Manuela Degerine : “A Dúvida e o Riso”
Daniel Lacerda
ste terceiro romance* de
Manuela Degerine, professora de português que se
fixou em França em ..., é o primeiro da jovem romancista cuja acção
se desenrola neste país, revestindose por isso de outro atractivo para
nós. A “história” nele relatada retira
o seu nervo central do dia-a-dia
dum liceu da “banlieue” de Paris,
onde a argúcia de uma professora
(personagem principal) vai revelar
a existência dum mau estar, que
acaba em drama.
M. Degerine localiza a acção do
romance em plena actualidade descrevendo a incompreensão e os ressentimentos que tolhem os grupos
estrangeiros presentes no meio
escolar, mas que se manifestam um
tanto às escondidas. Nesse espaço
privilegiado de mutações vão surgir as peripécias que afectam Alice,
professora de português. Duas
ordens de acontecimentos nos dá a
conhecer a escritora no itinerário
desta personagem: aspectos da sua
actividade de professora no liceu e
o relacionamento afectivo e sentimental com os colegas, junto dos
quais ela desencadeia uma sedução sem tréguas, acabando irreprimivelmente num “happy-end”
fusional que repõe a simplicidade
no espírito e no lugar.
Ao apoderar-se enquanto matéria de recriação ficcional do meio
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escolar, que o nosso tempo lança
frequentemente para a primeira
página da actualidade, Manuela
Degerine fá-lo também com a perspicácia e minúcia de quem o
conhece de experiência directa. No
Liceu reina a indisciplina e as atitudes racistas ganham terreno, particularmente na sua zona periférica, onde se localizam os “ateliers”
e a aula de Português, já mal aceite
ou mal reconhecida pela administração do estabelecimento. Nesse
espaço desprotegido vai-se registar
uma sequência de acontecimentos
que atinge Alice, a heroína-vítima,
a qual ,além de sentir a sua vida
em perigo, enfrenta a negligência
ou o cepticismo dos que a rodeiam,
preocupados em não quebrar o
“statu quo” do microcosmos liceal,
nem levantar uma voz discordante.
As reacções mais vivas de Alice,
ainda que defensivas, são tomadas
por ofensas.
Alice sente-se envolvida numa
perseguição após ter sido internada
no hospital depois duma agressão
de automóvel que ficou por explicar, criando à sua volta uma zona
de suspeição e de mistério. Inclusivamente o seu aspecto físico foi
atingido, aumentando gradualmente o seu receio. Sucessivamente
sente o agitar dessa mão obscura
que a persegue secretamente,
temendo dum momento para o
outro nova investida.
Tal como no Liceu face às
alusões racistas e aos maus tratos
inexplicáveis, só Alice detecta a
ameaça que paira, perante a incredulidade sem alteração de colegas
e amigos . Um dia, o corpo do fautor principal deste foco nauseabundo (na intuição de Alice) aparece
morto dentro do “container” do
Liceu. A polícia isola o bloco de
ensino e inicia o interrogatório do
corpo professoral, enquanto Alice
começa a sentir-se liberta da estranha opressão que lhe minava o espírito e o corpo. Então a heroína dáse conta da sincera ternura que
François sem tardar lhe acorda.
Há neste romance características que o aproximam do romance
negro, policial, apresentando um
desenvolvimento estilítico híbrido,
dados os dois níveis da realidade
que aborda: o real comum e o
mundo obscuro e ameaçador que
atinge Alice. A intriga é conduzida
por um determinismo que leva à
morte, comandada por grupos
sociais invisíveis, suspeitados,
oriundos do bas-fond da grande
cidade. A incredulidade, a insegurança e o mau-estar dos personagens pertence ao mesmo mundo
reïficado, empobrecido, que só tem
paralelo com o ambiente do Liceu
ao nível da comunicação superficial e hipócrita. Podíamos imaginar, inclusivamente, que esta visão
unilateral de Alice (e da narradora)
é condicionada pelo traumatismo
que sofreu, e de que só vem a libertar-se na última página da obra.
Manuel Degerine descreve o
ambiente complexo e desgastante
dum Liceu da periferia da capital
francesa, frequentado por uma
grande diversidade de gente com
valores e atitudes díspares, acentuando, pela compressão dos horários ou pela facilidade dos contactos humanos, o dramatismo da
narrativa. Captando um tanto fantasticamente e através do insólito
os perigos que se geram subterrâneamente num universo tão multifacetado, a escritora abre um “dossier”, de uma forma discreta e algo
feminina, duma situação que não
cessa de surpreender os mais atentos observadores da vida social
contemporânea. Literariamente, a
figura de Alice enriquece - e de
que modo - o friso dos personagens desta aventura-segunda que é
a ficção lusófona em França * Editado pela Difel, Lisboa, 1997, 209
p. Anteriormente, Manuela Degerine
havia publicado na mesma editora os
romances, A Curva do O, 1991 e em
1994, Jardins de Queluz.
LATITUDES
n° 3 - juillet 98
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