havia sido «uma
grande vitória», mais um safanão no regime, incapaz de resistir
ao embate das massas.
Desde então, Noémia passara a saudá-lo, com um sorriso
declarado, a procurar, disfarçadamente, a sua proximidade, e
Gerardo foi tomando o gosto das reuniões. Uma ocasião, preparava-se para falar e deu pela chegada de Noémia, pelo esgazear dela, divagando de rosto em rosto, a cara concentrada e
sisuda, até que os olhos se iluminaram ao dar com ele e teve
uma pequena inspiração, de sobressalto, antes de lhe sorrir. De
certo modo, Gerardo sentiu-se vitorioso e lisonjeado. E também, no fundo, o seu tanto apreensivo. «Gostava que lesses
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uma coisa», disse-lhe ela, um dia, desviando-o para uma esquina, no corredor da Faculdade de Letras. Era o Avante!, que
lhe passou, enrodilhado na mão, um chumaço cinzento, mole e
quente, desdobrado e folheado mais tarde no quarto, com alvoroço, arrebatamento e amarga desilusão. Afinal não era mais
profundo, nem mais reflexivo que o livrinho vermelho do presidente Mao. O apelo à firmeza no título, a ingenuidade combativa
de algumas ilustrações, os números e os factos sobre fábricas e
movimentos de trabalhadores não compensavam o simplismo
da linguagem nem o exagero das notícias.
Por esses tempos, Gerardo lia muito e nobilitava os seus dias
com auras de romanesco. Noémia era muito pequena e magra,
exibia a graça agitada de um queixo miúdo, usava saias rodadas, de tons caqui, com cintos de grandes fivelas e uma boina
redonda, posta à banda, que lhe apartava, em dois tufos encaracolados, os cabelos negros que trazia compridos, a fustigar os
ombros. Os olhos azuis, curiosos e muito movediços, contrastavam com o trigueiro da figura, e os lábios finos e extensos franziam-se às vezes num ricto faceiro, entre a ironia e a troça, que
Gerardo considerava muito atraente. E depois havia a desmedida energia de Noémia, sempre disponível para mais uma reunião, um encontro, uma distribuição de panfletos, uma vigília,
uma manifestação, que o encantavam, dando-lhe os traços de
uma jovem heroína arriscando a vida em qualquer barricada
gloriosa. Gerardo continuou pela vida fora a lembrá-la gratamente como um turbilhão de frenesis, ofegando, numa pressa,
sobre fundos de bandeiras e compassos de hinos, marcando a
diferença entre a Noémia desses tempos e a do ramerrão quotidiano dos restantes dias. A Noémia da meia-idade, a das irritações
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e aborrecimentos, a dos mal-entendidos e enfados nunca faria
esquecer a Noémia juvenil, de que se fora destacando como
um fantasma que se exalasse e distanciasse de um corpo gratamente adormecido. Mesmo o destroço curvado, numa cadeira
de rodas, dos últimos dias, não se sobrepunha à Noémia idealizada de outrora, cristalizada no seu entusiasmo juvenil.
Passaram a andar sempre de mão dada e a ser notados por
isso, com nítido comprazimento por parte de Noémia e certo
embaraço do companheiro. Gerardo leu As Questões do Leninismo, numa edição brasileira, o Que Fazer?, numa edição
mexicana, e tentou penetrar, sem sucesso, mas sem confessar
o desaire, no Anti-Düring das Editions Sociales. Foram influências suficientes para intervenções repassadas do jargão da
época, bem acolhidas nas reuniões académicas, em que se
questionavam os objectivos imediatos de luta, usando kopeks
em vez de tostões, se apostrofava o reformismo, repudiando
Kautsky, Bernstein e outros sisudos plumitivos germânicos de
que nada se sabia, e se comprovava a disposição das largas
massas para a acção revolucionária, abonada por vasta documentação sobre a Revolução Russa de 1905. Havia qualquer
natureza de tonel das Danaides nestas proclamações daquele
«cada vez mais», «cada vez mais», que quotidianamente se media,
mas que nunca chegava a encher. E, quanto mais Gerardo se
destacava, mais enlevo sentia Noémia, aninhando-se debaixo
do braço afectuoso dele, passando-lhe a mão pela cinta, numa
ternura lenta, afirmando perante os circunstantes, o enlace
entre a camaradagem de armas e a atracção juvenil.
Depois de um beijo fugidio e de um episódio atabalhoado
no banco de trás de um automóvel à porta duma tipografia,
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