UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM POLÍTICAS SOCIAIS
TERRITORIALIDADE E A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA
SOCIAL NA CIDADE DE PIEDADE – SP; CONEXÕES E
RUPTURAS ENTRE FAMÍLIA E TERRITÓRIO
LUCIANA HELENA MARIANO LOPES
Orientadora: Profa. Dra. Dirce Harue Ueno Koga
Dissertação apresentada ao Mestrado em
Políticas Sociais, da Universidade Cruzeiro
do Sul, como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre em Políticas
Sociais.
SÃO PAULO
2014
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA CENTRAL DA
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
L856t
Lopes, Luciana Helena Mariano
Territorialidade e a política de assistência social na cidade de
Piedade – SP; conexões e rupturas entre família e território /
Luciana Helena Mariano Lopes -- São Paulo; SP: [s.n], 2014.
138 p. : il. ; 30 cm.
Orientadora: Dirce Harue Ueno Koga
Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em
Políticas Sociais, Universidade Cruzeiro do Sul.
1. Assistência social 2. Territorialidade 3. Políticas sociais Piedade (São Paulo – SP) 4. Família I. Koga, Dirce Harue Ueno. II.
Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em
Políticas Sociais. III. Título.
CDU: 36(043.3)
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
TERRITORIALIDADE E A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA
SOCIAL NA CIDADE DE PIEDADE – SP; CONEXÕES E
RUPTURAS ENTRE FAMÍLIA E TERRITÓRIO
Luciana Helena Mariano Lopes
Dissertação de mestrado defendida e aprovada
pela Banca Examinadora em 14/08/2014.
BANCA EXAMINADORA:
Profa. Dra. Dirce Harue Ueno Koga
Universidade Cruzeiro do Sul
Presidente
Profa. Dra. Dalva Azevedo de Gois
Universidade Cruzeiro do Sul
Profa. Dra. Carola Carbajal Arregui
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Aos meus, pela cumplicidade, pelas desventuras de viver em família,
pelo apoio, pelo amor e pelo carinho...
AGRADECIMENTOS
“Viver é traçar um ponto na linha do tempo,
fazendo curvas dia a dia,
seguindo a trajetória do vento.
Pontuando todo momento.
Viver é olhar para o futuro,
contemplando o caminho presente,
é seguir mesmo no escuro,
prosseguindo sempre em frente.
Viver é acordar cada dia e contemplar imagens,
ver as cores dos jardins,
é sentir o cheiro de um jasmim,
aprender com as paisagens,
colhendo suas mensagens.
Viver é agradecer todos os dias
Dias, meses e anos,
é ter saúde, paz, harmonia,
força, vigor ou ânimo.
colhendo suas mensagens.
Viver é agradecer todos os dias...
Dias, meses e anos,
é ter saúde, paz , harmonia,
força, vigor ou ânimo.”
Rinaldo Pedro
É por viver, por saber viver, pela vida diária e pelas trajetórias que venho
agradecer.
Neste percurso, neste caminho, nestes territórios percorridos, na vida
cotidiana e na vida acadêmica, tenho muito a que agradecer...
Agradeço a Deus, pelo dom da vida, por sua infinita misericórdia, pela sua
graça, pela renovação diária, pelo auxilio e pela perseverança.
Aos meus pais, Airton e Neuci, pela vida, pelo amor e pelo carinho transmitido
a cada dia, a cada palavra, pelos ensinamentos quanto à vida, pela força, pelo
otimismo e pelas palavras de conforto, pelas lembranças e pela participação neste
momento tão especial.
As minhas irmãs Mara e Rafaela, pelo sentido de pertencer, pelo auxílio, pela
compreensão e pela interpretação mesmo no alheamento, pela cumplicidade e pela
escuta nos momentos difíceis.
Aos meus lindos sobrinhos, Sarah, Leonardo e Thiago, os quais tanto amo e
que souberam compreender a dedicação, a ausência em alguns momentos. Amo
muito vocês.
Aos amigos, de ontem e hoje. Às amigas Camila e Cleide, grandes amigas,
amigas de muitas horas e de muitos anos e processos, que em todos estes
percursos me proporcionaram apoio, carinho e compreensão.
Ao amigo Edson Batista, pelo apoio, pela paciência, pelo carinho, pela
compreensão, pela grande participação neste trajeto, pela troca diária, pelas
“filosofias” na hora do cafezinho e pelo auxílio grandioso nesta construção.
À amiga Silvia, companheira, que muito me acolheu, pela amizade, pelo
carinho, pela contribuição e pela paciência histórica em meio a tantas loucuras do
cotidiano institucional e profissional.
Aos amigos da Diretoria de Ação Social, Cidadania e Habitação do município
de Piedade e da Prefeitura de Piedade, Sandrinha, Paulinha, Sr. Cristóvio, Renildo,
Regina, Iraci. Obrigada pela amizade, pela contribuição diária, por me auxiliarem a
amadurecer o tema, pela acolhida e pelas oportunidades diárias.
A colega de profissão Maria Cristina Ponce, pelo carinho da acolhida inicial,
pelo
conhecimento,
pela
experiência
compartilhada,
pelo
auxílio
e
pelo
companheirismo.
À colega de profissão e amiga Simone Alves Nabarrete, pela força diária, por
trazer e renovar as premissas pelas quais tanto lutamos e nas quais tanto
acreditamos, por acreditar e suscitar mudanças necessárias. Obrigada Si, pela força
e por impulsionar a finalização deste sonho...
Agradeço à família Sampaio pelo carinho nas palavras, pelo brilho nos olhos
verificado em cada encontro, por mostrarem que o conhecimento se constrói assim,
de memórias faladas e vividas. Agradeço imensamente esta família. Mais que
sujeitos desta pesquisa, foram amigos e amáveis em me acolher, abrindo suas vidas
e histórias a fim de contribuir com minha pesquisa.
Agradeço ao historiador Rodrigo Ayres de Araújo, pela contribuição valiosa,
por partilhar suas histórias, seus ensaios sobre o povo que tanto ama.
Agradeço imensamente aos meus queridos alunos da Universidade Paulista –
UNIP – Sorocaba. A todos, sem exceção, pelas reflexões diárias nas aulas, pelo
apoio e pelo carinho.
Agradeço à minha orientadora, professora Dra. Dirce Koga, a qual admiro
imensamente e que, pela paixão e inspiração, arrebatou-me para o “território de
vivência”, conduzindo-me e guiando-me de maneira tão especial e única. Com seu
sorriso sincero, fez com que, a cada troca, a cada orientação, eu me apaixonasse
mais pelo tema. Fez-me transpirar e inspirar. Obrigada, professora, pela forma tão
carinhosa que conduziu este processo e participou dele, orientando, auxiliando,
suscitando ainda mais a crítica, partilhando de seu conhecimento e experiência para
esta composição.
Agradeço as professoras Dra. Carola Carbajal Arregui e Dra. Dalva Azevedo
de Gois, integrantes da banca examinadora, pelas contribuições, pelo carinho na
condução as quais me fez admirar ainda mais.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES,
agradeço o apoio financeiro.
Agradeço a todos meus companheiros do Mestrado em Políticas Sociais. Aos
professores, agradeço pelo conhecimento adquirido, pelas reflexões e conduções.
Aos colegas de turma, agradeço pelas horas que pude passar em companhia, pela
partilha, pelo auxílio nas inquietações e dúvidas, pelas sugestões, pelo carinho.
Obrigada pela força compartilhada a cada dia e que me fez continuar...
Muito obrigada!
“O saber deve ser como um rio, cujas águas doces, grossas, copiosas,
transbordem do indivíduo, e se espraiem, estancando a sede dos outros.
Sem um fim social, o saber será a maior das futilidades.”
Gilberto de Mello Freyre
LOPES, L. H. M. Territorialidade e a política de assistência social na cidade de
Piedade – SP; conexões e rupturas entre família e território. 2014. 138 f.
Dissertação (Mestrado em Políticas Sociais)-Universidade Cruzeiro do Sul, São
Paulo, 2014.
RESUMO
O presente estudo visa compreender e analisar o imbricamento das questões família
e território na conformação da cidade de Piedade e os desafios colocados para a
gestão da política de assistência social. O território e a família apresentam-se como
categorias fundamentais na operacionalização da política de assistência social,
principalmente em âmbito municipal, pois elegem em sua efetivação territórios com
famílias em situação de vulnerabilidade social e que devem ser foco de recursos e
ações diferenciadas e territorializadas. Sob essa perspectiva, a partir dessas
categorias, procurou-se discorrer sobre a conceituação, como também sobre a
gestão da assistência social na cidade de Piedade, foco dessa pesquisa. Elegeu-se
a pesquisa qualitativa realizada por meio da coleta de depoimentos de sujeitos que
têm sua trajetória marcada pela vivência territorial e familiar. Espera-se, com este
estudo, contribuir para análise e debate da temática, especialmente no que se refere
ao imbricamento das categorias território e família na gestão de políticas sociais.
Palavras-chave: Territorialidade, Política de assistência social, Território, Família,
Cidadania.
LOPES, L. H. M. Territoriality policy and welfare in the city of Piedade – SP;
connections and ruptures between family and territory. 2014. 138 f. Dissertação
(Mestrado em Políticas Sociais)-Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2014.
ABSTRACT
The present study aims to understand and analyze the overlapping issues of family
and territory in the conformation of the town of Piedade and the challenges for the
management of social welfare policy. The territory and the family are presented as
fundamental categories in the operationalization of Social Welfare Policy, especially
at the municipal level, as elect in their territories effectiveness with families facing
social vulnerability and that should be the focus of resources and differentiated
actions and territorialized. From this perspective, based on these categories, also
sought to discuss its concept, as the management of social assistance in the town
that is the focus of this research. Qualitative research was made after collecting
testimonials from individuals who have a history marked by territorial and family
experiences. It is hoped that this study contribute to analysis and discuss the subject,
especially with regard to the overlapping categories of family planning and the
management of social policies.
Keywords: Territoriality, Social welfare policy, Territory, Family, Citizenship.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1
Formação Populacional em 1908 a 1980 ................................... 70
Figura 2
Taxa de crescimento populacional anual.................................. 71
Figura 3
Participação dos setores no PIB da cidade em 2010 ............... 73
Figura 4
Níveis de vulnerabilidade social ................................................ 75
Figura 5
Valores da Pactuação PAIF 2010-2013 ...................................... 88
Figura 6
Visão Panorâmica de Piedade .................................................... 97
Figura 7
Mapa do Ciclo do Tropeirismo ................................................... 99
Figura 8
Represa de Itupararanga – Bairro do Piratuba ....................... 105
Figura 9
Creche Recanto Vovó Xanda.................................................... 108
Figura 10 Dona Virgilia e Senhor José Nicolau Sampaio ....................... 116
Figura 11 Dona Nadir de Camargo, filha de Lazara, Dona Lazinha e
Senhor José Nicolau Sampaio. ................................................ 117
Figura 12 José Nicolau Sampaio .............................................................. 118
Figura 13 Bairro do Piratuba Sampaio – “o Bairrinho”........................... 119
Figura 14 Piratuba Sampaio ...................................................................... 125
LISTA DE MAPAS
Mapa 1
Cidade de Piedade e região ........................................................ 69
Mapa 2
IPVS de Piedade - 2010 ............................................................... 75
Mapa 3
Bairro do Piratuba ..................................................................... 102
Mapa 4
Localização da Rede Socioassistencial da cidade de Piedade ...
.................................................................................................... 110
Mapa 5
Vulnerabilidade social no Piratuba Sampaio .......................... 113
LISTA DE TABELAS
Tabela 1
População total dividida por gênero, população urbana e rural.
...................................................................................................... 72
Tabela 2
Distribuição das principais culturas agrícolas ......................... 74
Tabela 3
Indicadores Habitacionais .......................................................... 77
Tabela 4
Índice de Desenvolvimento Humano em Piedade .................... 77
Tabela 5
Renda, Pobreza e Desigualdade Social em Piedade. ............... 79
Tabela 6
Vulnerabilidade Social em Piedade ........................................... 79
Tabela 7
Distribuição da população em extrema pobreza por faixa etária
Piedade......................................................................................... 80
Tabela 8
Renda por Situação de Pobreza ................................................. 81
Tabela 9
Transferência de Renda .............................................................. 85
Tabela 10 Características do Setor Censitário do Piratuba .................... 109
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................... 14
1
O TERRITÓRIO E A ASSISTÊNCIA SOCIAL: ENTRE MARCOS
LEGAIS E VIVÊNCIAS ........................................................................ 22
1.1
Percursos e Percalços da Política de Assistência Social: Entre o
Território Administrativo e o Território de Vivência ....................... 23
1.2
Percursos Conceituais sobre o Território ....................................... 44
1.3
A Família na Política de Assistência Social: Desconexão do
Território ............................................................................................. 54
2
O TERRITÓRIO DE PIEDADE E GESTÃO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
.................................................................................................................
............................................................................................................. 61
2.2
Os Territórios de Piedade na Contemporaneidade ........................ 69
2.3
Gestão Municipal da Assistência Social em Piedade ..................... 82
3
CONEXÕES ENTRE TERRITÓRIO E FAMÍLIA EM PIEDADE:
TRAJETÓRIAS E RETORNOS ........................................................... 90
3.1
Percursos e Percalços: Retorno à Metodologia da Pesquisa ....... 90
3.2
Marcas e Marcos: Conexões entre Histórias e Formações
Territoriais .......................................................................................... 97
3.3
O Bairro do Piratuba........................................................................ 102
3.4
O Bairro do Piratuba Sampaio e a Família Sampaio: Conexão entre
Marcos e Marcos.............................................................................. 114
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 130
REFERÊNCIAS ................................................................................. 135
14
INTRODUÇÃO
“Há hora de somar
E hora de dividir.
Há tempo de esperar
E tempo de decidir.
Tempos de resistir.
Tempos de explodir.
Tempo de criar asas, romper as cascas
Porque é tempo de partir.
Partir partido,
Parir futuros,
Partilhar amanheceres.
Porque são tempos de decidir,
Dissidiar, dissuadir,
Tempos de dizer
Que não são tempos de esperar
Tempos de dizer.”
Mauro Luís Iasi
É tempo de somar, tempo de dividir, tempos de resistência, de criar as asas e
sobrevoar espaços, de explorar e explodir, eclodir em frases e parágrafos
conhecimentos e pensamentos...
É hora, agora é hora de partilhar.
Os movimentos e caminhos desta pesquisa começaram num trajeto anterior
aos balizamentos acadêmicos, que fizeram minhas reflexões criarem corpo. Foram
tempos de projetar e reprojetar, de criar objetivos, de tecer esta dissertação.
Foi um retornar e também um avançar nas questões já percorridas desde a
escolha da profissão e, depois, nas trajetórias acadêmicas, na vida cotidiana, na
qual família e território também se entrecruzavam nos meus caminhos.
Território e famílias se entrecruzavam neste momento, presentes no cotidiano
da atuação profissional, nas expressões de luta e resistência da formação deste
território.
15
A escolha de trabalhar com família em seu território de vivência se iniciava ali,
à medida que se iniciavam também as inquietações e percepções das conexões e
entraves junto às políticas sociais.
Esta pesquisa, assim dizendo, demarca o encontro de múltiplas aspirações,
inspirações e respirações da ação enquanto profissional de serviço social, que foi
amadurecendo e tecendo suas estruturas.
O interesse do pesquisador pelo território da cidade de Piedade partia das
perambulações pelos territórios de abrangência e de referência do Centro de
Referencia de Assistência Social – CRAS Pietá.
Nestas idas e vindas, as particularidades e peculiaridades do território rural
foram se evidenciando, conformando-se e confrontando-se com a política social,
pelos desvios de rotas que estas imprimiam na prática, as quais aguçavam mais o
interesse do pesquisador.
E foi assim que surgiu o interesse em estudar os imbricamentos entre as
categorias fundamentais da Política de Assistência Social – PNAS: família e
território.
O território escolhido foi a cidade de Piedade, situada no interior de São
Paulo, próxima à Sorocaba, distante 131 km da capital paulista, com uma população
total residente de 52.214 habitantes (Censo 2010 – IBGE).
A singularidade de Piedade está no fato de ser uma cidade de perfil
predominantemente rural, onde a configuração territorial é formada por bairros, cujas
nomenclaturas fazem referência às suas famílias fundadoras: Buenos, Leites,
Furtados, Limas, Goes, Telheiros e, em especial, Sampaio.
Partindo-se do fato de que a centralidade da Política Nacional de Assistência
Social - PNAS desde 2004 assenta-se sobre as categorias “família e território”, a
cidade de Piedade se apresenta como um desafio interessante no sentido de
compreender até onde sua configuração socioterritorial, baseada no imbricamento
entre essas duas categorias, impacta o cotidiano da gestão da assistência social.
16
Neste prisma, é justamente neste contexto que o serviço social tem sua
intervenção, no refletir e interligar a cidade e seus territórios, famílias e territórios,
como modos de vivência prática.
A escolha do território de Piedade não fora, portanto, uma escolha aleatória,
fora fruto do amadurecimento das “ideias foras do lugar e o cotidiano fora da política”
(tomando emprestado o título de trabalho de livre docência da Profa. Ermínia
Maricato) 1, fora de seu atrelamento à metodologia de história oral, na pesquisa
qualitativa.
Foi nesse percurso, nesses pontos de encontro e reencontro, que o lugar foi
tomando sentido e a escolha de pesquisar um território familiar e tradicional
trouxeram os fios condutores e condensadores das categorias família e território.
Neste desabrochar, no colocar das ideias dentro da política, família e território
se apresentam como categorias chave, merecendo atenção especial e necessária
conexão na gestão da assistência social.
A PNAS elege como matrizes de interpretação do contexto social três
categorias: o território, a unidade sociofamiliar e a dinâmica social das populações
numa perspectiva socioterritorial.
A família parece ter sido (re) descoberta como a “instituição” capaz de
centralizar as possibilidades de superação das condições de exclusão e de
vulnerabilidade social. Nessa direção, a centralidade sociofamiliar juntamente com a
territorialização pauta a PNAS/2004.
No âmbito da PNAS, a família é entendida como o lugar de pertencimento,
relacionada com a identidade dos indivíduos, como um conjunto de pessoas unidas
1
Para a autora, as ideias fora do lugar referem-se ao deslocamente entre as matrizes que
fundamentaram o planejamento e a legislação urbana no Brasil, em contrapartida à realidade
socioambiental da cidade, em especial do crescimento da ocupação ilegal e das favelas. O
planejamento urbano não se compromete com a realidade concreta, mas com uma ordem que diz
respeito a uma parte da cidade apenas. Há, portanto, uma lógica perversa de formação, que não leva
em consideração o ser humano, mas sim os equipamentos urbanos, remetendo-se à cidade como
legal, regulamentada por seus aparelhos, e ilegal, fora das ideias, sem planos e ordem, fazendo valer
apenas a legalidade em detrimento das pessoas. As ideias fora do lugar, portanto, se referem à
ordem aplicada a todos os indivíduos, de acordo com a racionalidade burguesa. Já as ideias no lugar
se aplicam a uma parcela da sociedade, reafirmando desigualdades e privilégios. Para a cidade
ilegal, não há planos, nem ordem, nem acesso, nem política. (MARICATO, 2011)
17
por laços de consanguinidade, de afetividade ou de solidariedade. Por ser o primeiro
núcleo de apoio, a convivência familiar é entendida como um direito.
O território é evidenciado no eixo estruturante juntamente com a
descentralização politico-administrativa, como territorialização a qual representa uma
nova lógica de organização da política de assistência social nos diferentes territórios.
Assim, o território é a base da organização do Sistema Único de Assistência Social SUAS, em seus múltiplos espaços urbanos e rurais, e que vem a expressar
diferentes demandas e configurações sociais das populações que deles se utilizam.
Neste trabalho, partindo de um ponto central - a cidade de Piedade, localizada
no interior do Estado de São Paulo - de uma referência - o CRAS Pietá - e de um
ponto cardeal - o Bairro do Piratuba Sampaio - tecem-se fios condutores que
entrelaçam as categorias família e território.
As particularidades do centro (cidade de Piedade) se apresentam pela sua
formação e conformação territorial alicerçadas por um processo histórico de
composição familiar. A referência é identificada (CRAS Pietá) por representar um
ponto de partida, via inserção profissional, pelo fato de sua área de abrangência ser
composta, em sua maioria, por território rural e, pela economia caracterizar-se pela
vulnerabilidade. E, finalmente, o ponto cardeal (Bairro do Piratuba Sampaio), pelo
seu evidente imbricamento entre família e território e, ao mesmo tempo, seu
descompasso em relação à gestão de assistência social.
Neste encontro e tessitura, determinou-se, portanto, o território do Bairro
Piratuba
Sampaio
como
espaço
deste
imbricamento,
pela
formação
majoritariamente familiar e por trazer à tona esse processo e esse descompasso.
Através deste processo e das movimentações, permeados de objetivações e
intenções, reconhecemos como sujeitos da pesquisa três moradores do bairro, três
sujeitos com sua vida cotidiana marcada pelas lutas diárias, pela sobrevivência no
espaço, pela sociabilidade e pela vulnerabilidade. Três sujeitos com trajetórias
traçadas a partir da família Sampaio em seus encontros e desencontros pelos
territórios, especialmente no território Pirituba, que, não sem motivos, passa a ser
reconhecido como “Piratuba Sampaio”.
18
O território, como chão dos que vivem e chão da política, apresentou-se como
espaço de luta e de vivência, de situações adversas e de vulnerabilidade social
desses sujeitos. Segundo Koga (2008, p. 46), ao se tratar das vulnerabilidades
sociais, das respostas quanto à proteção social, faz-se importante considerar o chão
concreto onde elas ocorrem, colocando em evidência a escala do cotidiano pelos
sujeitos que as vivenciam.
A partir daí, pode-se pensar a questão do território, do pertencimento, (re)
pensado a partir do acompanhamento sociofamiliar e das histórias de vida destes
sujeitos, pois, ainda segundo Koga (Op. cit, p. 47), suas características estão
associadas às características dos lugares onde se encontram e esta vinculação vem
a definir os territórios e suas vulnerabilidades.
Diante deste cenário, algumas questões se apresentaram: qual a relação
dessas famílias com o território que vivem? Qual o reconhecimento ou não da
presença do Estado sob o olhar das famílias que se inserem junto a esses
territórios? Como a relação território-família se dá em Piedade, considerando as
particularidades e singularidades de formação dos bairros dessa cidade? Como essa
relação território-família incide no processo de gestão da política de assistência
social na perspectiva da garantia de proteção social das famílias no território?
Assim, com todas estas inquietações, começamos nosso percurso...
Esta dissertação tem por objetivo compreender e analisar o imbricamento das
questões família e território na conformação da cidade de Piedade e os desafios
colocados para a gestão da política de assistência social.
Ainda objetivou-se, especificamente, nesta pesquisa:

Conhecer o histórico de formação dos territórios e das famílias de Piedade;

Reconhecer o histórico de formação dos territórios de Piedade a partir das histórias
das famílias;

Compreender os processos de formação territorial a partir das particularidades das
formações dos bairros familiares e das famílias;

Identificar as concepções de território e de família a partir da análise das legislações
que regem a assistência social no Brasil;
19

Identificar os diferentes perfis da população de Piedade a partir da análise dos
dados do Censo IBGE 2010, PNUD (Atlas do Desenvolvimento Humano 2010),
Fundação SEADE (Índice Paulista de Vulnerabilidade Social 2013) e Sistema de
Informações do MDS (Data Social 2.0) em relação ao perfil familiar, ocupacional,
situação de vulnerabilidade social e a gestão da assistência social na cidade de
Piedade.
Este trabalho de investigação foi desenvolvido a partir de uma pesquisa
documental e bibliográfica, levantando aspectos teóricos e metodológicos dos
temas: política social, assistência social, família e território, ainda de modo
exploratório.
A fim de assegurar a coerência e atualização a respeito deste tema, recorri à
produção teórica de autores reconhecidos por suas experiências e produções sobre
a temática tais como Dirce Koga (2004, 2008, 2011), Rodrigo Aparecido Diniz
(2012), Aldaíza Sposati (2008, 2013), Milton Santos (1978, 1982, 1988, 1997, 2003,
2004, 2006), Marcos Aurélio Saquet (2013), Vera Telles (2006).
Utilizamos a pesquisa qualitativa como método mais eficaz no alcance de
nossas proposituras, visto que o território de abrangência do CRAS/Pietá é
composto por cerca de 40 (quarenta) bairros referenciados, a partir dos quais foi
escolhida uma família apenas, de um bairro mais tradicional e de formação territorial
familiar.
Quanto à pesquisa qualitativa, segundo Minayo (1994, p. 21,22)
(...) preocupa-se com um nível de realidade que não pode ser quantificado,
trabalhando dentro de um universo de significados, motivos, aspirações,
crenças, valores e atitudes, correspondendo a um espaço mais profundo
das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis.
E nos termos de Martinelli (1999, p. 21):
(...) tem por objetivo trazer à tona o que os participantes pensam a respeito
do que está sendo pesquisado, não só a minha visão de pesquisador em
relação ao problema, mas é também o que o sujeito tem a me dizer a
respeito.
20
Para isso, foram coletados depoimentos desses sujeitos, visto que o uso da
história oral traz a presença do passado no presente, garantindo o sentido social à
vida, ganhando alcance mediante o grupo do qual faz parte, explicitando seu
contexto e modos de vida (MEIHY, 2005).
Neste reconhecimento, realizamos algumas aproximações necessárias, as
quais teceram e corporificaram os capítulos desta dissertação.
No primeiro capítulo, intitulado “O Território e a Assistência Social: entre
marcos legais e vivências”, buscamos traçar a questão dos percursos galgados pela
Política de Assistência Social no Brasil após a Constituição Federal de 1988 e
retornar a ela para analisar seu desenvolvimento e seus avanços.
Nesta seção, ainda buscamos evidenciar, a partir da PNAS 2004 e de suas
categorias chave - família e território -, questões inerentes ao território e suas
diferenciações enquanto uma categoria administrativa e uma categoria vivida. Nesse
percurso, traçamos ainda algumas referências conceituais em torno do território e da
territorialidade, como também em relação à família na política de assistência social,
buscando situar suas conexões e desconexões com o próprio território.
O segundo capítulo, intitulado “O território de Piedade e a gestão da
assistência social”, versará sobre a formação sócio histórica da cidade de Piedade e
sobre a construção de seus territórios sob a visão contemporânea.
Traremos aqui nessa seção as particularidades e singularidades do território
de Piedade sob uma visão administrativa e social, atrelada ao caráter eleito pela
gestão municipal da assistência social e, ao mesmo tempo, estabeleceremos a
analise entre os dados dos aparatos oficiais, a fim de sinalizar a questão do
imbricamento e das desconexões entre as categorias fundantes: família e território.
No terceiro e último capítulo, intitulado “Conexões entre território e família em
Piedade: trajetórias e retornos”, tecemos os processos de retorno, os caminhos e as
trajetórias da pesquisa, galgados pelos sujeitos em seu espaço comum,
evidenciando nossa opção pela pesquisa qualitativa e pela coleta de depoimentos
na construção de história oral. Temos aqui a evocação da memória como recurso de
reconstrução da busca pelas razões e escolhas dos sujeitos desta pesquisa, a partir
21
da vida vivida nesse molde e nesse território, das maneiras de sociabilidade e de
sobrevivência.
Desta maneira, caminhamos para uma breve caracterização do território do
bairro do Piratuba e do Piratuba Sampaio, trazendo suas histórias, marcos e marcas,
os quais justificam suas escolhas. Ainda nesta sistematização, vieram à tona as
histórias dos sujeitos desta pesquisa, a fim de justificar o imbricamento entre as
categorias território e família.
A fim de finalizarmos, analisamos as descobertas feitas durante esta
pesquisa, construindo, estabelecendo e imbricando as categorias território e família,
em suas conexões e desconexões nas respostas da gestão municipal da assistência
social. Tais resultados sinalizaram os descompassos entre gestão e sujeitos.
22
1 - O TERRITÓRIO E A ASSISTÊNCIA SOCIAL: ENTRE MARCOS
LEGAIS E VIVÊNCIAS
O território representa muito mais do que o espaço geográfico. Assim, o
município pode ser considerado um território, mas com múltiplos espaços
intraurbanos que expressam diferentes arranjos e configurações
socioterritoriais.
Os territórios são espaços de vida, de relações, de trocas, de construção e
desconstrução de vínculos cotidianos, de disputas, contradições e conflitos,
de expectativas e de sonhos, que revelam os significados atribuídos pelos
diferentes sujeitos. (BRASIL, 2008, p. 54).
Para o entendimento da política brasileira de assistência social na
contemporaneidade, faz-se necessário contextualizar o conjunto das expressões das
desigualdades da sociedade capitalista e suas particularidades na realidade
brasileira, nas relações sociais envolvendo as famílias e os territórios, que se
configuram no texto da Política Nacional de Assistência Social como dois pilares.
Nessa perspectiva, interessa perceber até onde tem sido possível estabelecer
uma articulação entre as diretrizes propostas nos marcos regulatórios da política de
assistência nos últimos anos e as práticas cotidianas de gestão, especialmente em
contextos de cidades de pequeno e médio porte, que conformam a grande maioria
das cidades brasileiras (95%) e do estado de São Paulo (quase 90%).
O presente estudo traz como contexto de análise a cidade de Piedade,
situada no interior de São Paulo, próxima à Sorocaba, distante 131 km da capital
paulista, com uma população total residente de 52.214 habitantes (Censo 2010 –
IBGE). A singularidade de Piedade está no fato de ser uma cidade de perfil
predominantemente rural, onde a configuração territorial é formada por bairros, cujas
nomenclaturas fazem referência às famílias fundadoras dos mesmos: Buenos,
Leites, Furtados, Limas, Goes, Telheiros.
Partindo do fato de que a centralidade da Política Nacional de Assistência
Social desde 2004 assenta-se sobre as categorias “família e território”, a cidade de
Piedade se apresenta como um desafio interessante no sentido de compreender até
23
que ponto sua configuração socioterritorial - baseada no imbricamento dessas duas
categorias - impacta o cotidiano da gestão da assistência social.
Para iniciar esse diálogo, este capítulo se propõe a compreender como a
política de assistência social tem se aproximado da perspectiva socioterritorial,
entendendo que família e território se configuram como categorias autônomas,
porém, na dinâmica do cotidiano vivenciado nas cidades, conformam-se em um
único processo, que aqui será referenciado como socioterritorial.
1.1 Percursos e Percalços da Política de Assistência Social: Entre o Território
Administrativo e o Território de Vivência
Pensando
na
questão
do
território
e
suas
interlocuções
político-
administrativas, no Brasil, a assistência social no período anterior à Constituição de
1988 não era considerada sob a ótica universalizante, como um direito do cidadão e
um dever do Estado. As particularidades dos indivíduos não eram incorporadas a
seus espaços.
A assistência social, presente desde o Brasil colonial, era atrelada à obra
caritativa, meritocrática, de troca de favores e logo se transformou em um novo
modo de operar a política de tutelamento dos mais pobres. Nesse processo,
consolidou-se como um dever moral de ajuda aos necessitados, pobres, excluídos,
despossuídos, abandonados, conformando os campos de ação da benemerência e
da filantropia que, por sua vez, direcionam o protagonismo da função exercida pela
primeira dama, no estabelecimento de ações caritativas e das multifacetadas ações
de solidariedade presentes até hoje na sociedade brasileira do século XXI.
Como tem identificado Aldaíza Sposati (2002), a sociedade brasileira possui a
marca de uma “regulação social tardia” e, no caso da assistência social, mesmo com
a regulação prévia na década de 1930, na Era Vargas (1930-1945) 2, ela ainda se
2
A Era Vargas foi um período de grande impulso industrial e surgimento do movimento sindical
operário - que começou a se organizar para reivindicar melhorias nas condições de trabalho e higiene
dentro das fábricas. Tentando frear os movimentos mais radicais, Getúlio Vargas - além de usar a
força policial - iniciou uma série de políticas para regulamentar o ambiente de trabalho nas indústrias
(BEHRING; BOSCHETTI, 2006). Uma das principais medidas adotadas por ele foi a criação do
Ministério do Trabalho. Assim, o Estado passou a intervir na economia e a normatizar alguns
benefícios aos trabalhadores, como carteira de trabalho, 13° salário, aposentadoria, auxílio doença e
24
configurava como um conjunto de práticas desarticuladas, fragmentadas, baseadas
nas referências religiosas e filantrópicas. Apesar de a Era Vargas ter inaugurado
algumas regulações voltadas às ações de assistência social, foi somente na década
de 1940 que as práticas assistenciais começaram a ser pensadas e organizadas a
partir da criação da Legião Brasileira de Assistência – LBA.
Os aparatos legais anteriores à Constituição de 1988 não demonstravam ou
evidenciavam as particularidades presentes na área de assistência social, que se
conformava como uma prática transversal às demais políticas sociais.
Importa ressaltar que o marco regulatório das políticas sociais no Brasil se
efetivou a partir da Constituição Federal de 1988, complementado através das
legislações reguladoras, como a Lei Orgânica de Assistência Social de 1993, que
marca o contexto contemporâneo da política assistencial. A abrangência e o
significado da assistência social, a partir de então, são configurados por garantir o
direito, a qualquer cidadão, aos benefícios, aos serviços, aos programas e aos
projetos socioassistenciais. A assistência social é reconhecida como uma das
políticas que constituem a Seguridade Social brasileira, juntamente com a Saúde e a
Previdência Social.
As políticas sociais, portanto, não se apresentam como instrumentos de mera
realização do bem-estar na forma de favor pelo Estado, mas configuram-se como
direito social e, no caso da assistência social, um direito não contributivo,
diferenciando-se, assim, da previdência social, cujo acesso se dá pela via do
trabalho.
A assistência social no Brasil, dentro desta visão de política pública de
direitos, de cidadania e dever do Estado, é decorrente de todo um aparato legal que
se iniciou com a promulgação da Constituição Federal de 1988, evoluiu com a LOAS
em 1993, e foi galgando sua plenitude com os aparatos mais recentes, a fim de
oferecer parte das respostas de proteção social frente às situações de
vulnerabilidade e de risco social.
licença maternidade. Nesse período, também houve a criação de outras políticas de fundamental
importância, como o sistema público de previdência – o Instituto de Aposentadoria e Pensões, IAP
(1930) - e o Ministério da Educação e Saúde Pública (1930). Era o início do Estado de bem-estar
social nas políticas públicas do Brasil. Voltado à população mais necessitada, teve como principais
características o estado de providência e o combate à fome.
25
Com a inserção na Seguridade Social, a política da assistência social é tida
como Política de Proteção Social, pois comporta as demandas sociais, as pessoas,
as circunstâncias e suas famílias. Define no título VIII: Da ordem Social – capítulo I,
no seu artigo 193 que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como
objetivo o bem-estar e justiça sociais (BRASIL, 1988)”.
A assistência social, segundo esta nova ótica, busca a inclusão social sob a
égide do direito, sob a inspiração de princípios, dentre os quais se destacam o
direito
de
pertencer,
de
estar
incluso,
de
integrar
uma
sociedade,
independentemente de sua cor, idade, gênero, tipo de necessidade especial ou
qualquer outro atributo pessoal.
A assistência social é elencada no tripé da Seguridade Social a qual
estabelece o seguinte em seu artigo 203:
A assistência social será prestada a quem dela necessitar,
independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por
objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à
velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a
promoção de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora
de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à
própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a
lei (BRASIL, 1988).
A assistência, sob este prisma, evidencia a questão dos entes federados – em
especial o município - e seu papel junto ao Estado com a perspectiva de
municipalização das atenções. Aqui já se evidencia que caminhos seriam traçados
para um direcionamento único da gestão das políticas sociais, o que adiante será
denominado descentralização politico-administrativa.
Já a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS foi sancionada apenas em 7
de dezembro de 1993, exatamente cinco anos após o marco regulatório de todas as
demais políticas sociais – Constituição de 1988. A primeira redação da LOAS,
26
datada do ano de 1993, consolidou os conceitos estabelecidos pela Constituição e
regulamentou a assistência social.
Em seus primeiros artigos, a LOAS evidenciou o que fora estabelecido pela
Carta Magna, visto que, anteriormente, a assistência social não se apresentava
enquanto uma política pública delimitada e específica. Suas ações estavam ligadas
a um leque de outras ações que destoavam dos princípios hoje elegidos.
O que há de se evidenciar é que a visão territorial e as particularidades que
ela expressa na efetivação da política de assistência social no Brasil tiveram uma
inserção tardia, pois não há na redação da LOAS de 1993 a inclusão da questão do
âmbito territorial.
Além disso, não havia, quanto à questão do território, uma discriminação
entre as populações e seus territórios, de forma que eram considerados
equivalentes os territórios rurais e urbanos, como expressa o artigo 4º e inciso IV.
As ações da LOAS, portanto, tem por base o território expresso através da
vida e da vivência dos indivíduos e suas famílias.
Pereira (2009, p. 117), quanto à questão da presença da visão territorial na
LOAS, evidencia que há uma indicação
(...) apenas no campo formal da gestão a responsabilidade do ente
municipal sobre a titularidade do serviço. A dimensão da descentralização
está presente apenas no limite do repasse das responsabilidades de gestão
aos municípios, considerando, claro, a implementação dos mecanismos
necessários à gestão plena (conselho - fundo - plano), sob preceitos
democráticos.
Dessa maneira, o território não é observado como categoria válida, mas
encarado como uma forma de concretizar os princípios por esta lei estabelecidos.
Pondera-se, ainda, quanto ao conceito de assistência social, que há neste momento
uma definição clara do que é assistência social, como
(...) direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social
não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um
conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para
garantir o atendimento às necessidades básicas (BRASIL, 1993).
27
A utilização do conceito de território permite compreender a forma como as
relações sociais se configuram num dado espaço, como são produzidas e
reproduzidas as desigualdades sociais, a fim de planejar e executar intervenções.
Tal apropriação vem a sinalizar que as potencialidades ou vulnerabilidades das
famílias e indivíduos são, em certa medida, reflexo das características do território
em que estão inseridos.
Seus objetivos rememoram as questões já objetivadas pela Constituição o
que pode trazer à luz critérios de impessoalidade para seu acesso. Remete-se ainda
a uma dimensão local como forma de acesso a direitos e participação de sua
gestão, elegidos como forma de democratizar e equiparar populações urbanas e
rurais.
Mesmo com a evidência de que há diferenciações entre populações urbanas
e rurais, estas não são observadas, como se a equiparação já vislumbrasse as
particularidades de cada meio e não segmentasse e particularizasse as atenções de
assistência. Pensando neste principio, há de se rememorar que a vivência territorial,
seja ela urbana ou rural, denota a vivência dos indivíduos em um espaço permeado
de particularidades e de expressões diferenciadas da questão social. Para fazer
valer este princípio, elas devem ser mapeadas.
Dentro desta ótica, o que se pode observar é que, na perspectiva territorial,
determinadas nuances são objetivadas apenas como generalidades e não como
particularidades dentro de um município e que poderão ser administradas a partir de
uma visão descentralizada dos serviços e atenções de assistência.
Segundo a autora Tatiana Dahmer Pereira (2009, p. 122, 123), ao verificar a
questão da descentralização da assistência social e de sua relação com o território,
é desafiante reduzir os limites aos serviços, visto em sua operacionalização o
território se apresenta como administrativo dos recursos apenas.
Ou
seja,
as
ações
de
municipalização
e
descentralização
só
se
estabeleceram de fato após o ano de 1997, com a primeira redação da Norma
Operacional Básica de Descentralização – NOB e não pelo município enquanto
território administrativo.
28
O território, na primeira redação, não era evidenciado como uma categoria
válida na implantação e na implementação da política de assistência social e só
começou de fato a ser observado como categoria a partir do ano 2000, quando as
atenções elencadas pela própria política elegeram indicadores para mensurar as
particularidades dos indivíduos e suas famílias.
Pereira (Op. cit, p. 128) observa que esta necessidade é fruto da emergência
após o Censo 2000, que aferiu ser necessário uma “cartografia social” que
(...) expressasse as desigualdades intraurbanas da capital e desmembrasse
indicadores demonstrando processos de segregação e de vulnerabilidade
sociais em uma cidade com indicadores sociais médios relativamente bons
se comparados ao restante do país.
Dessa maneira, tornava-se iminente categorizar as múltiplas expressões da
questão social, a pobreza e seus níveis e a chamada vulnerabilidade social3.
No ano de 2004, foi aprovada a Política Nacional de Assistência Social PNAS, que definiu a implantação de um sistema integrado, um sistema que visava
abarcar todas as necessidades sociais.
3
Uma observação válida é quanto ao conceito de vulnerabilidade social. O que se pode observar é
que não há uma unidade conceitual que possa englobar todas as particularidades de um sujeito, em
suas perspectivas de totalidade e subjetividade, suas interlocuções e inserções sociais e em seus
territórios de vivências. Aqui, a vulnerabilidade não é só apreendida como um fator em si, mas sim
como um processo, formada por seus agentes locais e sociais que os tornam vulneráveis. Ela, nos
termos de Francisco de Oliveira (1995), não repousa só no econômico, ainda que este seja elemento
indispensável, mas se associa ao processo de discriminação social, no qual o mercado é o produtor
mais amplo da própria discriminação. O pesquisador Henri Acsekrad (2006) apresenta a
vulnerabilidade social como um processo associado a três fatores – individuais, políticos-institucionais
e sociais. São os processos sofridos e que infringem no cotidiano dos sujeitos que os tornam
vulneráveis, que os vitimizam a uma proteção desigual pelos parâmetros políticos, que ao focalizar
suas ações apenas mensuram os déficits nas capacidades de autodefesa dos sujeitos. O que se
pode evidenciar é a condição do Estado em afirmar a suplementação de uma carência e não uma
ação sobre o processo de “vulnerabilização”. Acsekrad (2006, p. 02) apresenta que a vulnerabilidade
“(...) está associada à exposição aos riscos e designa a maior ou menor susceptibilidade de pessoas,
lugares, infraestrutura sofrerem algum tipo particular de agravo”. A vulnerabilidade, portanto, é uma
relação e não uma carência, não podendo ser atacada através de oferta compensatória. Para
aprofundamento consultar as obras de Arregui e Wanderley (2009) e de Acselrad (1995). ARREGUI,
Carola Carbajal; WANDERLEY, Mariangela B. A vulnerabilidade Social é atributo da pobreza? In:
Serviço Social & Sociedade: Serviço Social, história e trabalho. São Paulo: Cortez, 2009.
ACSELRAD, Henri. Vulnerabilidade ambiental, processos e relações. Rio de Janeiro: Anais do II
Encontro Nacional de Produtores e Usuários e de Informações Sociais, Econômicas e Territoriais,
FIBGE, 2006. OLIVEIRA, Francisco de. A Questão do Estado: vulnerabilidade social e carência de
direitos, Cadernos ABONG, São Paulo. Série especial: Subsídios a I Conferência Nacional de
Assistência Social – 1. 1995.
29
Tal objetivo já é evidenciado na parte introdutória da “análise situacional”,
como pode ser percebido no fragmento reproduzido abaixo.
(...) a situação atual para a construção da política pública de assistência
social tem que levar em conta três vertentes de proteção social: as pessoas,
suas circunstâncias, e dentre elas seu núcleo de apoio primeiro, isto é, a
família. A proteção social exige a capacidade de maior aproximação do
cotidiano da vida, pois é nele que riscos e vulnerabilidade se constituem.
Sob esse ponto de vista é necessário relacionar as pessoas e seus
territórios, no caso os municípios, que do ponto de vista federal, são a
menor escala administrativa governamental. O município, por sua vez,
poderá ter territorialização intraurbana, já na condição de outra totalidade
que não é a nação. A unidade sociofamiliar, por sua vez, permite o exame
da realidade a partir das necessidades, mas também dos recursos de cada
núcleo / domicílio (PNAS, 2004, p.15).
Dentro desta perspectiva, a família e o território são evidenciados como eixos
estruturantes e centrais no conduzir de ações e condutas, relacionando-os a um
espaço delimitado e demarcado, no qual se vislumbram ações de proteção social.
A PNAS, além destes eixos centrais, apresenta como princípios norteadores
três frentes de atuação: uma que alinha a defesa da inclusão social ao acesso a
direitos sociais; uma segunda que proporciona o acesso aos direitos à renda e à
segurança alimentar e, por fim, a que proporciona o acesso à assistência social. Ela
ainda elege como matrizes de interpretação do contexto social três categorias: o
território, a unidade sociofamiliar e a dinâmica social das populações numa
perspectiva socioterritorial.
Ela assegura às famílias e a seus indivíduos seguranças tais como a
segurança comunitária e social, segurança de acolhida, de renda, de convívio ou
vivência familiar, de desenvolvimento da autonomia individual, familiar e comunitária;
do alcance de sua autonomia, independência e condições de bem estar e do acesso
a informações sobre seus direitos, ampliando a capacidade protetiva da família
(PNAS, 2004).
A assistência social, com esta nova roupagem, no campo dos direitos, da
universalização e da responsabilidade estatal, é consolidada através do Sistema
Único da Assistência Social - SUAS como ação estratégica na construção de um
sistema de proteção social que verse num direcionamento único.
O SUAS definiu e organizou a assistência social em torno de três objetivos: a
proteção social, a vigilância social e a defesa dos direitos socioassistenciais,
30
instaurando em todo o território brasileiro um mesmo regime geral de gestão e
inscrevendo as atenções de assistência social no campo público e no campo dos
direitos
humanos
e
sociais,
estruturados
pela
matricialidade
sociofamiliar;
descentralização político-administrativa e territorialidade. O SUAS também elencou
novas bases para a relação entre Estado e sociedade civil: financiamento, controle
social e participação popular/cidadão usuário (PNAS, 2004).
A partir da nova concepção instaurada na assistência social com a
Constituição Federal de 1988, portanto, a assistência social passou a ser
compreendida como política pública social, universalizante em sua cobertura, com
ações planejadas e monitoradas para com a rede de serviços sociais. Dessa forma,
vigilância social passou a ser presente nos territórios de maior vulnerabilidade e
riscos sociais.
Sob essa visão, vislumbrou-se a necessidade de não apenas elencar as
famílias e seus indivíduos, mas sim identificar o chão em que pisam, seu espaço
particular, o território em que vivem e vivenciam as viscitudes da problemática
social.
É emblemático, dentro desta constatação, que o cotidiano vivido pelas
populações em seus territórios começa a ser contemplado, evidenciando a
vinculação entre o território e a desigualdade social, em suas subjetividades e
objetividades (KOGA; RAMOS, 2011). Tal fato, segundo constata Santos (2006),
traz uma visualização dos indivíduos em seu espaço de vivência, uma maneira de
ver seu lugar, seu mundo.
Santos (Op. cit, p. 214) interpreta esta vinculação ressaltando que “uma dada
situação não pode ser plenamente apreendida se, a pretexto de contemplarmos sua
objetividade,
deixamos
de
considerar
as
relações
intersubjetivas
que
a
caracterizam”.
Ou seja, para se implementar a política e seus percalços, deve-se contemplar
o individuo e suas famílias em seus espaços, com contextos e pretextos particulares
e ímpares, suas relações sociais, suas relações com o espaço e seu “mundo”,
interpretando assim os atores que dele (território) se utilizam.
31
Coloca-se, portanto, algumas linhas, linhas essas tênues que relacionam e
cruzam a família e o território, pois se verifica que só dá para entender e
operacionalizar uma política social no chão em que ela acontece, nas
particularidades e capilaridades territoriais em que ela se passa.
Sob esta perspectiva
(...) é necessário relacionar as pessoas e seus territórios, no caso os
municípios que, do ponto de vista federal, são a menor escala administrativa
governamental. O município, por sua vez, poderá ter territorialização
intraurbanas, já na condição de outra totalidade que não é a nação. A
unidade sociofamiliar, por sua vez, permite o exame da realidade a partir
das necessidades, mas também dos recursos de cada núcleo/domicílio
(MDS, 2005, p. 15).
Inaugurou-se aqui, uma visão da política de “dentro para fora”, vislumbrando
as particularidades instaladas nos territórios e nas famílias.
Tal interpretação alude ao necessário “reconhecimento da dinâmica que se
processa no cotidiano das populações” (Op. cit., p. 16), pois é na vivência cotidiana
que se expressam as múltiplas expressões da questão social, e que, segundo Koga
(2008), possuem imbricações nas denominadas situações de pobreza, exclusão
social e vulnerabilidade social.
Koga (2011, p. 16) evidencia que o território se dá, portanto, como uma
expressão dos atores que dele se utilizam, como “fator dinâmico no processo de
inclusão/exclusão”.
Ou seja,
Ao agir nas capilaridades dos territórios e se confrontar com a dinâmica do
real, no campo das informações, essa política inaugura uma outra
perspectiva de análise ao tornar visíveis aqueles setores da sociedade
brasileira tradicionalmente tidos como invisíveis ou excluídos das
estatísticas – população em situação de rua, adolescentes em conflito com
a lei (MDS, 2005, p. 16).
O território, sob este prisma, traz em si o cotidiano, a vida cotidiana das
famílias em seus espaços de vivências, inerente à construção do lugar. Mais uma
vez parafraseando Koga (2011), é na ação cotidiana que o homem faz uso do
território e que se constrói uma relação de construção de situações e significados.
32
O cotidiano, nos termos de Santos (1972, apud LEFEBVRE, 1958), envolve
concepções e apreciações, ao mesmo tempo, aprofundadas e superficiais. O autor
ainda evidencia que as ações cotidianas é que enriquecem o espaço, contribuindo
para sua dinâmica e para as conexões humanas estabelecidas ali.
O que ganha destaque aqui é a questão do uso e da apropriação da “terra”,
do território como lugar, que engloba o termo territorialidade como um modo de
apropriação, de uso do território, que se “faz pelos significados e ressignificados que
os sujeitos vão construindo em torno de usas experiências de vida” no território, no
“pedaço” que lhes pertence (KOGA, op. cit, p. 39).
Para o geografo Milton Santos (2004, p. 22) a questão do território vai além
de um conceito, uma vez que “só se torna um conceito utilizável para a análise
social quando o consideramos a partir do seu uso, a partir do momento em que o
pensamos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam”.
O território, aqui, pensado sob essa perspectiva, engloba não apenas o local,
mas também quem vive nele, a vivência dos indivíduos e suas famílias e em seu
território, e sua representatividade para com estes. Tal noção de território contempla,
portanto, o chão, o chão daqueles que vivem, como território vivo e vivido.
Vera Telles (2006, p. 24, 25) retoma, ao pensar no território, a questão das
cidades, como sendo “também os lugares da família e este é também um prisma
pelo qual perceber as recomposições sociais dos tempos que correm”, sendo que as
famílias têm suas vivências e interpretações, seus
(...) destinos ligados aos lugares da cidade que foram conquistados. Tratase, sobretudo, de observar os processos de constituição de um espaço
privado como espaço de interação, que, aos poucos e ao longo das
destinações de uma vida comum, vai construindo suas regras e os sentidos
de convivência interna e que é capaz de se articular com as diversas
facetas do mundo público, nos diversos cenários que aí se apresentam.
Essas interações dos espaços privados com os recursos públicos, dos
espaços públicos, traz em si a necessária interpretação das ações a partir das
pessoas nos territórios, uma vez que as relações sociais entre os indivíduos e suas
famílias se dão em territórios de vivência, onde se expressam as desigualdades.
33
Dessa forma, há uma interpretação que engloba, nos termos de Koga (2011),
não só as necessidades, mas sim a condição de sujeitos históricos destes indivíduos
e de suas famílias, inclusive considerando sua dimensão subjetiva.
Em síntese, nos termos de Diniz (2012, p. 80), estas interpretações vêm a
revelar, que o
(...) território é mais que um conjunto de construção no qual trabalhamos,
moramos, circulamos e passamos o tempo. O espaço apresenta um dado
simbólico, linguístico regional, uma cultura herdada pelo uso do solo, que
está em constante processo de mudança e adaptação (...). E quando este
processo é revelado pela análise crítica e consciente, a alienação tende a
ser desmitificada, cedendo lugar ao entendimento e às possibilidades de
novas significações.
Ou seja, evidenciar e analisar de forma crítica tais espaços, territórios,
famílias, vivências familiares e territoriais, é desvendar as possibilidades de ações, o
que, citando mais uma vez Diniz (op. cit), é interpretar a cidade como um espaço de
revelação, que abriga diferentes realidades e diferentes lugares sociais.
As ações estabelecidas pela PNAS, portanto, se configuram dentro desta
visão inovadora, que “deve” contemplar as famílias, as vivências, os territórios, sob a
ótica de um sistema de proteção social, de garantia de seguranças sociais, tais
como a segurança social de sobrevivência, de acolhida, de convívio ou de
convivência familiar.
Em linhas gerais, já evidenciava Koga (2008, p. 90), ao observar as
especificidades do cotidiano vivido são exigidos instrumentos de gestão como,
elencado pela própria PNAS, o Centro de Referência de Assistência Social – CRAS
que
(...) é uma unidade pública estatal de base territorial, localizado em áreas de
vulnerabilidade social, que abrange um total de até 1.000 famílias/ano.
Executa serviços de proteção social básica, organiza e coordena a rede de
serviços socioassistenciais locais da política de assistência social (MDS,
2004, p. 36).
Nessa linha de gestão do território e da política realizada pela PNAS, se
estabeleceu um sistema, o Sistema Único de Assistência Social – SUAS, que
constitui um modelo de gestão descentralizada e participativa, de ações
34
socioassistenciais, regularizando e organizando em todo território nacional as ações
socioassistenciais, priorizando a família, seus membros e o território no acesso a
serviços, programas e projetos.
O SUAS é resultante do pacto federativo, o qual definiu a função e organizou
a assistência social, assegurando proteção social, vigilância social e defesa dos
direitos socioassistenciais, instaurando em todo o território brasileiro um mesmo
regime geral de gestão e inscrevendo as atenções de assistência social no campo
público e no campo dos direitos humanos e sociais.
Os eixos estruturantes do SUAS são elencados da seguinte forma:
•
•
•
•
•
•
•
Matricialidade sociofamiliar;
Descentralização político-administrativa e territorialização;
Novas bases para a relação entre Estado e sociedade civil;
Financiamento;
Controle social;
O desafio da participação popular/cidadão usuário;
A política de recursos humanos e a informação, o monitoramento e a
avaliação (MDS, 2005).
No eixo que se refere à descentralização politico-administrativa se situam as
questões territoriais e da territorialização, com a incorporação de uma leitura afinada
ao território como expressão de relações, condições e acessos. Aqui também se
compreende a questão da descentralização como sinônimo de universalização da
assistência social como meio de acesso à cidadania social.
A territorialização aqui é compreendida nos termos de Saquet (2013) e de
Raffestin (2010), ou seja, como uma ação de fortalecimento das relações de poder
em um determinado território, através de ações dos homens e seus mediadores,
com instrumentos específicos, a fim da obtenção de maior autonomia sobre o
espaço físico e social.
Nessa interpretação, associa-se a questão do território a ações que
vislumbrem o monitoramento e a sistematização dos serviços socioassistenciais
através da vigilância social, a qual
(...) refere-se à produção, sistematização de informações, indicadores e
índices territorializados das situações de vulnerabilidade e risco pessoal e
social que incidem sobre famílias/pessoas nos diferentes ciclos da vida
35
(crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos); pessoas com redução da
capacidade de pessoal, com deficiência ou abandono; crianças e adultos
vítimas de formas de exploração, de violência e de ameaças; vítimas de
preconceito por etnia, gênero e opção pessoal; vítimas de apartação social
que lhes impossibilite sua autonomia e integridade, fragilizando sua
existência; vigilância sobre os padrões de serviços de assistência social em
especial aqueles que operam na forma de albergues, abrigos, residências,
semirresidências, moradias provisórias para os diversos segmentos etários.
Os indicadores a serem construídos devem mensurar no território as
situações de riscos sociais e violação de direitos (MDS, 2005, p. 39, 40).
O território é evidenciado no eixo estruturante juntamente com a
descentralização político-administrativa, como territorialização a qual representa
uma nova lógica de organização da política de assistência social nos diferentes
territórios. Assim, o território é a base da organização do SUAS, em seus múltiplos
espaços urbanos e rurais e quem vem a expressar diferentes demandas e
configurações sociais.
Vislumbram-se as contribuições de Milton Santos (2003), que interpreta essas
ações com um olhar vivo, de movimento, a partir dos “atores que dele se utilizam”.
Instala-se, aqui, a perspectiva de território usado. Nas palavras de Santos
(2003, p. 96)
O território é o chão e mais a população, isto é uma identidade, o fato e o
sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do
trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre as
quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender
que está falando em território usado, utilizado por uma população.
O que para Koga (2011, p. 33) “também representa o chão do exercício da
cidadania”, pois é nele que “as desigualdades sociais tornam-se evidentes”.
Dentro ainda deste eixo, remetendo ainda a Koga (2011, p. 26), tal
entendimento vincula a política e as pessoas ao direcionamento que a própria
política irá imprimir aos direitos, à qualidade de vida e ao cotidiano delas. Fica
evidente para a autora que as interlocuções da política dentro dessa ótica aludem à
necessidade de uma visão de totalidade e de integração.
36
A PNAS identifica tais ações como de interlocução e de transferência de
poder, de competências e recursos, operacionalizando a política sob a perspectiva
de rede, ou seja, rede de serviços socioassistenciais.
A atuação em rede perpassa, mais uma vez, o conhecimento e
reconhecimento da rede e do território, a serem desenhados a partir de indicadores
territoriais.
Dessa forma, como afirma Koga (op. cit, p. 39), “a territorialidade se faz pelos
significados e ressignificados que os sujeitos vão construindo em torno de suas
experiências de vida em dado território”. Ou seja, não há como identificar o território
sem aferir a vivência territorial dos indivíduos junto a este, ao chão que pisam, ao
seu pedaço de mundo “cada lugar é, à sua maneira, o mundo”. (SANTOS, 2006, p.
213)
O território é sua parcela do mundo, seu pedaço. Esse conceito fica bem
evidenciado nas palavras de Magnani (1998, apud KOGA, 2011, p. 116),
reproduzidas a seguir.
(...) [Território] designa aquele pedaço intermediário entre privado (a casa) e
o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a
fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que
as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade.
A nova configuração da política de assistência social brasileira iniciada,
portanto, com a Constituição Federal de 1988, galgou passos importantes com a
LOAS em 1993, foi redefinida com a PNAS em 2004, fortalecida com a NOB/SUAS
em 2005, e, em 2011, alcançou seu ápice com a incorporação dos princípios que
norteiam o SUAS no texto da LOAS.
A nova visão socioterritorial incorporada pela Norma Operacional Básica –
NOB/SUAS de 2012 fez uma retomada quanto à questão do território.
Para a compreensão das novas interpretações da questão territorial na
NOB/SUAS de 2012, faz-se necessária uma identificação prévia junto a NOB/SUAS
que a antecedem, de 2005 e de 2010.
37
Quanto à funcionalidade da NOB, esta tem por objetivo organizar a
operacionalização da gestão pública da política de assistência social no território
brasileiro, exercida de forma sistêmica pelos entes federados, em consonância ao
que é preconizado na Constituição da República de 1988, na LOAS e nas
legislações complementares. Objetiva ainda elencar os parâmetros para o
funcionamento do Sistema Único de Assistência Social - SUAS.
Mesmo com outras NOB elaboradas em anos anteriores, apenas a
NOB/SUAS de 2005 trouxe novos rumos para a política de assistência social, visto a
aprovação da própria PNAS em 2004.
A NOB/SUAS 2005 apresenta-se, portanto, como um divisor de águas na
estruturação da política, adequando os serviços socioassistenciais à realidade dos
territórios em que vivem as populações em situação de vulnerabilidade social.
Conforme consta no MDS, a NOB/SUAS
(...) disciplina a operacionalização da gestão da Política de Assistência
Social, conforme a Constituição Federal de 1988, a LOAS e legislação
complementar aplicável nos termos da Política Nacional de Assistência
Social de 2004, sob a égide de construção do SUAS, abordando, dentre
outras coisas: a divisão de competências e responsabilidades entre as três
esferas de governo; os níveis de gestão de cada uma dessas esferas; as
instâncias que compõem o processo de gestão e controle dessa política e
como elas se relacionam; a nova relação com as entidades governamentais
e não governamentais; os principais instrumentos de gestão a serem
utilizados; e a forma de gestão financeira, que considera os mecanismos de
transferência, os critérios de partilha e de transferência de recursos (MDS,
2005, p. 84).
O caráter da NOB é de disciplinar as ações de assistência social em nível
nacional a partir de um sistema integrado de ações e condutas – o SUAS. Suas
ações tem uma função protetiva, termo este já inaugurado na CF/88, e retomado
aqui, que se ocupa “das vitimizações, fragilidades, contingências, vulnerabilidades e
riscos que o cidadão, a cidadã e suas famílias enfrentam na trajetória de seu ciclo de
vida” (Op. cit, p. 89). Ou seja, trata dos entraves cotidianos dos indivíduos e de suas
famílias a partir de suas interlocuções no seu espaço de vivencia.
38
O território na NOB/SUAS é compreendido como uma categoria analítica para
se pensar as ações do SUAS. Ele é evidenciado como um dos eixos estruturantes
de gestão, como territorialização.
A perspectiva territorial incorporada pela NOB/SUAS vem a propor que as
ações e condutas na área da assistência social sejam planejadas territorialmente,
assim como as proteções por ela já evidenciadas.
Apresenta-se, portanto, a territorialização como um princípio que “(...) significa
o reconhecimento da presença de múltiplos fatores sociais e econômicos, que levam
o indivíduo e a família a uma situação de vulnerabilidade, risco pessoal e social.”
(MDS, 2005, p. 91).
Enquanto princípio, esse possibilita orientar a proteção social de assistência
social, conforme evidencia a citação a seguir,
- Na perspectiva do alcance de universalidade de cobertura entre indivíduos
e famílias, sob situações similares de risco e de vulnerabilidade;
- Na aplicação do princípio de prevenção e proteção proativa, nas ações de
Assistência Social;
- No planejamento da localização da rede de serviços, a partir dos territórios
de maior incidência de vulnerabilidade e riscos (Op.cit, p. 91).
Fundamentar as ações de proteção social na territorialização supõe conhecer
os riscos, as vulnerabilidades sociais a que estão sujeitos os usuários, bem como as
potencialidades, dentro de uma visão emancipatória. Significa, em síntese, refletir
sobre a dinâmica socioterritorial para além das necessidades, englobando também
potencialidades para se superar a condição atual.
A territorialização como uma ação evidencia o território através da vigilância
socioassistencial que
(...) consiste no desenvolvimento da capacidade e de meios de gestão
assumidos pelo órgão público da Assistência Social para conhecer a
presença das formas de vulnerabilidade social da população e do território
pelo qual é responsável (MDS, 2005, p. 93).
39
A interpretação quanto às ações de vigilância socioassistencial versa o
conhecimento das famílias em seu cotidiano, em seu lócus de vivência, ou seja, “a
partir de condições concretas do lugar onde elas vivem e não só as médias
estatísticas” (Op.cit, p. 93).
Esta interpretação é compreendida a partir de alguns critérios de
(...) oferta capilar de serviços, baseada na lógica da proximidade do
cotidiano de vida do cidadão; localização dos serviços para desenvolver seu
caráter educativo e preventivo nos territórios com maior índice de população
em vulnerabilidades e riscos sociais. (MDS, 2005, p. 95).
A NOB/SUAS 2010, quanto à incorporação da categoria território, não se
diferencia da redação de 2005, vislumbrando o território a partir da territorialização.
Ressalta-se ainda, em sua operacionalização, no enquadramento do território
junto à proteção social básica, o que já se vislumbrava na redação de 2005, a qual
deixava implícito que ações territorializadas têm por direção o desenvolvimento
humano e social e os direitos de cidadania (MDS, 2010, p. 17).
A questão da territorialização na redação de 2010 apresenta a “necessária
compreensão da dinâmica presente nos espaços territoriais e seus determinantes
para a compreensão das situações de vulnerabilidade e risco sociais, bem como
para seu enfrentamento” (Op.cit, p. 18).
Essa redação, até mesmo pelas novas legislações que se estabeleceram
neste percurso, trouxe à luz novas nuances, novas formas de operacionalização a
gestão da política de assistência social em nível nacional, o que vem circunscrito já
intitulação da redação de 2010 – NOB/SUAS – Aprimoramento da Gestão e
Qualificação dos Serviços Socioassistenciais.
Ou seja, só se pode organizar e operacionalizar a política de assistência
social em âmbito nacional a partir de princípios totalizantes, que vislumbrem todas
as singularidades e particularidades das famílias e indivíduos que circulam nos
serviços socioassistenciais. Segundo esta interpretação, deve-se ir além da questão
40
que reduzia a família apenas ao espaço privado do domicilio, abrindo-se as suas
portas, percorrendo seus entornos, pisando no chão onde vivem.
A vigilância socioassistencial na redação de 2010 tem características técnicas
para o conhecimento e reconhecimento da vulnerabilidade social no território, tendo
como responsabilidade
(...) detectar e informar as características e dimensões das situações de
precarização, que vulnerabilizam e trazem riscos e danos aos cidadãos, a
sua autonomia, à socialização e ao convívio familiar. Deve buscar conhecer
a realidade específica das famílias e as condições concretas do lugar onde
elas vivem, e não somente as médias estatísticas ou números gerais. A
identificação de territórios vulneráveis no âmbito da cidade, do Estado, do
país, assim como a identificação das famílias em maior vulnerabilidade, são
essenciais para que a Assistência Social realize o monitoramento dos riscos
e das violações de direitos e desenvolva ações de prevenção (MDS, 2010,
p. 21, 22).
Pauta-se, portanto, em ações preventivas e centradas no desenvolvimento de
potencialidades e habilidades dos usuários e dos territórios.
A questão da vigilância social interpretada a partir da leitura territorial torna
público alguns conceitos no campo da descentralização, os quais expressam um
conjunto de relações que possibilitam a formulação de políticas públicas
interpretadas a partir das condições de vida, da análise do cotidiano, do estudo da
população que vive nesse território. Essa interpretação “traz novos elementos para o
debate da ética e da cidadania nas políticas públicas”. (KOGA, 2011, p. 29.)
A redação da NOB/SUAS de 2012 concretizou as premissas já elencadas
pela LOAS e pelas legislações posteriores, que estabeleceram o SUAS.
Nessa redação, o território é identificado, como nas redações anteriores, nas
diretrizes estruturantes na gestão do sistema. É retomada a importância da gestão e
do reconhecimento do território, o que já fora elencado pela versão de 2010,
trazendo a necessidade de uma compreensão afinada do território e de seus
desdobramentos.
A territorialização, como o território é denominado por este aparato políticoadministrativo,
deve
ser
compreendida
“como
instrumento
fortalecedor
da
democratização por permitir o conhecimento objetivo das diferenças de acesso, a
41
partir de condições concretas principalmente, em contextos de desigualdade”
(SPOSATI, 2008, p. 01).
Sob a observação da autora Aldaíza Sposati, evidenciar a questão da
territorialidade é compreender de forma democrática a própria formação territorial,
considerando, dentro da perspectiva de totalidade, a particularidade vivida por cada
indivíduo em seu espaço de vivência.
Há, portanto, um “retorno” à questão do território, nos termos de Santos
(2006) e Sposati (2008). Isso fica claro no fragmento reproduzido a seguir.
Território não é um terreno no sentido de uma dimensão de terra. Território
é dinâmica, pois para além da topografia natural, constitui uma “topografia
social” decorrente das relações entre os que nele vivem e suas relações
com os que vivem em outros territórios. Território não é gueto, apartação,
ele é mobilidade. Por isso, discutir medidas de um território é assunto bem
mais complexo do que definir sua área com densidade. Implica considerar o
conjunto de forças e dinâmicas que nele operam (SPOSATI, 2008, p. 9).
Dessa maneira, o reconhecimento do território traz sentido à ação, pela sua
“mobilidade” e versatilidade na condução das ações nele impressas.
A partir desta premissa, a NOB 2012 traz novamente a importância da
vigilância socioassistencial na gestão do território caracterizada como
(...) uma das funções da política de assistência social e deve ser realizada
por intermédio da produção, sistematização, análise e disseminação de
informações territorializadas, e trata:
I – das situações de vulnerabilidade e risco que incidem sobre famílias e
indivíduos e dos eventos de violação de direitos em determinados territórios;
II – do tipo, volume e padrões de qualidade dos serviços ofertados pela rede
socioassistencial. (MDS, 2012, p. 50)
A vigilância apresenta-se, portanto, como uma via de proximidade entre
indivíduos e territórios, na operacionalização da política de assistência social, porém
tem por função operacionalizar questões administrativas de gestão.
Observa-se, portanto, que
42
Os territórios administrativos se constituem em uma importante e essencial
referência para a gestão da política de assistência social e para a
construção de uma visão territorializada, tanto sobre as demandas como
sobre as respostas de proteção social (MDS, 2013, p. 21)
A vigilância, sob este prisma,
(...) ao referenciar-se nos territórios de vivência das populações, envolve o
reconhecimento não somente de situações pontuais de vulnerabilidade e
risco sociais, mas também da presença (ou não) das políticas públicas
nesses territórios, da oferta de serviços públicos com que contam e das
sociabilidades construídas por meio de conflitos, e que terminam compondo
as capacidades protetivas dos territórios, enquanto processos de luta e de
conquista de direitos sociais. A capacidade protetiva das famílias, que para
poder ser exercida, precisa da proteção social do Estado (MDS, 2013, p.
22).
Koga (2004, p. 56) sintetiza tal apreensão no fragmento reproduzido a seguir:
Ao tratar a cidade e seus territórios como chão da política pública, a
perspectiva de gestão faz girar seu foco para outros ângulos além da
setorialidade tradicionalmente definida. O movimento de giro de eixo que
esse chão impulsiona ao processo de gestão é que permite perceber o
território como mais do que um instrumento do social.
Em síntese, a cidade apresenta-se em perspectiva. Seus indivíduos e o
território no qual circulam e interagem são pensados a partir de parâmetros que, nos
termos de Telles (2006, p. 61) separam as informações do conhecimento, com
grandes distâncias e com mediações a serem percorridas.
Neste percurso, percorrer um território preestabelecido e previamente
escolhido se faz necessário a fim de compreender as trajetórias de vida e as
vivências territoriais de algumas famílias da cidade de Piedade.
Fruto de um movimento iniciado logo após sua aprovação em 1993, a LOAS
no ano de 2011, com a aprovada a Lei nº 12.435, em 06 de julho de 2011, fora
alterada. A lei veio alterar os artigos 1o, 2o, 3o, 6o, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 20, 21, 22,
23, 24, 28 e 36 da LOAS, incorporando o SUAS como sistema a ser implantado na
operacionalização da assistência social em território nacional.
Com a nova redação da LOAS, o território passou a ser evidenciado,
verificado, pensado. Não há como se negar que o território já era visto como foco
das ações junto aos indivíduos e suas famílias contempladas pela política de
assistência social, pela condição de pertencimento, de estar em algum lugar, de
43
morar, de residir. Porém, o que se verifica é que as famílias - antes vistas apenas
pela ótica da matricialidade sociofamiliar, pertencentes a um dado território, a um
lócus que influencia suas relações, suas vivências - passam a ser caracterizadas
como vivências territoriais também.
No texto da LOAS, a questão da análise territorial é evidenciada com a
incorporação no artigo 2º e inciso II da questão da vigilância socioassistencial.
II - a vigilância socioassistencial, que visa a analisar territorialmente a
capacidade protetiva das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades,
de ameaças, de vitimizações e danos;
A questão da vigilância socioassistencial já havia sido evidenciada na
NOB/SUAS de 2005, a qual já imprimia a necessária observação das
vulnerabilidades territoriais.
A vigilância socioassistencial consiste no desenvolvimento da capacidade e
de meios de gestão assumidos pelo órgão público gestor da assistência
social para conhecer a presença das formas de vulnerabilidade social da
população e do território pelo qual é responsável. (BRASIL, 2005, p. 21)
A vigilância ainda é expressa e incorporada no artigo 6º-A em seu parágrafo
único como “um dos instrumentos das proteções da assistência social que identifica
e previne as situações de risco e vulnerabilidade social e seus agravos no território”.
A vigilância socioassistencial, portanto, está relacionada à produção do
conhecimento, de conceitos e categorias que buscam instruir uma abordagem
específica para a produção de conhecimentos aplicados ao planejamento e
desenvolvimento da política de assistência social. Tal abordagem se apropria e
utiliza três conceitos-chave que propiciam um modelo para análise das relações
entre as necessidades e demandas de proteção social no âmbito da assistência
social e as respostas desta política em termos de oferta de serviços e benefícios à
população. Estes conceitos-chave que buscam analisar as relações entre
necessidades e ofertas são: risco, vulnerabilidade e território.
44
1.2 Percursos Conceituais sobre o Território
O conceito de território na atualidade apresenta-se como inovador e só pode
ter sentido ao contextualizar as vivências que perpassam e entrecruzam as ruas, os
bairros, as cidades, os municípios, os espaços pré-determinados de vivência de
famílias e indivíduos que são foco das políticas sociais contemporâneas.
A questão do território, portanto, não se perde, por ora, em uma conceituação
ligada à geografia, mas sim acresce no sentido da sua interlocução com a questão
da identidade e do pertencimento, das raízes criadas pelos indivíduos neste espaço.
Já a questão da identidade do individuo junto ao espaço está intimamente
ligada a sua própria formação, o que pode evidenciar que as famílias e os territórios
se ligam, se cruzam, podendo até sugestionar uma categoria diferenciada de
formação familiar: família-território.
Em algumas formações territoriais em especial, é a família, a partir de sua
ocupação do espaço, que determina as formações territoriais, suas regras e
costumes, imprimindo suas próprias características nestes espaços como “territórios
familiares” ou “território de famílias”, tema este que será retomado ao situar a cidade
de Piedade como lócus de famílias-território.
Numa abordagem conceitual e histórica, sob a ótica etimológica, a palavra
território vem do latim territorium, que significa pedaço de terra apropriado. O
vocábulo latino terra é fundamental para se entender o significado da palavra
território, pois explicita sua estreita ligação com a terra, como um fragmento do
espaço onde se constroem relações tanto de base materialista quanto de base
idealista.
Terra aqui é apreendida, portanto, como o espaço, a área de posse de um
determinado indivíduo – seja ele humano ou animal – de uma organização ou
instituição de modo particularizado. Pensando em sua função mais administrativa,
há uma abordagem que caracteriza o território como Estado, Nação, determinando
certa região político administrativa. Tal abordagem será retomada posteriormente
quando abordarmos a questão do território como categoria analítica nas políticas
sociais contemporâneas.
45
O período de surgimento da conceituação do termo território tem por base as
formulações de Friedrich Ratzel4, no contexto histórico da unificação alemã em 1871
e a institucionalização da geografia como disciplina nas universidades europeias. O
território, para ele, é uma parcela da superfície terrestre apropriada por um grupo
humano. Tal grupo é quem iria determinar a necessidade e o uso do território, de
seus recursos naturais e se esses seriam suficientes para sua população.
Determinaria, também, a utilização de tais recursos a partir das capacidades
tecnológicas existentes, criando suas fronteiras, delimitando seu uso e espaço útil.
O conceito formulado por Ratzel tem como referencial o Estado, trazendo à
luz as relações de poder que esse imprime em determinado espaço demarcado.
Para esse autor, a questão do Estado traduzia a defesa quanto à expansão
territorial.
Uma observação quanto ao conceito circunscrito por Ratzel é que este não
associa à questão do território o homem que nele habita e sua relação com a
natureza. Para o autor, conforme relatam Spagnoli; Alves e Ferreira (2009, apud
MORAES 1990, p.72), a noção de território está calcada na ideia de habitat vinda da
biologia e usada para delimitação de áreas de domínio de determinada espécie ou
grupo de animais:
Pode-se, portanto aceitar como regra que uma grande parte dos progressos
da civilização são obtidos mediante um desfrute mais perspicaz das
condições naturais, e que neste sentido esses progressos estabelecem uma
relação mais estreita entre povo e território. Pode-se dizer ainda, em um
sentido mais geral, que a civilização traz consigo o fortalecimento de uma
ligação mais íntima entre a comunidade e o solo que a recebe.
Ratzel evidencia, então, a constituição do território sem a presença do
homem, que não possuiria uma função política no mesmo. Ratzel somente
4
Segundo Luciana de Lima Martins, em seu artigo intitulado “Friedrich Ratzel” apresentado para a
Universidade Federal Fluminense – UFF em 2000, Friedrich Ratzel (1844-1904) é considerado por
muitos o fundador da moderna geografia humana, sendo responsável também pelo estabelecimento
da geografia política como disciplina. A abrangente produção ratzeliana deixa transparecer a
integração de fatos da modernidade e do rápido desenvolvimento da sociedade no contexto da
Alemanha que se unificava. Reflexões sobre o Estado, a história, as raças humanas, o ensino da
geografia e a descrição de paisagens perpassam a obra do geógrafo, que se preocupava em aferir
uma identidade comum à nação em formação. No Brasil, o Ratzel determinista se destaca na
produção historiográfica da geografia, resultado da leitura da obra ratzeliana através da literatura
francesa, sobretudo da obra de Lucien Febvre - La Terre et L’Évolution Humaine (1922) (cf. Moreira,
1989, p. 32 e Moraes, 1990, p. 13).
46
considerava a presença e o domínio do Estado no espaço e desconsiderava que as
relações entre sociedade e território são determinadas pelas necessidades de
habitação, alimentação, recursos naturais e condições naturais para a efetivação da
vida humana e sua sobrevivência.
O território sob a ótica de Ratzel não se apresenta como uma formação
humana e social, mas sim uma formação com características administrativas sob o
domínio do Estado.
Tomando enquanto base a formação territorial brasileira, Raffestin (2010, p.
14) afirma que no Brasil “quando os portugueses chegaram em 1500, encontraram
um território sistematizado pelos habitantes”. Ou seja, as características de seus
habitantes, naquele momento, denotaram suas formações, interlocuções, com
características humanas e sociais. Ainda segundo o autor, mesmo formado, o
território não era demarcado, e por isso fora considerado pelos portugueses como
“espaço dado”, passivo de suas transformações. A formação territorial é, portanto,
fruto de determinações sócio históricas, humanas, que remetem ao seu uso e
apropriação enquanto espaço vivido e de vida, ou enquanto espaço usado e de
vivência, como um território material produto de processos produtivos.
Ermínia Maricato (2011, p. 150), ao se referir às formações territoriais, afirma
que elas sofreram os percalços da colonização, da apropriação privada da terra e do
espaço, como patrimônio. A autora ainda afirma que as próprias legislações desde o
início favoreciam a especulação imobiliária.
Raffestin, dentro dessa mesma perspectiva, evidencia que
Na produção territorial, há sempre um ponto de partida que nunca está
desligado das ações do passado. O processo territorial desenvolve-se no
tempo, partindo sempre de uma forma precedente, de outro estado de
natureza ou de outro tipo de território (RAFFESTIN, op.cit, p. 21).
O território, nessa perspectiva, é compreendido, em síntese, como formações
históricas, com precedentes históricos, formado por homens e suas interações com
o meio em que vive.
47
Koga, Ramos e Nakano (2008), fazem uma reconstrução histórica da
formação do território brasileiro e ressaltam a importância da expansão comercial
nesse processo. Instaladas na orla marítima e rota das mercadorias exportadas
pelos portugueses, as cidades Recife, Salvador, São Vicente, Santos e Rio de
Janeiro, ainda hoje são as regiões mais populosas do Brasil.
As constatações anteriores se fazem presentes também nas interlocuções de
Rogério Haesbaert (2007, p. 42). Ele constata que o território nasce juntamente com
a humanidade, com a civilização e vice-versa. O homem toma consciência do
espaço em que se insere, numa conotação subjetiva, ao mesmo tempo em que se
apropria e levanta divisas – o que denota uma visão mais objetiva, a construção
física de seu território.
Suas considerações versam sobre a questão do território como um “território
vivo” - formado e produzido por aqueles que dele se apropriam, que nele circulam - e
não um território estanque. Há de se evidenciar que essa apropriação é perpassada
pela questão da historicidade, pois aqui o território apresenta-se como produto social
e histórico de trajetórias individuais e coletivas, que envolvem relações não só
espaciais, mas também sociais.
O que se afere aqui, portanto, é que os espaços, os lugares, denotam
historias e vivências, com dimensões concomitantemente objetivas e subjetivas que
não podem ser descartadas, o que faz erigir, dentro da apropriação, transformação
ou mesmo formação dos espaços, outras categorias como a identidade territorial, o
enraizamento, o pertencimento e a questão da totalidade.
Diniz (2012, p. 80) refere-se ainda a uma percepção parcial e fragmentada do
espaço, “humanamente desvalorizada”, pressionada pelo processo de globalização.
Para ele, mesmo com as particularidades objetivas e subjetivas elencadas por
Haesbaert (2007), as questões econômicas e territoriais esvaziam o espaço/território
dos significados humanos.
As interpretações aqui trazem em si uma visão utilitarista do território, pelo
uso e pelo valor que este imprime, regida por regras econômicas de apropriação do
espaço, apartando-se de questões como o direito ao pertencer a determinado
espaço, o direito de moradia, entre outros.
48
Haesbaert, a fim de definir um conceito teórico de território, apresenta três
vertentes conceituais para realizar tal intento:
- política ou jurídico-política – onde o território é visto como um espaço
delimitado e controlado através do qual se exerce um determinado poder,
muitas vezes – mas não exclusivamente – relacionados ao poder do
Estado.
- cultural ou simbólico-cultural: aquela que prioriza a dimensão simbólica e
mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como o produto da
apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço
vivido.
- econômica: enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, o
território como fonte de recursos e/ou incorporado no embate entre classes
sociais e na relação capital-trabalho, como produto da divisão “territorial” do
trabalho, por exemplo. (HAESBAERT, 1997, p. 39, 40).
A formação do território tem características materialistas - como um objeto
material – idealistas - pensadas a partir da ação do homem na comunidade - e
relacionais - que engloba a articulação dos processos sociais e do espaço.
A apropriação de determinado espaço pelo homem evidencia que não há
como desvencilhar as relações capitalistas das relações de produção e sociais que
elas imprimem ao território. O sistema capitalista, sob a visão contemporânea, dita
como e onde o espaço será formado, determina as verticalizações, planificações e
exclusões necessárias para o alcance da globalização.
A autora Tatiana Dahmer Pereira (2009, p. 54) ao se referir a dinâmica da
acumulação capitalista, trata que o capital produz respostas parciais nos modos de
vida, evidenciando que estabelecer relações sociais e de produção, também
conquistam melhorias nos seus modos e qualidade de vida, mesmo que o acesso a
distribuição de renda seja parcial.
Parciais ou não, os espaços, os territórios têm sido formados e formulados
como expressão e síntese destas situações, a partir da ação de atores sociais,
econômicos e territoriais.
Numa retomada conceitual recente, já nos anos de 1970, segundo Lefebvre
(1972 apud SAQUET, 1978), o território apresenta-se com um produto de conflitos e
49
contradições sociais, ligado à reprodução das relações de produção, explicadas a
partir da teoria marxista.
As relações que perpassam o território, portanto, apresentam-se como
relações de poder, que produzem e reproduzem as relações sociais de produção
dentro de espaços privados e delimitados. Essas relações são apresentadas como
produtoras do espaço, ainda nos termos de Marx, na circulação espacial e territorial
e no poder na configuração dos territórios.
O poder, nos termos de Saquet (2013, p. 32), demonstra a submissão dos
cidadãos a um determinado Estado, produzido nas relações complexas da vida em
sociedade. O poder sobre as relações sociais e sobre o espaço.
Saquet (2013) rememora ainda o poder exercido através de relações
desiguais, hierárquicas, permeadas por relações de força, que operacionalizam os
aparatos de produção, nas famílias, nos grupos, permeadas de intenções e
objetividades, de resistência, conflitos.
Nesta perspectiva, ainda segundo Saquet (op.cit, p. 33), o território deve
contemplar esta “multidimensionalidade do mundo”, mudando significados e
conceituações, que consequentemente alteram as relações de poder.
O território, portanto, está intimamente ligado ao poder exercido em
determinado espaço, ao seu uso, à questão do cidadão e sua circulação (ou não)
em áreas geográficas distintas, a um espaço, a um lugar, contribuindo para a
apreensão das diferenças e das desigualdades que caracterizam as distintas formas
de produção, apropriação, valor e uso dos territórios nos diferentes momentos
históricos da sociedade.
Não cabe aqui realizar uma retomada às questões inerentes à teoria marxista
e das contradições por ele elencadas, oriundas do sistema capitalista e de suas
relações excludentes. Pretende-se, sim, demonstrar que as relações, além de
possuir uma interface social, são provenientes de todo percurso que remete a elas como o percurso das relações sociais de produção, da relação do homem com a
natureza, do homem com outros homens - e que as relações que ficam organizadas
em espaços de vivências, em seu território de vivência.
50
O território, sob a visão do poder e das relações que nele se instalam,
apresenta-se, portanto, como produto da práxis social contida sobre o principio de
totalidade.
Retornando ainda à abordagem de Dematteis (1970, apud SAQUET, 1978), o
território se apresenta como uma
(...) construção social, com desigualdades (em níveis territoriais, que variam
do local ao planetário), com características naturais (clima, solo...), relações
horizontais (entre pessoas, produção, circulação...) e verticais (clima, tipos
de culturas, distribuição do habitat...), isto é, significa uma complexa
combinação particular de certas relações territoriais (horizontais e verticais).
O território, enquanto construção, é fruto de relações de poder, apresentandose como um espaço de ocupação, apropriado e controlado, um lugar permeado por
símbolos e significados que denotam a interação do homem em um determinado
espaço. O território não diz respeito apenas às relações econômicas que o
perpassam, mas também às relações do homem com outros homens em seu
entorno e com a vizinhança que criam “solidariedade, laços culturais e desse modo a
identidade”, impondo interdependência (SANTOS, 1997, p. 255).
O geógrafo Milton Santos, em suas inúmeras obras, ratifica essa maneira de
pensar a questão do território. Segundo esse autor, território
(...) não é um conceito. Ele só se torna um conceito utilizável para a analise
social quando o consideramos a partir do seu uso, a partir do momento em
que pensamos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam
(SANTOS, 2004, p. 22).
Pensar o território, ou seja, trazer à luz um conceito que contemple sua
totalidade implica pensar a relação dos sujeitos com e no território, sua utilização,
pensar na “circulação” destes nos lugares, nos espaços comuns e privados.
Nesta linha, nos termos de Koga (2011, p. 36), não há como “engendrar
significado nenhum, mas o seu uso e sua interação com os homens é o que pode
encher de sentido o termo aqui em discussão”.
51
Sob esta ótica, para compreender o território, faz-se necessário compreender
as interlocuções dos indivíduos em seus espaços de vivências, nos lugares que
circulam e nas relações que se estabelecem. Rememorando mais uma vez Santos
(Op. cit, p. 22, 23), essa relação dialógica só é possível “porque os lugares e o
mundo tornaram-se conhecidos, porque a informação circula rapidamente”, pelo
processo de globalização vivenciado e pela força que este imprime no “processo de
ordenação do uso do território”.
Santos (2006, p. 15,16), a partir deste fato, afirma que “é o uso do território, e
não o território em si (...)”, e traz “formas, mas sim o território usado são objetos de
ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado”. Ou seja, o território deve ser
interpretado a partir de seu uso, de sua apropriação, pelas ações que os sujeitos
estabelecem junto ao espaço.
Dentro desta compreensão, o território apresenta-se como dinâmico e
inseparável da própria dinâmica dos sujeitos que “circulam”. Através dessa dinâmica
- relacionada às relações sociais de produção e à questão socioeconômica da vida
destes indivíduos – os sujeitos imprimem sentido a suas vidas e a seus espaços, ou
seja, passam a considera-lo como um espaço de vida e de vivências onde se come,
trabalha, transita...
Dessa maneira, evidencia-se a relação dialética entre o homem e seu
território, dialogando entre as personificações humanas que esta relação imprime
neste território. Estas interlocuções demonstram relações de poder e de controle
sobre o espaço usado, das produções e vivências.
Apresenta-se, dessa forma, além da questão da vivência, a do espaço e de
seu uso, referenciando o território como território usado que vem a evidenciar as
necessidades e possibilidades de ação política dentro dele. Esse uso do território
inclui os atores que nele circulam, o diálogo com a sociedade, as demandas,
possibilidades e heranças sociais. Além disso, contempla o movimento contínuo,
inscrevendo o território num sistema mais planetário, na relação da Terra com os
homens. (SANTOS, 2004)
Dessa forma, o território é verificado como
52
(...) não apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas
superpostas. O território tem de ser entendido como o território usado, não o
território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é
o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o
fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e
espirituais e do exercício da vida. (SANTOS, 2004, p. 10.)
O lugar, remetendo-se à questão do território como espaço de vivência do
indivíduo, nos termos de Pereira (2009, p. 34), não é tido como referência, sendo
referido apenas como “relevante para as determinações sociohistóricas de produção
e de existência do dinheiro sob condições específicas para as relações sociais”.
Milton Santos (1997, 2006) ao se referir ao lugar também o trata como espaço
de resistência dos indivíduos, mesmo permeado de fragmentações e de uniões,
como uma parcela própria do mundo.
Essa questão faz referência, também, à própria questão da exploração
exercida no território, o que para muitos autores está a serviço da economia,
retomando sempre ao ciclo estabelecido pelo sistema capitalista. Os espaços,
portanto, segundo Diniz (2012), atendem aos anseios do capitalismo e das relações
econômicas nele estabelecidas, não estão a serviço dos indivíduos que nele
circulam.
Esta percepção, para Rodrigo Diniz (2012) é uma percepção parcial do
espaço, fragmentada e que traz em si uma desvalorização do ser humano enquanto
sujeito de transformação do e no espaço.
Alguns autores diferenciam a questão do espaço e a do território, trazendo
conceituações diferentes a estes, porém, na maioria das vezes, suas interpretações
são similares e, em síntese, fazem referência ao chão onde os indivíduos circulam.
Santos (1996) alerta para não se confundir o espaço com o território,
nomeando o território como uma configuração territorial e definida em sua totalidade.
Quanto ao espaço, é conceituado como a totalidade verdadeira, semelhante a uma
relação entre a configuração territorial, a paisagem e a sociedade.
Para o autor:
53
Podem as formas, durante muito tempo, permanecer as mesmas, mas como
a sociedade está sempre em movimento, a mesma paisagem, a mesma
configuração territorial, nos oferecem, no transcurso histórico, espaços
diferentes. (SANTOS, 1996, p. 77).
Estes espaços diferentes, as espacialidades singulares, são resultados das
articulações entre a sociedade, o espaço e a natureza. Assim, o território poderá
adotar espacialidades particulares, conforme haja o movimento da sociedade (nos
seus múltiplos aspectos: sociais, econômicos, políticos, culturais e outros).
O território, como espaço “é um verdadeiro campo de forças, cuja formação é
desigual. Eis a razão pela qual a evolução espacial não se apresenta de igual forma
em todos os lugares”. (SANTOS, 1978, p. 122)
E ainda
(...) O espaço por suas características e por seu funcionamento, pelo que
ele oferece a alguns e recusa a outros, pela seleção de localização feita
entre as atividades e entre os homens, é o resultado de uma práxis coletiva
que reproduz as relações sociais, (...) o espaço evolui pelo movimento da
sociedade total. (SANTOS, 1978, p. 171).
Portanto, para se “entender” o território é necessário compreender que a
própria formação espacial é desigual, que os lugares são formados por sujeitos
singulares, realizando ocupações e apropriações de modos e maneiras diferentes,
as quais denotam a dependência destes sujeitos ao sistema capitalista. Ou seja, as
expressões da questão social que se inserem em determinado espaço foram
também base para a formação dele.
Dentro desta reflexão, as formações territoriais não são iguais, de modo que
não cabe uma generalização em seu trato, nem uma padronização em sua análise.
Ou seja, há uma diferenciação entre território e territórios, rurais ou urbanos,
que deve ser contemplada em nível político-administrativo.
Santos (1978, p. 145) se refere ao “(...) o espaço organizado pelo homem ser
como as demais estruturas sociais, uma estrutura subordinada subordinante. É
54
como as outras instâncias, o espaço, embora submetido à lei da totalidade, dispõe
de uma certa autonomia”.
Essa forma de se compreender o espaço corrobora para a visão de que sua
organização é social, definida historicamente. Parafraseando o materialismo
histórico e dialético de Marx, o espaço é compreendido como o lócus de morada do
homem e o lugar de vida.
Ou seja, a questão conceitual do território envolve as relações sociais do
homem com o espaço, como uma recuperação desse processo na interpretação do
lugar dentro do processo de reprodução do capital. (SANTOS, 1978; DINIZ, 2012).
Há que se vislumbrar que as cidades e seus territórios são categorias
presentes nas ações cotidianas e profissionais, através de políticas específicas
como “uma matriz relacional entre território e políticas públicas” como dimensões
para organização de sistemas de gestão. (DINIZ, 2012, p. 90).
1.3 A Família na Política de Assistência Social: Desconexão do Território
As articulações sobre família serão demarcadas a partir do século XX,
marcando que até a família moderna muitas transformações aconteceram que
refletiram nas articulações entre família e as políticas sociais contemporâneas.
No Brasil, o conceito de família teve forte orientação do Estatuto da Família
de 1939, inspirado numa visão conservadora, que estabelecia seus preceitos a partir
do casamento, como importante para aumentar a população do país e a de
consolidar e proteger a família em sua estrutura tradicional.
Remetendo-se ao contexto contemporâneo e moderno, a introdução do
conceito de família moderna separa esse núcleo do mundo e o opõe à sociedade,
constituindo um núcleo familiar solitário formado por pais e filhos, como uma
instituição ao mesmo tempo forte e fragilizada.
Entende-se a família como lugar de pertencimento, relacionada com a
identidade dos indivíduos, como um conjunto de pessoas unidas por laços de
consanguinidade, de afetividade ou de solidariedade, núcleo de apoio primeiro das
55
pessoas. É um todo articulado em que há relações de gênero e de geração
definidas, que implicam hierarquia e poder.
A convivência familiar é vista como um direito e não um dever, aparado
legalmente. Essa compreensão busca superar a concepção tradicional de família, o
modelo padrão, a unidade homogênea idealizada. A ampliação do conceito de
família
implica
reconhecer
arranjos
distintos,
em
constante
movimento
e
transformação.
A família aparece repaginada nos novos aparatos legais. A partir da
Constituição Brasileira de 1988, outros aspectos foram regulados à família,
mostrados em duas faces: uma protetiva e outra que denota ingerência na vida dos
indivíduos. O artigo 5º já denota a igualdade entre os sujeitos, sem distinção de
qualquer natureza. Já o artigo 226 é especifico a esta relação, afirmando ser a
família a base para as atenções dispensadas pelo Estado, foco de atenção e
proteção especializada. (BRASIL, 1988).
Desde a década de 1990, há uma tendência da centralidade na e da família
junto à execução da política pública. Segundo Carvalho (2003, p. 268), “o Estado e a
família desempenham papeis similares, em seus respectivos âmbitos de atuação:
regulam, normalizam, impõem direitos de propriedade, poder e deveres de proteção
e assistência. ”
Dessa maneira, pode-se verificar que as próprias funções da família e das
políticas se conectam, o que é imprescindível para o desenvolvimento e a
articulação do sistema de proteção social.
A centralidade da família nas políticas sociais está associada ao fato de a
família ser considerada como espaço insubstituível de proteção e de socialização
primárias dos indivíduos, como agente privado de proteção social, porém ainda não
há uma política específica de família. Portanto, a família constitui o núcleo básico e
matricial das seguranças assistenciais, porém para isto se faz necessário que ela
seja entendida através de um novo olhar, um olhar que a compreenda não apenas
como um conjunto de pessoas, mas sim como aquelas pessoas que se encontram
unidas não só por vínculos consanguíneos, mas também por laços afetivos e de
56
cooperação, o que para Cabanes (2006, p. 397) explicita como sendo a prevalência
de sua função de “proteção social”.
Ainda quanto às articulações de Cabanes (Op. cit, p. 390, 391), a família
apresenta-se como um elo de articulação entre os espaços públicos, como um
“objeto de controle das políticas públicas”.
A família, portanto, coloca-se como objeto e foco das políticas públicas, por
apresentar-se como um elo e agente de socialização primária de seus indivíduos
com o mundo e sua articulação, a partir e nos espaços, com a política.
Segundo as autoras Dalva Azevedo Gueiros e Thais Felipe Silva dos Santos
(2011, p. 76), a família, sob este prisma, apresenta-se como espaço privilegiado de
socialização, “para o desenvolvimento da cidadania, da proteção e do cuidado de
seus membros” como primordiais e que determinaram “sua primazia na concepção e
implementação da política de assistência social”, assumindo, portanto, a
centralidade e elegendo a matricialidade sociofamiliar que vem a “colocar em foco as
necessidades e peculiaridades das famílias, entendendo-as como sujeito coletivo”.
A família, segundo as autoras, apresenta-se como uma unidade relacional,
plural, construída historicamente por seus modos de vivências e sobrevivências
cotidianas, pelas desigualdades sociais que perpassam seu cotidiano, por suas
relações sociais e de trabalho e por sua interação com o mundo.
Dentro desta abordagem, ainda as autoras Gueiros e Santos (op. cit, p. 78,
79) evidenciam que
A matricialidade sociofamiliar e a centralidade na família fazem parte da
agenda das políticas públicas em vigor, conforme se constata nos marcos
legais alavancados pela Constituição Federal de 1988, espraiadas na
Política Nacional de Assistência Social, no Plano Nacional de Promoção,
Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência
Familiar e Comunitária e, mais ultimamente, na Lei Federal nº 12.010, de
03/08/09, que também trata de convivência familiar de crianças e
adolescentes.
Sob o prisma de sua articulação junto às políticas públicas, as legislações
advindas após a Constituição Federal de 1988, especificamente a PNAS, entendem
a família como
57
(...) mediadora das relações entre os sujeitos e a coletividade, delimitando
continuamente os deslocamentos entre o público e o privado, bem como
geradora de modalidades comunitárias de vida. Todavia, não se pode
desconsiderar que ela se caracteriza como um espaço contraditório, cuja
dinâmica cotidiana de convivência é marcada por conflitos e geralmente,
também, por desigualdades, além de que nas sociedades capitalistas a
família é fundamental no âmbito da proteção social (MDS, 2004, p. 41).
A PNAS considera a família como central em suas interlocuções cotidianas e
de vivências, trazendo-a como diretriz para ações e condutas, por sua função
protetiva e de promoção, mesmo em meio às adversidades.
A partir dessa aproximação, a autora Mariângela Belfiore Wanderley (2008, p.
14), embasada nos princípios da própria PNAS, interpreta a família como
(...) núcleo social básico de acolhida, convívio, autonomia, sustentabilidade
e protagonismo social, (...) como um núcleo afetivo, vinculada por laços
consanguíneos, de aliança ou afinidade, onde os vínculos circunscrevem
obrigações recíprocas e mútuas (...).
Ou seja, para ela, a família deve ser apoiada e fortalecida enquanto foco de
proteção social.
Dessa maneira, nos termos de Gueiros e Santos (2011, p. 76)
Todavia, para além da centralidade da família, a PNAS estabelece a
matricialidade sociofamiliar, colocando em foco as necessidades e
peculiaridades das famílias, entendendo-as como sujeito coletivo, conforme
referencia Sposati (2009). Conjecturamos que pensar a matricialidade
sociofamiliar significa compreender o momento e a situação social da
família, com a perspectiva de gerir tais aspectos a partir de suas
especificidades.
O que se denota aqui é a família sob o prisma da política, a partir da questão
da matricialidade sociofamiliar que, segundo Couto et al. (2010, p. 44), realiza um
deslocamento da abordagem individual para o núcleo familiar, “entendendo-a como
mediação fundamental na relação entre sujeitos e sociedade”.
Ainda segundo Couto et al. (2010, p. 54), a matricialidade familiar “significa
que o foco da proteção social está na família, principio ordenador das ações a serem
desenvolvidas no âmbito do SUAS”, observando seus arranjos, suas configurações,
suas condições sociais a partir de seus indivíduos.
58
Nos termos de Gueiros e Santos (Op.cit, p. 86), esse novo prisma “exige que
novas formas de enfrentamento das expressões da questão social sejam traçadas
para e com a família, de modo integrado e articulado com os serviços
socioassistenciais e as demandas”.
Segundo a PNAS, a família é o núcleo básico de acolhida, de convívio, de
autonomia, de sustentabilidade e de protagonismo social, não determinando um
modelo único de família a ser seguido, mas sim famílias, com modos de
organizações, arranjos, rearranjos, combinações e recombinações familiares
variadas.
Segundo Carvalho (2003, p. 272) a família enquanto núcleo central na PNAS
assegura ao indivíduo a segurança de pertencimento social, projetando processos
de seguranças e inclusões.
Os eixos estruturantes, preconizados pela PNAS/2004 e contemplados pelo
SUAS sob o olhar na família, são a matricialidade sociofamiliar e a centralidade,
verificando, portanto, que o núcleo familiar é mediador dos serviços oriundos da
PNAS e do SUAS.
Segundo as autoras Yazbek, Silva e Silva e Raichelis (Op.cit, p. 56) ao
colocar a família como central nas ações estabelecidas pelo SUAS, é imposto que
algumas questões sejam contempladas, relacionadas aos arranjos familiares
diversos que caracterizam muitas famílias pobres, à família como “grupo afetivo
básico, capaz de oferecer a seus membros as condições fundamentais para seu
desenvolvimento pleno; e também ao reconhecimento das singularidades e do
pertencimento da família a uma classe social.
A centralidade na família como eixo estruturante da política de assistência
suscita novas formas e concepções de família: a monoparentalidade, a questão de
gênero, os valores, os comportamentos, as relações e a vida social, ou seja, aquela
vivida no concreto, com suas diferenças internas, de gerações e de gênero, e no seu
contexto, em termos de suas relações e condições sociais, culturais, econômicas e
políticas.
59
Em síntese, remete-se, portanto, às particularidades e singularidades
expressas em um núcleo familiar, permeado de reflexos da sociedade, do território
em que vive. Os pilares do SUAS não culpam as famílias pela situação vivida ou
pela pobreza que as abate, mas sim as encaram como reflexo das interlocuções
cotidianas vividas por elas.
Em síntese, ainda remetendo-se a questão da matricialidade familiar e da
família como centro das atenções (COUTO et al., 2011), os novos arranjos
familiares, a questão da proteção social estabelecida pelas famílias, as ações
estabelecidas na unidade familiar, sua singularidade e pertencimento à determinada
classe social devem ser observadas e contempladas.
Em outras palavras, as famílias são o palco no qual a política de assistência
social finca seus alicerces e busca, junto com esses sujeitos, engendrar
possibilidades de inserção social, para garantir sua sobrevivência, o
acolhimento de suas necessidades e interesses e o convívio familiar e
comunitário – enfim, a proteção social. (GUEIROS; SANTOS, 2011, p. 85).
Não cabe aqui reduzir, portanto, a família a um conceito, mas sim ampliá-lo,
adotando “um conceito amplo, incluindo a perspectiva de formação a partir de laços
que transcendem o parentesco e o domicílio” (GUEIROS; SANTOS, 2011, p. 83-84),
ultrapassando “os limites da casa, envolvendo a rede de parentesco mais ampla”,
como uma “rede, com ramificações que envolvem o parentesco como um todo”,
viabilizando “sua existência como apoio e sustentação básicos”. (SARTI, 2005, p.
28-29) .
Dessa maneira, para incorporar esta concepção inovadora de família, foi
necessário articulá-la ao território, pela conexão que este realiza entre a vivência e o
espaço, entre o pertencimento e a vinculação, que entrecruzam condições objetivas
e subjetivas e denotam a vulnerabilidade dos territórios e das famílias.
O território se conecta aqui como um espaço de vida, da vida cotidiana ou,
nos termos de Koga (2011), como o chão para as políticas públicas.
Retoma-se aqui o imbricamento que estas categorias apresentam, porém que
se desconectam na interpretação da formação territorial de Piedade e se tornam
categorias distintas para a gestão da política de assistência social.
60
Neste sentido, o próximo capítulo objetiva decifrar a formação sócio-histórica
da cidade de Piedade a fim de subsidiar as interpretações das conexões e
desconexões entre território e família.
61
2 - O TERRITÓRIO DE PIEDADE E GESTÃO DA ASSISTÊNCIA
SOCIAL
“Ninguém foi mais andejo do que o paulista.
Ele esteve presente nos quatro cantos cardiais do Brasil.
Ele não foi apenas o conquistador, o alargador de fronteiras, foi antes de tudo o
povoador.
E quem povoa transmite seus usos e costumes e um acervo de lendas.“
Alceu Maynard Araújo
Refletir sobre a formação territorial de uma cidade implica romper com uma
visão generalista e permeada de reproduções. Implica percorrer os lugares, as ruas,
os entornos e contornos, observar as pessoas, seus passos e mudanças dentro do
espaço, o que, nos termos de Diniz (2012) requer conhecer e reconhecer os modos
de vida existentes e suas histórias, como um espaço do modo de vida.
É no território que as histórias acontecem, que a vida se estabelece, que há a
reprodução das necessidades, dos modos de vida.
O território, sob este prisma, remete-se ao espaço de vivência de indivíduos e
suas famílias, conforme referencia a autora Dirce Koga:
O território também representa o chão do exercício da cidadania, pois
cidadania significa vida ativa no território, onde se concretizam as relações
sociais, as relações de vizinhança e solidariedade, as relações de poder
(KOGA, 2011, p. 33).
A questão da cidade, portanto, é a uma formação complexa e viva, formada
de pessoas, em um espaço, em um chão de vivências e formações.
A cidade cria forma através de seus atores e interlocutores, como espaço
vivo, o que nas observações de Kurka (2008, p. 72) são espaços do “concreto onde
vivem cidadãos, o material, o conjunto das infraestruturas e dos equipamentos (...)
onde está o conjunto da materialidade que permite a vida coletiva”.
62
Nas interlocuções entre a questão do território e da própria política se
evidencia a questão da cidade como “a maior aproximação territorial enquanto
referencia para a configuração de prioridades para políticas públicas”. (KOGA, op.
cit, p. 89)
Dessa forma, entender a formação de um território, de uma cidade é
necessário para se pensar as interlocuções da gestão política em determinados
espaços.
Dentro dessa perspectiva, este capítulo se propõe a compreender a formação
territorial da cidade de Piedade e as interlocuções desta formação na gestão da
política de assistência social municipal, pois, como já delineado no capítulo anterior,
a singularidade dessa cidade está na sua conformação socioterritorial, em que
família e território se vinculam de tal forma que a identidade territorial se confunde
com a própria identidade da família de formação.
2.1 A Formação Sócio Histórica de Piedade
Piedade, juntamente com outras 15 cidades, pertence à região de Sorocaba,
nas encostas da Serra do Paranapiacaba. Segundo historiadores, a cidade
permaneceu inexplorada até o ano de 1750. Nessa época, Sorocaba já era
considerada vila e era relativamente povoada, o que veio a refletir nas ocupações
territoriais das cidades circunvizinhas, que eram rota do tropeirismo.
Segundo Rodrigo Ayres de Araújo, historiador natural de Piedade e que
estuda o território há mais de 15 anos,
A fundação da cidade de Piedade está intimamente ligada ao Tropeirismo e
suas expedições realizadas na maioria das cidades da região de Sorocaba,
devido à rota dos tropeiros e que tiveram sua maior concentração na cidade
de Sorocaba e que deve ser contada antes de sua fundação no ano de
1840 (Depoimento colhido em setembro de 2013).
O estudioso Antônio Leite Netto, em seus estudos sobre a formação territorial
de Piedade, afirma que a região da Província de São Paulo, situada entre Sorocaba,
Cotia, Iguape e Cananéia permaneceram inexploradas até meados do século XVIII.
Eram terras de sertão e entre serras - São Francisco e Paranapiacaba - com
63
terrenos acidentados e de difícil acesso. Além disso, a variação climática não
favorecia a permanência de pessoas ali.
Netto (1987, p. 13) relata que, devido a essas particularidades, havia índios e,
por consequência, jesuítas, que procuravam ouro nos entornos da região,
principalmente próximo ao rio das Lavras, região de Ibiúna, onde edificaram um
colégio na Ressaca.
Até 1750, somente índios, garimpeiros e jesuítas circularam pelos entornos
de Piedade. Neste mesmo ano, foi criado, em Sorocaba, o Registro de Animais para
a cobrança de impostos das tropas que vinham do sul do país pela estrada aberta
por Cristóvão Pereira de Abreu. Tal situação “forjou” a mudança de rota para os
entornos do rio Pirapora, formando caminhos de passagens e paragens, onde se
formava lentamente um povoamento.
Esses dados históricos ecoam na narrativa de Rodrigo Ayres de Araújo,
segundo o qual:
Durante a época dos tropeiros e do ciclo do Tropeirismo, a região de
Piedade era foco e rota para a passagem das tropas, visto que em muitas
das regiões da cidade as pastagens eram vastas e serviam para alimentar
os gados e cavalos que seguiam junto às tropas. Durante estas passagens
pela cidade apareceram alguns conglomerados populacionais e logo após,
a formação de um vilarejo. Esta ainda vai além da época do tropeirismo,
que a formação do território pode ter sofrido influencia das Sesmarias e de
Portugal, visto que aqui, pela rota própria que o Vale do Ribeira fazia, pois
aqui na cidade a questão da passagem do Rio Pirapora. (Depoimento
colhido em setembro de 2013).
Na mesma época, foram distribuídas as sesmarias – exatamente no ano de
1779 - com o registro da paragem de Pirapora, porém sem povoamento. Já em
1809, os primeiros desbravamentos foram acontecendo, com as paragens do rio
Turvo e Pirapora, ideais para tropeiros que procuravam pouso, lugares que
oferecem água e pastagem para seus animais (NETTO, 1987).
Rodrigo Ayres de Araújo, em seu ensaio intitulado “A ocupação dos Altos do
Paranapiacaba” (s/d), quando aborda as sesmarias, identifica que a ocupação das
terras no século XIX era realizada por famílias e que os bairros que se formavam
recebiam os sobrenomes dessas famílias.
64
Na paragem do Pirapora surgiu o primeiro povoamento, exatamente na região
central da cidade, o que se justifica pelos fatos elencados por Rodrigo Ayres de
Araújo, reproduzidos a seguir:
(...) a maioria das áreas pertencentes à região central da cidade eram de
pastagens, de plantas gramíneas, como também de algumas plantações,
tais como a de algodão que era mais localizada onde hoje é o Bairro dos
Moreiras. Ainda hoje nos Moreiras ainda há um único algodoeiro que
comprova tal fato (Depoimento colhido em setembro de 2013).
A primeira contagem populacional e reconhecimento do território de Piedade
como espaço ocupado ocorreu em 1836. Segundo Netto (1987, p. 16), o povoado
era composto por “45 famílias num total de 205 pessoas, entre os quais três
escravos e 69 pardos”, que produziam milho, fumo e feijão.
O que se pode evidenciar aqui também é a conformação territorial de Piedade
desde o seu inicio como formação territorial familiar.
Numa prévia identificação das origens de muitas das famílias que dão nome
aos bairros da cidade, muitos dos antepassados vieram da região do Vale
do Ribeira e das cidades circunvizinhas, até mesmo sua família que ocupou
neste período a área central da cidade (Rodrigo Ayres de Araújo,
depoimento colhido em setembro de 2013).
Segundo Netto (op. cit, p. 19), os primeiros moradores a se instalarem
próximo ao rio Pirapora, juntamente com os capitães Francisco José Moreira e
Francisco Antônio de Moraes, construíram o primeiro povoado nas terras doadas por
Vicente Garcia. Lá, edificaram uma capela Nossa Senhora da Piedade, em 29 de
maio de 1840. A imagem de Nossa Senhora da Piedade - ou de Pietá - fora doada à
referida igreja entre os anos de 1831 e 1835, pelo mascate Vicente Garcia.
Nos anos subsequentes, o povoado atraiu novos moradores após a edificação
da capela, pela própria cultura interiorana e religiosa da época, que perdura até os
dias atuais.
Não há como se afirmar ao certo quem foi o fundador de Piedade. Muitos
historiadores e estudiosos da formação territorial da cidade atribuem sua fundação a
Vicente Garcia, a Manuel Ribeiro, a Francisco Moreira, a José Francisco Rosa e
Demétrio Machado.
65
A lei nº 16, de 03 de março de 1847, elevou o povoado de Piedade à condição
de “Freguesia”, pertencente à Câmara de Itu. Uma observação importante é que a
cidade de Itu, sob uma visão geográfica, está distante 70 km de Piedade, porém, a
própria administração local observou ser a cidade mais próxima para administrá-la.
No ano de 1850, o fluxo migratório para Piedade começou a diversificar a
produção agrícola, antes voltada ao cultivo do milho, do feijão e do fumo.
Em 1857 a população era de 3.445 habitantes, que produziam produtos
agrícolas tais como café e açúcar, além de criar gado de corte. A produção de
algodão era grande, devido à implantação das fiações e tecelagens em Sorocaba e
devido, também, à Guerra de Secessão nos Estados Unidos, que
destruiu a
produção algodoeira do sul do país, obrigando a Inglaterra - grande produtora de
tecido na época - a adquirir este produto do Brasil. Desde o início, a economia da
cidade era voltada para a produção agrícola, que perdura até a atualidade.
Com o crescimento ocorrido nesse período, tornou-se emergente a criação de
estratégias administrativas para a cidade em formação. Por isso, em 1857, foi
instalada a Câmara Municipal, porém as atividades de fato só se iniciaram no ano
subsequente (NETTO, 1987).
No mesmo ano, a Lei Provincial de nº 8, de 24 de março de 1857, elevou a
Freguesia de Nossa Senhora da Piedade à condição de Vila, que foi instalada em 22
de setembro de 1857, desmembrando-a de Sorocaba.
Rodrigo Ayres de Araújo, remetendo-se a esse fato, relembra a influência de
Sorocaba na formação territorial de Piedade. Segundo ele:
(...) hoje tal fato é esquecido visto que a população em si observa que a
influencia maior sempre foi de Sorocaba. A população de fato só reproduz a
história que é comum a todos e contada, não evidenciando ao certo as
influências externas.
(...) não há de fato uma história da formação condizente com os fatos
históricos que permeavam a sua formação (Depoimento colhido em
setembro de 2013).
Há forte influencia de Sorocaba na formação territorial de Piedade, visto que
pela própria proximidade e pelas áreas de pastagem, a região tornou-se rota do ciclo
do tropeirismo.
66
No período compreendido entre 1850 a 1859, a cidade exportava produtos
agrícolas e gado, e sua população vinha aumentando com a vinda de imigrantes,
principalmente portugueses.
Os portugueses que migraram para Piedade influenciaram sua formação
política. Com a criação da Câmara Municipal em 1857, João Rodrigues de Silva
Passos, um dos primeiros portugueses a migrar para Piedade, começou a participar
da formação política da cidade: primeiramente inseriu-se como professor a depois
atuou como político.
A questão da imigração na formação territorial de Piedade é muito forte:
houve grande influência econômica e cultural de imigrantes portugueses, alemães,
espanhóis, japoneses e italianos.
Ainda quanto à presença de imigrantes, a formação territorial, principalmente
aquela localizada em território rural, contou com a formação de bairros familiares.
Retoma-se, aqui, a concepção da formação de “famílias – territórios” como, a título
de exemplo, o bairro da Roseira, constituído pela família alemã Güller; o bairro de
Vila Élvio, formado por imigrantes da família Piccin e Bortolini; os bairros Batata
Doce, Liberdade e Sarapuí de Cima, formados pelas famílias de imigrantes
japoneses Abe, Katsuragawa, Ono, Saito, Nagao, Hatadani, Hassegawa.
A região central teve sua formação territorial influenciada pela colônia
portuguesa - como a família Parada - e a colônia espanhola - Sanches, Rojo,
Rodrigues, Ijano, Martins, Jimenez, Gusmão, Domingues, Ortega, Robles, Henares,
Escanhoela, Surano, Canalles e Brum.
Os espanhóis trouxeram para a cidade o cultivo da cebola, responsável por
torná-la a “Capital da Cebola”. A colônia japonesa fortaleceu a produção de
hortaliças, tomate, alface, cenoura, alcachofra, morango, caqui e pêssego. Os
demais tinham o traquejo comercial, fortalecendo ainda mais a economia
piedadense.
Os primeiros bairros, portanto, tiveram essa característica de “bairro familiar
ou bairro de famílias” e foram nomeados com os sobrenomes destas famílias. Após
a instalação da câmara, esta identificou a presença de alguns bairros que
67
antecediam a própria formação de Piedade enquanto vila, tais como Jurupará,
Piraporinha, Pereatuba, das Lavras Velhas, Mato Dentro, Batea, Ortiz, Sarapuí,
Ribeirão Grande, Turvinho, Boa Vista, Poço, Pirapora, Loureiro, Corrêas, Caetezal e
Funil, datados de 1877.
Com a proclamação da República, outros bairros foram surgindo ou
modificando sua nomenclatura enquanto outros se extinguiram. Os bairros que se
formaram após este período foram Ortizes, Mato Dentro, Garcias, Piratuba, Poço,
Oliveiras, Sarapuí, Sarapuí de Cima, Turvo, Turvo de Cima, Caetezal, Bonito, Rosa
Soares, Lavras, Alegre, Jurupará, Sarapuí de Baixo, Corrêas, Fogaça, Boa Vista,
Pirapora, Bateia, Furnas, Ciriaco e Liberdade.
Quanto à formação cultural da cidade, Rodrigo Ayres de Araújo informa que
(...) a cidade não dispõe de uma cultura típica de Piedade, tal como comida
típica e costumes que se relacionam com a sua formação cultural.
(...) as atividades que se desenvolvem na cidade e que entram em seu
calendário como atividades culturais nada mais são do que ações de
“aculturamento”, pois não desenvolvem nada que é próprio da cidade e nem
da região. Sinto muito quanto esta questão do aculturamento junto aos
jovens, pois na maioria das escolas em que lecionei esta questão era muito
evidente, pois na maioria das vezes as influências culturais e de
comportamento que recebiam eram externas e, na maioria das vezes, um
aculturamento midiático (Depoimento colhido em setembro de 2013).
O autor Rodrigo Diniz, ao tratar da formação territorial, evidencia que não há
como separá-la do conceito de cultura, o que diverge do depoimento de Rodrigo
Ayres de Araújo. O que se pode aferir aqui não é uma ausência, mas sim resultado
da própria formação sócio-histórica brasileira do território e da cidade, nas qual se
agregam valores culturais dos colonizadores.
Para Diniz (2012, p. 70) “(...) entendemos a cultura como um processo
organizativo sócio-histórico, que diz respeito às ações e ao modo como os homens
se organizam para construírem suas vidas”.
Dessa maneira, é a partir da cultura que o homem cria sentido ao seu modo
de existir em sociedade, em determinado espaço, criando respostas sobre suas
necessidades sociais e materiais. (DINIZ, 2012 apud CHAUÍ, 2004, p. 246).
68
Nessa perspectiva, poderíamos aproximar o processo sócio-histórico em
Piedade com a dimensão da territorialidade, que se distingue da questão do território
ao mesmo tempo em que a contém. Segundo Saquet:
A territorialidade é um fenômeno social que envolve indivíduos que fazem
arte de grupos interagidos entre si, mediados pelo território; mediações que
mudam no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo, a territorialidade não
depende somente do sistema territorial local, mas também de relações
intersubjetivas; existem redes locais de sujeitos que interligam o local com
outros lugares do mundo e estão em relação com a natureza. O agir social é
local, territorial e significa territorialidade. (SAQUET, 2007, p.115)
O comércio, a política e a religião eram atraiam imigrantes e migrantes para a
cidade, o que suscitava um aumento significativo da população nesta época.
A urbanização só veio nos anos de 1880, com a construção da Matriz, com a
criação do Club Literário em 1875 e outros eventos que sinalizavam de certo modo o
progresso em cena.
Maricato (2011) ao referendar a questão do espaço urbano, afirma que as
interlocuções que suscitam sua formação vão além das relações sociais, e também
perpassam a questão da dominação econômica e do espaço.
Em síntese, a formação do espaço urbano está para além das relações
sociais, pois interligam, além delas, relações econômicas e de produção e relações
de produção e social, o que evidencia as relações de poder, conforme evidencia a
teoria marxiana.
No entanto, o desenvolvimento de Piedade dependeu de sua comunicação
com Sorocaba, que até 1907 era feita mediante tropas de burros, o que limitava a
economia. Porém, ao ser elevada à categoria de “Cidade” pela Lei Estadual n° 1038,
de 19 de dezembro de 1906, Piedade alcançou sua independência, foi contemplada
com a construção de uma estrada que melhor atendia suas demandas.
A partir de sua elevação como cidade, Piedade foi reflexo de todo movimento
histórico da própria política brasileira, que só apresentou reflexos maiores após o
ano de 1930.
69
Uma grande lacuna histórica se apresenta aqui, pois todos os ensaios e
publicações sobre a formação territorial da cidade de Piedade foram feitos após a
década de 1930. Observam-se apenas algumas associações do contexto sóciohistórico brasileiro e seu reflexo na cidade, porém há uma ausência documental que
os comprove.
2.2 Os Territórios de Piedade na Contemporaneidade
Mapa 1: Cidade de Piedade e região
Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2013.
Piedade integra, hoje, a Região Administrativa de Sorocaba. Quanto à sua
dinâmica demográfica, segundo o Censo IBGE de 2010, possuía 52.143 habitantes.
De acordo com o porte populacional estabelecido pela Política Nacional de
Assistência Social – PNAS, Piedade se identifica como uma cidade média, embora
pela dinâmica local possa ser identificada mais como uma cidade de pequeno porte.
Num recorte histórico, a partir de um levantamento do recenseamento
realizado entre os anos de 1908 a 1980, pode-se observar, na figura a seguir, que
taxa de crescimento fora significativa, porém, pequena se comparada à evolução
econômica vivenciada pelo país durante o mesmo período.
70
Figura 1: Formação Populacional em 1908 a 1980
Entre os anos de 1908 a 1980, pode-se verificar uma expansão populacional.
Conforme o gráfico, o primeiro recenseamento após sua elevação à cidade, fora no
ano de 1908. Naquele ano, a população recenseada era de 10.000 habitantes, não
discriminado a população urbana ou rural nem a quantidade de domicílios.
No censo de 1940, a população era de 15.220 habitantes. Foi considerado
um baixo crescimento para um período de 32 anos. Segundo Netto (1987), esse fato
se dá pelo momento histórico da cidade, pois foi um período de crise econômica e
de recessão, que suscitava a migração dos moradores de Piedade para outras
cidades da região.
O censo de 1940 diferenciava a população entre urbana e rural, e evidenciava
o reflexo da economia majoritariamente agrícola. Naquele período, a população rural
era de 11.202 habitantes, enquanto a urbana era de apenas 1.225. É interessante
notar a identificação de 1.129 estrangeiros, além de 417 habitantes considerados de
“periferia”, e mais 2.376 habitantes residentes na divisa entre Piedade e Tapiraí,
área de fronteira.
Já o censo de 1950 revelava uma população de 20.577 habitantes,
preponderantemente da área rural, com 16.952 habitantes, ou seja, 82% da
população, enquanto a zona urbana contava apenas com 2.911 moradores ou 18%
da população de Piedade.
71
Na década de 1960, o crescimento foi pequeno para o período, aumentando
para 21.728 habitantes. Isso se deu devido ao desmembramento do distrito de
Tapiraí do território de Piedade.
A
década
de
1970
também
apresentou
um
pequeno
crescimento
populacional, indo para 27.647 habitantes, sendo 20.701 do território rural e 6.947
do urbano.
O censo de 1980 evidenciou um crescimento mais significativo, totalizando
35.793 habitantes, sendo 13.054 moradores da área urbana e 22.739 da área rural.
Aquela década coincidiu com o período chamado de “Milagre Econômico”, que teve
reflexos expressivos na cidade.
Numa comparação com a população do estado de São Paulo e do Brasil,
pode-se observar que, nos últimos recenseamentos – Censo de 2000 e 2010, a
cidade aumentou 0,40%5 ao ano, obtendo um avanço populacional de 50.119 para
52.143 habitantes. Essa taxa foi inferior àquela registrada no Estado, que ficou em
1,10% ao ano, e inferior à de 1,06% ao ano da Região Sudeste, o que se pode
observar na figura a seguir.
Figura 2: Taxa de crescimento populacional anual
5
Os dados utilizados neste estudo referem-se ao estudo realizado pelo Ministério de Desenvolvimento
Social e Combate à Fome no ano de 2013 a fim de subsidiar a elaboração do Plano Municipal de
Assistência Social e o Plano Plurianual – PPA 2014-2017. Tais articulações encontram-se em:
http://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/METRO/metro_ds.php?p_id=359&p_ibge=35&p_geo=0,
acessado em 30 de outubro de 2013).
72
No período de 2000 a 2010, também houve alteração na taxa de população
urbana, que passou de 44% para 45,57%. Já a população rural foi 54,43% da
população total.
Esses dados comprovam que a cidade possui um território rural em
expansão, porém com algumas migrações para o centro urbano. Um fato que
contribuiu para este crescimento é a caracterização de alguns bairros como de “zona
urbana estendida”, o que alterou a formação e extensão territorial, urbanizando a
cidade, conforme pode ser observado na tabela a seguir.
Tabela 1: População total dividida por gênero, população urbana e rural.
A economia de Piedade é essencialmente agrícola, cerca de 90 %. A cidade
faz parte do cinturão verde, que abastece a metrópole de hortifrutigranjeiros da
grande São Paulo, responsável pelo significativo desenvolvimento da região. É
atualmente a maior produtora de alcachofra do estado. Como já evidenciado, a
população da cidade está localizada em sua maioria no território rural, visto que sua
economia gira em torno das atividades desenvolvidas neste lócus.
Ainda quanto ao aspecto econômico, entre 2006 e 2010, segundo dados
extraídos do IBGE (2010), o Produto Interno Bruto (PIB) da cidade cresceu 48,1%,
passando de R$ 400,2 milhões para R$ 589,4 milhões. O crescimento percentual foi
inferior ao verificado no Estado (55,4%). A participação do PIB da cidade na
composição do PIB estadual diminuiu de 0,05% para 0,03% no período de 2006 a
2010, conforme mostra a figura a seguir.
73
Figura 3: Participação dos setores no PIB da cidade em 2010
Apesar de o setor agrícola ter forte influência na economia local, o setor de
prestação de serviços é o que mais injeta dinheiro na economia piedadense, A
estrutura econômica municipal demonstrava participação expressiva do setor de
serviços, o qual responde por 67,1% do PIB municipal. Cabe destacar o setor
secundário ou industrial, cuja participação no PIB era de 14,4% em 2010 contra
13,8% em 2006. Os dados de Piedade apontam para o sentido contrário ao
verificado no Estado, cuja participação industrial decresceu de 25,3% em 2006 para
24,2% em 2010.
O setor de serviços aqui identificado é formado em sua maioria pelos serviços
públicos efetivados pelo governo municipal, de forma direta e indireta.
Quanto à questão da agricultura, pela própria interferência climática, a
produção é sazonal e com rotatividade de produtos, dentre eles leguminosas,
tubérculos, hortaliças, frutas e cereais.
Na tabela a seguir, pode-se verificar a produção conforme sua temporalidade.
74
Tabela 2: Distribuição das principais culturas agrícolas
Uma análise da dinâmica vulnerabilidade social / proteção social em Piedade
evidencia que a população em situação de vulnerabilidade social, a qual denota
ações de proteção social - em especial a básica - está localizada em perímetro rural
ou urbano estendido da cidade. Esses dados enquadram a cidade com uma das
mais vulneráveis da região.
A análise das condições de vida dos habitantes de Piedade, realizada pelo
IPVS (2010) 6, mostra que a renda domiciliar média de Piedade era de R$1.648,
sendo que em 25,6% dos domicílios não ultrapassava meio salário mínimo per
capita. Em relação aos indicadores demográficos, a idade média dos chefes de
domicílios era de 47 anos e aqueles com menos de 30 anos representavam 14,3%
do total. Dentre as mulheres responsáveis pelo domicílio, 15,0% tinham até 30 anos,
sendo uma parcela destas com crianças com menos de seis anos, o que equivalia a
8,0% do total da população.
O IPVS estabelece níveis de vulnerabilidade social que vão das categorias
baixíssimo a muito alto. Observa-se um alto percentual de população na condição de
vulnerabilidade social, somando-se desde a baixa até a alta (rurais), conforme
evidenciado na figura a seguir.
6
Dados utilizados para identificar o perfil social e de vulnerabilidade social foram extraídos do Índice
Paulista de Vulnerabilidade Social – IPVS do ano de 2010, desenvolvido pela Fundação Sistema de
Analise
Social
–
SEADE,
através
do
endereço
eletrônico:
http://www.iprsipvs.seade.gov.br/view/index.php, acessado em 30 de outubro de 2013.
75
Figura 4: Níveis de vulnerabilidade social
Fonte: Censo 2010, IPVS 2010.
Ou seja, cerca de 65% da cidade de Piedade, segundo o IPVS 2010,
encontra-se na condição de vulnerabilidade social, com destaque para 18% na área
rural e 6,3% na área urbana. Enquanto a média do Estado de vulnerabilidade alta na
área rural é de 1,0%, a mesma situação medida em Piedade atinge 18% da
população.
O mapa do IPVS 2010 evidencia esse cenário, indicando os setores rurais
com mais alta vulnerabilidade social, como se observa a seguir.
Mapa 2: IPVS de Piedade - 2010
Fonte: Fundação Seade, 2013.
76
A cidade de Piedade, segundo o IPVS 2010, apresenta um alto índice de
vulnerabilidade social, com maior concentração no território rural. Evidências disso
são a crise na produção agrícola e as questões territoriais e espaciais.
A área central apresenta um índice alto de vulnerabilidade, identificado
através de alguns bairros: Bom Pastor, Moreiras, Paulas e Mendes. A região central,
considerada como “Centro”, não apresenta situação de vulnerabilidade social, visto
que sua formação territorial e familiar imprime certa estabilidade sociofinanceira.
Os territórios rurais mais vulneráveis estão localizados nas bordas da cidade,
o que denota que o afastamento do centro urbano, do perímetro urbano mesmo que
estendido, privando os moradores dessas regiões do direito à cidade e a seus
recursos, de seus serviços socioassistenciais e aos demais bens e serviços.
Esses territórios são os mais afastados do centro urbano e da rede de serviço
socioassistencial, cerca de 30 a 40 km em média. Ficam, portanto, excluídos de
todos investimentos, dos mínimos sociais necessários para uma sobrevivência
digna, tais como acesso à rede de abastecimento de água e esgoto, acesso à
iluminação elétrica, à moradia digna, entre outros.
A maioria destes bairros rurais é de formação familiar, tais como Oliveiras,
Miguel Russo, Vila Moraes, Piratuba. Eles ainda desenvolvem ações de agricultura
familiar. Em substituição das ações do Estado, a família aqui não é vislumbrada
como rede de proteção social, visto que, com as fragilidades observadas – déficit
educacional e desigual distribuição de renda e de serviços – a própria solidariedade
é frágil e as inseguranças sociais acometem a maioria das famílias desses bairros.
Um dado que merece destaque é a vulnerabilidade habitacional na cidade de
Piedade. A cidade recentemente aderiu a alguns programas governamentais – como
o Minha Casa Minha Vida, Casa Paulista e o Programa Nacional de Habitação Rural
– a fim de dirimir as expressões da questão social, que perpassa a questão
habitacional. Porém, o déficit habitacional é de mais de 50%, sendo em sua maioria
na área rural. Isso ocorre porque, além das más condições de acesso, não há
documentação civil – tanto do imóvel quanto do indivíduo - como também há a
condição de comodato e de arrendatário, que priva os habitantes da zona rural do
direito de posse.
77
Tabela 3: Indicadores Habitacionais
Fonte: PNUD, 2014
Segundo o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH7, o Índice de
Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de Piedade foi de 0,716, em 2010. A
cidade está situada na faixa de Desenvolvimento Humano Alto (IDHM entre 0,700 e
0,799). Entre 2000 e 2010, a dimensão que mais cresceu foi Educação (com
crescimento de 0,177), seguida por Longevidade e por Renda. Entre 1991 e 2000, a
dimensão que mais cresceu em termos absolutos foi Educação (com crescimento de
0,230), seguida por Longevidade e por Renda, conforme se observa na tabela a
seguir.
Tabela 4: Índice de Desenvolvimento Humano em Piedade
7
Os dados utilizados nesta pesquisa foram retirados do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil
2013, realizado pelo PNUD, que estabelece a consulta ao Índice de Desenvolvimento Humano
Municipal – IDHM - de 5.565 municípios brasileiros, além de mais de 180 indicadores de população,
educação, habitação, saúde, trabalho, renda e vulnerabilidade, com dados extraídos dos Censos
Demográficos
de
1991,
2000
e
2010.
Eles
encontram-se
disponíveis
em
http://atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil/piedade_sp, acessado em 08 de agosto de 2013.
78
Segundo o exposto em relação ao perfil da cidade, verifica-se que Piedade
ocupava a 1.427ª8 posição, em 2010, em relação às 5.565 cidades do Brasil, sendo
que 1.426 (25,62%) cidades estão em situação melhor do que o referido município e
4.139 (74,38%) cidades estão em situação igual ou pior. Em relação às 645 outras
cidades de São Paulo, Piedade ocupa a 500ª posição, sendo que 499 (77,36%)
cidades estão em situação melhor e 146 (22,64%) cidades estão em situação pior ou
igual. Ou seja, no estado de São Paulo, a cidade de Piedade, segundo o IDH 2010,
está em uma das últimas posições.
Piedade hoje é a cidade mais vulnerável socialmente das 15 cidades que
compõem a região de Sorocaba. Está abaixo de cidades que possuem PIB menores
que o dela e ainda não tem uma rede de proteção social estabelecida.
Numa análise recente, ainda traçando o IDH de Piedade, observa-se que a
renda per capita média de Piedade cresceu 67,85% nas últimas duas décadas,
passando de R$358,25 em 1991 para R$552,06 em 2000 e R$601,32 em 2010. A
taxa média anual de crescimento foi de 54,10% no primeiro período e 8,92% no
segundo. A extrema pobreza (medida pela proporção de pessoas com renda
domiciliar per capita inferior a R$ 70,00, em reais de agosto de 2010) medida pelo
Índice Gini9, passou de 7,78% em 1991 para 6,56% em 2000 e para 2,43% em 2010,
como consta na tabela a seguir.
8
Dados extraídos do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil 2013.
O Índice Gini é um instrumento usado para medir o grau de concentração de renda, ou seja, para
calcular a desigualdade social expressa através da distribuição desigual de renda. Ele aponta a
diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. Numericamente, varia de 0 a 1,
sendo que 0 representa a situação de total igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda, e o valor 1
significa completa desigualdade de renda, ou seja, se uma só pessoa detém toda a renda do lugar.
Conceito extraído de http://atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil/piedade_sp#vulnerabilidade, acessado em
10 de janeiro de 2014.
9
79
Tabela 5: Renda, Pobreza e Desigualdade Social em Piedade.
Ainda quanto à questão da vulnerabilidade social, pode-se sintetizar que as
expressões da questão social que mais influenciam os modos de vida da população
de Piedade estão ligadas ao acesso precário ou ao não acesso a recursos
socioassistenciais ou a algumas políticas públicas e de proteção social, conforme se
afere na tabela a seguir.
Tabela 6: Vulnerabilidade Social em Piedade
Remetendo-se ainda às condições de vida da população piedadense,
traçando um perfil social desta população pela gestão municipal da política de
assistência social, pode-se observar que o último relatório socioterritorial realizado
80
pelo MDS no final de 2013 traça e delimita os territórios e lócus de maior
vulnerabilidade social na cidade10.
As maiores inseguranças sociais estão no acesso ou não da renda,
evidenciado pelos baixos índices de inserção no mercado de trabalho e baixa renda
familiar, configurações familiares frágeis e más condições de moradia – moradia
aqui se configura como condições dignas de habitar em espaço salubre socialmente,
com acesso a abastecimento de água, luz e de esgoto como direito a um mínimo
social.
Conforme dados do Censo (2010), a população total da cidade era de 52.143
residentes, dos quais 2.239 se encontravam em situação de extrema pobreza, ou
seja, com renda domiciliar per capita abaixo de R$ 70,00. Isto significa que 4,3% da
população municipal viviam nesta situação. Do total de extremamente pobres, 1.141
(50,9%) viviam no meio rural e 1.098 (49,1%), no meio urbano.
O Censo também revelou que na cidade havia 147 crianças em situação de
extrema pobreza na faixa de 0 a 3 anos e 112 na faixa entre 4 e 5 anos. O grupo de
6 a 14 anos, por sua vez, totalizou 447 indivíduos na extrema pobreza, enquanto no
grupo de 15 a 17 anos havia 116 jovens nessa situação. Foram registradas 158
pessoas com mais de 65 anos na extrema pobreza. 36,8% dos extremamente
pobres da cidade têm de zero a 17 anos.
Quanto aos níveis de pobreza, em termos proporcionais, 3,8% da população
está na extrema pobreza, com concentração maior na área rural (4,5% da população
na extrema pobreza na área rural contra 2,9% na área urbana) (Censo, 2010).
Tabela 7: Distribuição da população em extrema pobreza por faixa etária
Piedade
10
População em situação de extrema pobreza por faixa etária Idade
Quantidade
0a3
147
Os dados foram extraídos do sistema Data Social 2.0, no endereço eletrônico:
http://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/METRO/metro_ds.php?p_id=235, acessado em 30 de outubro
de 2013.
81
4a5
112
6 a 14
447
15 a 17
116
18 a 39
800
40 a 59
459
65 ou mais
158
Total
2.239
Fonte: IBGE 2010
A tabela 7 explicita que o maior índice de situação de pobreza está na fase
adulta, dos 18 aos 39 anos, e se associa à questão da inclusão - ou não inclusão na vida produtiva. Na sequência, aparece a faixa etária dos 6 aos 14 anos, o que se
reflete na gestão da assistência social através dos benefícios assistenciais.
A tabela a seguir explicita ainda mais tal situação vivenciada.
Tabela 8: Renda por Situação de Pobreza
Com foco nos dados sociais e nas particularidades que expressam quanto à
formação territorial da cidade de Piedade, algumas respostas devem ser
construídas, a fim de colaborarem para a interpretação da gestão municipal da
assistência social em estabelecer respostas.
82
Sob este enfoque, buscaremos explicitar como é a gestão municipal da
assistencial social em Piedade, a fim compreender os fios que entrelaçam a política
de assistência social e imbricam as categorias família e território.
2.3 Gestão Municipal da Assistência Social em Piedade
Por se tratar de uma cidade tipicamente interiorana e com uma história
fortemente marcada pela religião, o catolicismo, as primeiras iniciativas de uma
política assistencial tiveram início no século XIX, no bojo da igreja católica, com
caráter caritativo. Rastros dessa origem assistencialista, ligada à doutrina social da
Igreja, perduram até hoje na região e dificultam que o senso comum seja capaz de
distinguir política assistencial de assistencialismo.
Na década de 50, iniciaram-se algumas ações que fomentaram uma política
de assistência social. A partir do incipiente programa de transferência de renda para
famílias pobres, mantido pelo Serviço de Colocação Familiar, ligado ao Poder
Judiciário, estabelecido no Estado de São Paulo, iniciaram-se as primeiras práticas.
Tais ações eram ligadas à visão de policiamento, fortemente ligada às premissas do
Código de Menores de 1927, com resquícios da visão doutrinária e eclesiástica.
Criado pela Lei Estadual nº 560, de 27 de dezembro de 1949, o serviço
repassava a essas famílias, por meio do Juizado de Menores, um auxílio financeiro
para que elas pudessem manter os filhos.
Outras ações assistenciais se iniciaram na cidade, iniciativas da sociedade
civil, através da criação de instituições assistenciais que atendiam, de início, essa
demanda – crianças e adolescentes que perambulavam pelas ruas. Porém, muitas
dessas instituições ainda eram ligadas à Igreja, à caridade, ao assistencialismo,
tendo uma visão reduzida e patológica das expressões da questão social, uma visão
muito atrelada a “situações problemas”, “casos”, “pessoa-problema”, “pessoaproblemática”, “família-desestruturada”, “delinquência”, afastada de uma visão
inclusiva, de totalidade, que abarcasse uma dimensão social a tais expressões.
83
Em 1984, o governo do Estado de São Paulo transferiu esse serviço para o
Poder Executivo, sob o nome de Instituto de Assuntos da Família (IAFAM)
11
, que
passou a integrar a estrutura da então Secretaria de Promoção Social. A atribuição
do IAFAM era proporcionar às crianças e adolescentes pobres condições favoráveis
ao pleno desenvolvimento físico e mental. Para isso, fornecia ajuda financeira às
famílias, que se comprometiam a participar de reuniões coordenadas por um
assistente social. Buscava-se fortalecer as relações familiares no âmbito das
relações sociais, transformando o subsídio financeiro em instrumento de política
social.
Segundo Maria Cristina Ponce Abreu12, a primeira assistente social a
estabelecer a prática do Serviço Social na cidade, o IAFAM foi a primeira prática
mais atrelada à política de assistência social sob a ótica não assistencialista, pois
demonstrava um avanço visto o contato com as famílias e seus indivíduos. Ela
relatou, porém, que o serviço não era bem estruturado, visto que ainda havia certo
descompasso e uma falta de sincronismo com os demais serviços.
Não havia
interligação e o Serviço Social era responsável por muitas atribuições.
Sendo assim, o IAFAM, passou a responder, a partir de 1984 até 1996, pelas
ações específicas de atendimento à família, buscando proporcionar às crianças e
aos adolescentes condições favoráveis ao pleno desenvolvimento físico e mental por
intermédio das seguintes ações:
●
Prestação de auxílio à própria família;
●
Transferência a lar substituto;
11
O Instituto de Assuntos da Família (IAFAM) foi criado pelo governador do Estado de São Paulo,
Franco Montoro, pelo decreto Nº 23.625, de 1.º de julho de 1985, que regulamenta a Lei nº 4.467, de
19 de dezembro de 1984, que transfere para o Poder Executivo o Serviço de Colocação Familiar, o
mesmo que introduziu o Fundo Social de Solidariedade no Estado. Para maior aprofundamento,
consultar
http://www.seplag.rs.gov.br
e
(http://www.desenvolvimentosocial.sp.gov.br/usr/File/2006/imprensa/Inovaes%20em%20Gesto%20So
cial%20Transferencia%20Renda.pdf), acessados em 19/07/2013.
12
Seu depoimento foi colhido no ano de 2010 para a realização de um levantamento quanto à Política
de Assistência Social, que compôs o trabalho monográfico intitulado “O acompanhamento
sociofamiliar no Centro de Referência de Assistência Social – CRAS/Garcias: uma experiência
profissional do assistente social no município de Piedade/SP, no período de 2008 A 2010”,
apresentado a Universidade de Brasília – UnB para titulação de especialista.
84
●
Realização de todas as atribuições do antigo Serviço de
Colocação Familiar;
●
Fornecimento de informes sobre características e transformações
familiares.
O auxílio financeiro variava de um décimo a um terço do salário mínimo, de
acordo com a condição social da família. Em caso de moléstia grave ou de motivos
julgados excepcionais, o valor concedido poderia ser acrescido de até 1/4 (um
quarto) do salário mínimo per capita.
No ano de 1997, a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social –
SADS dinamizou e ampliou o atendimento às famílias e propôs a implantação do
Programa Família, que se subdividia em dois subprogramas: Complementando a
Renda e Fortalecendo a Família. O primeiro concedia uma complementação da
renda familiar no valor mensal de até R$ 50,00/pessoa, enquanto o segundo
desencadeava um conjunto de ações com enfoque socioeducativo, tendo em vista o
fortalecimento do grupo familiar e o resgate da cidadania.
Em 1991, a Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social –
SEADS substituiu o Programa Complementando a Renda pelo Programa Renda
Cidadã. O Programa Renda Cidadã, instituído em setembro de 1991, teve como
principais diferenças em relação ao seu antecessor, a abrangência territorial, os
valores dos benefícios e a focalização.
O Programa Renda Cidadã atende hoje 140 famílias em situação de
vulnerabilidade social.
A partir do ano 2000, com a inserção dos programas estaduais de assistência
social, a cidade de Piedade alavancou a implementação da política pública municipal
de assistência social, com adesão e pacto posterior em âmbito federal, implantando
uma rede socioassistencial municipal.
Um dos programas com tal pactuação é o Programa de Transferência de
Renda Bolsa Família, o qual teve um crescimento considerável desde sua adesão
em 2006.
85
De acordo com os registros de abril de 2014 do Cadastro Único e com a folha
de pagamentos de maio de 2014 do Programa de Transferência de Bolsa Família, a
cidade de Piedade tem hoje 5.949 famílias registradas no Cadastro Único, sendo
que destas, 1.802 famílias são beneficiárias do Programa Bolsa Família (12,29 % da
população da cidade). Das famílias atendidas entre 2011 e 2014, apenas 106 das
cadastradas se encontravam em situação de extrema pobreza.
Das famílias cadastradas:
- 1.269 com renda per capita familiar de até R$70,00;
- 3.769 com renda per capita familiar de até R$ 140,00;
- 5.402 com renda per capita até meio salário mínimo.
Tal fato se dá por ainda não serem estabelecidas ações de vigilância social e
de busca ativa, que são vitais para o acesso desses indivíduos à garantia de renda.
Tabela 9: Transferência de Renda
Fonte: MDS, 2014
A gestão municipal, a fim de atingir e cumprir as metas estabelecidas pelo
programa Bolsa Família, buscou aprimorar-se a fim de “alcançar” os cidadãos
inatingíveis. A partir de ações pontuais, tais como centralização dos beneficiários por
território e um “ensaio” para a descentralização do programa, nos últimos anos
aumentou significativamente o número de cadastros.
Mesmo com os índices de vulnerabilidade social apontados, a cidade de
Piedade ainda apresenta sérias deficiências em atingir as famílias foco dos
programas sociais, principalmente do programa Bolsa Família, pois, pelo que se vê
na tabela 9, o número de famílias com renda inferior a R$70,00 é bem pequeno
perto da vulnerabilidade social já evidenciada inicialmente.
86
Ainda em referência à pactuação ocorrida em 2006 junto ao governo federal e
preconizada pela PNAS e NOB-SUAS, a cidade implantou no mês de janeiro, o
Centro de Referência de Assistência Social. Pelo porte da cidade neste momento,
pequeno porte II, este aderiu a duas unidades, ambas localizadas em território de
maior vulnerabilidade social que, segundo contexto recente, devido à grande crise
que atingiu a economia local, concentrava-se no perímetro rural. Por desenvolver
atividade agrícola e ainda não estabelecida, a gestão municipal da assistência social
verificou ser o território rural o que melhor contemplava as demandas exigidas por
esta política.
A cidade de Piedade, após esta pactuação, instalou nos territórios que
considerava mais vulneráveis 02 (dois) CRAS: um no bairro dos Pintos e outro no
bairro dos Garcias.
Pelo próprio histórico da cidade, a formação territorial de Piedade está
intimamente ligada aos percursos de muitas famílias no território. Os bairros,
principalmente os localizados em território rural, são formados por famílias que
chegaram aqui na época do ciclo do tropeirismo.
Os territórios de abrangências dos CRAS comportam a maioria destes
bairros familiares, tais como Vila Moraes, Piratuba Sampaio, Miguel Russo,
Oliveiras, Castanhos, Ortizes, Moreiras, Cotianos, Santos, Bento Ruivo, Garcias,
como também aqueles que comportam algumas particularidades – produção
agrícola, pecuária, tais como Carneiros, Monos, Goiabas, Ribeirão Bonito, entre
outros.
Nesta formação, já incide o imbricamento das questões familiares e do
território de formação, pois segundo relatos orais, foi a partir dos percursos destas
famílias nos espaços que as particularidades e singularidades de Piedade se
apresentaram como de vital importância para traçar os caminhos para a
territorialização das ações de assistência social.
Segundo Lopes (2010), o CRAS do bairro dos Garcias está localizado a 4 km
do centro urbano da cidade e hoje atende uma área de abrangência que, somada,
chega a mais de 300 km². Predominantemente, seu território de abrangência está
localizado no perímetro rural e é de difícil acesso, pois só se dá via meios de
87
transporte e encontra muitos problemas nas estradas vicinais. Mesmo localizado
próximo ao território de maior vulnerabilidade social, há uma grande dificuldade
quanto ao acesso, visto que este só pode ser feito via meio de transporte, que, na
maioria das vezes, circulam em média duas vezes durante a semana e só duas
vezes ao dia.
Ainda segundo Lopes (2010), o território de abrangência deste CRAS abarca
os bairros: Castanhos, Juruparazinho, Ortizes, Garcias, Vila Quintino, CDHU Marino
Godinho, CDHU Ezequiel, Moreiras, Piratuba, Piratuba Sampaio, Fazenda Limal,
Goiabas, Fazendinha, Jurupará, Bento Ruivo, Jardim São Paulo, Rosário, Pintinhos,
Capela de São Roque, Ciriaco, Vila Olinda, Paulas e Mendes, Bom Pastor, CDHU
Airton Senna, Cotianos, CECAP, Jardim Secol, Jardim Sinibaldi, Centro, Jardim São
Bartolomeu, Vila do Grácio, Sacilão, Nova Olinda e Santos.
A cidade de Piedade, a partir do Censo de 2010, e de acordo com o
estabelecido pela PNAS, modificou seu porte, sendo agora enquadrada como cidade
de “médio porte”, o que vem a suscitar mudanças significativas na gestão social.
A partir de fevereiro de 2011, visto a dificuldade de acesso, o CRAS dos
Garcias foi transferido para a região central e passou a ser chamado de CRAS Pietá.
A gestão da assistência social justificava essa mudança como sendo um facilitador
no acesso ao equipamento.
Instalado, portanto, em território central e de localização estratégica, próximo
à pequena rede de serviços socioassistenciais, o território precisou ser mapeado a
fim de contemplar todas as particularidades que a população em situação de
vulnerabilidade social vivenciava em seu cotidiano e que denotavam a ação da
assistência social municipal.
De acordo com o CADSUAS (MDS, 2013), a cidade conta com 2 CRAS(s),
que possuem cofinanciamento do MDS. O valor pactuado para cofinanciamento
mensal do(s) CRAS(s) na cidade é de R$ 24.000,00, com previsão de
cofinanciamento no ano de 2013 de R$ 288.000,00. Os CRAS(s) cofinanciados
possuem uma capacidade de atendimento de 2.000 de famílias/ano e capacidade de
referenciamento para 10.000 de famílias, conforme demonstra a figura a seguir.
88
Figura 5: Valores da Pactuação PAIF 2010-2013
Fonte: MDS, Data Social 2.0, 2013.
Ainda de acordo com os dados extraídos do MDS (2013) e com os registros
do Sistema Nacional de Informação do Sistema Único de Assistência Social (Rede
Suas), em dezembro de 2013 foram registradas 395 famílias em acompanhamento
pelo PAIF. Dessas famílias, 17 se encontravam em situação de extrema pobreza e
32 eram do Programa Bolsa Família. Nesse mesmo período, foi contabilizado um
total de 385 atendimentos individualizados nos CRAS da cidade.
Mesmo com a crescente demanda por uma gestão da assistência social que
contemplasse as particularidades sociais e territoriais, observa-se que, mesmo com
todo percurso da própria política de assistência social na cidade, não se identificava
um diagnóstico socioterritorial que elucidasse as vivências familiares a partir de seu
território ou indicadores que, segundo a autora Vera Telles (2006, p. 60),
apresentam-se como
Grades complexas de indicadores sociais e sofisticadas cartografias
urbanas fazem o traçado da pobreza no conjunto da cidade, dos pontos
críticos de concentração da exclusão territorial e vulnerabilidade social à
distribuição desigual dos equipamentos urbanos e serviços sociais. E no
seu conjunto vão desenhando os contornos de uma cidade muito desigual,
mas também heterogênea, com diferenciações importantes atravessando e
compondo os territórios da pobreza.
Ou seja, ainda nos termos de Telles (2006, p. 62)
89
O fato hoje é que sabemos mais e melhor sobre as características da
pobreza urbana, o modo como ela se distribui nos espaços das cidades e as
variáveis que compõem as situações de vulnerabilidade social e exclusão
territorial. Mas sabemos pouco sobre as dinâmicas, processos e práticas
sociais operantes nesse cenário tão modificado de nossas cidades.
Sabemos mais e melhor sobre a escala dos problemas sociais e os pontos
críticos espalhados pela cidade e seus territórios. Mas não sabemos
discernir as linhas de força que atravessam essas realidades.
Relacionando-se com essa questão, Koga (2011, p. 60) concluiu que, nas
interlocuções da política social, as questões subjetivas e da proteção social fazem
parte do território, pois relacionam-se as relações estabelecidas pelos sujeitos, na
condição de habitante e de morador de um determinado espaço.
Dessa maneira, partindo dos próprios pilares da Política Nacional de
Assistência Social, “família e território”, a gestão da assistência social da cidade de
Piedade busca, a partir da territorialização, interpretar seus reflexos.
O que se retoma, portanto, é a questão do território, sob a interpretação de
Aldaíza Sposati (2008, p. 01), como “um espaço dinâmico de relações onde
necessidades e possibilidades se confrontam no cotidiano”. Deste modo, retoma-se
a questão de pertencimento, das trajetórias como decisórias nas ações da própria
gestão. Ou, nas palavras de Sposati (Op. cit, 9):
(...) na perspectiva da análise territorial o processo metodológico exige que
se plantem os dados após ressignificados pela análise, isto é, que sejam
criadas raízes nos dados, no mesmo chão de onde foram extraídos e
submetidos a abstrações e generalizações desterritorializadas.
No caso, destacam-se os dados que dizem respeito ao cotidiano, à
dinâmica da luta pela vida ou às condições objetivas de reprodução social
cotidiana e de representação e convívio sócio-político.
Sob esse prisma, a gestão da assistência social baseada nesses pilares, em
síntese, deve considerar a interpretação das vivências territoriais como um espaço
que vai além da habitação, do domicilio, mas que engloba, também, a própria
questão da vivência e da convivência, do pertencer e se identificar com este espaço.
Ou seja, faz-se necessário, portanto, evidenciar “as trajetórias individuais e
coletivas a fim de orientar a análise da organização social e o papel do indivíduo”, os
“fios da meada” que tecem a relação entre espaço e indivíduo, na perspectiva das
relações, da identidade e da historicidade. (RAMOS; KOGA, 2011, p. 345, 347).
90
3 - CONEXÕES ENTRE TERRITÓRIO E FAMÍLIA EM PIEDADE:
TRAJETÓRIAS E RETORNOS
“Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma
classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a
simples tradição escrita.
É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que
enchem o panorama da história e são muitas vezes mais
interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas
escrevem a história.”
Sergio Buarque de Holanda
3.1 Percursos e Percalços: Retorno à Metodologia da Pesquisa
Territorializar é construir e reconstruir sem cessar pelo comportamento do
ator social, materialmente e em suas representações: pelo indivíduo e seu
grau de poder ou de influência; para o indivíduo é uma alquimia entre o
pessoal e o coletivo, onde nosso aparelho cognitivo não pode inventar tudo.
(DI MÉO, 1996, p. 21 apud KOGA; RAMOS 2004, p. 58).
Pesquisar as conexões entre território e família pressupõe um movimento de
retorno, complexo e particular, pois questiona a vida social dos homens em seu
território, com suas características singulares e particulares e seus modos de
pertencimento e vivência.
Conectar e imbricar tais categorias traz em si a responsabilidade na escolha
do tipo de pesquisa e da metodologia adequada, para que a pesquisa contemple a
amplitude expressa nessas conexões.
Seria um retorno à cidade, retornar à cidade de Piedade, a fim de conectá-la
às famílias e ao território, como modus operandi em alcançar o objetivo desta
pesquisa.
A escolha da cidade de Piedade é fruto de uma vivência própria, iniciada na
vivência laborativa, uma vez que a pesquisa parte do cotidiano vivido.
Ao percorrer seus territórios, encontrei “graça” em suas formações e
edificações, chegando até famílias que ora conectavam-se ao todo; ora se
desconectavam dele.
91
Vivenciando o cotidiano, o olhar vai se modificando, trazendo especificidades
do lugar que a práxis não poderia responder em si sem interligar e imbricar questões
elencadas na política social, no território e nas famílias.
A cidade traz em si conexões e desconexões, determinantes históricos que
remetem ao território usado, interpretado na perspectiva da totalidade em
movimento, através da compreensão de que eventos e particularidades da cidade
incidem tanto nos lugares quanto nos indivíduos que os habitam.
Esse território usado, segundo Milton Santos (2003, p. 96) é formado pelo
“(...) chão e mais a população, isto é uma identidade, o fato e o sentimento de
pertencer àquilo que nos pertence”, o que remete a um espaço que cria vida, um
espaço humano e habitado.
Além da questão da vivência, a questão do espaço e de seu uso – que
cunhou a expressão território usado - evidencia as necessidades e possibilidades de
ação política. Esse uso do território inclui os atores que nele circulam, o diálogo com
da sociedade, as demandas, possibilidades, herança social e seu movimento
contínuo (SANTOS, 2004). Essa visão inscreve o território num sistema mais
planetário, na relação da Terra com os homens, ou, nas palavras de Santos (2002,
p.10), o território é verificado como:
(...) não apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas
superpostas. O território tem de ser entendido como o território usado, não o
território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é
o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o
fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e
espirituais e do exercício da vida.
O território como método de análise é entendido na perspectiva do método
como “uma trajetória teórica, movimento teórico que se observa na explicação sobre
o ser social”. (YAZBEK, 2000, p. 23).
A cidade e seus territórios são, portanto, expressões das relações sociais, dos
movimentos projetados sobre um espaço, que se evidenciam na vida de indivíduos e
famílias. Por isso, só podem ser compreendidas a partir de seus “contextos sociais,
econômicos, políticos e culturais que incidem na globalidade das relações sociais,
que se presentificam no território”. (DINIZ, 2012, p. 96)
92
Para a autora Anita Burth Kurka (2008, p. 94)
(...) a formação de um território não leva em conta apenas as causalidades
na relação os entre elementos, mas também o contexto, pois cada lugar
possui sua especialidade e suas variáveis que se relacionam a partir e nos
contextos, no movimento do todo, na relação com a história.
Assim, dentro deste prisma, utilizar como categorias de análise território e
família se faz necessário a fim de interpretar as conexões entre a formação do
espaço e a formação familiar, na busca por compreender seu imbricamento e
expressões nas respostas das políticas sociais, especialmente na política de
assistência social, para a qual família e território constituem-se como dois pilares.
A família, como o território, apresenta e imprime nuances diferenciadas de
interpretação que só podem ser compreendidas, muitas vezes, quando se percorre o
chão onde ela pisa. Isso nem sempre é marcado por um trajeto retilíneo, fácil de ser
percorrido, sem curvas ou paradas.
Esse percurso em si traz nuances das trajetórias percorridas pelos indivíduos
nos territórios.
Chegar até os indivíduos e seus territórios usados e de vivências implica
conhecer as caminhadas realizadas por cada um deles no espaço determinado,
suas dificuldades, suas vitórias, sua sobrevivência dentro de territórios que denotam
vulnerabilidades sociais, muitas mazelas e inseguranças.
A vivência territorial aqui se expressa como uma forma peculiar de
pertencimento, pois viver e pertencer a determinado espaço apresentam-se como
sinônimos.
Este estudo sobre o território e a família parte desse pressuposto, alinhando-o
aos métodos qualitativos de pesquisa, com uma metodologia privilegiada que busca
apreender o real a partir de seus sujeitos sociais.
O olhar qualitativo busca significados desses processos sociais, os quais não
podem ser conferidos apenas por dados estatísticos e numéricos. Retoma-se, aqui,
categorias fundamentais, tais como a historicidade dos fatos que constroem
contextos sociais e fundam territórios.
93
Nessa perspectiva, a partir da historicidade dos sujeitos, histórias começam a
ser ouvidas e traçadas. Elas são fundamentais para interpretar o território como um
conceito relacional, “tecido e movimentado pelos indivíduos”, (DINIZ, 2012, p. 99)
que justifica o estudo da sociabilidade dos sujeitos por este viés.
(...) trazer à tona o que os participantes pensam a respeito do que está
sendo pesquisado, não só a minha visão de pesquisador em relação ao
problema, mas é também o que o sujeito tem a me dizer a respeito.
(MARTINELLI, 1999, p. 21)
É neste sentido que objetivamos evidenciar o que o sujeito da pesquisa pensa
sobre o que está sendo pesquisado, compreendendo e interpretando suas
significações, essenciais para a construção do conhecimento, uma vez que a
finalidade desta modalidade de pesquisa é a construção conjunta e não solitária,
privilegiando a interação entre o pesquisador e o sujeito.
Assim, a pesquisa qualitativa pressupõe esta relação direta com o sujeito e o
pesquisador, de modo intencional, que implica em interações e trocas, valorizando a
própria dinâmica expressa em seu cotidiano social.
Trata-se, portanto, de uma nova ambiência, uma imersão na vida social do
sujeito, ouvindo suas expressões, relatos, ou mesmo seus silêncios.
A pesquisa qualitativa, portanto, se interessa em conhecer os modos de vida
dos sujeitos, seus valores, seus sentimentos, suas crenças e suas opiniões e
também suas atitudes e representações, suas experiências, sua compreensão e
interpretação de determinados fatos e como estes repercutiram ou não em suas
vidas.
Significa que “o viver histórico cotidiano do sujeito, a sua experiência social
expressa a sua cultura”, seu modo de enxergar e interpretar o mundo, traduzindo
também, seus interesses e lutas. (MARTINELLI, 1999, p. 23)
Partir da experiência se torna primordial para o conhecimento do particular,
pois possibilita dimensionar o sujeito dentro do seu espaço – parte do todo – e de
seu universo singular e particular.
94
Os valores, segundo Diniz (2012, p. 100), são apreendidos nesta experiência
vivida, “na vida material e espiritual dos homens, no processo de apreensão dos
sentimentos, das normas e dos costumes”. Por isso, os valores constroem-se na
família e em suas relações.
No processo de construção do modo de vida do sujeito a metodologia da
história oral se faz presente e necessária a fim alcançar o objetivo proposto em
pesquisa.
Para Martinelli (1999, p. 23)
É em direção a essa experiência social que as pesquisas qualitativas, que
se valem da fonte oral, se encaminham, é na busca dos significados de
vivências para os sujeitos que se concentram os esforços do pesquisador.
Assim, podemos afirmar que, nessa metodologia de pesquisa, a realidade
do sujeito é conhecida a partir dos significados que por ele lhe são
atribuídos.
Optamos trabalhar com a fonte oral de coleta de dados pela relação de troca
entre o sujeito e o pesquisador, tecendo uma dinâmica de interações. Dessa forma,
rompe-se com a ideia de que a coleta de dados é feita através de instrumentos
estáticos e reconhece-se que ela é uma dinâmica aberta para a troca com o sujeito
de pesquisa.
Esta interação traz em si a participação do pesquisador ao transmitir não só
apenas o coletado, mas também os sentimentos vividos, percepções, inspiração e
transpiração, tornando o pesquisador sujeito da pesquisa também.
Martinelli (1999, p. 26) evidencia tal fato na possibilidade de conhecer o outro,
sendo que esta “depende do conhecimento que temos de nossa subjetividade e
também de nossa disponibilidade para também nos revelarmos neste encontro”,
como um exercício político e social.
Deste modo, os sentidos são aguçados e a observação e a escuta atenta se
tornam primordiais para a feitura da pesquisa.
Neste sentido, como já mencionado anteriormente, a coleta da história oral e
observação participante nortearam as trajetórias metodológicas como necessárias e
presentes no alcance de nossos objetivos.
95
A história oral possibilita um momento de escuta, de ouvir histórias não
ouvidas, de voltar o olhar, os sentimentos e emoções para o outro, numa vivência
dialógica, de interação e com objetivos claros. É o momento de dar voz ao sujeito,
de torná-lo visível, de torná-lo sujeito de sua própria história, de registar suas
trajetórias individuais.
Diniz (2012, p. 104) evidencia que a questão da história oral traz um “novo
olhar, um novo jeito de se pensar e movimentar a pesquisa” que visa romper com as
questões tradicionais elencadas em muitas pesquisas. As histórias orais possibilitam
compreender o que significam as histórias cotidianas e a cultura para os sujeitos e
como são vivenciadas por eles. Além disso, elas são capazes de explicitar situações
de determinado segmento social.
Essa metodologia exige, ainda, sensibilidade na coleta, na interpretação e na
análise dos dados, dinamizando e tecendo linhas entre os contextos e territórios,
entre marcas e marcos.
Analisar a dimensão do território já “é em si constituinte do objeto, ou seja,
interessa saber a forma como se dá a relação entre espaço e individuo na
perspectiva relacional, identitária e histórica”, ou seja, se faz necessário conectar o
indivíduo a seu espaço de vivência. (KOGA; RAMOS, 2011, p. 347)
As coletas destes depoimentos - através do contar de suas histórias, nas
entrevistas, conversas ou diálogos - revelam muito do que os sujeitos pesquisados
realizam enquanto sujeitos históricos, que dão sentido e vida à narrativa.
São expressões de memórias, reflexões e palavras que ampliam a percepção
do fato histórico, de suas marcas, como expressão de sua existência social e
histórica.
A história oral, portanto, tem esta finalidade: contribuir para a interpretação
dos sujeitos e de seus territórios, de famílias e territórios, seus modos e meios de
vida e, nos termos de Diniz (2012), da sociabilidade neles imbricadas.
Sobre essa metodologia de pesquisa, é importante ressaltar o fragmento
abaixo, escrito por uma historiadora.
96
Investigar suas narrativas tem possibilitado descortinar espaços e modos de
trabalhar e moras nas dimensões simbólicas de cartográficas de cidades,
além de permitir identificar e compreender melhor os modos de como esses
moradores projetam, disputam, constroem seus territórios na cidade, nos
modos como circulam por ela, usam-na e dela se apropriam, enraizando-se.
Lugares trazidos pela memória aparecem como referências simbólicas de
experiências vividas, das relações disputadas, da mesma forma que neles
produzem novas experiências (KHOURY, 2001, p. 96).
Nesta dinâmica, as narrativas orais vêm a favorecer a compreensão dos
modos de vida dos sujeitos na cidade ou em seu “pedaço particular” dela, suas
diversidades e adversidades, que imprimem marcos e marcas no espaço vivido,
revelando memórias e sentimentos.
Recorremos, nesse percurso, intencionalmente, ao uso de depoimentos
colhidos, pois assim se estabeleceria um diálogo entre a política de assistência
social e as categorias elegíveis, família e território se imbricando. Seguimos um
roteiro de perguntas de certa forma inacabado, pois ao longo do caminho
procuramos flexibilizá-lo a fim de entrelaçar categorias teóricas e metodológicas ao
diálogo estabelecido entre o pesquisador e o pesquisado.
Com essa intenção deu-se voz aos sujeitos desta pesquisa, a fim de colher,
em suas falas, seu pensamento sobre o território e seu entorno, sobre a cidade e
suas complexidades ou simplificações, sobre o viver em território-família ou famíliaterritório.
Para que os sujeitos relatassem suas experiências e interpretações sobre o
espaço vivido e sua relação com a família, os diálogos foram captados pelo recurso
do gravador, pois este apresentava com efetividade a captação da voz, de seus tons
e agudos, dos silêncios e lacunas, de suas experimentações cotidianas.
Optamos, também, pelo uso de captação de imagens a fim de justificar os
trajetos metodológicos de escolha do espaço e dos sujeitos.
Os caminhos dessa pesquisa envolvem diálogos, algumas histórias e trocas,
que vão tecendo os fios condutores na interpretação do imbricamento entre território
e família.
97
3.2 Marcas e Marcos: Conexões entre Histórias e Formações Territoriais
Imprimir as marcas do lugar implica retornar, inicialmente, ao todo, à cidade
de Piedade a fim de sintonizá-la ao cenário escolhido como foco da pesquisa,
Piratuba Sampaio.
Um dos marcos mais notórios na cidade de Piedade é sua formação territorial
composta por famílias desde sua fundação.
Figura 6: Visão Panorâmica de Piedade
Fonte: Fotógrafo Ado Moraes, maio de 2013.
Famílias e territórios, neste momento, se imbricam, e só podem ser
compreendidos e interpretados no (re) conhecimento de suas formações e
conformações, de seus marcos e marcas.
98
Há aqui uma retomada das questões iniciais de escolha e identificação do
território, as quais, compreendidas como marcos, trazem em si as marcas expressas
e imbricadas no território e na família.
Durante este percurso, não realizamos uma descrição do passado, mas sim
uma compreensão dele a partir da história e vivência do outro, pois se entende que
interpretar é melhor do que apenas reproduzir.
Piedade está situada nas encostas da serra de Paranapiacaba, fazendo
limites com Votorantim, Salto de Pirapora, Ibiúna, Pilar do Sul e Tapiraí. Uma das
marcas destes limites é a represa de Itupararanga, a qual imprime como marco a
vinda de muitas famílias para a cidade.
A cidade, em sua formação, estava situada na rota das tropas que
comercializavam muares. Era utilizada como pouso na rota de “fuga” para escapar
da cobrança do imposto, ocasiões em que os tropeiros buscavam caminhos
alternativos. Piedade oferecia também, como vantagem, o fato de encurtar a
distância em 36 quilômetros.
Rodrigo Ayres de Araújo (s/d), em seus estudos, descreve que as tropas que
circulavam na referida região eram oriundas do Rio Grande do Sul de São Pedro e
iam até o campo largo de Sorocaba.
O tropeiro Cristóvão Pereira de Abreu, no ano de 1732, em suas explorações
pela região, ao buscar um caminho alternativo para chegar à província de São
Paulo, realizou a proeza de ligar Curitiba à Sorocaba, explorando e abrindo
caminhos pela Serra de Paranapiacaba, abrindo rota para muitos outros tropeiros.
Tal rota coloca Piedade em perspectiva, pois foi um marco a vinda das tropas
para a cidade em busca de pouso, como lugar de descanso antes da Feira de
Muares.
99
Figura 7: Mapa do Ciclo do Tropeirismo
Fonte: Rafael Straforini, 2001.
A ocupação e movimentação dos tropeiros tiveram como objetivo fugir dos
impostos cobrados por Sorocaba, por volta de 1800.
Os estudos realizados por Rodrigo Ayres de Araújo (s/d) sobre as sesmarias
sinalizam que, no século XIX, durante as peregrinações pelo território de Piedade,
muitas famílias ocuparam fazendas da cidade. Depois, uma porção dessas
comunidades transformou-se em bairros que passaram a ser denominados pelo
mesmo nome da família em questão.
Muitos estudiosos atribuem sua fundação ao mascate Vicente Garcia, um
comerciante que recepcionava e atendia as tropas que por lá passavam, porém
ainda há outras versões da história de formação, nas quais se atribui a fundação da
cidade a outras pessoas.
No século XIX, diversas famílias vindas de localidades vizinhas,
especialmente de Sorocaba, estabeleceram-se na margem esquerda do Rio
Pirapora, um pouco abaixo da confluência com o Ribeirão do Cotianos,
formando um pequeno povoado que tinha como pioneiro Vicente Garcia.
Entre 1831 e 1835, um tropeiro doou a Vicente Garcia uma imagem de
Nossa Senhora da Piedade que, em louvor da qual, apressou-se em
construir uma pequena Capela, que foi benta a 20 de maio de 1840, que
hoje é considerado o dia da fundação da cidade. A lei n.º 16, de 03 de
março de 1847, elevou o povoado de Piedade à condição de freguesia e a
Lei n.º 8, de 24 de março de 1857, elevou a freguesia de Nossa Senhora da
Piedade à de Vila, que foi instalada em 22 de setembro de 1857. Seus
fundadores foram Vicente Garcia, Manuel Ribeiro, Francisco Moreira, José
Francisco Rosa e Demétrio Machado (NETTO, 1987, p. 18,19).
100
A formação territorial, dentro dessa perspectiva, se desenvolveu a partir do
fomento agrícola, que por muitas décadas representou a base econômica da cidade.
Vale destacar que a agricultura passou por várias fases descritas pelo historiador
Antônio Leite Netto como responsabilidade da fertilidade das terras locais.
O antigo pouso dos tropeiros ia se transformando em bairros e progredia
rapidamente a mercê da fertilidade da terra. Já em 1836, o então bairro do
Pirapora Acima com suas 45 famílias plantavam milho e um pouco de fumo
e feijão. Colheram, nesse ano, 3.462 alqueires de milho, 876 de feijão e 21
arrobas de algodão. A partir de 1850, com o fluxo migratório para as terras
às margens do Pirapora, começou a diversificação da produção agrícola
(NETTO, 1987, p. 20).
Uma característica identitária da cidade, uma marca, portanto, é sua formação
familiar – território-família – e o desenvolvimento agrícola. Sua formação, sob o
prisma da historicidade dos fatos, apresenta-se como de característica familiar, pois
as vindas das famílias de Vicente Garcia, Manuel Ribeiro, Francisco Moreira, José
Francisco Rosa e Demétrio Machado se conformaram nos primeiros bairros da
cidade – Garcias, Moreiras, e em especial, o Bairro do Piratuba, formado por
familiares do tropeiro José Francisco Rosa, o senhor Inácio Rosa.
Piedade está situada no interior do Estado de São Paulo, a 131 km da capital
e a 32 km de Sorocaba.
Na pesquisa censitária concretizada em 2000, através de dados apresentados
pelo IDV – Identificação de Localidades e Famílias em Situação de Vulnerabilidade,
do MDS, e colhidos da citada fonte em novembro de 2011, estabeleceu-se que a
questão de vulnerabilidade social e suas expressões não estavam presentes do
território rural.
Já o Censo de 2010 revelou que sua população conta hoje com 52.214
habitantes, dos quais 45,57% residem em área urbana e 54,43% em área rural.
Identificou-se que a população residente em território rural merecia atenções
diferenciadas e suas necessidades deveriam ser mapeadas e analisadas. Por isso,
percorrer e escolher um território localizado na área rural não fora meramente uma
escolha aleatória, mas sim intencional, pois suas marcas imprimem particularidades
e singularidades que, ao mesmo tempo, conectam-se ao todo da cidade e se
desconectam dele.
101
Sob esse prisma, a partir dos dados censitários, um dos marcos da cidade é
que 28.420 habitantes são de território rural, sinalizando que para além da cidade, o
território rural é marcado como prioridade das atenções sociais.
Esta característica rural da cidade mostra ainda uma forte conjunção entre a
agricultura praticada e as culturas dos habitantes, muito ligadas às atividades
agrícolas e ao ato de habitar o campo.
Além disso, a vulnerabilidade social alta encontra índices maiores nos setores
rurais, onde, dos mais de 28 mil habitantes, 9.225 pessoas classificam-se no índice
mais alto de vulnerabilidade.
Tal particularidade evidencia que o território deve ir além da visão micro, uma
vez que “as próprias condições de vida do lugar remetem diretamente às relações
entre populações e lugares, entre um pedaço e outro da cidade, entre o lugar e a
totalidade da cidade”. Além disso, essa característica sinaliza que a situação do
lugar deve ser evidenciada e contemplada pelas políticas “que se direcionam à
manutenção ou à transformação das condições de vida”. (KOGA, 2011, p. 59)
Nesta perspectiva, evidenciar o território rural é retornar, também, às
categorias-pilares da própria política de assistência social e interpretar as
particularidades e as vulnerabilidades sociais de um dado espaço.
Koga (op.cit, p. 248) afirma que, ao se estudar a cidade, muitos “abandonos”
são estabelecidos, principalmente do território, que torna frágil o “conhecimento
sobre as diferenças e desigualdades existentes entre cidades e no interior de cada
uma delas”.
A cidade é conhecida por suas demandas, portanto, que se segmentam em
atenções as ações políticas e que desconectam território e família, pois trabalham
com “público-alvo” e demandas apenas.
Porém, buscamos imprimir na presente pesquisa que a cidade é um espelho,
o qual reflete a realidade e a necessidade de imbricar categorias como família e
território - neste caso, o território rural do Piratuba Sampaio. Essa visão expressa um
movimento ativo de relações sociais, da sociedade organizada e projetada no lugar,
102
imprimindo, na vida prática, reflexos sociais, econômicos, políticos e culturais, que
devem ser conhecidos e interpretados.
A cidade, portanto, abarca nuances e expressões que merecem ser
particularizadas, pela pluralidade e diferenciação que seus territórios e os que nele
habitam trazem em seus modos de vivência e de mediação no espaço.
Dentro dessa perspectiva, buscaremos neste momento evidenciar as marcas
e marcos da história impressa na formação territorial em Piedade.
3.3 O Bairro do Piratuba
Mapa 3: Bairro do Piratuba
Fonte: http://jovensadventistaspiedade.blogspot.com.br/2009/05/piedade-sp.html, acesso em
abril/2014
Retomar a história do “entorno” é necessário a fim de conectá-la à formação
territorial, pois não há como remeter-se à questão da formação do Piratuba Sampaio
sem compreender as marcas que o entorno dele imprimiu nesse território.
A formação histórica da cidade de Piedade é marcada pelo fato de muitos dos
bairros, principalmente os de formação familiar, terem surgido já na fundação da
cidade, por volta de 1840.
Antes do surgimento do bairro familiar Piratuba Sampaio, já estava
consolidada a formação do bairro do Piratuba.
103
Antônio Leite Netto, um dos principais historiadores e estudiosos da formação
de Piedade, através de documentação oficial da Câmara Municipal de Piedade e da
coleta de depoimentos de moradores mais antigos do bairro, relatou em depoimento
concedido à imprensa oficial da cidade, no ano de 2010, a formação do Bairro do
Piratuba.
Antônio Leite Netto revelava que, no ano de 1733, já existiam famílias
morando no bairro, conhecido na época por Pereatuba. Os primeiros proprietários Inácio Rosa, Capitão Furtado e Joaquim Furtado e, anos depois, Sebastião Ruivo iniciaram o desmatamento para desenvolver a agricultura e formação de pastagem.
Na época, as divisas das terras eram em espigão, cordilheira ou picadas,
sendo de propriedade daquele que fizesse a maior quantidade de terras em sua
divisa. Segundo relatos do pesquisador, a divisão era consensual e respeitosa e
ninguém invadia as terras dos demais.
As terras eram chamadas de Pereatuba, pois não se evidenciava referência a
uma família em particular.
Rodrigo Ayres de Araújo, historiador da formação territorial de Piedade há
mais de 15 anos, ainda relata que, antes da denominação do bairro ser Pereatuba,
ele era chamado de Inácio Rosa, nome do proprietário da maior fazenda da região,
onde provavelmente os tropeiros faziam seus negócios.
No ano de 1873, os proprietários e os moradores que trabalhavam no bairro
se reuniram a fim de abrir um caminho, o que chamavam de picadão, em sistema de
mutirão. Apesar de ser um caminho para transporte em tropas de animais, já
previram que no futuro haveria passagem de veículos.
Por muitos anos, esse caminho serviu de ida e vinda de tropas em seus
carroções com mercadorias que eram vendidas ou compradas em Sorocaba. Essa
estrada foi conservada por Jorge Torres.
Não há relatos concisos quanto a Jorge Torres, sobre suas terras ou se ele
era apenas empregado das fazendas locais. Os historiadores Rodrigo Ayres de
Araújo e Antônio Leite Netto afirmam, apenas, que ele era responsável pela
conservação da estrada e que sua atuação foi de grande importância.
104
Em 1877, a cidade de Piedade se dividiu em Distritos, e o bairro do
Pereatuba, foi incluído no 2º Distrito com os bairros do Jurupará, Ribeirão Grande e
Lavras Velhas.
Por ser um território banhado por muitos rios e córregos, em 1886, Antônio
Pereira Inácio descobriu o encontro das águas dos rios Sorocabussu, Sorocamirim e
rio de Una (antigo nome da cidade de Ibiúna, que faz divisa com Piedade) que, em
seu desague formava um só rio, formando uma cachoeira perto de Vossoroca, um
bairro da cidade de Votorantim.
O terreno deste encontro de águas era de João Custódio, fazendeiro, e foi
alvo de especulação da empresa Companhia Light. Um estudo realizado por
ingleses, empregados desta empresa, demonstrou que esse encontro de águas
possibilitaria a construção de uma barragem. O projeto foi denominado de “Represa
do Itupararanga”.
Segundo Rodrigo Ayres de Araújo (s/d), João Custódio fez um acordo com o
proprietário da empresa, realizando uma permuta de terras, na qual trocou suas
terras por outras mais ao sul do próprio bairro, terras essas que se localizavam em
ponto estratégico, pois ficavam entre os bairros dos Garcias, próximo do Bairro do
Colégio e Paruru, em Ibiúna.
Em 1896, teve início a construção da barragem da Light. Mais de dois mil
homens trabalhavam diariamente em diversos setores da obra, a qual dividiu as
cidades de Piedade, Sorocaba e Votorantim. A construção durou cerca de 18 anos e
é uma das maiores usina hidroelétrica da região.
A represa de Itupararanga foi um marco para o crescimento econômico do
bairro, pois a presença dos trabalhadores e de suas famílias representou o
crescimento para o bairro e seu entorno, formando novos bairros.
105
Figura 8: Represa de Itupararanga – Bairro do Piratuba
Fonte: Fotógrafo Adilson Karafa, dezembro de 2011.
O bairro era rota do tropeirismo, ponto de partida para muitas tropas pelas
características, pelos trajetos e pelos limites que fazia com outras cidades.
A origem do nome do bairro está interligada à questão da presença das
águas, como marco para sua denominação. Os primeiros moradores do bairro
Pereatuba, na exploração do território, encontraram em suas águas uma grande
quantidade de peixes nos rios Sorocabussu, Sorocamirim e Uma. Como esses
peixes saltavam para procriar em suas cabeceiras, os moradores passaram a
chamar o bairro de Piratuba, que em tupi guarany significa “lugar de muitos peixes”.
O bairro, neste ínterim, fora dividido entre as famílias que o compunham,
dividindo o território em três partes distintas, conforme particularidades e
singularidades descritas a seguir.
Na área central do bairro, localizava-se a família do senhor Naor Torres. Era
onde funcionava a escola e o posto de saúde.
106
A parte localizada mais acima, a qual faz limite ao bairro vizinho do
Juruparazinho e onde está localizado o Piratuba de Cima, era formada pelas famílias
Fernandes de Matos e Granjeiro. Nessa região fora construída a primeira Escola
Estadual, hoje desativada, a Igreja Católica de São Pedro e a Igreja Evangélica
Assembleia de Deus.
Na área mais baixa e mais próxima à represa de Itupararanga, fica o Piratuba
de Baixo, formado pela família do senhor Pedro Guerra. Nessa região ficam
importantes instalações, como ACM, pertencente ao núcleo da cidade de Sorocaba,
estância Oásis, Marina Náutica Belas Artes, Micro Empresa de Própolis e Cartilagem
de Tubarão e Roberg Alimentos da Natureza Ltda., que exporta para Japão, Coréia
do Sul e Taiwan.
Uma marca do Piratuba de Baixo é a inserção política e social do senhor
Pedro Guerra, que imprimiu marcas na formação do bairro, tais quais a infraestrutura
urbana e o serviço socioassistencial.
Senhor Pedro Guerra trabalhava como engenheiro na empresa Grupo
Votorantim. Iniciou sua carreira lá quando ainda era um jovem estudante. Na época,
residia na cidade de São Paulo com sua família, porém uma transferência o fez
mudar de planos.
Sendo assim, ele procurou casas pela região da empresa e na cidade
também. Porém, ao conhecer o bairro – que fazia divisa com Votorantim e , por isso,
dava fácil acesso ao seu local de trabalho - se encantou e imediatamente transferiuse com sua família para lá.
Muitos moradores antigos do bairro relatam que sua presença mudou muito a
visão organizacional do bairro, pois ele trouxe “progresso pro bairro”.
Pedro Guerra, por seu engajamento, buscou levar seus ideais para além do
bairro e, nas décadas de 1960 e 1970, engajou-se na política. Em 1965, por
influência dos amigos que trabalhavam no Grupo Votorantim, saiu candidato a
vereador e foi eleito com 187 votos pela U.D.N.(União Democrática Nacional).
Em seu mandato, não recebia salário como vereador e, segundo muitos
depoimentos, trabalhava por amor, gastando o dinheiro do próprio bolso para ajudar
107
o povo necessitado. Como não entendia nada de política, resolveu fazer estágio na
Prefeitura de São Bernardo do Campo, por ordem do empresário José Ermínio de
Moraes Filho, dono do Grupo Votorantim.
Senhor Pedro buscou por algumas vezes galgar sua inserção pública na
cidade de Piedade, porém, pela grande concorrência local, apesar de chegar
sempre muito perto de ser eleito, nunca conseguiu um cargo político em Piedade.
O bairro contava também com outros percussores políticos que sempre
buscavam, sem sucesso, a eleição. Os candidatos que se elegeram foram Darci
Fernandes de Matos, Ademir Fernandes de Matos, Dirceu Torres, Orlando Granjeiro,
Anézia Maria Borba (Nézinha), Amarildo Pedroso, João Granjeiro, Marcelo Cabeção
e Rêne.
Apesar de não ser eleito, Pedro Guerra teve uma grande inserção política e
social no bairro, sendo um dos primeiros a criar uma associação de amigos e
moradores do bairro, criando no ano de 1990 a Associação de Amigos da Família do
Bairro do Piratuba que, alguns anos mais tarde, idealizaria a creche comunitária
“Recando da Vovó Xanda”.
A creche Vovó Xanda é a maior referência em educação infantil para a
cidade, pois trabalha com princípios inovadores e organizacionais diferenciados. Ela
foi fundada no ano de 1998 pela professora Margueritte Guerra, educadora
aposentada e esposa do Senhor Pedro Guerra.
Dona Margueritte também é referência para o bairro, pois seu engajamento
social expressou e fundamentou a maioria dos avanços para o bairro e entorno, tais
como a construção da escola municipal Mauricio Pires, que fica ainda na estrada,
com a represa ao fundo, em seu quintal, porém dá acesso aos bairros circunvizinhos
como Ortizes, Juruparazinho, Limal, Fazendinha e Jurupará.
108
Figura 9: Creche Recanto Vovó Xanda
Fonte: http://recantodavovoxanda.blogspot.com.br/2011_10_01_archive.html, acessado em
abril/2014.
O bairro de Piratuba, localizado no território rural de Piedade, a 10 km do
centro da cidade, e com mais de 281 anos, tem sua história marcada por ser um
território de passagem, como evidenciado na época do tropeirismo e de acessos,
pelos limites que realiza com outras cidades.
A população total residente nesse bairro, indicada no último recenseamento
em 2010, é de 662 habitantes, porém com características peculiares evidenciadas
na tabela a seguir.
109
Tabela 10: Características do Setor Censitário do Piratuba
Fonte: IDV, MDS, 2014.
O Censo de 2010 recenseou o bairro do Piratuba em sua totalidade, visto que
nos mapeamentos oficiais o bairrinho do Piratuba Sampaio não é considerado como
um bairro, como se observa na tabela 11, que exclui o Piratuba Sampaio,
considerando-o como um setor interno.
Mesmo com a evidência de que muitos dos territórios mais vulneráveis estão
em território rural da cidade de Piedade, como se verifica no mapa 2 e nos dados
colhidos do IDV, a rede socioassistencial permanece distante do foco das atenções
sociais, como se verifica no mapa a seguir.
110
Mapa 4: Localização da Rede Socioassistencial da cidade de Piedade
Fonte: IDV, MDS, 2014.
O bairro do Piratuba fica a 11,5 km do serviço socioassistencial mais próximo,
o CRAS Pietá, que neste mapeamento já estava instalado em área central da
cidade. O Piratuba está identificado pela seta localizada no mapa, a fim de ilustrar
essa desconexão.
A cidade de Piedade possui hoje dois CRAS instalados em territórios distintos
da cidade. O CRAS dos Pintos está localizado em território rural, dentro da
comunidade que, segundo o MDS, apresenta altos índices de vulnerabilidade social,
na capilaridade do território.
O CRAS dos Garcias, até o ano de 2011, estava localizado no bairro dos
Garcias, bairro de origem familiar que apresentava muitas famílias em situação de
vulnerabilidade social e de risco. No ano de 2011, a gestão municipal optou por
transferir este aparelho para o centro da cidade, com a justificativa de que a
mobilidade e o acesso seriam facilitados.
Segundo dados colhidos junto à assistente social Maria Cristina Ponce Abreu,
os CRAS foram instalados nestes territórios já na adesão ao serviço de proteção
111
social básica em janeiro do no ano de 2006, na cidade. Ela relata que o município
aderiu a tais serviços e instalou-os em dois bairros distintos, dividindo ao meio o
município e instalando-os nos dois extremos municipais.
Maria Cristina, ainda no depoimento colhido, relatou que não houve
inicialmente um mapeamento ou diagnóstico social preciso, porém a gestão
municipal
da
assistência
social
se
embasou
nos
índices
coletados
no
Cadastramento Único, que apontavam muitas famílias daquela região cadastradas
e/ou recebendo benefícios de transferência de renda.
Considerando-se o porte da cidade de Piedade, a rede socioassistencial do
município é pequena, uma vez que conta com apenas oito instituições.
Dentro os serviços oferecidos no âmbito de proteção social básica encontramse a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE, Associação de
Amparo às Crianças e Adolescentes – AMAR, Associação Amigos dos Autistas de
Piedade – AMAP, Educandário Coração de Jesus e Associação Educacional da
Juventude de Piedade – AEJUPI.
Já a rede socioassistencial de proteção social especial conta com os serviços
de acolhimento institucional para crianças e adolescentes Lar da Mônica e de
acolhimento para idosos, Lar São Vicente de Paulo e Casa Esperança.
Apenas dois destes serviços estão situados próximo aos territórios rurais e
com maior índice de vulnerabilidade social: o serviço de acolhimento Lar da Mônica,
situado no Bairro das Furnas, a mais de 20 km da região central da cidade, e o
serviço de acolhimento institucional Casa Esperança, no Bairro do Miguel Russo.
Em consonância com a rede socioassistencial cadastrada no Conselho
Municipal de Assistência Social, o MDS reconhece como serviço socioassistencial,
em detrimento a PNAS, apenas cinco (grifo meu) desses serviços, quatro em
território central e um apenas em área rural.
Conectando a rede socioassistencial às características elencadas pela própria
PNAS, verificamos que a rede socioassistencial imprime como marca uma relação
estática juntamente com os que “vivem na pele a política”, ou seja, dos que são foco
das atenções. Ao se estabelecer a rede apenas em territórios centrais, ocorrem
112
marcas e estacas que dificultam uma leitura da dinâmica das relações que se dão
em alguns territórios mais longínquos.
Aldaíza Sposati (2013, p.06) ao abordar a política de assistência social e o
território, traz, em outros termos, as particularidades da família vivida neste espaço
comum. Para ela, a concepção de território supõe “movimento, isto é, a concepção
de território não se confunde com uma área de abrangência”, mas sim deve ser
compreendida historicamente a partir da vivência histórica dos indivíduos que nele
circulam, pois “constitui e controla sua identidade em uma dimensão de relações”.
A política social se dá, portanto, em território e espaços em si, que devem
denotar suas particularidades e suas especificidades, pois
(...) estabelecer um determinado espaço de referência não significa criar
isolamento ou barreiras. Pelo contrário, referir-se a um espaço vinculado a
um conjunto de interesses ou características é uma forma de identificá-lo, o
que abre a possibilidade de sua conexão com base no reconhecimento
social. Essa conexão é a antítese da segregação, podendo, inclusive, ser
um passo no caminho de uma ação política ou de uma estratégia, dentre
diretrizes políticas de ação (Op.cit, p. 07).
Trazer, portanto, como marca a centralização dos serviços socioassistenciais,
e não a sua descentralização, evidencia que os equipamentos, assim esvaziados
das presenças daqueles que realmente precisam de assistência, não chegam a
operacionalizar os serviços que deveriam prestar e acabam fadados ao fracasso.
Nesta busca, a fim de imbricar família e território, a cidade de Piedade
estabeleceu uma longa área de abrangência, vislumbrando ser o caminho para não
tornar oco um serviço.
A fala a seguir, de um membro de uma família, residente em Piratuba
Sampaio, elucida bem o quanto esse equipamento fundamental não é reconhecido
pelos que precisam do atendimento.
O CRAS? O que ficava lá nos Garcias? Nunca o conheci. Nunca conheci.
Não, nunca fui, nunca fui lá não. (José Nicolau Sampaio, depoimento
colhido em junho de 2014).
113
No mapa a seguir, propositalmente se evidencia a localização do bairro e, em
contrapartida, o lócus de maior índice de vulnerabilidade social da cidade de
Piedade.
Mapa 5: Vulnerabilidade social no Piratuba Sampaio
Fonte: Fundação Seade, 2013.
Numa comparação entre a rede de serviços socioassistenciais, expressa no
mapa 4, e as áreas de maior índice de vulnerabilidade social, elencadas no mapa 5,
algumas desconexões se instalam.
Os maiores índices de vulnerabilidade social estão presentes em territórios
rurais, porém a rede de serviços socioassistenciais está localizada em sua maioria
em área central.
Na proteção social básica estão situados três serviços de
convivência e fortalecimento e o CRAS Pietá; e na proteção social especial localizase um serviço de acolhimento institucional para idoso e, futuramente, um CREAS. Já
no território rural, apenas três serviços estão presentes, sendo um na proteção
social básica, o CRAS Pintos, e dois de proteção social especial, um serviço de
acolhimento institucional para idoso e um de acolhimento infantil.
Segundo Sposati (2013), por a oferta da política social se operacionalizar “por
meio de serviços, distribuídos pelas áreas de uma cidade”, trazê-la mais perto de si
representa para a gestão facilidades na administração e no seu controle.
114
Trazer mais perto de si ou deslocar para o centro, nem sempre, portanto,
evidencia um distanciamento da cidade real, vivida cotidianamente e permeada por
situações limites e de vulnerabilidade.
Em síntese, o que se pode concluir é que as categorias centrais da política de
assistência social não têm sido contempladas em sua totalidade, pois aqui começam
as desconexões entre família e território.
Nesse contexto tão complexo, encontram-se as particularidades de um
território em particular, que oficialmente não consta como um bairro legalmente
identificado e regularizado, o qual será identificado, através das histórias familiares e
das particularidades da conformação territorial, como território vivido pelos sujeitos
de nossa pesquisa.
3.4 O Bairro do Piratuba Sampaio e a Família Sampaio: Conexão entre Marcos
e Marcos
“Essa lembrança que nos vem às vezes...
folha súbita
que tomba
abrindo na memória a flor silenciosa
de mil e uma pétalas concêntricas...
Essa lembrança...
Mas de onde? De quem?
Essa lembrança talvez nem seja nossa,
mas de alguém que, pensando em nós, só possa
mandar um eco do seu pensamento
nessa mensagem pelos céus perdida...
Ai! Tão perdida
que nem se possa saber mais de quem!”
Mario Quintana
Nosso estudo optou pela metodologia da história oral, com objetivo de, ao
despetalar as memórias, compreender e analisar o imbricamento entre a família e o
115
território, pois são estes sujeitos que vivenciam estas conformações e imbricamento
cotidianamente no Bairro do Piratuba Sampaio.
A escolha dos sujeitos foi
intencional: duas mulheres e um homem da mesma família, que residem desde a
formação do território e conhecem suas particularidades, desenhos, geografia, seus
aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos. Sujeitos que tem muito a dizer,
mesmos em seus silêncios, carregando um grande conhecimento sobre a história e
a dinâmica do bairro. São sujeitos que não estiveram só de passagem pelo bairro,
mas, sim, que fundaram suas estruturas e qualificaram o lugar.
Este despetalar se deu a partir da coleta de depoimentos através do uso do
recurso do gravador, como já mencionado, pois se compreendeu que este captaria
como intensidade e clareza os diálogos e falas, seus tons e silêncios.
Um instrumento utilizado neste percurso foi o diário de campo do
pesquisador, o qual pode ir além do som, captando as particularidades e
singularidades observadas em cada encontro e que muito contribuiu para a tecedura
desta pesquisa.
Na análise, passamos a tecer os fios condutores que buscavam imbricar as
categorias analíticas e objetivadas, através da construção de confabulações entre a
história contada e a história documentada.
Entre as passagens, uma família em particular fez uma parada forçada por
uma situação fatídica na área do Piratuba de Baixo, imprimindo sua marca no
território.
No ano de 1941, Antônio Nicolau Sampaio, sua esposa - Maria Rolim de
Oliveira - e seus seis filhos - Eliseu, Virgilia, Clarice, Aparecida, Lazara e o recémnascido José - fizeram uma parada mais na porção baixa do bairro, entre a
passagem do rio e a antiga escolinha, perto da antiga casa do Senhor Ruivo.
Na subida, em seu pino, na parte mais alta, perto da mina de água, do
desvalado, José adquiriu dois alqueires de terra.
Sua história com o lugar começava aí...
116
O despetalar das memórias se inicia com a releitura da trajetória das irmãs
Virgilia Rolim de Oliveira e Lazara Rolim de Oliveira em sua chegada ao lugar, no
seu território de vivência.
Virgilia Rolim de Oliveira tem 86 anos, é viúva, reside sozinha em uma casa
de quatro cômodos na parte alta do bairro. Ela é a irmã mais velha da família
Sampaio, não é alfabetizada e veio para o bairro aos 13 anos.
Figura 10: Dona Virgilia e Senhor José Nicolau Sampaio
Fonte: Luciana Helena Mariano Lopes, junho de 2014.
Lazara Rolim de Oliveira, 82 anos, viúva, reside com um filho “solteiro agora”,
na parte da entrada do bairro, próximo aos outros filhos. É analfabeta funcional, veio
para o bairro com apenas nove anos. É nascida no bairro do Jurupará.
117
Figura 11: Dona Nadir de Camargo, filha de Lazara, Dona Lazinha e
Senhor José Nicolau Sampaio.
Fonte: Luciana Helena Mariano Lopes, junho de 2014.
José Nicolau Sampaio, 73 anos, solteiro e sem filhos, reside na parte central
do bairro com sua sobrinha e sua família. Mora na casa do irmão falecido, Eliseu
Nicolau Sampaio. Estudou até a terceira série. Nasceu no bairro do Limal e mudouse, ainda com poucos meses de vida, para o bairro Piratuba.
118
Figura 12: José Nicolau Sampaio
Fonte: Luciana Helena Mariano Lopes, novembro de 2013.
119
Figura 13: Bairro do Piratuba Sampaio – “o Bairrinho”
Fonte: Luciana Helena Mariano Lopes, novembro de 2013.
Antônio Nicolau Sampaio residia em uma fazenda própria, no bairro do
Jurupará, em sua porção retirada, afastada da região central, próxima à fiação
elétrica, ladeando a hoje represa de Itupararanga.
Era produtor rural, tinha uma rocinha modesta, familiar, sem muitos
funcionários, apenas ele e uns dois mais, já sendo suficiente para o que produzia.
Produzia o peculiar: cebola, verduras, alguns poucos legumes, nada em muita
demasia, pra vender um pouco e subsistir.
A mãe, trabalhava em casa, cuidava dos fio, da roupa.
Não tinham muita letra, quase nada, não tinha leitura.
Aqui nem a gente tem leitura, nois, só o José, só os home estudaram na
época.
Então, era assim, mãe e pai, moravam lá no Jurupará, numa casinha de
madeira, sapé, só nóis...
Um dia, teve uma chuva, uma chuva grande, e um raio pego na casa...
Nois tava tudo lá no dia da chuva.
O raio pego e pego na casa, queimou tudo. Queimou a casa, queimou lá. E
então pai, pra sair de lá, comprou aqui... Não tinha nada aqui, só a terra...
120
De primeiro, fomo morar no porão da casa do Nacio Rosa. (Virgilia, mais
conhecida como Versilha, depoimento colhido em junho de 2014).
Lazinha também relembra a chegada da família, como se pode observar no
fragmento a seguir:
Eu vim, eu era menina. Eu se eu tivesse uns 7 ano por aí. Um 7 ano mais
ou meno, num me alembro direito... Antes disso, eu morava no Limal.
Morava sim. Vou contar tudo disso pro cê. Vou contar tudo bem... Eu
morava no Limal sim, morava ali na fazenda. Dai veio meu pai comprou pra
cá. Vou contar bem certo como foi a nossa vida... Então se vou contar tudo
certinho como foi a nossa vida, como foi a vida da gente. Então nois num
morava aqui. Eu nasci, quando nasci, eu nasci no Jurupará, com pai e mãe.
Nasci no Jurupará lá em baixo. Então daí aconteceu uma coisa lá, feia lá, lá
em casa. Caiu um raio na casa, caiu um raio 2 vezis e dai minha mãe se
entristeceu muito e precisou vir morar aqui na fazenda, em um porão numa
fazenda do Limal. A dona que era a Xanda, nhá Xanda. Aquela que deu o
nome da escola. É aquele que deu o porão pra nóis mora. Ele morava em
cima, numa casona de taipa que tinha ali. Faz muito anos isso, faz muito
tempo isso. Dai nois moremo um tempo lá, porque a minha mãe não quis
ficar mais tempo morando lá. Dai apressou em vender lá dai o meu pai
comprou este terreninho aqui pra nóis. Passando o tempo ele vendeu lá daí
comprou este terreno aí pra nóis. Faz muito tempo, eu era menina. Eu não
tenho bem lembrança como é que foi. (Lazara, mais conhecida como
Lazinha, depoimento colhido em junho de 2014)
A família, após o ocorrido, veio morar em um porão desocupado, por gentileza
do Senhor Inácio Rosa, tropeiro que fez marca no bairro.
É esse Piratuba eu conheço que faz muito tempo que é o mesmo Piratuba!
Antigamente tinha uma turma lá na cangalha lá em cima que chamava de
Inacio Rosa. É, a turma conhece nóis como Inacio Rosa, mais é o bairro
Piratuba mesmo. (José Nicolau Sampaio, depoimento colhido em junho de
2014).
Nesse percurso, marca-se o lugar pela chuva que dizimou a moradia dos
Sampaios entre as décadas de 1930 e1940.
Essa marca remete-se às questões da cidade, de suas tramas e de sua
ocupação explicitadas pela autora Vera Telles (2006, p. 24) que aborda esse
movimento de transitar pelas situações vividas, como modo de sobreviver às
adversidades da vida vivida cotidianamente.
Para a autora, transitar nestes momentos adversos é percorrer passos que
implicam decisões, escolhas, mudanças, que podem decidir a vida e o sentido dela.
121
Sobreviver, portanto, traz e trouxe um novo sentido para a vida da família
Sampaio, pois representou decidir a vida, os rumos e a história, marcando
movimentos de mudança, de recomeço.
As questões de sobrevivência apresentaram traços fortes nos depoimentos de
Virgilia e Lazara, pois os movimentos de mudanças e rupturas demonstravam que
era necessário sobreviver às adversidades, mesmo que estas representassem
romper com a rede de solidariedade e de sociabilidade.
É presente na oralidade de Dona Lazara o pertencer ao lugar. O
pertencimento para essa senhora é muito forte, lembrando a si que não há vivência
fora daquele espaço comum e familiar.
Em seu depoimento, ela afirma que estar perto dos seus é de vital
importância para a construção de uma rede de proteção familiar, de pertencimento.
Eu? Eu não, eu nunca mudei daqui. Só quando casei que mudei pra lá, Por
que meu marido morava pra lá, mais depois nóis viemo. Foi feita a casinha
e viemo mora qui. Como meu irmão falou: deu um lugar pra mim... Ele falou:
vem morar aqui com a gente da gente, vem morar aqui perto de nóis. Dai
deu um lugar pra mim e falou: faça sua casa aqui, é seu lugar, foi feito pra
mora aqui. Dai fez, dai meu marido feiz a casa aqui, isso faiz mais de
quarenta... Cinquenta anos, cinquenta e poucos anos que eu moro aqui.
Faz tudo isso que eu to morando aqui de novo, mais eu fui pra lá de novo.
Eu já era aqui, Toda vida morei aqui, toda vida sou daqui. Fui lá e já voltei...
Acho que morei pouco tempo pra lá uns doze anos por ai. Ah, eu gosto
daqui. De lá eu não gostava por que não era meu. Era terra da fazenda ali
do bairro do Limal. Mudei mais por precisão, pelo trabaio. (Lazinha,
depoimento colhido em junho de 2014).
A escolha pelo lugar imprime uma marca na vida da senhora Lazara, pois as
relações que ele imprime no cotidiano vivido por sua família trazem em si situações
que geraram escolhas.
O trabalho e o casamento são marcos para a vida dessa sujeita da pesquisa,
pois, nesses momentos, por precisar - “por precisão”, como ela diz - modificamos
nossas relações, nosso cotidiano, nossa rede de sociabilidade e nosso lugar
comum.
O trabalho, nos termos de Marx (1975), expressa em si outras relações e
produz espaços e territórios, uma vez que na apropriação dos meios, os indivíduos
se modificam, modificam a natureza e, por sua extensão, o espaço vivido. É através
122
do trabalho que o homem se humaniza, cria, portanto, outras relações e busca
novos espaços de sociabilidade. A marca que o trabalho imprimiu na vida de Dona
Lazara representava modificar seu espaço de vivência, mudar sua vida, seu espaço
protetivo. Porém, pela situação de pertença, de enraizamento no lugar, o movimento
de volta sempre era realizado.
Esses relatos apontam para os dizeres de Rodrigo Aparecido Diniz (2011, p.
185) acerca da sociabilidade. Ela está “imbricada nas relações dos sujeitos,
justamente pela práxis interativa e pela cooperação (formas de intercambio entre os
sujeitos)”. Ou seja, está contida nas relações estabelecidas pelo trabalho e na
cooperação e interação dos sujeitos em espaços comuns.
Cria, portanto, relações de dependência, que permitem “poder contar” e para
as quais se pode “apelar” nos momentos de adversidade, como demonstram os
depoimentos de José e Dona Lazara, que nos momentos adversos “apelam para os
parentes” como rede de solidariedade e de proteção.
A família, os parentes, portanto, criam uma rede própria de proteção social
que substitui as deficiências que a política não abarca. Tal rede justifica, assim, a
permanência no espaço, no território de vivência e traz em si a proteção social via
solidariedade que justifica a permanência.
Faz setenta e três anos que moro aqui... Por que esse bairrinho é tudo
parente, sobrinho, irmã, minhas irmã. (José Nicolau Sampaio, depoimento
colhido em junho de 2014).
Aqui tem sim, a filha dela, a minha neta. Todos moram aqui no bairro só a
minha neta que mora lá em Piedade. As filha de Virgilia que casou e saiu
daqui. Mais tem a Gilda, a Gilda que saiu e saiu daqui também (Dona
Lazara, depoimento colhido em junho de 2014)
Neste sentido de pertença, de sociabilidade e de pertencer ao que é comum,
a família é muito forte e traz uma marca que expressa a preocupação em justificar a
ausência do sobrenome da família.
Naquela época o meu pai já tinha morrido e só tinha minha mãe só, a minha
mãe era viúva... [Pausa na fala] Então era difícil... Num puseram, num
puseram a assinatura de pai, a assinatura inteira de pai... Só puseram só de
mãe – Rolim de Oliveira. Puseram só Rolim de Oliveira. Lazara Rolim de
Oliveira. Não tenho mais o sobrenome do povo daqui também. Peguei tudo
agora do meu marido. Lazara de Camargo. A Virgilia não sei, acho que
123
deve ser eu é que peguei o nome de mãe. Quando eu casei já não tinha
mais meu pai, dai é que fizeram isso. Eu tinha certidão de nascimento, dai
passou isso. Como a gente que é anarfabeto, a gente num entendia as
coisas, num entendia isso. Dai fizeram lá o que eles entenderam e
colocaram o sobrenome da minha mãe, porque meu pai já tinha falecido.
(Dona Lazara, depoimento colhido em junho de 2014).
A própria geografia do lugar traz em si o que e quem pertence ao bairro, que
tem “nossa assinatura”, privilegiando de certo modo os seus. A família Sampaio
reside na parte alta do bairro, a qual é abastecida pela nascente de água, composta
por vinte e cinco casas. Na parte de baixo, reside o único morador que não é da
família Sampaio, Hélio, que segundo José Nicolau Sampaio.
(...) o Hélio veio mora aqui, veio da cidade, da Vila Quintino. É o único que
não tem nossa assinatura. Só vem ‘”gente de fora” a passeio... (José
Nicolau Sampaio, depoimento colhido em novembro de 2013).
Ainda nos termos de Diniz (2011, p. 185), a questão da sociabilidade,
“pressupõe a construção de necessidades e modos de satisfação cada vez mais
humanizados e sociais”, que não podem estar isolados de qualquer relação social,
mas sim imbricados nas formas de atividades sociais, sejam elas de solidariedade
ou de trabalho.
É nesta perspectiva relacional que o espaço ganha forma e vigor, que se traz
sentido ao território como um processo articulado entre as determinações sociais e
as formas de vivências cotidianas. Assim, o território traz em si determinações e
interações dos sujeitos na constituição do espaço, que vão adquirindo outras
características a partir de melhorias mínimas.
Ai sim, então, mudo, quando eu vim morar aqui não tinha energia, nóis
morava na casinha fundo de sapé, depois que foi melhorando as coisas,
aos poucos foram fazendo casinha de material, foi melhorandinho. Aos
poucos, devagarzinho. Bom o que faz um confortinho na vida não? Eu acho
que é conforto porque nóis não tinha estas coisas que nóis temos agora,
não tinha energia elétrica, sempre foi toda vida não tinha chuveiro, não tinha
nada e agora tem tudo e é um conforto isso aí, é pelo menos eu acho, que
melhora a vida. A vida nossa de fora das coisa de antigamente e mioro.
Agora nóis tem diferente né, num tinha força aqui, num tinha luz, num tinha
nada aqui. Faiz mais de vinte anos. Primeiro não tinha, vivia só no escuro,
na luz do cruzeiro. Num tinha energia, nem pra uma luizinha. Depois que
veio a força elétrica, a luz, meioro cem porcento. (José Nicolau Sampaio,
depoimento colhido em junho de 2014).
124
Nos depoimentos de Dona Lazara, ela referenda o acesso ao abastecimento
elétrico e o caracteriza como um meio de “sair da pobreza”.
Num tinha força, Zé. Num faiz muitos anos né, uns vinte anos, né. É vinte
anos que veio a força aqui, e lembra que foi por ai memo, que naquela casa
ali... Mais só depois que veio, nóis moro vinte anos naquela casa lá, e agora
que nóis desmanchemo aquela casinha de pau a pique né. E depois fizemo
outra que era de madeira dai duro vinte ano a casinha. Mais graças a Deus,
Deus preparou o dinheiro, meu fio cresceu e usou o dinheiro para fazer
essa casa aqui. Aquele tempo é muito atrasado... Fala a verdade era muita
pobreza. Não passo mais necessidade, acho que não, né Zé. Já tô
aposentada, né. É depois de aposentada fica mais forgado, né. (Dona
Lazara, depoimento colhido em junho de 2014).
As mudanças e melhorias em si trazem um fato interessante, que as
entrelaçam e às consideram uma via de saída para a situação de pobreza. A
travessia e a saída da condição de pobreza são pensadas, nos depoimentos
colhidos, a partir de seu acesso a um mínimo de sobrevivência, seja o
abastecimento elétrico, a renda ou o benefício previdenciário.
Aldaíza Sposati (2013, p. 15), quanto ao acesso à renda via previdência
social, observa que
(...) a única política social com tal característica é a previdência social, ou o
seguro social público, que se acerca de um percentual da população que
possui a relação de trabalho formal e é contribuinte previdenciária. Essa
política não se equaciona ou se analisa por territórios.
Uma particularidade do território apresentada na fala de José Nicolau
Sampaio versa quanto a oficialidade da determinação do espaço e sua
denominação. Nas documentações oficiais e nos mapeamentos realizados pela
administração pública municipal, o bairro não é contemplado como território válido,
pois apenas o bairro do Piratuba é reconhecido.
Sempre foi o nome do nosso bairro é Piratuba Sampaio, a comunicação da
gente é essa, Piratuba Sampaio. Por causa do antigo meu pai e dos filhos
dele, mais o meu pai antigamente chamavam de Antônio Sampaio e o
Eliseu é o meu irmão. (José Nicolau Sampaio, depoimento colhido em junho
de 2014).
125
Denominar e imprimir uma marca no espaço e na história representa,
portanto,
reafirmar
contextos
históricos
construídos
e
denominados
por
particularidades, por um nome, um familiar.
Apenas quem vive neste cotidiano reconhece o espaço vivido e procura
articular sua vivência imprimindo marca no espaço, como se pode observar na figura
a seguir.
Figura 14: Piratuba Sampaio
Fonte: Luciana Helena Mariano Lopes, novembro de 2013.
O geógrafo Milton Santos (2006), ao caracterizar o lugar, o lugar de cada um
no espaço, no cotidiano vivido, retrata-o como sendo um mundo próprio. Para ele,
“cada lugar é, à sua maneira, o mundo, sendo todos os espaços virtualmente
mundiais”. (Op. cit, p. 213).
Neste mundo, as relações se expressam e as desconexões com a cidade se
refletem.
126
Percebe-se, então, que a conexão com o espaço é muito presente na família
Sampaio, pois nos diálogos estabelecidos, a mundialidade expressa no espaço
vivido desconecta os sujeitos da cidade de Piedade.
Nos depoimentos de José Nicolau Sampaio isso é muito presente. Observase que, em muitas de suas falas, ele distancia e virtualiza seu território de vivência
do todo, da cidade de Piedade. Só há conexões entre a cidade e seu território a
partir de fatos marcantes, como problemas de saúde ou alguma outra fatalidade.
As veis aqui quando não tem ônibus nóis apela pros parentes aqui não.
Num momento que eu fiquei doente aqui, sai de madrugada...
Fui para Piedade. O Reinaldo meu sobrinho me levo de madrugada eu
mesmo lá... E fiquei internado sete dias naquela veis. Por caso de... De...
Fecho o fôlego. (José Nicolau Sampaio, depoimento colhido em junho de
2014).
Piedade se desconecta de um dos territórios mais vulneráveis, não apenas
pela ausência de recursos, da rede afastada, mas também pela questão da
mobilidade, do direito de ir e vir.
Uma dessas conexões se expressa na retirada do direito à mobilidade dos
moradores do bairro do Piratuba Sampaio e seu entorno, pois, aos fins de semana, o
transporte público não chega até o bairro e, nos dias da semana, o direito a ele é
limitado a apenas três vezes ao dia.
Mais a gente vai lá, sempre, tem que ir. O ônibus não vem até aqui, desce
no Fião e tem que descer até lá. Pelo menos às sete e meia tem o ônibus
aí. O ônibus tem na sete e meia, depois meio dia e meio vem outro pra cá,
vem outro pra piedade. Depois às quatro horas é o ultimo, chega às quatro
e meia, quatro e quarenta e depois não tem mais, não tem mais ônibus. Se
perder, tem só o ônibus para nos Garcias, dos Garcias até aqui é uma
perna só, um pé só. Dos Garcias até aqui num dá, não. Sempre tem que
procurar ir nestas horas que chega aqui no bairro. É tudo no horário do
ônibus. A gente sempre vai sempre no sete e meia e se quiser vortar no de
meio dia e meio vorta, ou se não vorta no de quatro e meia. De sábado não
tem ônibus aqui. Porque antes ele vinha de quarta, vinha em sábado.
Depois ele passou vir de segunda, terça, quarta, quinta, todos os dias. De
sábado e de domingo ele não vem aqui. Num passa não, antes só de
sábado. Quando num tem, tem que se virar com o carro né. Com os carros
de tudo a gente aqui. Tudo é só durante a semana... É que tinha...
Começou vim em sábado, mais tinha muito pouca sorteza de passageiro. O
ônibus num vem mais aqui de domingo e de sábado porque não tinha mais
sorteza de passageiro, porque o ônibus andar sem família não tem jeito né,
mesmo tendo muita família. Porque descem tudo de semana e fais tudo o
que tem que faze... (José Nicolau Sampaio, depoimento colhido em junho
de 2014).
127
A falta de acesso a um direito desconecta território e família do todo, de seu
direito, de uma política social em si. O lugar deve ser uma referência, não uma
interferência em si, pois, como nos informa Milton Santos (2003), é a própria política
que deve se territorializar, confrontando a organização e a espontaneidade.
Se tivesse um postinho perto... Aqui falta um postinho... Aqui tinha, no
bairro do Piratuba tinha, mais fechou, né. Teve, sim, posto de saúde,
fechou... Tinha um posto aqui. O posto tá fechado, de primeiro qualquer
coisa a gente corria ali. Agora tá fechado. Então, num sei se você conheceu
a Neide Torres? Filha do Naor? Ela que era enfermeira aqui. Depois ela
falece. Ela faleceu e depois o posto fecho e nunca mais abriu. E promessa
de abrir teve bastante, mais abrir, abrir memo não abriu mais não... Aqui
não tem mais nada perto... Só a crechinha da vovó Xanda. Depois não tem
mais nada perto. É... Acho que é. Depois não tem mais nada perto não.
Depois tudo tem que ir pra cidade... (José Nicolau Sampaio, depoimento
colhido em junho de 2014).
Uma marca, portando, é a desterritorialização dos serviços, que em uma
tendência administrativa se centralizam e se desconectam do território de vivência.
Para Milton Santos, o lugar é “o quadro de referência pragmática ao mundo
do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas” (SANTOS,
2006, p. 218). Ou seja, o lugar deve determinar as ações políticas e sociais, pela
representatividade do mundo que imprime no cotidiano de muitas famílias.
O lugar deve ser referência e não contrareferencia para a política, pois deve
imbricar e conectar a família ao território, ao município, pela referência que expressa
na totalidade, entre os entes federativos.
Milton Santos (2006) ainda versa sobre a mobilidade, que pode em si ser um
fator capaz de obscurecer o brilho das particularidades do espaço, pois ao percorrer
o território, não em sua lentidão, mas sim em sua rapidez, acaba a ver pouco do
mundo, do lugar.
Numa abordagem recente, o MDS já reafirma a questão do território como
referência. Segundo o documento, o território é
(...) um ponto de partida tanto para a proteção e defesa, como para a
compreensão das condições concretas e das relações que se estabelecem
nos territórios de vivência. O território é essencialmente dinâmico. (MDS,
2013, p. 43)
128
A realidade de cada indivíduo e de sua família, em particular da família
Sampaio, imprime marcas que devem ser referências para a política, pois cada lugar
é distinto, particular, importante e representa os sentidos de viver e de vivências em
muitos territórios de uma cidade.
A realidade vivenciada pela família Sampaio tem como marco seu modo
particular de viver, de “sobreviver às adversidades”, uma realidade vivida a seu
modo e meio, sem e a presença do Estado, tendo apenas a sociabilidade como rede
de proteção. Mas a realidade vivida pode trazer à luz, por sua distinção,
semelhanças com outros lugares, que, muitas vezes, também se desterritorializaram
do foco da política.
Quanto ao lugar e suas vivências, Milton Santos já revelava que este
expressa como
(...) um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e
instituições – cooperação e conflito são a base da vida comum. Porque
cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque
a contiguidade é criadora de comunhão, a política se territorializa com o
confronto entre organização e espontaneidade (SANTOS, 2006, p. 218).
O território vivido e o território de vivência devem se conectar, pois
apresentam as nuances para as mediações necessárias entre o todo e o uno, entre
as vivências e sua transposição em políticas.
As trajetórias de famílias entrecruzam a própria trajetória do lugar, que nem
sempre são abarcadas em sua totalidade. Ao serem contadas e contempladas, as
experiências particulares se aproximam e se distanciam dos marcos legais.
As marcas do lugar, das famílias, dos Sampaio em si, deveriam ser mediadas
junto ao mundo, na cidade. Estas mediações não deveriam rejeitar estes lugares,
pois as marcas, mesmo não sendo marco para uma política, fazem com que o lugar,
reconhecido ou não, aja como uma norma, mesmo que só na interpretação desta
família.
Neste imbricamento entre território e família, portanto, é que se evidenciam as
desconexões que atrelam a política social à cidade.
129
Ao entender e compreender o território rural, evidencia-se que, mesmo sendo
territórios particulares, muitas vezes o acesso aos serviços e aos equipamentos só
se dá no acesso à cidade e suas franjas mais próximas.
A cidade, nessa interpretação, representa o acesso, a cidadania, o acesso ao
direito de ir e vir, de ser protegido e reconhecido como cidadão.
Nos depoimentos colhidos, a questão da cidade, com todos seus brilhos e
serviços, coloca-se como pano de frente - não de fundo - na interpretação de que as
vias de sobrevivência nos territórios referenciados podem se dar pelas relações de
solidariedade e sociabilidade, e não pelo acesso à política de assistência social
dentro de sua totalidade.
A cidadania, portanto, à luz dos depoimentos, só se dá pelo acesso à cidade,
com todas as suas particularidades e singularidades, que excluem os que vivem na
cidade não legal.
130
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e
semeando, no fim terás o que colher.”
Cora Coralina
Ao chegarmos às considerações finais, muitas questões emergem e
movimentam os caminhos, as caminhadas realizadas até aqui. Muitos caminhos e
mudanças de rota foram percorridos nesta pesquisa. Eles demonstram a
complexidade de resultados e muitas incertezas ao longo deste processo, que
apontam para muitos quesitos a serem problematizados diante do imbricamento
entre família e território, territorialidade e gestão da assistência social.
São ainda evidências de uma consideração e não uma conclusão, pois os
passos percorridos expõem apenas os fios que entrelaçam a cidade ao território e as
relações que ele imbrica e conecta junto às famílias.
Esquadrinhar os espaços, os territórios e desafiar-se em interpretar os modos
de vivência e de sobrevivência dentro de um espaço particular exige muitos
movimentos de idas e vindas.
Percorrer o território com os passos de quem o vive no cotidiano evidencia
que muitas desconexões se exprimem quando se incorporam categorias, como as
estudadas: família e território.
O território percorrido apresenta-se como espaço comum, espaço de vivência
e que muito tem a dizer dos que nele circulam. Como espaço vivido, a vida ali se
expressa como forma de sobreviver, sobreviver em família e na família. O território
denota questões que perpassam o enraizamento e o sentimento de pertença.
O lugar apresenta uma força - a força do lugar expressa por Milton Santos
(2006) - que faz repensar os movimentos de mudança, que faz retornar ao ponto
cardeal, que imbrica as relações de família e em família ao território.
131
Assim, família e território se imbricam, num movimento que, ora os conectam
À cidade e ora os desconectam dela.
É no território, em especial da família Sampaio, que os sujeitos lutam, criam
outras formas de sobrevivência, que “apelam” para os seus, que retornam, que
criam laços e redes de solidariedade e sociabilidade, que se mobilizam para superar
as desigualdades. O território pesquisado traz em si a marca da territorialidade pelas
lutas, pelo significado social que este imprime, pela resistência, pela solidariedade
nos momentos difíceis, pois é um território onde um ajuda o outro, um corre atrás do
outro nos momentos de dificuldades. Esta dinâmica, em si, revela que nesse
território a proteção social existe, mesmo que forjada, terceirizada à família e à rede
de vizinhança.
Pensar a cidade e seus entornos é interpreta-la para além da visão de
município, que traz em si características meramente administrativas e de gestão.
Falar em cidade e não em município foi estratégico, pois veio a demonstrar que a
cidade, ao ser sinalizada como município, tem como finalidade administrar e
gerenciar serviços, políticas, programas, destoando em sua totalidade, que pode
abranger
particularidades
e
singularidades
que
consideradas
apenas
administrativamente não são contempladas.
A cidade é pensada por meio e a partir de seus serviços, nas tramas de
oportunidades que se estabelecem, de seu acesso, das relações que os sujeitos
estabelecem por meio do trabalho e de outras relações que ele proporciona. Acessála, portanto, promove uma relação de pertencimento, de cidadania.
As narrativas dos sujeitos desta pesquisa trazem à luz o fato de que nem
sempre a cidade torna o pertencimento fácil, acessível, e que há uma tendência à
centralização, que desconecta um território da cidade.
A cidade de Piedade, por sua conformação territorial ser, desde sua gênese,
composta por famílias que ocuparam a porção rural, desconecta estes territórios do
todo. E são justamente esses os territórios mais vulneráveis socialmente.
Essa desconexão imprime um alheamento da própria gestão municipal de
assistência social em relação à política de assistência social, a qual estabelece a
132
territorialidade como forma de interpretar o território sob um olhar social, nos termos
de Saquet (2007).
Porém, nos cursos desta pesquisa, verifica-se que a territorialidade vai
perdendo seu sentido social, minando para características mais administrativas
apenas.
A autora Dirce Koga (2008, p. 39), versa a respeito da territorialidade e afirma
que “esta se faz pelos significados e ressignificados que os sujeitos vão construindo
em torno de suas experiências de vida em dado território”. Ou seja, a questão do
território sinaliza que não há como identificar o território sem aferir a vivencia
territorial dos indivíduos junto a ele, ao chão que pisam, ao seu pedaço de mundo,
“cada lugar é, à sua maneira, o mundo”. (SANTOS, 2006, p.213).
A autora Aldaíza Sposati (2008), também, ao evidenciar a questão da
territorialidade, analisa que se faz necessário compreender de forma democrática a
própria formação territorial, considerando, dentro da perspectiva de totalidade, a
particularidade vivida por cada indivíduo em seu espaço de vivência.
A percepção, portanto, no cotidiano da gestão da política de assistência social
sobre a cidade, tem sido parcial e não territorializada, pois desconecta os sujeitos e
suas redes de sociabilidade, as famílias e muitos territórios de vivência,
fragmentando e polarizando ações, dividindo a cidade em territórios de abrangência
que não abarcam a questão elegida pela própria política: territorialidade.
Ao imbricar família e território, no bairro do Piratuba Sampaio, a partir dos
depoimentos colhidos junto à família Sampaio, Sra. Lazara, Sra. Virgilia e Sr. José,
mostram que há pontos desconectados, fios que ainda não foram entrelaçados junto
às tramas da cidade e que demandam estudos sobre a dinâmica territorial.
Se quisermos conhecer de fato o território e tomá-lo como uma categoria
válida na gestão municipal da política de assistência social, ele deve ser interpretado
e alinhado à família, pois são estes sujeitos que constroem e reconstroem suas
vidas no espaço, num processo dialético de relações e imbricamentos.
A família Sampaio muito teve a dizer quanto tais questões, pois em seus
depoimentos referendaram que a cidade é acessada apenas através de seus
133
serviços, que tendem a se retirar do espaço de vivência por facilidades de gestão
apenas. Neste jogo de ausências, a família, conforme citam mais de uma vez os
sujeitos de pesquisa, encontra maneiras de suprir as ausências da gestão.
É neste chão de relações que a territorialidade deve andar, construindo um
processo de ação e reação, de intervenção e construção contínua a partir da
interação dos homens em seu território de vivência, pois é na casa, no bairro, no
Piratuba Sampaio que a história se movimenta, complexa e simplificada ao mesmo
tempo em relação ao pertencimento, ao sentir-se incluso. A identidade que cada
sujeito imprime em seu espaço, portanto, merece atenção e interpretação.
Nas especificidades desta pesquisa, observamos que a construção do
território do Piratuba Sampaio está assentada na luta cotidiana de sobreviver às
adversidades, na perseverança em meio às lutas, nos contratempos, na guerra
travada em que sobrevivem em família e em um território excluso, sem
investimentos e recursos públicos, com qualidade de vida deficitária, com mobilidade
reduzida e com tantas outras ausências.
Mas é neste território também que verificamos as potencialidades da cidade
de Piedade, pela criação de redes e teias de solidariedade que se mobilizam na
superação das adversidades.
Por isso, a cidade deve ser entendida como “espaços de revelação, possíveis
de serem sentidos e compreendidos como espaços de vínculos e criação de
sociabilidades humanas” (DINIZ, 2011, p. 80) não apenas como um instrumento de
enquadramento, de nivelamento, operacionalizada a partir de instrumentos.
Entrelaçar família e território nesta pesquisa traz à luz que estes não são
instrumentos apenas, mas sim categorias vivas e mutantes que devem ser
interpretadas através e a partir dos movimentos que efetivam dentro da cidade,
mesmo que os espaços sejam longínquos e descentralizados.
Entrecruzar família, território, territorialidade e a gestão local da assistência
social em Piedade, imbricá-los e conectá-los é pensar na vida real e cotidiana vivida
pelo sujeito em seu espaço, é estar atento a como e de que modo eles acessam
seus direito e como, de fato, a cidadania se concretiza em suas vidas.
134
Conectar e imbricar território e família nos coloca mais próximos da realidade
de quem vive a vida, da vida real dos sujeitos e de suas relações, pois ao refletir
sobre essa dinâmica, estamos repensando a política, a gestão, a territorialidade.
135
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