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Entrevista
João Ermida
“Temos de voltar a valores
básicos”
Entrevista de José Branco
Para João Ermida, exige-se uma “mudança estrutural na sociedade” dado que cursos
com componente ética nada irão resolver. No entender deste opinador, “a voracidade para
o crescimento de resultados e o condicionamento em que as pessoas se deixam enredar”
foram os causadores da incerteza económica vigente.
Para muitos responsáveis do sector, a crise económi-
de médio-prazo, que ninguém quer. Daí que pense que a
co-financeira esteve relacionada com a falta de ética.
crise continua.
Concorda?
Acima de tudo, com uma falta de valores. Todo o proces-
Um dos ensinamentos que as instituições recolheram
so que se tinha desenrolado com a crise da internet deu
do panorama económico-financeiro mais tumultuoso
origem a uma série de extravagâncias que levaram as pes-
que se viveu recentemente foi o aumento da neces-
soas a terem a noção que os negócios têm de ser feitos
sidade de informação e formação sobre integridade,
com uma base sólida. De repente, dá-se o escândalo da
ética e responsabilidade social. Acha que é importante
Enron, que nos devia ter alertado que qualquer coisa não
um gestor “precaver-se” com este tipo de formação
estaria bem – pois não é possível que um conglomerado
ou “cada crise” terá a sua especificidade, natureza e
de empresas maiores do S&P 500 estivesse sujeito àquele
imprevisibilidade, que a tornam impossível de anteci-
tipo de encenação. Apesar de, nessa situação, ter havido
par?
algumas detenções e julgamentos, ninguém dentro das
Perante uma situação de emprego precário, principalmen-
empresas questionou se situações como esta poder-se-
te para os recém licenciados, e de quem está a realizar
iam disseminar. Não fazer essas perguntas levou à crise
MBA para tentar subir dentro da empresa, as pessoas
de 2008, que não é mais que uma crise de valores – onde
atemorizam-se. Tem de haver uma mudança estrutural
os gestores actuaram com vista a obterem lucros o mais
na sociedade. Não me parece que frequentar cursos de
rápido possível.
ética vá resolver o problema. Inclusivamente, houve uma
Neste momento, uma das principais discussões no sector
altura em que pensei criar uma empresa para actuar junto
financeiro prende-se com os bónus ligados a performances
do mercado, falando desta temática, e devo-lhe confes-
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sar que, apesar de ainda não ter desistido, sinto que não
resulta. Temos de voltar a valores básicos. Com o que vemos no dia-a-dia, fruto da voracidade para o crescimento
de resultados e o condicionamento em que as pessoas se
deixam enredar, penso que não chega dizer agora que “as
pessoas devem ter ética nos negócios”.
Decididamente, não é uma questão de corrigir extemporaneamente as directrizes pelas quais nos regemos,
mas começar o mais cedo possível na educação?
É voltar a ensinar aos nossos filhos o que é mais importante. Mas é necessário demonstrarmos diariamente que o
que fazemos coincide com o que lhes é dito.
Ao invés de implementar medidas reactivas, há então
que repensar o próprio modelo do capitalismo?
Exactamente, pois este modelo, tal como o que importámos dos EUA e da Europa Ocidental, não está são, tal
como a crise o provou. Esta situação afectou sobretudo o
mundo ocidental – temos 22 milhões de desempregados
em solo europeu – e as pessoas só não estão nas ruas,
como se calhar muitos já esperariam, porque simplesmente estão a receber subsídios de desemprego (pagos pelos
impostos e pela dívida pública a ser emitida). Isto não bate
muito certo porque em Espanha, por exemplo, a situação
é diferente. Enquanto houver investidores interessados
hoje empresas e consumidores vivem essencialmente do
em comprar dívida pública, tudo bem. O problema será
crédito e da alavancagem.
quando deixar de haver interesse. Este filme só é possível
se as economias recuperarem realmente, com um cenário
Em apenas dois anos, muita coisa mudou na realidade
de estabilidade. Portanto, no meu entender, algo tem de
financeira. Tal facto obriga a uma reciclagem de co-
mudar. Dar mais dinheiro aos bancos – aumentando-lhes
nhecimentos dos responsáveis financeiros. Considera
os capitais –, e com o mundo financeiro a seguir por esta
que em Portugal há cursos e mestrados em Finanças
via, irá obrigar, mais cedo ou mais tarde, os governos a
com conteúdos programáticos preparados para col-
segurarem o barco. Parece que não aprendemos com o
matar estas eventuais lacunas éticas?
passado. Não corrigimos nada, apesar de sabemos que
Daquilo que analisei, devo confessar-lhe que não. Mas
se termina mal. Por isso, esperemos que a próxima crise
acho que esse é um problema mundial. Em 1999, Harvard
não termine no caos definitivo.
foi a primeira universidade a olhar para os temas éticos, e
Já tivemos momentos de pânico em Outubro e Novem-
outras seguiram-na. É uma consciência que tem apenas
bro do ano passado, quando os investidores foram aos
dez anos. O problema é que a cadeira de “Felicidade”, por
bancos retirar o seu dinheiro. Os bancos apenas suportam
exemplo, é das que tem maior frequência nesta universida-
esta situação durante dois ou três dias... Não pode ha-
de! Isto significa que as pessoas não estão felizes. O que
ver uma perda de confiança no sistema financeiro, porque
é preocupante.
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“Fazer uma cadeira de Ética, isolada de
tudo o que é o curso, significa uma perda
de tempo.
Ao aluno é pedido, ao longo do curso,
que seja mais eficiente e que reduza mais
custos em menos tempo.
A mente já está tão “apanhada” por todos
esses conceitos que, quando chega à
cadeira de Ética, muitas vezes de carácter
opcional, o aluno sente que é apenas um
apêndice.
Ou está presente em todo o curso, ou é
apenas um fait diver”.
é aquele que dá informações à restante estrutura – para o
CEO, área comercial e controlo de gestão.
Aquilo que temos visto nos últimos dez anos é que os DF
se têm tornado nos “magos dos números”. Mesmo que
não haja grandes resultados, o importante é como conseguir apresentá-los de forma que pareçam bons. Isto pode
ser eficiente a curto prazo mas não a médio e longo, pois
não vai ser possível esconder para sempre uma realidade
adversa. Dá-se então um setback que já vimos em muitas
organizações, em que, de repente, a situação exige restatings, correcções muito severas, porque se estiveram a
empolar cenários falsos.
Parto do princípio que “a factura chega sempre a casa”,
portanto, o melhor é cumprir com uma série de regras básicas para evitar o pior e contribuir para a credibilização de
uma área como a direcção financeira, das que considero
mais importantes numa empresa – conjuntamente com as
Fazer uma cadeira de Ética, isolada de tudo o que é o cur-
áreas comerciais.
so, significa uma perda de tempo. Ao aluno é pedido, ao
longo do curso, que seja mais eficiente e que reduza mais
Premissas recentes, como a dimensão da regulação,
custos em menos tempo. A mente já está tão “apanhada”
gestão do risco e ética, obrigam os responsáveis fi-
por todos esses conceitos que, quando chega à cadeira
nanceiros a discutirem a sua função dentro de uma
de Ética, muitas vezes de carácter opcional, o aluno sente
realidade financeira diferente, em comparação à de
que é apenas um apêndice. Ou está presente em todo o
um passado recente. Sente que o papel do Director Fi-
curso, ou é apenas um fait diver.
nanceiro saiu reforçado com este período económico
mais turbulento?
A partir da sua experiência, quais são as verdadeiras
Sai reforçado mas da pior forma – com desconfiança. A
boas práticas que o Director Financeiro pode desen-
ponto de hoje se tentar escrutinar o que as áreas financei-
volver num período de mudança como aquele que
ras andam a revelar. Há regulação a ver se eles são verda-
atravessamos?
deiramente sérios.
A função do Director Financeiro (DF) é, primordialmente,
Quando a base se centra em resultados trimestrais, ao
a de apresentar bons resultados da empresa que gere.
CEO dá-se muito pouco tempo para gerir uma empresa. A
Depois, tem de conseguir que esses resultados sejam os
realidade é que 20% do trabalho é feito com a área comer-
verdadeiros, o que significa entrar em rota de colisão com
cial e 80% com a financeira. E isso é um dos mais graves
muita gente. A única vantagem neste confronto é a de ter
problemas das organizações. Basta ver que, nos últimos
de apresentar uma realidade que pode ser dura mas é real.
anos, os directores-gerais preferem crescer por aquisições
Aquilo que assistimos na Enron, o caso mais típico, foi de
do que organicamente – a verdade é que não há tempo
um DF que se deu ao luxo de falsear todos os números,
para isso. É-lhes exigido é crescer!
durante anos. De repente, dá-se o descrédito total em tudo
o que é direcção financeira de uma empresa. O Director
O mercado actual tem mostrado uma retoma lenta.
Financeiro tem a função mais importante na organização,
Apesar de tudo, os especialistas entendem que, com
na medida em que, ao ver os números a todo o momento,
o “recuo” da globalização, uma pequena economia
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aberta como a nossa não poderá deixar de ser seriamente afectada. Iremos agora, por obrigação, assistir
a uma viragem na nossa economia para dentro? Não
será esta a melhor altura para, sem demagogia, nos
centrarmos na competitividade interna?
Economicamente, acho que existem dois países em Portugal! E na minha actual experiência com o BPP – onde já
falei com mais de 900 clientes – tenho visto isso claramente. Fiquei com uma noção melhor do que é hoje o nosso
país. Temos um norte, acima do Mondego, que depende
muito pouco da política e do resto do país para fazer negócios, que encara o sector da economia como global – que
vende e consegue instalar fábricas lá fora. Depois há uma
economia sulista, composta sobretudo por empresas de
serviços, que está agarrada ao Estado. Estas dependem
do consumo interno e da legislação criada (de advogados
e bancos portugueses). A norte já se aprendeu a viver com
a falta de apoio. Isso levou a que, actualmente, tenhamos
grupos que são grandes marcos de exportação. Ontem
falava com um empresário do mercado dos cafés que me
confessava que Portugal representa 5% das suas vendas.
Estar sedeado em Portugal é, nos dias que correm, uma
questão de escolha e não uma necessidade. Aí a nossa
economia, e respectivos empresários, ajustaram-se muito bem. Não temos nenhum medo de viver dessa forma,
esta é uma situação que deveria ser mais divulgada, pois
é bastante positiva.
Perfil
João Ermida nasceu no Porto, a 8 de Janeiro de
1965. Aos 10 anos de idade mudou-se para o Brasil com a família, devido à convulsão política em
que Portugal se encontrava depois da Revolução
de 1974. Permaneceu no Rio de Janeiro até 1978,
momento em que regressa a Portugal.
Passou por Coimbra, mas acabou por se fixar em
Lisboa, onde estudou Economia na Universidade
Católica Portuguesa.
Em 1987 iniciou o seu percurso profissional como
operador de Bolsa, no escritório do corretor Nuno
Contreras. No final de 1988 juntou-se ao Citibank
Portugal para integrar a sua equipa de mercado de
capitais. Em 1993 iniciou a sua carreira no Grupo
Santander: primeiro em Portugal, depois no Brasil
e, já em finais de 1998, em Espanha, com a responsabilidade global de Tesouraria e Mercados Financeiros. Em Maio de 2003 demitiu-se da Instituição.
Actualmente dedica-se a projectos de cariz social
que visam ajudar jovens e idosos mais carenciados. Desenvolveu o método Verdade, Humildade
e Solidariedade, aqui apresentado, sobre o qual dá
palestras às empresas e escolas de gestão.
Sente que um dos principais entraves à nossa competitividade pode ser a incapacidade dos nossos gesto-
muito curto, pois esta “nova ordem” pode significar voltar
res para se adaptarem à “nova ordem” económica?
à situação anterior. Só quando a intervenção do Estado
Penso que ainda não temos uma “nova ordem”. Estamos
terminar iremos ver se poderemos continuar a viver como
num período de transição em que as organizações ainda
dantes. Portanto, são tempos difíceis para gerir empresas.
se estão a adaptar a esta crise. E as ajudas em todos os
Exemplo disso é o caso espanhol: há uma diferença do
governos ocidentais ainda são tantas, para fazer o ajuste
superávit do governo anterior para o conhecido défice da
da economia, que não sabemos como vai ser essa ordem.
magnitude do actual. E quantos anos serão necessários
Se esta consistir num mundo estatizado, tudo irá ser mais
para voltar a haver superávit? Podem ser 20 anos – uma
complicado, pois os défices não podem estar nos níveis
geração inteira. Isso implicará uma mudança entre o nível
em que estão. Não conseguindo ajustar um défice de
como as pessoas viviam e passarão a viver. Há sectores
10/12% registado em países como a Irlanda, teremos se-
que se adaptarão melhor porque há apoios estatais, mas
guramente uma realidade diferente. E é muito difícil saber
a divida pública não poderá ser infinita e sem repercus-
como vamos viver com esse cenário, num prazo de ajuste
sões.
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Ética na função financeira