Monetarização das políticas sociais: a lógica do capital que porta juros
Giselle Souza da Silva 1
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Eje temático:
Palabras claves:
Resultados de investigaciones.
Políticas Sociales y desarrollo en el contexto neoliberal y los
desafíos para el Trabajo Social.
Políticas Sociales; capital financero; Securidad Social
Introdução2
A análise das políticas sociais na atualidade em sua totalidade só é possível pelo
estudo dos múltiplos fenômenos que se apresentam na sociedade capitalista e suas
determinações. O sistema capitalista viveu então nos últimos tempos uma mudança
caracterizada pela passagem de um regime de acumulação centrado na esfera da
produção para uma acumulação de dominância financeira3.
O capital portador de juros constitui-se a partir do avanço das relações capitalistas
de produção até tornar-se, em nossos dias, dominante nas relações sociais. De capital
usurário do antigo regime, esta fração do capital torna-se base fundamental pra
manutenção e expansão da produção capitalista, puncionador dos lucros, ou seja, da
extração e realização da mais-valia.
Desde o desenvolvimento do capital na Idade dos monopólios – final do século XIX
– até o período recente, temos a hipertrofia do setor financeiro e ganha maior tonalidade,
jamais vista anteriormente, as operações financeiras internacionais. A atuação
desenfreada deste capital mundializado a partir da década de 1980 traz consigo a
anarquia da esfera financeira em relação à produção material, que tem conseqüências
sobre a economia dos diversos Estados nacionais, centrais e periféricos4. A política
econômica empreendida pelo capital financeiro fez aumentar exponencialmente o
endividamento estatal e este tem repercussão sobre o financiamento público das políticas
sociais.
1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, Brasil. Ponencia presentada en el XIX Seminario Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social. El Trabajo
Social en la coyuntura latinoamericana: desafíos para su formación, articulación y acción profesional. Universidad
Católica Santiago de Guayaquil. Guayaquil, Ecuador. 4-8 de octubre 2009.
2
Este trabalho é parte do projeto de dissertação elaborado com vistas à qualificação no primeiro semestre do ano de 2009
no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, e é também parte dos estudos realizados no Grupo de Estudos e Pesquisas em Orçamento Público e Seguridade
Social da mesma instituição coordenado pela Profª Drª Elaine Behring.
3
Sobre este estudo, Cf. Chesnais (2005).
4
Consequência em âmbito global dada a crise que nos acomete nos últimos dias e reafirma a contradição deste modo de
produção e desta forma de capital assentada na especulação.
1
Opera-se atualmente um largo processo de desmonte das políticas sociais
destinadas a reprodução social dos subalternizados ao capital, alargando-se a
apropriação privada de parte do fundo público5 pelos rentistas, donos do capital que porta
juros. E os mecanismos estratégicos para tanto são a transferência crescente de recursos
sociais para a esfera financeira de um lado – por meio das contra-reformas das políticas
sociais e do repasse de recursos do fundo público para o pagamento da dívida – e, de
outro lado, os programas de transferência de renda que, além de alimentar o capital
portador de juros por sua lógica, enfatizam a focalização das políticas sociais em
detrimento das conquistas de universalização duramente alcançadas pela classe
trabalhadora. Tais programas configuram-se na estratégia do capital portador de juros de
financeirização da vida social e contribui para a contra-reforma das políticas sociais e da
Seguridade Social.
O presente trabalho visa analisar as políticas sociais, fundamentalmente a
Seguridade Social brasileira na contemporaneidade a partir de uma análise marxista a
cerca do capital que porta juros e sua dinâmica, a qual envolve toda sociedade em
tempos de capitalismo financeirizado.
Do
capital
que
porta
juros
em
Marx6
à
mundialização
do
capital
na
contemporaneidade
O capital que porta juros sempre existiu na história, antes mesmo da sociedade
capitalista de produção, na forma de capital usurário. Mas é na sociedade capitalista que
esta forma de capital torna-se mercadoria específica com valor de uso e valor. O valor de
uso do capital que porta juros é o de ser utilizado como capital, impulsionando a produção
de valor através do capitalista funcionante, aquele que investe diretamente no processo
produtivo. Por sua vez, o valor deste capital assume a forma de juro. Para entendermos
melhor, voltemos à teoria do valor. Marx afirma novamente no livro III que a riqueza
provém do trabalho e só este é capaz de criar valor. Se é somente o trabalho que cria
valor, o que determina o juro? O juro, ou a remuneração do capital que se converte em
5
Aqui compreendido historicamente como uma conquista política da classe trabalhadora e instrumento vital para a
reprodução da força de trabalho, e também um pressuposto fundamental do financiamento da acumulação do capital,
segundo Oliveira (1998). Para o autor o fundo público explica uma forma de sustentação de produção e reprodução do
valor, sendo tensionado – de forma desigual – em favor dos interesses do capital e da força de trabalho. Discordamos,
porém de sua concepção de ser o fundo público um antivalor por não ter como finalidade a geração de lucros. Embora não
gere lucros diretamente, ele está intrinsecamente ligado ao ciclo de produção e reprodução do valor e não pode assim ser
considerado uma antimercadoria, um antivalor (Behring, 2007).
6
Tomaremos como referência neste item a seção V do Livro III d’O Capital de Karl Marx, que tem como questão
fundamental as implicações da transformação do capital em mercadoria num dado momento de desenvolvimento do
sistema capitalista. Marx assinala nos capítulos desta seção as profundas transformações do capitalismo, que serão
posteriormente analisadas Lênin (2005) e outros autores da tradição marxista.
2
mercadoria, corresponde a uma parcela do mais-valor extraído pelos capitalistas
funcionantes, cuja atividade destina-se a extrair mais valor. Os juros são uma parte do
lucro como define Marx:
a parte do lucro que lhe paga chama-se juro, o que portanto nada mais é
que um nome particular, uma rubrica particular para uma parte do lucro,
a qual o capital em funcionamento, em vez de pôr no próprio bolso, tem
de pagar ao proprietário do capital. (1983. p.256)
Sob a forma dinheiro – equivalente de troca que em si já é meio alienante de
equiparação de diferentes valores de uso, na qual se apaga todas as determinações – o
capital que porta juros parece não estar “contaminado” pelo processo de extração de
mais-valia. Como diz o autor, “da mesma maneira que o crescimento pertence à árvore,
assim o produzir dinheiro pertence ao próprio capital nesta sua forma pura de [capital]
dinheiro” (Marx, 1982, p. 197). Assim, como capital que porta juros, o capital assume a
forma mais pura de fetiche. Constitui-se na forma mais alienada e fetichista do capital por
fazer desaparecer – para os que não têm clara a base social que o dá vida – as
mediações dos processos de produção e circulação. Porém, como nos esclarece a
análise de Marx, o excedente neste modo de produção só pode vir do trabalho humano
não-pago, e este interessa tanto ao capitalista envolvido diretamente nesta expropriação
quanto ao que espera apenas seus resultados, parte do lucro, o juro.
Quando o capital portador de juros passa a operar com a especulação, com a
acumulação futura, descolada de sua base real, material, como no caso dos títulos
públicos, tem-se o que Marx denominou capital fictício, que se origina daquela forma de
capital. O capital fictício constitui-se na forma ilusória que adquire os rendimentos que
parecem provir do capital portador de juros. Neste caso, a emissão de papéis, como nas
sociedades por ações e os títulos da dívida pública, são a forma ilusória, fictícia que
assume o capital ao especular com o que Marx chama de valores imaginários,
A emissão de títulos e ações amplia a acumulação e valorização do capital do
capital, e, se o juro que remunera o capital que porta juros só pode provir do lucro, a
especulação constitui-se em uma forma de aumentar a exploração da força de trabalho,
fonte de criação de toda a riqueza. Assim, desmistifica-se a idéia de ser o juro a
“procriação” do capital e sua remuneração por usá-lo por determinado tempo. Esta é sua
aparência. Sua essência é ser ele parte do lucro, remuneração por usar o capital a fim de
produzir mais valor no processo de trabalho.
Esta forma de capital ganha acentuada centralidade no capitalismo na idade dos
monopólios, porém o capital portador de juros não está mais sozinho. O processo de
3
concentração e centralização do capital em alto grau de desenvolvimento leva aos
monopólios e faz com que se desenvolvam o capital bancário e industrial de tal forma que
permite a fusão entre ambos, o qual Lênin chama de capital financeiro7. Mandel
(1982),
ao analisar a fase monopolista avançada do capital, afirma o que Lênin já havia apontado:
a concentração de capital a nível nacional conduziu igualmente à centralização do capital,
o que significou uma redução nas disparidades entre os diferentes capitais por força dos
monopólios e associações monopolistas. Tal movimento levou à supercapitalização que
nas palavras de Mandel significou
(...) uma expansão crescente de capital e a um interesse capitalista cada
vez maior não apenas em expedições militares periódicas para
assegurar a livre exportação de mercadorias, mas em ocupação e
controle militares permanentes para garantir novos campos de
investimento para as exportações de capital (Mandel, 1982, p. 220).
Para Mandel, este estágio tardio do capitalismo monopolista – o período pós
Segunda Guerra Mundial – amplia as funções do Estado, não só no âmbito do
planejamento econômico estatal como na socialização dos custos, no que define como
“tendência inerente ao capitalismo tardio à incorporação pelo Estado de um número
sempre maior de setores produtivos e reprodutivos às ‘condições gerais de produção’ que
financia” (p. 339). Crescente parte do orçamento público é destinada tanto a acumulação
do capital quanto à reprodução da força de trabalho, assumindo o Estado um elenco de
funções econômicas diretas e indiretas à reprodução ampliada do capital. Assim, as
dificuldades de valorização do capital e realização da mais-valia dão origem à hipertrofia e
autonomia crescente do Estado capitalista tardio.
As transformações a que passa o capitalismo a partir da década de 1970
produzem uma nova forma de organização da vida social em torno da relação Estado,
capital e força de trabalho. No âmbito das relações entre o modelo de produção chamado
de “acumulação flexível”
8
e o Estado, este se refuncionaliza, deixando de lado seu
caráter social – fruto também de conquistas da classe trabalhadora. A liberalização e
desregulamentação dos mercados retomam o princípio liberal de laissez-faire, de
mercados auto-reguláveis. Mas ainda que a intervenção do Estado, enquanto regulador
da economia tenha sido consideravelmente diminuída, sua função enquanto garantidor
das condições gerais da produção capitalista não cessam – por ser precisamente este
seu papel central, mas não único, neste modo de produção – já que o novo modelo de
7
8
Para um estudo mais aprofundado ler Imperialismo: fase superior do capitalismo de Lênin (2005).
Cf. Harvey (2004).
4
produção depende que o Estado assegure as condições necessárias ao capital para que
este obtenha o êxito no processo de acumulação e valorização.
A partir do final do século XX, tem-se uma nova configuração do capitalismo
mundial circunscrita a uma nova fase do imperialismo, para Chesnais (1996), a fase da
“mundialização do capital”. O estilo de acumulação desta fase vem das novas formas de
centralização de gigantescos capitais financeiros (fundos mútuos e fundos de pensão),
que tem função de frutificar-se na esfera financeira.
O mecanismo de transferência de riqueza para a esfera financeira que mais nos
interessa tratar aqui é o serviço da dívida pública. Esta se torna fonte de poder dos fundos
de investimento e sobrecarregam o capital fictício (Iamamoto, 2008). Remunerados à
altas taxas de juros sempre superiores ao crescimento da economia, como no caso
brasileiro, estes títulos, ao buscar o financiamento do déficit orçamentário, funcionam
como uma bola de neve sobre o endividamento público. Os grandes credores da divida
pública são hoje os fundos de pensão e fundos mútuos de investimento (aplicam cerca de
um terço das carteiras em títulos da dívida). Parte significativa dos recursos sociais,
advindos dos impostos e contribuições sociais, é destinada a esses fundos. E a
remuneração destes credores da dívida pública, dos rentiers, é feita por meio do
desmantelamento das conquistas sociais, do desfinanciamento das políticas sociais.
O capital que porta juros, o capital fetiche, ao estender sua lógica para o Estado,
por meio fundamentalmente da emissão de títulos da dívida pública, se apropria também
de parte do trabalho necessário constituído em forma de políticas sociais e ainda
diretamente por meio do crédito, ao inserir a classe trabalhadora no circuito das finanças
à custa do seu endividamento. As políticas sociais se tornam serviços as quais os
trabalhadores compram por meio do crédito.
Capital portador de juros e políticas sociais: monetarização dos direitos
A supremacia do capital fetiche atinge todos os âmbitos da vida social e a sede de
lucratividade desta forma de capital se espraia para além dos investimentos privados. As
políticas sociais se tornam alvo de investimento do capital financeiro, tentativa de
solucionar o fenômeno da superacumulação. A grande massa de capitais ociosos em
busca de valorização empurra para a privatização (direta ou indireta) alguns setores de
utilidade pública como campo de inversão do lucro em serviços de saúde, de educação e
de previdência (Behring, 2008).
5
A lógica de financeirização das relações sociais atinge os recursos destinados à
reprodução social da classe trabalhadora. A seguridade social – sistema de proteção
social constituído em boa parte do mundo que tem base em determinadas políticas
sociais – transforma-se em alvo prioritário de mudanças e ajustes tanto nos países
centrais do capitalismo como nos países periféricos9. Os organismos internacionais são
os mentores da aplicação das (contra-) reformas e seus documentos orientam a quebra
da universalização das políticas de assistência social, saúde e previdência ao enfatizarem
a necessidade da focalização destas políticas numa gestão “eficiente” do Estado.
O endividamento público – produto da política monetária recessiva, da
liberalização e desregulamentação financeira, da abertura dos mercados – faz com que
as conquistas da classe trabalhadora sejam destruídas total ou parcialmente, por meio de
contra-reformas. No Brasil, as políticas de saúde, previdência e assistência social, a partir
da década de 1990, são alvo de regressivas reformas no momento em que a crise do
capital – fruto das contradições do processo de acumulação – passa a ser respondida por
meio de medidas denominadas neoliberais. O orçamento da seguridade passa a ser o
mais afetado por estes ajustes fiscais praticados nos últimos governos em nome da
“redução do déficit nas contas públicas”. E a finalidade destas reformas para o grande
capital consiste em suprimir os direitos sociais já conquistados e alargar as “conquistas”
do capital10.
Um dos mecanismos fundamentais utilizados para “minimizar os impactos dos
gastos com a dívida” e “equilibrar as contas públicas” – objetivos estes propostos pelas
grandes agências multilaterais – é a Desvinculação de Recursos da União (DRU) de
200011. Esta, ao (re)alocar recursos para formação do superávit primário promove a
transferência de recursos – que deveriam financiar e ampliar as políticas da seguridade
social – para financiar a dívida pública. Tal mecanismo possibilitou o repasse de milhões
de reais das políticas sociais para o grande capital e por isso pode ser classificado como
um tipo de programa de transferência de renda para os rentistas (Antunes e Gimenez,
2007) já que transfere recursos das políticas sociais destinadas à classe trabalhadora
9
Para maior aprofundamento a cerca da cultura da crise dos sistemas de Seguridade Social ao redor do mundo, cf. Mota
(2000).
10
Não é a toa que ganha tonalidade a afirmativa falaciosa do déficit do sistema de previdência pública, daí necessidade de
reformá-lo.
11
Criada anteriormente sob a forma de Fundo Social de Emergência (1994) e depois Fundo de Estabilização Fiscal (1997) e
a partir de 200 é reformulada com a denominação de Desvinculação de Recursos da União. com a qual a seguridade passa
a ser a mais atingida já que permite a desvinculação de 20% dos recursos destinados às políticas da Seguridade Social. O
referido mecanismo transfere os recursos do orçamento da seguridade social para o orçamento fiscal com a finalidade de
facilitar a formação de superávits. O superávit primário produzido é destinado prioritariamente ao pagamento de da dívida
pública.
6
para o pagamento de juros da dívida. O fundo público passa a ser canalizado de forma
direta para alimentar o mercado financeiro.
A contra-reforma do sistema de seguridade social nada mais é do que uma
estratégia do grande capital de consolidar as bases do projeto neoliberal ao qual se
vincula e garantir, de um lado, a transferência de recursos das mãos da classe
trabalhadora
(políticas
sociais)
para
a
acumulação
e
valorização
do
capital
(particularmente o capital portador de juros, via pagamento da dívida pública pela
remuneração de títulos públicos); e, de outro lado, possibilitar a expansão do capital para
setores das políticas sociais que lhe são atraentes, como novos nichos de investimento –
para responder à crise da superacumulação – e de alta lucratividade
Ao mesmo tempo – e não como elemento autônomo e desconexo do avanço do
capital sobre as políticas de seguridade social – ganham ênfase no Brasil – e na América
Latina – os programas de transferência de renda, tais como o Bolsa Família 12. As
conseqüências desta dinâmica do capital na cena contemporânea é o agravamento da
questão social e se expande 13 a desigualdade de toda ordem. Uma das maiores
expressões da questão social radicalizada na contemporaneidade é a ampliação da
pobreza. E é neste aspecto que entram em cena os programas focais, pobres para
pobres. A transferência de renda funciona como uma espécie de alavanca para incluir no
circuito de consumo dos bens, serviços e direitos existentes na sociedade grupos sociais
que estão impedidos dessa participação14. Inserem o segmento da classe trabalhador
mais pauperizado no mundo do consumo e as inclui no circuito de financeirização da vida
social ao operarem com a transferência de dinheiro por meio de instituições bancáriofinanceiras.
Os programas de transferência de renda operam com o repasse das ditas “bolsas”,
promovem a inserção das camadas mais pobres no processo de circulação de
mercadorias e garantem a reprodução da acumulação capitalista. As ditas “bolsas” que
transferem renda de forma monetizada e focalizada e com valores ínfimos para os
estratos mais pobres da população e sem qualquer efeito efetivamente redistributivo. Ao
lado da desregulamentação monetária e financeira e da abertura dos mercados e
manutenção de índices elevados das taxas de juros, desmontam-se os equipamentos
12
Criado em 2003 o Programa Bolsa Família visa organizar e unificar os demais programas já existentes e consistirá em
benefício monetário às famílias em situação de extrema-pobreza e miséria
13
Sobre a questão social, sua gênese e sua configuração nos marcos do capital mundializado, cf. Iamamoto (op. cit.)
capítulo II.
14
Em uma pretensa análise podemos dizer que assim como o crédito atua para meio de garantir o consumo das massas
trabalhadoras e assim a valorização do capital – daí sua importância para a produção capitalista em si contraditória –
podemos dizer que tais programas funcionam também com este fim mas para classe mais pauperizada, para os pobres e
miseráveis, agora inseridos no circuit do consumo, ainda que do subconsumo.
7
públicos e se financeirizam os serviços ao mesmo tempo em que são abertos novos
espaços de acumulação e valorização do capital. E isto só é possível porque realizadas
contra-reformas nas políticas sociais, especialmente na seguridade social, para
“desuniversalizar” as políticas sociais e destruir os direitos legalmente conquistados. Os
programas de transferência de renda, segundo Gonçalves e Filgueiras (2007) são a
contra face das políticas econômicas baseadas no superávit fiscal primário.
Há uma ligação direta e estreita entre a política econômica que privilegia o
pagamento de juros e as “bolsas”. A política do governo de Fernando Henrique Cardoso
engendrou uma gigantesca dívida pública que drena cada vez mais recursos do Estado, e
o governo Lula tem prosseguido no mesmo caminho. Em tempos de capital fetiche
ganham enorme espaço estes programas já que são de grande poder ideo-político e
relativamente ‘baratos’ em seu custeio em relação ao investimento em políticas sociais
universais. Com “a falta de recursos devida aos exorbitantes gastos com juros, conseguese um pequeno montante de recursos públicos para prover uma pequena bolsa para a
população mais pobre” (Antunes e Gimenez, 2007, p.67).
Os recursos cada vez maiores destinados ao pagamento da dívida pública são
subtraídos das políticas sociais, fundamentalmente, da Seguridade Social por meio da
Desvinculação de Recursos da União e “sobra” aos governos para combaterem o
agravamento da questão social e possíveis tensões – que culminem em insubordinação
da parcela da população que vive nas condições mais precárias – operar com programas
focalizados, de baixíssimo alcance e valores pífios.
Os repasses feitos pelas instituições bancário-financeiras, com benefícios
pauperizados mediados pelo cartão magnético, expressão alienante e monetarizada do
direito, se sustentam no discurso ideológico de eficiência, eficácia e racionalidade das
instituições privadas na gestão do fundo público. De outro lado, recursos são drenados
das políticas sociais para alimentar a elite rentista, os “acionistas das finanças”, grandes
beneficiários da política econômica recessiva e do desmantelamento das políticas sociais
(Granemann 2007).
E mais, tais programas remuneram o capital portador de juros ao transferir a
distribuição dos recursos a estas instituições bancário-financeiras, as quais são pagas
pelo Estado para realizarem tais operações. Ou seja, se os beneficiários dos programas
não pagam diretamente pelo uso dos serviços dos bancos que recebem o benefício, o
8
Estado o faz. Consistem assim na monetarização dos direitos sociais15, tornados
mercadoria e substituídos por recursos monetários, por dinheiro, e não mais acesso a
serviços universais. A alienação é exacerbada e levada ao seu extremo.
Desta forma o capital realizará, então, como resposta a esta sua necessidade as
contra-reformas do Estado e diminuirá a atuação deste para a classe trabalhadora ao
mesmo tempo em que ampliará as bases e as possibilidades para a valorização do
capital. Em outras palavras: os instrumentos que permitem remunerar os capitais
especuladores são as contra-reformas. Os direitos sociais e políticos são limites
importantes para a extração de mais-valia e ao entendermos que todo lucro e, portanto,
todo juro, vêm da extração da mais-valia, compreenderemos que as contra-reformas
governamentais ao reduzirem os direitos sociais e políticos, reduzem os mecanismos
limitadores da extração da mais-valia, do lucro, e também da parte financeirizada desse
lucro, o juro.
Considerações Finais
O capital portador de juros, forma mais mistificada e fetichizada do capital, tornase em nossos dias central na dinâmica capitalista e sua atuação mundializada subordina
as demais formas de capitais. O estudo do capital portador de juros numa perspectiva
crítica e marxista permite-nos compreender os fenômenos sociais que se apresentam a
partir de determinado grau de desenvolvimento do capitalismo na sua totalidade.
A proteção social tanto nos países centrais como periféricos sofrem com os
rebatimentos com a mundialização do capital. As políticas sociais passam a ser organizar
de acordo com os interesses do capital com base nas finanças. Isto se traduz tanto no
desmonte dos direitos sociais até então conquistados – permitindo a expansão do capital
superacumulado para os serviços sociais, por meio das contra-reformas, como novos
espaços de valorização – quanto na focalização das políticas e programas destinados aos
mais atingidos pela financeirização do capital, os pobres e miseráveis. Este é o caso dos
programas de transferência de renda.
Para privilegiar o capital com ênfase nas finanças, os governos de Fernando
Henrique e Lula da Silva seguem a política econômica orientada pelo capital internacional
15
Análise trazida por Granemann (2007), na qual autora afirma que os programas de transferência de renda inserem a força
de trabalho no mundo das finanças por meio do provimento de “bolsas” e transformam o cidadão de direitos em “cidadãoconsumidor”. Tais ‘bolsas’ são fundamentais para a reprodução da acumulação capitalista porque “A modelagem destas
novas mercadorias exige do Estado a redução das políticas sociais como equipamentos públicos e sua transformação em
‘direitos monetarizados’ operados nos mercados bancário-financeiros e não mais como ações do Estado executada por um
corpo de servidores próprios” (Granemann, 2007, p. 58).
9
em meio ao processo de mundialização da economia, ao mesmo tempo que, ampliaram e
ampliam as possibilidades de aplicação das orientações das agências multilaterais e a
focalização passa a ser palavra e ação chaves na condução dos projetos e programas
sociais. Ganham enorme espaço no cenário social os programas de transferência de
renda com condicionalidades e estes passam a ter a primazia na condução das políticas
assistenciais.
Assim, os programas de transferência de renda nos moldes do Programa Bolsa
Família, além de importante medida para conter as tensões sociais advindas das classes
extremamente pauperizadas, permitem o aprofundamento da financeirização das relações
sociais em todos os segmentos da classe trabalhadora. Sua funcionalidade e sucesso
para o grande capital é inegável tanto no âmbito ideológico quanto no econômico. Porém,
na perspectiva da classe trabalhadora, é incontestável serem tais programas de
baixíssimo efeito redistributivo e contrariarem os princípios de universalidade e equidade;
ademais de não se constituírem em direitos contestáveis legalmente por não encontrarem
sustentação em legislação e lutas de cunho menos transitório do que a vontade dos
diferentes governos. São paliativos construídos diante do agravamento da ‘questão social’
e operam com bastante eficácia as estratégias do capital para a manutenção e o
crescimento da acumulação do capital financeiro, ainda que travestida como ‘política
social’.
10
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12
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